4
CINEMA Entrevista Jorge Leitão Ramos, em Veneza Já. CUmpriU. 81 anos -eé uma lenda viva. Trabalhou com tantos realizadores fa- mosos que nomeá-los é quase fazer um catálogo de notáveis (Doniol-Valcroze, Welles, Truffaut, Mareei Hanoun, Duras, Malle, Carne, Rivette, Rob- be-Grillet, Resnais, Bunuel, Losey, Costa-Gavras, Eustache, Handke, Annaud, Ivory, Ozon, Forman, Olmi, Amenábac...), numa carreira onde se mistu- ram filmes espartanos e grandes produções inter- nacionais éomo "Munique", de Steven Spiel- berg, ou "007 Aventura no Espaço", onde era o vilão que çpttase aniquilava James Bond. Michael Lonsdale fem o olhar de um grande e sábio se- nhor, mesmo se o porte, curvado, não esconde a idade. Tem aquela voz grave, que ficou na memó- ria de todos os que viram "índia Song", povoada por pequenos risos que afloram mais por alegria do que por ironia. Encontrei-o no jardim exterior ao Albergo Quattro Fontane, no Lido de Veneza, num dia luminoso de setembro, a meio do festival onde "O Gebo e a Sombra" teve a sua estreia mun- dial. Disse-me que preferia conceder a entrevista fora, à sombra de uma árvore enorme, com a claridade transparente daqueles dias em que o sol sai depois da chuva. Foi inexcedivelmente amável. E assim conversámos. Ao fim de todos estes anos e de todos os filmes que fez, ainda tem paciência para vir a festivais de cinema? De Veneza, gosto muito. Carmes, não. Carmes é a multidão, é a loucura, é insuportá- vel, nem se conseguem dar três passos na rua, com toda aquela gente aos gritos por detrás das barrei- ras de segurança. E é uma pena. Quando conheci Carmes, nos anos 50, era uma pequena cidade mui-

Press Review page - ClipQuick · 2012-10-13 · vinha muito e declinei. Passados poucos dias, o meu agente voltou a telefonar-me a dizer que, nes- se caso, Bela Tarr vinha a Paris,

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Press Review page - ClipQuick · 2012-10-13 · vinha muito e declinei. Passados poucos dias, o meu agente voltou a telefonar-me a dizer que, nes- se caso, Bela Tarr vinha a Paris,

CINEMA

Entrevista Jorge Leitão Ramos, em Veneza

Já. CUmpriU. 81 anos -eé umalenda viva. Trabalhou com tantos realizadores fa-

mosos que nomeá-los é quase fazer um catálogode notáveis (Doniol-Valcroze, Welles, Truffaut,Mareei Hanoun, Duras, Malle, Carne, Rivette, Rob-

be-Grillet, Resnais, Bunuel, Losey, Costa-Gavras,

Eustache, Handke, Annaud, Ivory, Ozon, Forman,Olmi, Amenábac...), numa carreira onde se mistu-

ram filmes espartanos e grandes produções inter-nacionais — éomo "Munique", de Steven Spiel-

berg, ou "007 — Aventura no Espaço", onde era o

vilão que çpttase aniquilava James Bond. MichaelLonsdale fem o olhar de um grande e sábio se-

nhor, mesmo se o porte, já curvado, não esconde a

idade. Tem aquela voz grave, que ficou na memó-ria de todos os que viram "índia Song", povoada

por pequenos risos que afloram mais por alegriado que por ironia. Encontrei-o no jardim exteriorao Albergo Quattro Fontane, no Lido de Veneza,num dia luminoso de setembro, a meio do festivalonde "O Gebo e a Sombra" teve a sua estreia mun-dial. Disse-me que preferia conceder a entrevistacá fora, à sombra de uma árvore enorme, com a

claridade transparente daqueles dias em que o sol

sai depois da chuva. Foi inexcedivelmente amável.E assim conversámos.

