Upload
eliascs
View
21
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Esta pesquisa avalia o conforto termico das residencias projetadas pelo aruiteto Rino levi, um dos protagonistas da arquitetura moderna brasileira, que se caracterizam pela presença de jardins integrados aos ambientes internos. As sete obras residenciais estudadas localizam-se em regiões diferentes do território brasileiro e apresentam soluções para p condicionamento térmico de acordo com as exigências climaticas do local, tais como elementos de proteção solar, dispositivos para ventilzação cruzada ou instalação de calefação.
Citation preview
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
RENATO PRELORENTZOU
SOMBRA DE UM LIVRO Histria e fico na leitura de Amphitryon, de Ignacio Padilla
So Paulo
2008
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
RENATO PRELORENTZOU
SOMBRA DE UM LIVRO Histria e fico na leitura de Amphitryon, de Ignacio Padilla
Dissertao apresentada ao programa de ps-graduao em
Histria Social do Departamento de Histria, da Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So
Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Jlio Pimentel Pinto
So Paulo
2008
Para Jos Brighenti e Antonio Prelorentzou,
por suas histrias.
Sumrio Agradecimentos.................................................................................................................... 4 Resumo.................................................................................................................................. 6 Abstract................................................................................................................................. 7 I. O LIVRO 1. Introduo Um signo para trs significados........................................................................................ 10 um livro na histria um livro de histria um livro da histria Resumo do Enredo, Cronologia e Diagramas.................................................................. 17 Nota do Editor...................................................................................................................... 18 I Uma sombra sem nome Franz T. Kretzschmar Buenos Aires 1957...................... 18 II Da sombra ao nome Richard Schley Genebra 1948............................................. 23 III A sombra de um homem Alikoshka Goliadkin Cruseilles (Frana) 1960.......... 27 IV Do nome sombra Daniel Sanderson Londres 1989.......................................... 33 Colofo Ignacio Padilla San Pedro de Cholula 1999.................................................. 40 Cronologia............................................................................................................................ 42 Diagrama de Identidades...................................................................................................... 44 Diagrama de Locaes......................................................................................................... 45 2. Primeiro Sentido: um livro na histria o autor e a tradio Ignacio Padilla e o Manifiesto Crack aes e reaes................................................... 48 um autor na vida um manifesto na tradio um manifesto na crtica dois manifestos na crtica um manifesto na dcada um autor no manifesto mais uma leitura na crtica uma releitura na crtica Ignacio Padilla e o Manifiesto Crack antes e depois..................................................... 66 um boom na literatura latino-americana mais um crack na tradio de rupturas
1
um mexicano na matriz argentina um livro na histria II. A LEITURA 1. Instrumentos e conceitos A obra aberta e os protocolos de leitura: o leitor e o autor............................................ 82 2. Segundo Sentido: um livro de histria o temrio Anlise dos captulos.......................................................................................................... 92 N - Nota do Editor - ?........................................................................................................... 93 I Uma sombra sem nome Franz T. Kretzschmar Buenos Aires, 1957........................ 96 II Da sombra ao nome Richard Schley Genebra, 1948............................................. 101 III A sombra de um homem Alikoshka Goliadkin Cruseilles (Frana), 1960.......... 107 IV Do nome sombra Daniel Sanderson Londres, 1989.......................................... 117 V - Colofo Ignacio Padilla San Pedro de Cholula, 1999............................................ 124 Diagrama de Eco................................................................................................................ 131 Diagrama de Narradores.................................................................................................... 132 Diagrama de Instncias Discursivas................................................................................... 133 Diagrama de Perspectivas.................................................................................................. 134 Dilogos crticos com a tradio histrica e literria: desassossego e impostura...... 135 identidades de narradores e narradores de identidades autores de textos e textos de autores dedues de policial memrias de testemunhas e testemunhos de memria um livro de histria III. AS LEITURAS 1. Leitura e Escritura processos crticos de construo do conhecimento Histria: o paradigma indicirio.................................................................................... 163
passado, memria, histria, narrativa trpico, enredo, retrica, relato vestgios, sinais, ndices, provas narrativa ficcional, narrativa histrica, inveno, imaginao Histria e fico................................................................................................................ 185
2
livros, leitores histrias, historiadores leituras, escrituras 2. Terceiro Sentido: um livro da histria a simulao Histria e fico: Amphitryon.......................................................................................... 193 um livro da leitura um livro do indicirio um livro da histria Bibliografia e Fontes........................................................................................................ 211
3
Agradecimentos Em 1964, dezessete anos aps a publicao de seu primeiro livro, A trilha dos ninhos
de aranha, Italo Calvino retornou quelas pginas para tentar entender o prprio impulso de
tornar fico seu testemunho como jovem soldado na guerra de resistncia partigiana.
Naquele prefcio, a cada trs ou quatro pargrafos, Calvino desistia, recomeava, mostrava
dvida, depois remorso, depois arrependimento. Dizia que as leituras e a experincia de
vida no so dois universos, mas um. Cada experincia de vida, para ser interpretada, elege
determinadas leituras e com elas se funde. Que os livros sempre nascem de outros livros
uma verdade s aparentemente contraditria com a outra: que os livros nascem da vida
prtica e das relaes entre os homens. E contava que melhor seria nunca ter escrito A
trilha..., pois tal livro que eternamente o obrigaria a refut-lo ou aprofund-lo, a corrigi-lo
ou desmenti-lo, que o definiu mesmo que ainda estivesse muito longe de definir-se nunca
o consolaria do que havia destrudo para escrev-lo: a experincia que talvez lhe pudesse
valer a escrita de seu ltimo livro, mas que s lhe bastou para escrever o primeiro.
Nos primeiros dezoito meses em que estive matriculado nesse programa de ps-
graduao, tentei desenvolver uma pesquisa sobre Octavio Paz e as referncias expresso
latino-americana em sua obra. Foi ento que, no final de junho de 2006, a pesquisa se
voltou ao estudo de um outro autor mexicano e suas conexes com o mecanismo da
histria. Hoje seria ingnuo dizer que um projeto foi descartado em funo de outro ou que
toda e qualquer leitura anterior ou fortuita no tenha dado a este escrito uma contribuio
to fundamental quanto esses outros dezoito meses de estudo de Padilla, Eco, Ginzburg e,
talvez com outra inteno, Calvino. So, mais que as vicissitudes que se me impuseram
nesses ltimos anos, as leituras desses autores, leitores confessos de Borges, que marcam
este texto.
Agradeo a Jlio Pimentel Pinto, querido mestre, pela pacincia e inigualvel
generosidade com que, desde muito antes e para muito alm dessa pesquisa, orienta meus
itinerrios de leitura; Prof. Dr. Ana Cecilia Olmos e ao Prof. Dr. Nelson Schapochnik,
pelos valiosos comentrios ao relatrio de qualificao e, uma vez mais, por me
concederem o privilgio de contar com suas presenas na banca de defesa; a Juliana
Garrido Pereira, Fernanda Trindade Luciani, Joo Paulo Maro, Fernando Seliprandy
4
Fernandes, Daniel Lago Monteiro, Andr Junqueira Prevatto, Guilherme de Paula Santos,
Trcio Vancin de Azevedo, Ricardo Mendes, Joo Antnio Mallmann, Fausto Jorge de
Arajo, Jos Roberto Saglietti e Jos Roberto Saglietti Filho, amigos novos e antigos, por
compartilharem, cada um sua maneira, histrias e leituras de mundo nas infindas
conversas; a Deco, Gui e Flvia Helena, pelo carinho e apoio incondicionais; e, claro, a
Ana Maria e Pierre, por compreenderem, sempre.
So Paulo, dezembro de 2007
5
Resumo Este trabalho explora trs possveis significados para o romance histrico Amphitryon, de
Ignacio Padilla, e, a partir disso, estuda modos de interao entre histria e fico. O
primeiro sentido analisa-o como um livro na histria, uma obra marcante que se escreveu
sob o contexto de um manifesto clebre por tentar reorganizar a tradio literria latino-
americana. O segundo sentido toma-o como um livro de histria, um romance que no s
se aproxima de um gnero literrio afeito aos fatos historiogrficos, mas que, sobretudo,
articula contedos histricos, literrios e culturais sob formas narrativas que tambm
derivam do sculo passado. O terceiro sentido, finalmente, o l como um livro da histria,
uma narrativa que, pela disposio de relatos e narradores, simula o prprio mecanismo do
fazer histrico. Conduzindo essas argumentaes esto os princpios da dialtica forma-
abertura e da interao autor-obra-leitor, derivados de Umberto Eco, a noo de leitura e
escritura como forma de conhecer, cara a Jorge Luis Borges, e o paradigma indicirio, de
Carlo Ginzburg. A tentativa final fazer de um exerccio de crtica literria uma reflexo
sobre a histria. Para tanto, insiste-se na analogia entre verificao e interpretao de dados
e as mediaes livro-leitor-leituras, e adota-se a espiral de leituras historicizadas como
modo operativo que aproxima discursos ficcionais e discursos histricos, esboando-se,
ento, paralelos e limites nos percursos da produo historiogrfica e da produo ficcional
ao longo do sculo XX.
Palavras-chave: literatura latino-americana, identidade latino-americana, Manifiesto Crack,
leitura, fico e histria, paradigma indicirio, realismo.
6
Abstract
This work explores three possible meanings for the historical novel Amphitryon, of
Ignacio Padilla, and, from this, it studies ways of interaction between history and fiction.
The first meaning analyzes it as a book in history, a remarkable work that was written
under the context of a manifest notable for trying to reorganize the Latin American literary
tradition. The second meaning takes it as a history book, a novel that not only comes close
to the historiographies facts, but, above all, it articulates historical, literary and cultural
contents under narrative forms that are also drawn from the last century. The third meaning,
finally, reads it as a book of history, a narrative that, for the disposal of stories and
narrators, simulates the mechanism of history. As a guide line for these arguments, there
are the principles of the dialectic form-opening and the interaction author-work-reader,
derived from Umberto Eco, the notion of reading and writing as forms of knowledge, from
Jorge Luis Borges, and the evidential paradigm, of Carlo Ginzburg. The final attempt is to
make a reflection on history from a literary critical exercise. In such way, one must insist
on the analogy between verification and interpretation of data and the relations book-
reader-readings, and adopts the historic spiral of readings as an operative way that
approaches fiction and historical speeches, and so, outlining parallels and limits in the
course of the historiography and fictional production throughout the 20th century.
Keywords: Latin American literature, Latin American identity, Manifiesto Crack, reading,
fiction and history, evidential paradigm, realism.
7
pero mientras vivimos no podemos escapar ni de las mscaras no de los nombres y
pronombres: somos inseparables de nuestras ficciones nuestras facciones. Estamos
condenados a inventarnos una mscara y, despus a descubrir que esa mscara es nuestro
verdadero rostro.
Octavio Paz, El laberinto de la soledad
8
O LIVRO
No universo j no havia um continente e um contedo, mas apenas uma espessura geral de sinais
sobrepostos e aglutinados que ocupava todo o volume do espao, um salpicado contnuo, extremamente
minucioso, uma retcula de linhas, arranhes, relevos e incises; o universo estava garatujado em todas as
suas partes e em todas as dimenses. No havia mais como fixar um ponto de referncia: a galxia
continuava a girar, mas eu no conseguia mais contar seus giros, e qualquer ponto podia ser o de partida,
qualquer sinal acavalado nos outros podia ser o meu, porm de nada me serviria descobri-lo, to claro
estava que independentemente dos sinais o espao no existia e talvez nunca tivesse existido.
Italo Calvino, um sinal no espao, As cosmicmicas, 1965
9
Introduo
Um signo para trs significados
Talvez existam muitos sentidos para se definir como histrico um livro, para unir e
enunciar, lado a lado, as palavras livro e histrico. O mais simples ou recorrente deles seria
utilizado para definir uma obra como marcante, como objeto pontual e localizado
cronologicamente que se insere na tradio literria e reconfigura seu panorama: um livro
na histria. O compromisso com os fatos, exposto ou aludido em suas referncias a
acontecimentos e personagens reais, em seu intuito de reapresentar prismaticamente dados
empricos da existncia, tambm serviria a uma construo semelhante: um livro de
histria. O interessante, porm, seria pensar que um desses sentidos se apresentasse de
maneira cifrada, que, escondido nos signos da narrativa, por ela simulasse os mecanismos
prprios do termo que, somado ao primeiro, o qualifica; que, enquanto relato, uma obra
representasse a histria: um livro da histria.
Em Amphitryon, esses e outros significados no se excluem, multiplicam-se. Reunir
signos, interpret-los e buscar alguma fixidez por meio da enunciao so atos constantes
no romance de Igncio Padilla: um livro feito de histrias que so outras e de outros que
so impostores; narrativa em que histria e fico formam um duplo, em muitos sentidos.
um livro na histria
Amphitryon o mais relevante romance da ainda breve produo ficcional de um
jovem autor mexicano, membro de um movimento compromissado, desde sua
autodenominao, com a ruptura. O Manifiesto Crack, lanado em 1996, propunha-se a
descontinuar a chamada literatura ps-mgica, que havia diludo e simplificado as formas e
a esttica do boom internacionalizante da produo latino-americana dos anos 1960/70.
Para tanto, procurava adotar, ainda que de diferentes maneiras dentro do prprio grupo,
procedimentos de no-linearidade narrativa, de apego polifonia e ao uso de estruturas
elpticas e cifradas complexas escrituras que exigiam a colaborao do leitor.
10
Amphitryon expressa as intenes de uma gerao que pde desprender-se da tradio
local e imediatamente anterior para por meio de seus repertrios de leituras particulares
incorporar-se tradio ocidental e, assim, revisitar e reelaborar muitos de seus temas e
artifcios formais: os discursos psicolgicos de subjetividades conflitantes, o jogo com
temporalidades diversas, os diferentes focos narrativos, a aproximao com a literatura
histrica e de testemunho, a convivncia entre personagens reais e fictcios, os
questionamentos acerca dos limites e efeitos da fico e da histria. Uma gerao imersa na
tradio de ruptura do moderno que pressupe tambm continuidades que se impunha
nos itinerrios da literatura na Amrica Latina determinando novas posies para os
escritores do continente, e se reservava ao direito de tomar para si no apenas o patrimnio
latino-americano, mas o universal; que se permitiu no falar sobre Amrica, mas,
certamente, a partir da Amrica.
Padilla, portanto, rev, repensa e reformula a questo da expresso latino-americana e
seu espao no cenrio mundial, e possibilita a expanso das anlises do mbito dos dilogos
de seu movimento com a tradio literria os cnones ocidentais, a matriz borgeana, o
realismo mgico e suas diluies para as referncias a outros campos da cultura e do
conhecimento o cinema, as artes visuais, a filosofia e a histria , o que torna vivel a
interpretao de Amphitryon como um temrio do sculo XX, expresso em suas
reelaboraes formais e tambm nas reflexes de seus contedos.
um livro de histria
O esfacelamento da narrativa realista, que no mais pde representar o mundo
fragmentado, o esfacelamento dos autores em sua existncia desassossegada de
indivduos na multido da modernidade. As formas derivadas desse experimentalismo
literrio, suscitado pelo catico cenrio do sculo XX, so revistas por Padilla; os
acontecimentos determinantes e determinados desse quadro de incertezas tambm esto
contidos em seu livro: as duas grandes guerras mundiais, a dissoluo das identidades e a
questo dos nacionalismos europeus, o nazismo. Amphitryon um relato sobre conscincias
em conflito com a experincia histrica traumatizante; uma listagem de ocorrncias do
desassossego nas esferas particular e coletiva, na subjetividade e na objetividade. Seu autor
11
l os fragmentos deixados pela tradio literria e historiogrfica e reescreve um
inquietante livro sobre indivduos em busca e em dvida e os localiza no cenrio de
fragmentao do mundo e das certezas, no sculo da descrena e da quebra das
transcendncias: sculo (da conscincia) da impostura. No individual e no coletivo.
Os narradores de Amphitryon esto em latente procura por imagens de fixidez onde
possam ancorar justificativas para suas existncias: o nome prprio, a filiao, a ptria, a
religio, a memria, a totalidade, a essncia, o ncleo-rgido redentor ao qual retornar.
Entretanto, o enredo se desencadeia por processos destrutivos de desmontagem e de cincia
da condio de falsificao e engano: o ssia, a sombra, o bastardo, o falsrio, o dubl, o
ghost-writer, o absoluto descrente. A narrativa, anloga ao sculo XX, parece querer aludir
aos fracassos ideolgicos e provar a falncia das crenas e dos idealismos do XIX. As
referncias esto distorcidas pelas mudanas de cenrio e de narrador e pelas reformulaes
identitrias por eles sofridas; o passado torna-se inapreensvel porque sempre fraturado em
vestgios e contaminado pela memria mutante de outro indivduo tambm desassossegado.
A sensao de inevitvel falsidade, pois o terreno na histria e na narrativa, na
experincia emprica e no enredo do livro da incerteza, da dvida fomentada por
sujeitos que recriam o mundo sempre que o nomeiam, no real e na fico. Se, no
nominalismo bblico, Deus conhece a cada um pelo nome prprio, a traio dos narradores
de Padilla parece apontar para os mesmos questionamentos sobre a relao entre o real e a
linguagem que no sculo passado atingiram os campos da arte e da filosofia: se uma coisa
o que ela se chama e se o prprio nomear arbitrrio construto humano, fica desfeito o
transcendente vnculo entre a substncia e o nome, entre a essncia e a palavra. A crtica da
linguagem e do mundo feita pela linguagem. O substantivo outra vez significado:
embora sua enunciao ainda baste pra criar certezas, essas se tornaram pequenas verdades
contadas de forma fragmentria. Identidades e realidades so artificialidades porque
inalcanveis e inevitavelmente revistas e recompostas. A busca pela identidade vai, na
narrativa da histria e do livro e apenas pela narrativa dado saber , sendo desvelada e
revelada, se no como infrutfera, pelo menos como irremediavelmente forjada, fingida,
imposta. , ento, um esforo por convencer-se, procura por auto-engano: perguntas
respondidas apenas no reino falacioso da imaginao, onde todo fato e toda palavra levam
mentira. impossvel o retorno a casa e igualmente improvvel que ela ainda exista,
12
pois tudo se d no plano contextual. No h ncleo-rgido ao qual retornar. As certezas so
limitadas e efmeras.
A identidade se coloca, ento, sob o prisma terico das relaes entre discurso
histrico e discurso ficcional. Diante da tradio literria e dos traumticos eventos
sucedidos ao longo do sculo passado, Padilla compe uma intricada pardia da inquietante
busca identitria, elabora uma narrativa fundida entre histria e literatura para representar
aquilo que interpreta ter sido a danao do sculo XX: as identidades, quaisquer que sejam,
so validadas apenas em discursos, supostamente reais ou supostamente ficcionais; e tal
como leituras do real so, inevitavelmente, fragmentadas e provisrias.
O tema da impostura tomada como verdade depois de enunciada o fato de tudo
passar a existir depois de nomeado, depois de se dizer meu nome especialmente
caro literatura de um continente imaginado muito antes de descoberto, onde escritores e
seus escritos tiveram de inventar uma tradio identitria e fundar suas naes atravs das
narrativas. Romance hispano-americano, Amphitryon rene narrativas, e ao faz-lo escreve
por meio da releitura de narrativas da tradio sobre si prprio, sobre o ato literrio de
nomear coisas e de representar e criar relatos, livros, identidades, verdades, memrias e
histrias exclusivamente a partir de palavras.
Todas as muitas aluses impostura so costuradas, no decorrer da trama, pela
metfora-guia do xadrez: o jogo tomado tambm como simulacro e como representao
espao em que se recriam metaforicamente as condies da vivncia humana: terreno
cercado, espao definido e regulado por regras especficas em que cada subjetividade se
anula e transforma em outra para jogar. Ocorre, ento, uma alternncia entre duas
condies de destinos: uns determinados pelos jogos de outros; outros decididos fatalmente
pela habilidade individual de jogar. Um misto de raciocnio e sorte, de livre-arbtrio e
sujeio, de personagens-jogadores e personagens-pees: metfora da inocncia e da culpa
em um perodo caracterizado pelo domnio de sujeitos sobre outras subjetividades
dissolvidas em multido.