Ao fim de todos estes anos e de todos os filmes

que fez, ainda tem paciência para vir a festivaisde cinema? De Veneza, gosto muito. Carmes, jánão. Carmes é a multidão, é a loucura, é insuportá-vel, nem se conseguem dar três passos na rua, comtoda aquela gente aos gritos por detrás das barrei-

ras de segurança. E é uma pena. Quando conheci

Carmes, nos anos 50, era uma pequena cidade mui-

Page 2: Press Review page - ClipQuick · 2012-10-13 · vinha muito e declinei. Passados poucos dias, o meu agente voltou a telefonar-me a dizer que, nes- se caso, Bela Tarr vinha a Paris,

to bonita, um festival muito simpático.Como é que aparece num filme de Manoel de Oli-veira? Não sei. Ele tinha pensado em Michel Picco-

li, com quem já trabalhou várias vezes e de quemgosta muito, mas Piccoli não estava disponível. En-

tão lembrou-se de mim. Deve-me ter visto nalgunsfilmes, não perguntei.Aceitou fazer o filme por causa do texto ou porcausa de Oliveira? Por causa de Oliveira, claro. A

peça é completamente desconhecida em França.Gosto muito de cineastas como ele. Oliveira conti-

nua a fazer filmes — e não é pela glória, nem pelo

sucesso, nem por ambição, nem pelo dinheiro, é

porque tem coisas para dizer. E é impressionantevê-lo em ação, com 103 anos, sempre em forma,com aquela mulher pequenina, de chapéu, um

pouco de bâton nos lábios, umas quantas revistas

para passar o tempo enquanto o marido trabalha— é espantoso.Como é que vê o seu personagem de "O Gebo e a

Sombra", uma espécie de mártir? É um homem

que abandonou qualquer ambição, que está sem-

pre a dizer que é muito pobre, muito pobre, masnão é tanto assim, porque tem emprego... O filmeé bastante surrealista, na medida em que jamaisum funcionário de uma empresa levaria para casa

tanto dinheiro, a administração nunca consentiria,é demasiado arriscado. Tudo se passa num mundoà parte. Quanto ao personagem, não sei como o

classificar, não gosto muito de etiquetar seres hu-

manos, este é isto, aquele é aquilo, mas o Gebo é

alguém sem envergadura, mas com coração, é umhomem de poucos meios que sofre e que sofre ain-

da mais porque vê a mulher sofrer. Não julgo o seu

comportamento, há muitos homens como ele, mo-

destos, com medo, mas que, apesar disso, fazem o

que devem. Gostei de interpretar este personagemlimitado, nada brilhante — até porque, ao longo da

vida, fiz imensos personagens brilhantes.Como é trabalhar com Manoel de Oliveira, ele ex-plica os personagens, diz muitas coisas? Nada de

nada. Disse-me apenas: "Você sabe melhor do queeu o que é preciso fazer, eu não sei representar."Mas é muito preciso quanto ao espaço, aos olha-

res, aos limites para os movimentos...Fez isso com todos os intérpretes? Não sei se fez

com todos, mas também não deu quaisquer indica-

ções a Claudia Cardinale nem a Jeanne Moreau. É

engraçado um realizador que acha que os atoressabem mais do que ele sobre os personagens. Nem

sequer falámos muito fora das filmagens, ele esta-

va sempre muito ocupado, e no refeitório onde al-

moçávamos, normalmente, não estávamos na mes-

ma mesa. Mas houve uma coisa que me deixoudesolado: no último dia, no refeitório, sentámo--nos lado a lado. E durante vinte minutos Oliveirafalou comigo... e eu não ouvi uma palavra. Haviademasiado barulho, toda a gente falava alto e brin-

cava, e eu não lhe ia dizer para falar mais alto,

porque seria indelicado. De maneira que fui sorrin-

do, acenando com a cabeça, e ia-me perguntando:"Que coisas estará ele a dizer? Ficaria tão feliz se

as pudesse ouvir!" Nunca hei de saber.

Conhece os outros filmes de Oliveira? Muito pou-cos. Mas conheço muito bem pessoas que trabalha-ram com ele, como Bulle Ogier, Michel Piccoli,

que me levaram a confiar totalmente."O Gebo e a Sombra" é feito em longos planos,com a câmara fixa, longas tiradas que podem cau-sar problemas aos intérpretes. Foi preciso repetirmuito? Quase nada.