13
um livro da histria
O romance trata da constante troca de identidades nomes, condutas, filiaes,
referncias de personagens sempre a procura de explicao para a prpria existncia no
catico e fragmentado cenrio do entreguerras. A busca nos apresentada por Padilla por
meio de relatos formados pela memria de outros relatos e de fatos h muito passados: o
acesso ao enredo de Amphitryon ao objeto-livro que est na estante dado por outras
histrias; os captulos do livro formam um conjunto difuso, no qual os diferentes
narradores, cada um com sua inteno e preocupao, tentam remontar a trama. Contar o
enredo total do romance impossvel, pois no s os fatos, mas tambm os personagens e
narradores encontram-se entrecruzados e contraditrios. Essa dificuldade de definio
identitria experimentada pelos personagens ao longo da narrativa transferida tambm
para o leitor: cada relato fracionado pedao da histria transforma radicalmente o
sentido das outras leituras anteriores e posteriores, soma e subtrai interpretaes em um
movimento que da literatura e tambm da histria, j que ambas so formadas por textos,
com textos e contextos. O leitor atua na construo do romance e repete, durante a leitura, o
processo de constituio de um saber possvel, forjado pela interpretao de indcios, e, por
seu prprio repertrio, formula um discurso preenchido com fico ou com histria
instncias que no se deixam perceber enquanto uma ou outra: duas formas distintas, porm
aproximadas, de interpretao da experincia fragmentada; duas maneiras de edificar
conhecimentos sabidamente provisrios e limitados, mas que ainda assim se constituem e
se realizam pelo ato de nomear e de narrar de construir verdades parciais.
A tessitura do romance uma pardia do sculo XX por seu temrio em forma e
contedo, tradio literria e histrica e tambm pardia do conhecimento paradigmtico
do sculo passado: ndices reinterpretados por um ciclo de leituras. Um exerccio crtico
marcado pela inquietude e estranhamento tambm presentes no livro. Dessa forma, Padilla
aproxima os discursos histricos aos ficcionais e simula os dilogos da tradio literria e
historiogrfica na construo de um conhecimento dado pela reunio e releitura de signos
dispersos ao acaso: arbitrria a biblioteca pessoal, arbitrria a disposio dos vestgios
histricos sucessivamente resignificados e reinterpretados pelo leitor, pelo historiador
pela memria, pessoal ou coletiva.
14
Os narradores de Amphitryon partem de suas memrias individuais desassossegadas,
fragmentadas e limitadas para compor uma narrativa tensionada entre tempos e permeada
por uma disperso de indcios com a qual cada um deles busca significar a prpria vida. O
leitor de Padilla rene essas pequenas verdades contadas pelos narradores em meio a um
vasto universo de referncias eruditas e busca compreender o sentido do romance que acaba
de fechar. O crtico literrio percorre seu repertrio pessoal pequena parte das fices
contadas pelos escritores da tradio e, de seu lugar, busca estabelecer semelhanas e
criar relaes no dilogo de autores e livros. O historiador l os pequenos sinais
deixados/contados pela experincia do mundo, recolhe vestgios, fragmentos de memria,
de fatos, de leituras e os resignifica em novo discurso, em nova enunciao: determina e
fixa novos parmetros constitui novas verdades em que se baseiam novas leituras e
identidades.
Nesse campo de recprocas interpenetraes, Padilla d um passo adiante das linhas
limtrofes da fico e da histria: o escritor nomeia e nomeia a si prprio; heternimo ou
narrador e tambm personagem de si em suas prprias pginas, igualado aos demais
narradores supostamente fictcios, supostamente reais. A impostura da dinmica da histria
pela fico reforada ainda por outros artifcios literrios: a fragmentao da narrativa
revela a existncia duvidosa das verdades compostas por discursos parciais (por serem
fracionados e contaminados) e manifesta a tenso entre temporalidades e a ausncia de
linearidade to caractersticas da interpretao histrica; os diversos focos narrativos,
baseados na memria da 1 pessoa, so diferentes formas de dvida e engano que se
prestam tambm aos mltiplos focos literrios, simulaes da crtica multifocal.
Amphitryon um livro de duplos e impostores; atravessam-no inmeras referncias
histria e ao seu duplo, a fico irmo gmeo que imita com preciso um rosto, mas que
ainda assim no pode s-lo, pois, quando o , j outro, discurso sobre, palavra.
tambm uma interpretao crtica feita margem, e como tal, tem cincia de sua prpria
paisagem e dos dilogos que trava com a tradio: sabe que conhece pouco e apenas por
seu prisma; critica a si mesmo ao revelar seu espao de enunciao. um livro de fico, e,
por sua cifrada narrativa, um leitor pode entender que, por fim, todos so leitores
narradores de Padilla, Padilla, leitores de Padilla, crticos literrios e historiadores que
15
trabalham com relaes entre as partes, reformulando-as, resignificando-as. Elaboram um
discurso e nomeiam criam verdades particulares e provisrias a partir da enunciao.
Inevitvel impostura.
16
Resumo do Enredo, Cronologia e Diagramas
Segundo Umberto Eco1, a Histria ou Fbula de um texto literrio a lgica das
aes e o curso dos eventos ordenados temporalmente, o esquema fundamental da
narrativa, cuja definio depende do nvel de interpretao e da competncia enciclopdica
do leitor; j o Enredo o livro como de fato contado em sua superfcie, com
deslocamentos temporais, saltos, digresses, descries e reflexes.
Durante a montagem do presente trabalho, considerou-se necessria a incluso de um
resumo do enredo e de diagramas explicativos do objeto de estudo. Aqui, nesse primeiro
momento, afasta-se a tentativa de preencher as propositais lacunas ou indicar uma das
inmeras possibilidades de interpretao do livro que, de resto, so certamente desejadas
pelo autor. O intento, muito mais simples, fixar a narrativa, sublinhar as passagens mais
relevantes e dirimir algumas dvidas objetivas, bem como apresentar ao suposto leitor deste
texto uma obra de circulao ainda restrita. Mais adiante, outros diagramas tentaro
esquematizar as prismticas interpretaes e a fluidez dos significados da trama, para que
os sentidos de tal estrutura narrativa possam ser alvo de posterior reflexo.
So expostos nas pginas que seguem os acontecimentos que estruturam a fbula e as
impresses e remisses dos narradores; nessas, sempre que possvel, foram mantidas as
prprias palavras do autor, para que os termos exatos de suas analogias, metforas e
imagens possam ser posteriormente analisados.
1 ECO, Umberto. Lector in Fabula. So Paulo, Perspectiva, 1979 e Seis passeios pelo bosque da fico. So Paulo, Cia. das Letras, 1994.
17
Nota do Editor2
A trama principal deste romance se desenrola na ustria, na Polnia e na Srvia
entre 1916 e 1945, isto , desde meados da Primeira Guerra Mundial at o final da
Segunda. A narrao parte do momento em que a Primeira Guerra Mundial tambm
chamada aqui Grande Guerra ou guerra de 14 comea a se resolver contra a
Alemanha, o imprio Austro-Hngaro e seus aliados. Isso precipita a desintegrao da
ustria-Hungria e a capitulao da Alemanha, que assinar o Tratado de Versalhes em
1919, resultando ainda no fim dos imprios otomano e russo.
No entreguerras, a Alemanha derrotada ressurge como grande potncia. Hitler anexa
a ustria e, em setembro de 1939, invade a Polnia, deflagrando a Segunda Guerra
mundial, que terminar com a rendio incondicional do exrcito nazista em maio de
1945.
I Uma sombra sem nome Franz T. Kretzschmar Buenos Aires - 1957
Franz T. Kretzschmar inicia sua narrativa referindo-se ao pai: este dizia chamar-se
Viktor Kretzschmar, era guarda-chaves na linha Munique Salzburgo e no cometeria, sem
motivos, um crime; taciturno, raivoso e calculista, era capaz de esperar anos pelas
circunstancias favorveis para aplicar um golpe, como certa vez esperou uma dezena de
horas para abater uma lebre que seu dio reduziu a uma massa incomvel. Caracterizava-o,
ainda, uma conscincia de homem derrotado e esperanoso de um dia recuperar a luz que
lhe fora roubada na juventude. O narrador refere-se ento a um julgamento no tribunal
ferrovirio, em que Viktor, pouco negando a culpa pelo acidente, sentenciado preso. Para
a surpresa de Franz, o veredicto no provoca tristeza, mas alvio na me, que revela: o
homem acusado pelo tribunal chama-se Thadeus Dreyer e tem dio mortal dos trens. O que
corta a linha entre a infncia e a idade adulta de Franz no propriamente a revelao sobre
o verdadeiro nome do pai fato j orgulhosamente sabido desde que era criana, sem em
nada abalar sua admirao de filho , mas a desiluso quanto ao incondicional amor de
Viktor pelos trens, j que em um deles apostara e ganhara seu destino em uma partida de
2 Reproduo integral do texto. PADILLA, Ignacio. Amphitryon. So Paulo, Cia das Letras, 2005, p. 11.
18
xadrez. Tal jogo, ocorrido no vago que levava as tropas ao front oriental na Guerra de 14,
havia sido at ento fantasiado por Franz como uma disputa numa suntuosa atmosfera de
um vago-bar com oficiais e damas de alta categoria. Aps o acidente, porm, sua me
desmentiu essa verso.
Na poca da partida de xadrez, Viktor era muito jovem, mas no o suficiente para se
livrar do recrutamento forado de 1916 de quando data a fotografia que Franz ainda
guarda em sua bagagem: o av Dreyer na estao de Vorarlberg entregando seu ltimo
filho a uma guerra de causa perdida, momentos antes de o jovem Thadeus encontrar seu
adversrio, o verdadeiro Viktor Kretzschmar. Contrariando a imaginao de Franz, o
oponente fora descrito pela me no como um refinado cavalheiro vitoriano, mas como um
dentre tantos outros jovens que haviam se valido de um parente influente para escapar do
recrutamento e arranjar um servio pblico. A aposta em jogo foi claramente definida: caso
o pai de Franz vencesse, trocaria seu nome e seu posto na frente oriental pelo emprego de
guarda-chaves na nona guarita da linha Munique-Salzburgo; se fosse derrotado, daria um
tiro na cabea antes do fim da viagem. O aparente absurdo da disputa encontrava
justificativa, segundo Franz, na adversidade de uma poca em que as vidas, as razes e os
destinos eram frgeis e, indiferenciados, se reduziam a um mesmo anonimato. Uma
condio agonizante em que pouca utilidade havia em vencer e prolongar a existncia.
Escondido sob uma mscara de desmedido entusiasmo pelas ferrovias, Viktor
desempenhou impecavelmente por quinze anos as funes de guarda-chaves, como se os
diplomas que cobriam as paredes do chal fossem reiteradas certides de batismo de um
homem cujo destino sempre fora o de dedicado funcionrio ferrovirio. Sem que se pudesse
denunciar sua impostura, sua nova identidade foi plenamente assumida procurou de incio
at simular a doena respiratria que supostamente o havia liberado do servio militar e,
de tanto ser chamado e reconhecido como Viktor Kretzschmar, acabou se convencendo de
que o nome realmente lhe pertencia. E aps suspender definitivamente a troca de
correspondncias com seus pais, os nicos que ainda insistiam em cham-lo Thadeus e a
relembr-lo de sua desero, passou a aguardar diariamente a notcia da morte daquele que
agora ostentava seu antigo nome esperando que o assassinato de seu passado trouxesse
legitimidade para sua nova vida, agora ameaada tambm pela natureza, que insistia em
negar-lhe herdeiros em uma srie de gestaes interrompidas. Quando nasceu Franz, filho
19
nico, j no final da Guerra de 14, ningum duvidava de sua bastardia. O espao do chal
ficou reduzido pela tentativa de Viktor em preencher a ausncia dos irmos de Franz com
um infindvel aparato ferrovirio livros, manuais, gravuras, selos, mapas de linhas
frreas, romances de argumento ferrovirio. Em um anexo construdo ao lado da casa, o
funcionrio edificou sua prpria maquete do mundo, com aldeias cenogrficas e pequenas
locomotivas importadas sob o monitoramento de um hussardo de chumbo que fazia as
vezes de guarda-chaves em uma guarita pintada com as cores das ferrovias austracas.
Durante uma das poucas conversas que Franz diz ter tido com o pai no decorrer do
julgamento do desastre que ocorreu em 1933, pouco depois da ascenso de Hitler a
chanceler da Alemanha, Viktor pediu ao filho a lista de mortos no descarrilamento e,
quando a recebeu em mos, percorreu-a com uma raiva maior do que aquela com que
procurava o seu antigo nome Thadeus Dreyer nas listas de baixas do front oriental da
Primeira Guerra Mundial. Franz entendeu que o motivo do acidente estava relacionado
quela antiga troca de identidades e lembrou que, na tarde anterior ao desastre, seu pai
voltara surpreendentemente embriagado da cidade e trancara-se no anexo. No dia da
condenao de Viktor Kretzschmar priso por negligncia culposa, Franz, instigado pelas
revelaes da me, retornou ao anexo, forou a fechadura e encontrou o mesmo desastre
ferrovirio representado na maquete e, no cho, o hussardo de chumbo com uniforme de
guarda-chaves embrulhado por um recorte de jornal que anunciava a viagem do tenente-
coronel Thadeus Dreyer, condecorado com a Cruz de Ferro por seu herosmo na Guerra de
14, para participar como convidado de honra de um comcio da seo austraca do Partido
Nacional-Socialista em Salzburgo. Viktor Kretzschmar, o verdadeiro Thadeus Dreyer,
havia encontrado enfim o homem que lhe usurpara o destino e que s com a morte lhe
podia ser restitudo.
Passadas poucas horas da descoberta no anexo, Franz foi apresentado por sua me a
um personagem que mais cedo havia aguardado a sentena judicial com a pose de um juiz
ultraterreno e que, a partir de ento, se empenhou em guiar os passos do rfo carcerrio,
marcando para sempre sua vida: o senhor Goliadkin, segundo a me, velho amigo da
famlia, cumprimentou Franz com a mo esquerda, pois havia perdido o outro brao em
Verdun; empilhou uma generosa quantia de dinheiro sobre a mesa como quem paga a
contragosto uma antiga dvida de jogo e disse que o tribunal havia cometido uma grande
20
injustia. A me de Franz ordenou-o a aceitar o dinheiro que, segundo ela, de fato lhes
pertencia. O posterior silncio da me quanto s razes da presena de tal personagem e da
nada desprezvel doao instigou Franz e o motivou a desenredar uma histria que, no
fosse exatamente por aquela discrio materna, estaria fadada ao esquecimento to logo o
misterioso senhor deixasse o chal.
Apesar de inmeras vezes ter recorrido aos favores de Sr. Goliadkin, Franz nunca
conseguiu estreitar o vnculo com seu benfeitor, que comeou a participar do destino do
rapaz de forma flagrantemente ardilosa. Certeza que em Franz alimentou a crena que um
dia a justia divina lhe daria a oportunidade de restaurar a honra perdida de seu pai.
A condenao do guarda-chaves Viktor Kretzschmar e seu fracasso na tentativa de
assassinar o tenente-coronel Thadeus Dreyer deviam parecer quele que no ltimo
momento salvou-se do desastre ferrovirio um sinal de que Deus o considerava digno de
um grande destino que o verdadeiro dono de seu nome jamais poderia concretizar. Um fato
que Franz viu servir a seu pai como a confirmao de sua prpria mediocridade, ainda
agravada pela provocativa anistia concedida pelo governo nazista em 1937. A partir de
ento, Franz T. Kretzschmar concentrou todos seus esforos em sua secreta inteno de
punir o tenente-coronel pelo crime de ter sobrevivido, em prosseguir com a rebelio que um
dia seu pai iniciou contra os homens que se achavam em posio de manipular o destino
dos humilhados.
Valendo-se das recomendaes do poderoso Sr. Goliadkin, Franz alistou-se no
exrcito e filiou-se ao partido para aproximar-se do agora general Dreyer oficial
misterioso e incmodo at para os demais militares e cujo poder na hierarquia nazista
parecia inexplicvel ntimo colaborador do marechal Gring em seus confidenciais
projetos de alta segurana. Anos depois, Franz percebeu que sua perseguio era, na
verdade, uma trilha na qual o prprio general o guiava para o inevitvel encontro.
Passando os anos berlinenses no Colgio de Engenheiros Ferrovirios e em meio
multido ensandecida, Franz buscou refgio no xadrez nico local onde podia salvar sua
razo das ameaas perpetradas pelo vertiginoso clima de euforia coletiva, nico mundo em
que podia sentir uma liberdade to ampla quanto as inmeras possibilidades do jogo.
Diferentemente de seus demais passos na trajetria de Berlim, que pareciam todos
previsveis aos olhos de seu benfeitor, o retorno de Franz aos tabuleiros, esquecidos desde
21
as lies que recebia do pai, despertou um inesperado entusiasmo em Sr. Goliadkin, que
passou a acompanhar de perto a ascendente carreira enxadrstica do pupilo, ainda que
pouco conhecesse das regras elementares do jogo. E, no dia em que recebeu de Goliadkin a
oferta de enfrentar no tabuleiro o general Dreyer, Franz soube que seu mentor estava a par
das suas secretas razes que at o momento ainda no havia dado provas de conhecer e
percebeu que tambm ele partilhava de seu sentimento de ira e vingana. Desde ento,
sentiu-se ligado a seu benfeitor pelo comum propsito de humilhar publicamente o general
Dreyer, aniquilando-o naquela mesma forma com a qual, anos atrs, o destino de seu pai
fora usurpado.
Esse entusiasmo, entretanto, durou apenas at Franz descobrir, na madrugada de um
subrbio de Berlim, que Goliadkin no passava de um fiel ordenana do general Thadeus
Dreyer (tempos depois constatou que os dois donos de fios aparentemente to dspares de
sua vida haviam se conhecido na frente balcnica da Guerra de 14): este sim era o autntico
detentor de seu destino, no apenas por, atravs do subordinado, guiar seus passos, mas
tambm pela inegvel familiaridade com que agora Franz se reconhecia naquele semblante:
depois de ter encarado o perfil do poderoso oficial na chuvosa madrugada berlinense, j no
pde ter mais dvida que aquele rosto pertencia a seu verdadeiro pai.
O dio que motivava os atos de Franz converteu-se ento em indiferena aos homens
e aos fatos e na noo de que apenas sua prpria e estpida morte diante das tropas
inimigas nos campos eslavos faria o general Dreyer pagar por todas as suas infmias,
tirando-lhe a vida que ele mesmo havia construdo por intermdio do submisso Sr.
Goliadkin. Porm, incapaz de saber se por um mero acaso ou se por mais um maquiavlico
ato de Dreyer e Goliadkin, Franz foi removido para um grupo tcnico de apoio s tropas,
com a incumbncia de projetar ferrovias para o transporte de materiais e prisioneiros para
os campos de trabalho forado construdos na Polnia tarefa que acatou com total apatia.
Outra reviravolta arrancou Franz de sua passividade e devolveu s suas mos os
cordis que movem o futuro. Convidado por um amigo fotgrafo do alto comando alemo,
o jovem engenheiro, que havia acabado de assumir o posto de tenente, ps-se a caminho do
campo de Treblinka. No suntuoso vago-bar que viajava sobre os trilhos que ele prprio
ajudara a projetar, foi apresentado ao general Thadeus Dreyer, que o cumprimentou com
exagerada familiaridade. Este disse ter conhecido um guarda-chaves e excelente enxadrista
22
da Galitzia de sobrenome Kretzschmar, ao que o jovem oficial respondeu ressaltando que
seu pai era de Vorarlberg e trabalhava na linha Munique-Salzburgo. O general ento
evocou as belas mulheres que habitavam a land de Salzburgo aps a Guerra de 14: isso
confirmou a bastardia de Franz e o lanou tormentosa sensao de que toda sua vida havia
sido manipulada pelas conspiraes de um crebro distante. Sentiu raiva de si e de seu
inesperado impulso de gratido por aquele homem a quem devia o destino e a vida, uma
vida que o famigerado guarda-chaves Viktor Kretzschmar no lhe pudera oferecer. Em
meio quela confuso de sentimentos que mal podia dissimular, Franz retirou de sua maleta
o velho tabuleiro que encontrara anos atrs entre os pertences do pai. O general estabeleceu
os termos da aposta: se vencesse, teria a vida do jovem tenente sua disposio; se
perdesse, daria fim a prpria vida antes de chegarem a Treblinka. Franz assentiu com a
cabea e substituiu um dos pees pelo hussardo de chumbo com uniforme de guarda-
chaves.
II Da sombra ao nome Richard Schley Genebra 1948
Richard Schley reconheceu Jacob Efrussi quando este desceu do trem que trazia para
Belgrado os efetivos da frente ucraniana e experimentou grande tranqilidade ao poder
distinguir um rosto familiar entre milhares de feies imprecisas; porm, ainda no sabia
que o velho amigo da infncia vienense havia trocado seu nome pelo de Thadeus Dreyer.