Os atores dizem o texto e está feito, tão simplescomo isso? Sim, sim, foi isso mesmo... E tive o

prazer de descobrir a atriz que interpreta a mu-lher do filho, Leonor Silveira, muito bela, muito

precisa, formidável.Um filme como "O Gebo e a Sombra" faz algumsentido na França de hoje? À partida, nunca sabe-

mos o que as pessoas descobrem nos filmes. Umaobra como "Dos Homens e dos Deuses", que fiz hádois anos, parecia a toda a gente que apenas iriaencontrar algum eco junto dos crentes e, afinal,não aconteceu nada disso, houve imensas pessoasnão-crentes que se deixaram abalar por ela. A rece-

ção de um filme é sempre imprevisível.Ao longo da sua carreira fez filmes de todos os

géneros. Interpretar um papel numa pequena pro-dução como esta ou numa grande produção co-mo "O Nome e a Rosa" é muito diferente? O traba-lho de um ator é sempre feito das mesmas coisas,

não importa se os filmes têm muitos ou poucosmeios de produção.Mesmo num filme de James Bond? Sim, mas nes-se tive o prazer de conhecer Roger Moore, que foiencantador e me disse logo: "Oiça, eu não sou

comediante, a minha representação resume-se atrês expressões: quando fico espantado levanto o

sobrolho, quando quero seduzir mordo o maxilar,quando estou inquieto franzo o sobrolho. Fora is-

so, não sei fazer mais nada." O nível é esse, é

muito elementar.

Page 3: Press Review page - ClipQuick · 2012-10-13 · vinha muito e declinei. Passados poucos dias, o meu agente voltou a telefonar-me a dizer que, nes- se caso, Bela Tarr vinha a Paris,

Aos 81 anos, continua a fazer vários filmes porano. Nunca pensou em retirar-se? Ah, não, por-quê? Continuo a ter prazer em representar, acho

que tenho capacidade para o fazer, há pessoas quequerem trabalhar comigo e com quem eu querotrabalhar — porquê retirar-me? Veja a MichelinePresle, tem 90 anos e continua com a alegria de

uma rapariguinha. Claro que há atores que dizem

que já estão fatigados, que, com a idade, já não é

como dantes... e, em certas coisas, não é mesmo.Dantes havia diálogos mais elaborados no cinema,

agora é tudo muito mais simples.E não há a sensação de que tudo está feito? Claro

que não. Quando vemos um filme de Tarkovski,vemos coisas que nunca ninguém tinha feito. Hámuitos cineastas que inventam. Marguerite Durasinventou um cinema que era só dela...

Sim, mas são cineastas que já não estão entrenós... Tem razão, mas veja Bela Tarr, é um realiza-dor muito interessante e inovador, é uma penaque diga que não vai filmar nunca mais.

Trabalhou com ele? Sim, foi uma coisa bizarra. Háuns anos, ele contactou o meu agente para eu ir a

Praga dobrar a voz de um personagem de "O Ho-mem de Londres". Respondi que ir de Paris a Pra-

ga para gravar cinco linhas de diálogo não me con-

Page 4: Press Review page - ClipQuick · 2012-10-13 · vinha muito e declinei. Passados poucos dias, o meu agente voltou a telefonar-me a dizer que, nes- se caso, Bela Tarr vinha a Paris,

vinha muito e declinei. Passados poucos dias, o

meu agente voltou a telefonar-me a dizer que, nes-

se caso, Bela Tarr vinha a Paris, porque queria ab-

solutamente ter a minha voz no filme. E descobri

um homem encantador, simpatizámos imenso,imenso, um com o outro. "O Homem de Londres"demorou muito tempo a acabar, o produtor fran-

cês, Humbert Balsan, suicidou-se a meio da roda-

gem, e a finalização foi muito complicada. Em

2007 ficou pronto. Houve uma projeção em Paris,um dia, às oito horas. Eu trabalhava até as sete e

apanhei um táxi, mas fiquei duas horas preso notrânsito. Quando lá cheguei, Bela Tarr tinha-se ido

embora. Foi uma pena. Nunca mais o vi. A