Chegado a pouco menos de um ms no acampamento de Karansebesch, o jovem
seminarista Schley logo se viu obrigado a assumir, sem a devida credencial, os ofcios de
Padre Ignatz Wagran, morto por um granadeiro em plena missa. Espcie de pai espiritual
para Schley, Pe. Wagran via a investidura como um novo batismo, para o qual o
predestinado devia despojar-se de seu passado para incorporar uma identidade definitiva. O
seminarista, cuja histria j havia sido arrebatada pelo martrio do chamado ao sacerdcio,
viu-se ento mais uma vez rfo e diante da incerteza e do vazio mais radical; e foi ciente
de sua prpria farsa que Schley conformou-se com sua blasfema impostura e acostumou-se
a exercer as funes paroquiais ainda que no fosse propriamente proco.
Depois de ter seu chamado ignorado por Efrussi na estao, Schley dirigiu-se ao
Escritrio de Servios para consultar nas listas de recm-incorporados o nome daquele que
23
agora lhe parecia o nico depositrio de sua fragmentada memria de infncia; ao
confirmar a ausncia de tal nome, atribuiu ao engano ou ao delrio a cena que havia
vivenciado momentos antes, e ps-se a indagar quem realmente era Jacob Efrussi e por que
procurava no remoto reconhecimento de um mero colega dos tempos de criana uma
espcie de explicao semelhante quelas que os soldados agonizantes buscavam para
entender as suas trgicas e prematuras mortes em nome do imprio austro-hngaro. Estava
decidido a desistir definitivamente da pesquisa quando o suboficial Alikoshka Goliadkin
adentrou o Escritrio no retorno de uma de suas freqentes idas ao bar do acampamento.
Goliadkin caracterizado por Schley como figura inofensiva, porm digna de
respeito, bajulador, interesseiro e nica pessoa capaz de notar a semelhana entre a falsa
investidura de proco e as corruptas ascenses nas patentes militares garantiu que um
nome como aquele dificilmente constaria entre os alistados de um exrcito onde os judeus
se faziam ausentes. A observao do suboficial encadeou uma srie de lembranas que se
encontravam confundidas no crebro que desde aquela tarde atribulava-se com evocaes e
fragmentos de fatos sem sentido: pela memria de uma partida de xadrez no alto de uma
negra escada que levava at a joalheria do usurrio judeu, Schley podia acessar novamente
suas reminiscncias e encontrar-se no com o velho amigo de infncia, mas com as
lembranas at aquele dia dadas por perdidas nos anos de seminrio. Rememoraes de
uma infncia vienense em que tiranias e orgulhos paternos colocavam diante do tabuleiro
de xadrez duas crianas confrontando honras e identidades luteranas e judias, e que agora
afligiam ainda mais o falso proco que no podia transmitir aos necessitados nada alm de
sua impostura e pouca f. Desde aquela tarde, entretanto, ao avistar o recruta annimo,
Schley recuperara ao menos a conscincia de sua condio que por tanto tempo vinha
sendo embotada por seu pai, pelo seminrio e pela guerra.
O encontro com o recruta da estao ocorreu logo. A cria, em resposta aos inmeros
pedidos de Schley para que enviassem um sacerdote, mandou-lhe, pelo correio, uma velha
batina e, com ela, um bilhete e a cega aprovao de sua impostura. E ento, em uma noite
de embriaguez aps uma jornada de ofcios com os regressos da frente do Piave, o
seminarista ilusoriamente promovido a sacerdote viu-se perambulando pelo acampamento
em companhia de Goliadkin e entrou em uma tenda de proviso onde alguns soldados
bebiam e jogavam cartas; reconheceu o perfil de Jacob Efrussi e, animado pelo lcool e
24
pela inusitada presena de um tabuleiro de xadrez, chamou-o pelo nome. O soldado,
tambm embriagado, aproximou-se do proco e ameaou-o de morte se insistisse em
cham-lo por outro nome que no Thadeus Dreyer. A despeito da violenta reao do
recruta, Schley percebeu em seu amigo de infncia um reconhecimento que, com o tempo,
seria assumido inevitavelmente.
Movido por solidariedade ou pela chance de conseguir futuras vantagens, o suboficial
Goliadkin ofereceu informaes sobre Efrussi: seu documento de identidade trazia de fato o
nome de Thadeus Dreyer; constava que era natural da aldeia de Vorarlberg, e no
acampamento logo ganhara fama, dinheiro e influncia sobre os superiores com suas
invencveis tticas enxadristas. Contrariando as expectativas de Schley e Goliadkin para
quem aquela gratuita demonstrao de coragem em um tempo sem herosmo, mais que uma
temeridade, era um grave atentado a seu particular cdigo de desonra , Efrussi no se
valeu desse poder sobre os oficiais para permanecer a salvo na retaguarda, e atravessou a
ponte de Karansebesch rumo s trincheiras.
A cavalaria francesa imediatamente dizimou o regimento, dispersando os poucos
sobreviventes para as montanhas srvias. Ao inquirir um sargento que havia retornado
daquelas trincheiras, Schley soube que o soldado Thadeus Dreyer havia se refugiado nas
montanhas com um grupo que se negara a deixar o campo de batalha, mesmo que ningum
os pudesse acusar de desero depois da queda de seus superiores no combate. No
convencido da hiptese que o amigo de infncia havia simplesmente enlouquecido, o
seminarista resolveu procur-lo na primeira oportunidade que se oferecesse.
A ameaa de motim em Karansebesch crescia com as desalentadoras notcias do front.
Quando j no mais esperava qualquer manifestao da cria de Viena, Schley recebeu a
notificao que um verdadeiro padre chegaria a Belgrado no prximo trem. Dispensado de
seus servios e ressarcido de seu anonimato, o seminarista no esperou pela chegada do
substituto e conseguiu de um superior a autorizao para levar a ordem de retirada aos
soldados da montanha.
Caminhando por dias entre os cadveres e os escombros ftidos, Schley percebeu que
a ordem de retirada lhe era muito menos importante que o encontro com o espectro de
Efrussi e com aquilo que era seu nico passado possvel: ser reconhecido pelo velho amigo
de infncia. Da sobrevivncia de Efrussi dependia agora sua prpria sobrevivncia.
25
Schley divisou uma cabana aparentemente abandonada no alto de uma colina e at l
foi guiado por uma fileira de corpos que denunciava uma ordem viva e oculta. Efrussi
contemplava uma mesa forrada de papis e disse ao padre que entrasse; injetou em si
prprio uma dose de morfina e prosseguiu em sua dbil observao dos papis
esparramados sobre a mesa, pronunciando em voz baixa os nomes inscritos nas dezenas de
passaportes ensangentados. O padre, ento, apresentou o documento que trazia e
sentenciou que aquela era a ordem de retirada para Jacob Efrussi. O soldado, remexendo os
passaportes, disse no conhecer nenhum recruta com aquele nome. Aquela insistente recusa
de seu amigo em negar o nome de infncia e, com isso, negar tambm as memrias
perdidas de Schley, suscitou no padre uma raiva que o fez peremptoriamente perguntar a
Efrussi quem afinal era ele e qual era seu verdadeiro nome. A essas indagaes Efrussi
respondeu que era muitos e que seu nome era Legio; a morfina servia-lhe apenas para
aplacar as infernais enxaquecas que o acometiam quando as idias e as recordaes de
todos os homens que j havia sido se confundiam em sua cabea; tinha sido todos e
ningum; roubara inmeros nomes e vidas, a ltima delas, a de um pobre recruta de
Vorarlberg chamado Thadeus Dreyer, com quem trocou a prpria morte pelo nome de
Viktor Kretzschmar e o destino de guarda-chaves; pouco valia, portanto, aquela alma que o
padre buscava salvar.
Tentando dissuadir o amigo de sua manifesta deciso de morrer, Schley disse-lhe que
a partir de ento no haveria mais motivos para que roubasse vidas, que iriam para a
ustria, onde os dois esqueceriam aquela guerra. Efrussi, porm, parecia resignado e
disposto a admitir a inutilidade daquela vida de escapes, de incessantes fugas da prpria
condio, raa e f que, enfim, ambos haviam levado. Mas agora Schley estava disposto a
dedicar toda sua vida quela pessoa que, desde criana, gostaria de ter sido; e sabia que
para tanto, bastaria convencer Efrussi a fazer a ltima das tantas apostas que faziam dele
um conglomerado de nomes em um nico corpo: se o padre fosse derrotado, entregaria ao
amigo seu cadver e seu passaporte; se vencesse, conservaria a vida do adversrio para
reaver a sua prpria.
Horas depois, Efrussi tombou seu rei e, com um cumprimento, chamou o adversrio
de Richard pela primeira vez. Decidiram dormir, pois a jornada de volta a Karansebesch
seria longa e difcil. Schley, ao abrir de sbito os olhos, viu Efrussi com uma arma
26
apontada para a prpria cabea e reagiu de imediato, mas no a tempo de evitar um grave
ferimento no crnio do soldado. Caminhando com o corpo quase sem vida sobre seus
ombros, Schley sentiu dio pela traio do amigo e s ento entendeu que Efrussi havia
prolongado a prpria vida a fim de que ele aceitasse no apenas sua morte, mas tambm o
peso da condio judia; uma herana negada e que, por amor ao fantasma daquele que era
seu nico elo com o passado, o padre era obrigado a assumir em seu nome.
Richard Schley chegou ao acampamento ocupado por inimigos e desertores;
encaminhou-se diretamente para o Escritrio de Servios, onde o suboficial Alikoshka
Goliadkin separava papis que um dia lhe podiam ser teis com a mesma febre com que
Efrussi remexia seus passaportes na cabana. Goliadkin mal pde reconhecer aqueles dois
corpos cobertos de sangue; com a mo sobre o coldre perguntou pelo padre. Schley
respondeu que seu nome era Thadeus Dreyer e ofereceu ao suboficial um cofre cheio de
dinheiro que estava entre os pertences de Efrussi. S ento percebeu que seu amigo de
infncia j no respirava mais.
III A sombra de um homem Alikoshka Goliadkin Cruseilles (Frana) 1960
Alikoshka Goliadkin descreve a manso do general Thadeus Dreyer: um soberbo e
negro castelo contrastando com a brancura da neve das ruas de Genebra. Por um instante,
tudo naquela paisagem lhe pareceu muito semelhante a outro cenrio remoto no tempo e no
espao: mais de quarenta anos antes, na Ucrnia, o narrador tambm se preparava para o
que julgava ser a absurda, porm necessria, eliminao de um homem. Em sua terra natal,
enfrentaria em duelo Piotra, jovem oficial da guarda czarista, seu irmo gmeo; em
territrio suo, o esperava seu velho amigo dos tempos da Primeira Guerra.
Adentrando com previsvel preciso de movimentos a conhecida manso, Goliadkin
reconheceu os divs de infindas conversas sobre o tempo da guerra, os tabuleiros de xadrez,
os brases; sentiu no ar um cheiro de plvora que o fez temer a antecipao de Dreyer a seu
intento, e relembrar a madrugada russa em que seu irmo, alinhado em galas de cossaco,
lavaria com o sangue do fratricdio as ofensas do bbado que insistia em declarar que
aquela raa sempre fora de aptridas e mercenrios estupidamente fiis Me Rssia. No
duelo, a lgica da honra inexplicavelmente falhara, e Goliadkin, desapontado e atingido em
27
um brao, tinha ainda o direito de, do cho, revidar o tiro com a habilidosa canhota,
assassinar seu irmo e consumar aquele primeiro ato contra o herosmo romntico que
quatro dcadas mais tarde seria corroborado pela morte de outro homem tambm
absurdamente aferrado ao sagrado e crena.
Meses aps o duelo, Goliadkin alistou-se nas tropas austracas, j ento um destino
comum aos fugitivos da Rssia e queles europeus do leste que, divididos entre identidades
dspares, no podiam saber ao certo a que imprio deviam fidelidade. A guerra era para ele
a prova maior do desastre absoluto de tudo aquilo que seu pai e seu irmo acreditavam e a
perfeita confirmao de seu ceticismo. Sua cruzada contra o idealismo aberrante,
entretanto, no havia terminado com a morte de Piotra: a odiada figura de seu pai e o
fantasma de seu irmo permaneciam presentes e o atormentavam, como se o duelo daquela
madrugada tivesse servido no para apag-los, mas para os eternizar. A precoce morte do
jovem oficial czarista retirara de Goliadkin o prazer de v-lo descrente e desenganado; um
erro que o ento suboficial integrado s tropas do front balcnico no repetiria com Richard
Schley.
O narrador relata que, naquela noite na manso do general, encontrou, entre papis
sobre tticas enxadrsticas, algumas folhas nas quais Dreyer descrevia os dias passados no
acampamento de Karansebesch e as razes que o levaram a adotar um nome que no lhe
pertencia. Goliadkin pe-se ento a narrar os mesmos eventos sob sua prpria perspectiva,
e confessa o dio que desde o inicio sentiu por aquele seminarista que possua a mesma
vontade de herosmo que seu irmo. O jovem Schley se lhe apresentava como a grande
oportunidade de assistir ao completo desencantamento de um esprito crdulo que lhe fora
furtada com a prematura morte de Piotra; entretanto, dava provas que no cederia to
facilmente aos seus destrutivos desgnios: o suboficial, quando o viu lanar-se s linhas
inimigas em busca de um suposto amigo de infncia, temeu que o destino colocasse em sua
memria a face imberbe de mais um morto herico.
Entre as lembranas de sua av e da contraposio primordial que sempre o
diferenciara de Piotra a despeito da precisa similitude dos gmeos , Goliadkin relembra
com repugnncia a vara de carvalho usada por seu av para exorcizar fora seu
canhotismo, para corrigir com pancadas aquele atributo demonaco, aquela sinistra
perverso do que os cristos consideravam a imperturbvel ordem divina das coisas. No
28
pensamento do narrador, a vara se transmuda em um smbolo de f que se equipara s
insgnias no uniforme do jovem oficial czarista e iguala aquela violenta crendice
necedade dos cossacos em sua luta por uma ptria inexistente e ao impulso herico do
jovem que atravessa as trincheiras para salvar uma vida. Em suas palavras, no havia nesse
mundo lugar para tais poesias e s restava aplainar o caminho que levaria
irremediavelmente destruio do sagrado tarefa a que dedicou toda sua existncia.
Durante as trs noites que o seminarista passou nas trincheiras balcnicas, o suboficial
foi atormentado em sonho por uma imagem de Piotra agora transmudada em Schley e em
Dreyer; durante esses trs dias, Goliadkin dedicou-se ao recolhimento de todos os recursos
e informaes possveis para a sobrevivncia no catico ps-guerra; ficou, assim, a par das
atividades de Thadeus Dreyer, detentor de grande soma de dinheiro e invejvel ascendncia
sobre os oficiais superiores, regalias evidentemente obtidas em aes paralelas ao mbito
militar. Corriam boatos de que aquele admirado recruta de traos judeus e sotaque vienense
carregava no apenas um, mas inmeros falsos nomes que escondiam falsas conscincias e
identidades. O que Goliadkin no podia compreender naquele jogo de substituies e
imposturas era o que levava aquele homem a negar seguidas vezes o judasmo que
certamente o livraria das trincheiras; nem mesmo a remisso ao Jac bblico servia de
possvel explicao: os artifcios do senhor dos impostores, que por um prato de lentilhas
trocara de identidade com o irmo, nada eram perto da obsesso de Jacob Efrussi por reunir
dentro de si uma multido de vidas.
Na terceira noite, as tropas inimigas comearam a atravessar o Danbio e o rudo da
cavalaria sobre o solo de Karansebesch acordou Goliadkin de seu sono; enquanto reunia o
dinheiro e os documentos para sua fuga, foi surpreendido por uma sombra de duas cabeas,
coberta de sangue e lama; ameaou sacar o revolver, mas em tempo reconheceu seu jovem
seminarista, que colocou carinhosamente o corpo que trazia sobre os ombros no cho e,
despejando sobre a mesa um cofre e dezenas de passaportes imundos, pronunciou que seu
nome era Thadeus Dreyer. Por um instante, Goliadkin julgou reconhecer ali a resignao de
mais um idealista s leis do oprbrio, s suas prprias leis, mas depois temeu que aquela
recm-estreada impostura tivesse um significado diverso. De qualquer forma, pensou, o ato
do jovem Schley os irmanava: a identidade que acabara de assumir sem dvida havia
pertencido a tantos homens que j no podia significar nada, era nome de ningum; era
29
apenas o distintivo de uma massa espectral que agora o suboficial Alikoshka Goliadkin
queria moldar.
De volta a Viena em dezembro de 1918, Goliadkin e Dreyer depararam-se com o
espetculo da derrota de um imprio e sua amargada multido fantasmtica. Dreyer havia
assumido seu desencanto e sua impostura e, sem mais propsitos ou ideais alm da mera
sobrevivncia e do puro poder, submetera-se aos planos de Goliadkin, tornando-se um
poderoso executor de trabalhos sujos. O testemunho do suboficial e alguns subornos
estrategicamente distribudos no tardaram a conferir fama blica a Thadeus Dreyer
naquela ptria esfacelada e vida por heris: a narrativa sobre o episdio do malogrado
resgate de um amigo de infncia atrs das linhas inimigas valeu-lhe a Cruz de Ferro e a
respeitvel aura macabra de veterano, logo canalizada pelos ideais do Partido Nacional-
Socialista Austraco. Dreyer e sua admirvel capacidade mimtica arrastavam multides de
jovens em nome dos ideais do Fhrer, moldando at mesmo os espritos menos afeitos
causa. Oficial de forte ascendncia sobre os lderes do partido, Dreyer, logo aps a
proclamao de Hitler como chanceler do Reich, props ao marechal Hermann Gring o
projeto que seria o compndio de sua vida: o treinamento de ssias que substituiriam os
lderes do partido em aparies pblicas de alto risco. Aps a autorizao de Gring que
parecia reservar queles ssias uma outra utilidade , Dreyer, sem se dar conta da ironia
que sua prpria condio implicava, passou a vasculhar o imprio procura de precrios
jovens que pudessem ter suas vidas e mentes moldadas pelos ideais do partido; no estava,
porm, interessado nas motivaes nazistas, mas em aproximar-se dos poderosos por meio
daquele pequeno exrcito que controlaria tal como pees de xadrez.
Goliadkin enfoca ento a figura de Adolf Eichmann, jovem e obscuro oficial da SS
que foi detido na cidade de Buenos Aires poucas semanas antes da escrita do relato.
Eichmann cujas feies lhe haviam rendido o epteto de o Rabino era profundo
conhecedor e inimigo da cultura judaica; nascido em Slingen no ano de 1906, o misterioso
oficial conquistara a confiana do general Reinhard Heydrich que o incumbira, em 1942,
de exterminar os judeus do Reich. Dreyer e Goliadkin o haviam conhecido no nico crculo
enxadrstico de Praga em 1926, e logo se estabelecera entre os adversrios uma relao de
respeito mtuo na qual Goliadkin no deixou de suspeitar algum temor ou submisso da
parte de Dreyer: parecia que entre eles havia se instalado h muitos anos um especfico
30
cdigo de jogo. A primeira partida acabou empatada, e, nos anos seguintes, Dreyer negou
um novo combate contra Eichmann, que teve de se contentar com uma estreita convivncia
com o oponente, a qual, de resto, em nada agradava a Goliadkin. Para o narrador, Eichmann
possua, por trs de sua aparncia medocre, uma invejvel capacidade para manipular e
destruir firmada na convencida necessidade desses atos para melhorar o mundo; assim
como para o pai de Goliadkin, morte e violncia eram para o oficial da SS meros
instrumentos para se alcanar uma ordem mtica e moralmente correta. Embora os
propsitos de sua companhia a Dreyer tambm fossem destrutivos, Goliadkin preferia
acreditar que Eichmann era to deploravelmente crdulo como Piotra e o jovem seminarista
Schley, pois sua maldade era utilitria e, portanto, ainda mais rudimentar e odiosa que a
ingnua filantropia.
Ao saber da tarefa que Heydrich havia confiado a Eichmann, Dreyer cedeu s splicas
de seu oponente e, diante da nervosa enunciao das justificativas da grande hecatombe
judia, ofereceu-lhe um cmplice silncio e trs seguidos xeques-mates, sem resistncia. No
dia seguinte, porm, Dreyer fez questo de ir at o gueto de Viena; l encontrou a antiga
loja de Isaac Efrussi saqueada e chorou pela memria do velho joalheiro judeu.
A partir da, Goliadkin passou a temer que aquela recente recordao de Jacob Efrussi
e o profundo reexame de conscincia iniciado com a visita ao gueto vienense pudessem
devolver a Dreyer algum idealismo: o homem que j fora exemplo da vitria do caos
parecia querer recuperar a sua alma e vacilava diante da arbitrariedade, inventava
justificativas morais para seus mais infames atos; tal como o imprio renascido para a
guerra, Dreyer lutava contra sua condio desencantada e agora pensava que sua impostura
o colocava em dvida com os homens, com todos aqueles nomes que herdou com a
identidade de Thadeus Dreyer, com o judeu Efrussi. Goliadkin para quem a histria de
exlios e quimricas promessas dos judeus, bastante parecida com a dos cossacos, os
reduzia a mais desprezvel parte da criao reconhecia que suas tentativas para lan-lo
novamente para a infmia de nada valiam frente quele crescente remorso, e, desde ento,
foi atemorizado pela idia de que seu companheiro estivesse mesmo fadado a restaurar
eternamente a ordem que ele desejava fragmentria, como que o obrigando a atirar contra
as insgnias de Piotra para v-lo, por mais uma vez, levantar-se da neve.
31
Aps meses em estado de depresso e letargia, descrente dos ideais nazistas e
desinteressado em sua glria de heri, o general Dreyer enfim exps a Goliadkin o plano
que urdia em silncio desde a noite de suas trs derrotas sucessivas: Franz Kretzschmar era
a pessoa necessria para substituir o coronel Adolf Eichmann e sabotar o projeto de
extermnio dos judeus do Reich. Os dubls leais a Gring j haviam executado bons
servios em lugar de Himmler e Goebbels e, embora nunca se houvesse aventado a
possibilidade da substituio definitiva de um alto oficial, o general agora investiria no
melhor de seus homens para destituir o obscuro e cada vez mais poderoso coronel do
comando do Departamento Judeu da SS. Dreyer havia ganhado a incondicional lealdade de
Kretzschmar em uma partida de xadrez e, desde ento, vinha aplicando seu rigoroso
mtodo de anulao de esprito para que o discpulo pudesse assumir uma nova identidade.
Tambm para Goliadkin, no restavam dvidas de que aquele jovem oficial que sempre
esteve ligado a Dreyer por um lao afetivo muito mais intenso que a alegada dvida de
amizade do heri de guerra com seu pai era de fato a pea perfeita para o plano:
Kretzschmar tinha quase a mesma idade de Eichmann, era excelente enxadrista e sua
apagada feio no ofereceria empecilho para tarefa dos cirurgies plsticos do marechal
Gring. Quando chegasse o momento, Eichmann aceitaria a revanche de Dreyer e apostaria
seu prprio nome contra o jovem campeo apresentado pelo general. Caso o coronel
vencesse ou se negasse a aceitar a derrota, Dreyer o eliminaria, ainda que isso fosse um
risco para a substituio.
A elaborao do plano, estritamente baseada no impecvel cdigo de honra do xadrez,
no calculara, entretanto, a possibilidade de que um ato alheio a essa particularssima tica
pudesse arruinar o intento. Bastou que Goliadkin enviasse uma carta annima a Himmler
para que toda a equipe de ssias fosse desarticulada; os filhos adotivos do general Dreyer
foram presos ou dados por desaparecidos e de Kretzschmar no se teve mais notcias. Com
o auxlio do Servio Secreto Britnico e das autoridades suas, Goliadkin fugiu com
Dreyer para Genebra, onde pde assistir plena devastao da alma de um homem
consumido pela resignao e pela covardia: escondido sob o nome do desaparecido baro
polons Woyzec Blok-Cissewsky, o general Dreyer refugiou-se na obsesso pelo xadrez,
ltimo reduto em que ainda havia regra e moral, nico conforto para sua senilidade perante
um mundo de invlidas leis em que nada se pde fazer para evitar o massacre dos judeus ou
32
para punir o responsvel maior pelo holocausto nome ausente da lista da corte de
Nuremberg. Diante da finalmente esfacelada imagem de Thadeus Dreyer, Goliadkin temeu
que todo aquele desprezo que havia sido planejado por dcadas se convertesse em
compaixo, e abandonou Genebra como quem larga um prazer que pode ser perigoso.
Anos depois, no entanto, o fantasma de Dreyer, assemelhando-se mais uma vez
sombra de Piotra, voltou a atormentar Goliadkin: cerca de duas semanas antes da escrita do
relato, o velho general telefonou a seu antigo ordenana e, com uma voz que, em lugar da
esperada exultao com a priso de Eichmann, apresentava-se gravemente aflita, disse-lhe
que ele era seu nico amigo e que precisava v-lo com urgncia. Goliadkin chegou a pensar
que fora Dreyer quem, por meio das inmeras partidas de xadrez jogadas por
correspondncia em jornais e boletins de clubes obscuros, havia retirado Eichmann de seu
esconderijo e o denunciado justia israelense; mas o tom soturno de seu telefonema
afastava essa hiptese. Na realidade, o narrador pouco se importava com o destino de Adolf
Eichmann; o motivo de seu incmodo era a absoluta confiana de Dreyer em sua lealdade e
o leve estremecimento de alegria que sentiu quando o general fez o apelo amizade dos
dois. Goliadkin ento decidiu acabar de uma vez por todas com qualquer vestgio de crena,
poesia e bondade que pudessem persistir no velho general ou em si prprio, e dirigiu-se
para Genebra com o firme propsito de assassinar Dreyer, no sem antes lhe revelar todos
os seus golpes e traies.
Na noite anterior a escrita do relato, durante o trajeto at a casa do general, o narrador
pensou que finalmente a sombra do irmo desapareceria de seus pesadelos: a misso de sua
vida estaria, quarenta anos depois, cumprida. Essa alegria, porm, lhe fora roubada por
algum que fugiu da manso enquanto Goliadkin, no segundo andar, examinava o
ensangentado corpo de Dreyer debruado sobre um tabuleiro de xadrez.
IV Do nome sombra Daniel Sanderson Londres 1989
Daniel Sanderson comea dizendo que a morte do Baro Blok-Cissewsky no o
desfecho ou o comeo da histria que vai narrar: o ponto de voragem de uma trama em
que a vida daquela notvel figura esteve associada a muitas outras vidas menos
estimulantes como a sua prpria. Por isso, se fiar apenas em sua memria pessoal para
33
contar os fatos na seqncia em que aconteceram com ele e com os outros herdeiros do
baro, desculpando-se previamente perante aos demais personagens do intricado enredo,
que certamente prefeririam uma histria contada em outra ordem e sob uma perspectiva
diferente.
O testamento de Woyzec Blok-Cissewsky razo do encontro do narrador com os
personagens da trama passa a ser descrito: em sua inconfundvel caligrafia, o oficial
reformado do exrcito polons declarava a doao de seus parcos bem na Sua a um asilo
de Frankfurt e de um cofre cheio de moedas antigas a seu ordenana Alikoshka Goliadkin;
j em um adendo escrito em letra de frma, legava a cada um de seus trs rivais de xadrez
por correspondncia a soma de cem mil francos suos, contanto que mestre Remigio
Cossini, pintor siciliano, Deman Fraester, ator flamengo e o prprio Sanderson fossem
receb-la pessoalmente durante os funerais.
Os boatos que a imprensa sua chegara a levantar em torno da existncia de um
primeiro testamento em que Goliadkin era o nico beneficirio so prontamente
desconsiderados pelo narrador: fossem os rumores verdadeiros ou falsos, em nada iriam
alterar o contedo do relato a ser escrito; as pginas seguintes no tratariam de suposies
acerca de uma cobia grande suficiente para causar a traio da amizade de quatro dcadas,
da histria do baro ou da vida de seu fiel ordenana, mas dos secretos motivos que os
fizeram se arruinar e arrasar os personagens perifricos daquela trama.
Sanderson pe-se ento a descrever os acontecimentos subseqentes morte de
Woyzec Blok-Cissewsky. Uma greve dos ferrovirios de Londres impossibilitou-o de
chegar a tempo do enterro do baro, mas o inesperado encontro com mestre Cossini na
estao central de Genebra o tirou de sua justificvel desolao. Mestre Remigio Cossini
pequeno homem de traos marcadamente japoneses logo informou que as investigaes
sobre o assassinato do baro Blok-Cissewsky haviam sido dadas por encerradas depois da
descoberta, no dia seguinte ao enterro do baro, do corpo de Alikoshka Goliadkin baleado
na tmpora direita em um pequeno quarto de hotel em Cruseille, Frana. Com a petulante
assertividade de quem pressupe que seu interlocutor est sempre apto para acompanhar
seus argumentos mais perspicazes, o pintor concluiu que o falso suicdio do suposto
assassino de Woyzec Blok-Cissewsky era apenas um indcio de que as circunstncias que
os traziam a Genebra eram mais do que suspeitas. Logo depois, obrigado a se acostumar
34
com as cifradas hipteses de Remigio Cossini, Sanderson teve menos dificuldade em
entender que a heterodoxia ttica que o baro apresentara nas ltimas partidas epistolares
no significava senilidade, mas uma espcie de alerta que o benfeitor procurara dispersar
entre seus pupilos.
Os trs beneficirios encaminharam-se ento ao escritrio do testamenteiro do baro;
l chegando, foram avisados que, devido a uma inesperada viagem do testamenteiro, uma
outra pessoa os receberia para lhes atender as solicitaes. Em uma recndita sala, um
homem de idade incerta, nome imemorvel e absurdamente semelhante ao ator Humphrey
Bogart os recebeu com a crueza de quem conhecia os detalhes mais vergonhosos da vida de
cada um: assegurou que Remigio Cossini no passava de um nome obviamente fictcio de
um falsificador de obras de arte, que a decrepitude fsica de Fraester apenas alava ao
ridculo da impossibilidade sua medocre condio de dubl cinematogrfico e que
Sanderson nunca fizera mais que expressar seu pssimo estilo em livros esquecidos e
assinados por supostas celebridades; explanou impiedosamente a falsa vida dos impostores
que, temerosos do risco de perder a herana, no ousaram negar a evidente veracidade das
afirmaes daquele que parecia tambm um arremedo de outra pessoa.
As imprecaes de Bogart eram, no entanto, somente a introduo para um tpico
ainda mais desolador: o testamento era ilegtimo como seus favorecidos; a assinatura do
pseudnimo baro Woyzec Blok-Cissewsky valia tanto quanto uma rubrica de Thadeus
Dreyer, de Richard Schley ou de qualquer outro dos no mnimo sete nomes que o baro
usurpara em vida. Esses problemas legais, porm, poderiam ser facilmente contornados se
os beneficirios concordassem em entregar certo manuscrito que o baro lhes enviara pouco
tempo antes de morrer. Percebendo a inutilidade de negar tal assertiva, Sanderson apressou-
se em declarar que os papis nada mais eram que instrues em polons para um manual de
xadrez, ao que Bogart respondeu que, na realidade, tratavam-se de um criptograma que
podia conter as provas para a condenao do general Adolf Eichmann, preso semanas antes
em Buenos Aires.
A oportunidade de receber a vultosa quantia de dinheiro voltava a se oferecer aos trs
pupilos do baro. A humilhao inicial a que Bogart os havia submetido, entretanto,
pareceu transformar-lhes a escala de valores, e agora aqueles trs indivduos marcados pela
usurpao sentiam-se os dignos detentores do segredo certamente atroz que o baro lhes
35
havia confiado. Bogart, notando a resistncia de seus interlocutores, logo mudou de
estratgia: disse que a oferta estava dada e que, na chefatura de polcia, esperaria pelo
momento em que aqueles homens ntegros ajudariam a polcia israelense a fazer justia no
mundo.
Aps a entrevista, Cossini no demorou a calcular que Fraester cederia oferta de
Bogart e que, assim procedendo, colocar-se-ia em grande perigo. De fato, os
acontecimentos seguiram a previso do pintor: poucas semanas depois de terem recebido
um carto informando a escolha do ator flamengo e os convidando a seguir o mesmo
exemplo, Cossini e Sanderson foram noticiados da morte de Deman Fraester durante as
filmagens do nico filme em que apareceria com o prprio nome. Aquela, para Cossini, era
a confirmao que Bogart e seus comparsas no poupariam esforos e vidas para evitar que
os manuscritos viessem a pblico, e que a morte de Fraester era um genial lance
enxadrstico de Blok-Cissewsky: o baro, prevendo seu prprio assassinato, escolhera o
obtuso ator como pea a ser sacrificada naquele tabuleiro onde agora seus outros dois
pupilos poderiam divisar quem de fato eram seus oponentes e que importncia davam
queles papis.
Sanderson, no entanto, comeando a notar que as entusiasmadas afirmativas de
Cossini eram meras especulaes de um crebro que provavelmente confundia as rgidas
regras do xadrez com as ambguas leis da existncia, argumentou que o melhor a fazer seria
levar aquele caso s autoridades. O pintor admitiu a natureza imaginativa de suas
colocaes, mas sublinhou que aquelas eram as nicas certezas que possuam; acrescentou
que seriam desnecessrias quaisquer provas para incriminar o j condenado general
Eichmann e que, portanto, Bogart no era um oficial da justia israelense, mas um nazista
em busca de segredos do ex-colega; aconselhou Sanderson a no dar pistas de querer
decifrar os manuscritos em polons e a se esconder por uns tempos; e despediu-se como
quem encerra uma conversa trivial.
Nos dias seguintes, Sanderson foi levado a ponderar sobre qual seria seu prprio
papel naquele jogo, qual de seus atributos haviam de servir aos interesses estratgicos de
Blok-Cissewsky; no pde deixar de concluir que havia sido eleito pelo baro devido ao
conhecimento que adquirira, nos ltimos meses da guerra, sobre tcnicas de criptografia no
Escritrio de Comunicaes da RAF, e teve a certeza de que, mesmo depois da morte, o
36
velho rival de xadrez continuava manipulando seu destino como a uma pea sobre um
tabuleiro.
O narrador empenhou-se ento a decodificar o manuscrito; descobriu que os inmeros
erros ortogrficos, supostamente ocasionados pela inabilidade do baro com o idioma
polons, obedeciam a uma constante numrica usada pelo Servio Secreto Britnico
durante a Primeira Guerra Mundial. A decifrao da chave criptogrfica, porm, no
solucionou o enigma, e Sanderson teve de recorrer a Ewan Campbell, egiptlogo da
Universidade de Edimburgo, seu antigo chefe no Escritrio de Comunicaes. O professor
explicou que os textos estavam escritos em wolpuk, obscuro cdigo medieval utilizado
durante a guerra pelos responsveis do Projeto Amphitryon; acrescentou que esse plano, tal
como fora concebido pelo marechal Gring, consistia na criao de ssias que
substitussem os altos oficiais do Fhrer em ocasies arriscadas, mas que, em algum
momento, passou a ser considerado apenas mais uma das malogradas tentativas de
desarticulao do regime de Hitler perpetradas pelos prprios oficiais nazistas, pois, por
volta de 1943, fora desarticulado e seus responsveis presos sob acusao de conspirar com
os judeus ou dado por desaparecidos. Convencido de que o nome de Thadeus Dreyer
figurava entre os envolvidos naquele evento, Sanderson permitiu ao entediado professor
universitrio o deleite de decifrar o cdigo que ele prprio no saberia ler e, exultante, logo
procurou Cossini para oferecer-lhe a nica informao que provavelmente no possua.
Ao ouvir o nome Amphitryon, o pintor no demonstrou surpresa e ps-se a comentar
as muitas verses baseadas naquela histria do guerreiro suplantado por Zeus no leito
conjugal; antes, porm, que Sanderson triunfasse com a desconcertante notcia, Cossini
sobreps que, no caso de Dreyer, preferiria o nome de Hrcules pois se tratava de homens
desbancando deuses, e no o contrrio mas estava feliz com a decifrao do manuscrito.
Diante do silncio expectante que se seguiu, Sanderson teve de confessar que ainda
ignorava o contedo dos papis do baro e, assim, acusou a participao de uma terceira
pessoa na sigilosa trama. Remigio Cossini indignou-se com aquela estpida e imprudente
atitude e desligou o telefone lamentando o fato de, no tabuleiro da humanidade, as peas
no respeitarem as regras do jogo como no xadrez.
Dias depois, um nervoso telefonema do coronel Campbell confirmou, mais uma vez,
as temerosas hipteses de Cossini: do outro lado da linha, e certamente coagido pela
37
presena do falso Bogart, o professor dizia ter decifrado os escritos do baro e convidava
Sanderson a visit-lo em Edimburgo. Prevendo a armadilha, o narrador fingiu entusiasmo
ante a notcia do ex-chefe, e mentiu dizendo que pegaria o primeiro trem da tarde para
encontr-lo e finalmente conhecer o contedo daqueles manuscritos que lhe serviria apenas
como informao para um romance histrico que pensava escrever.
Ao ser surpreendido por Bogart s portas do aeroporto de Heathrow naquela mesma
noite, Sanderson perguntou-se como o enigmtico sujeito conseguira prenunciar seus
passos e deslocar-se to rpido da capital escocesa at Londres; deduziu que um outro
facnora havia ameaado o professor Campbell, mas no pde deixar de atribuir quele ou a
qualquer outro membro do nebuloso exrcito o mesmo rosto de Humphrey Bogart como
nunca mais conseguiu dissociar de cada uma das inmeras imagens do ator que o
atormentaram pelo resto da vida o espectro de um sicrio que apenas por detalhes mnimos
se diferenciavam dos outros integrantes daquela infindvel milcia imaginada. O narrador
foi ento empurrado para o banco de trs de um txi que agora atravessava a cidade rumo
aos subrbios, e recebeu de Bogart uma foto que tacitamente respondia s suas
inquietaes: Remigio Cossini, em surrados trajes de paciente de hospital psiquitrico,
esperava, sentado diante de um tabuleiro de xadrez, pela ordem que seu crebro perturbado
j no daria. O silncio posterior quela tormentosa revelao s se desfez quando o
motorista, com a impostao de um velho militar, chamou a ateno de Bogart que,
submisso, acatava s instrues que recebia em alemo e que cessaram somente quando o
txi por fim parou beira da estrada. Sanderson, como que antevendo a ltima pgina de
um romance policial ruim, pressentiu que adentrava o cenrio de sua prpria execuo
tantas vezes imaginado desde o primeiro encontro com aquele personagem, e no precisou
de ordem para descer do carro, se ajoelhar e ouvir o revlver engatilhando.
O longo tempo transcorrido desde os episdios descritos Sanderson diz ter dedicado
recuperao da sensibilidade artstica, mas confessa sentir enfado toda vez que algum
jornalista lhe pergunta sobre algum dos muitos quadros e sinfonias que aparecem em seus
livros, e nada comenta sobre as rias que o entediam, sobre galerias que o aborrecem e
muito menos sobre a tela que lhe foi legada pelo testamento de Remigio Cossini em 1964:
uma cpia fiel do Homem sentado, quadro atribudo a um imitador de Rembrandt. Assim
como os desejos pstumos do baro Blok-cissewsky, o ato do pintor parecia conter para
38
alm da macabra cincia de que Sanderson escaparia ao destino que lhe fora implacvel
uma espcie de criptograma, um velado convite para que o beneficirio revistasse todos os
momentos passados com aquele que agora queria lhe oferecer a pista que faltava. O escritor
lembrou-se ento de uma viagem a que Cossini aludira em seu ltimo telefonema, mas s
foi capaz de adivinhar o rumo que deveria tomar quando um fortuito compromisso editorial
o levou a Frankfurt e s proximidades do asilo ao qual o baro Woyzec Blok-Cissewsky
legara toda sua fortuna genebrina.
Uma vez em Frankfurt, Sanderson ps-se a investigar todos os asilos da cidade,
distribuindo propinas e consultando listas de internos at encontrar algum vestgio que o
conduzisse naquela trama; quando finalmente encontrou o insalubre casaro cujo grande
benfeitor era Blok-Cissewsky, no poupou seus marcos para reavivar a memria do velho
responsvel pela instituio. O administrador comeou ento a contar que o baro lhe
escrevera pouco depois da guerra oferecendo generosas doaes sempre que o informasse
do estado de Viktor Kretzschmar, interno desde 1937. Em 1960, Blok-Cissewsky visitou o
asilo pela primeira vez; durante dias, tentou arrancar Kretzschmar de sua alienao para
com ele jogar uma partida de xadrez e s desistiu de seus esforos quando foi informado
que