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CLARO CIÊNCIA ara Marie Curie, a humani- divide-se em dois gru- -1 pos: os homens práticos, que trabalham em função dos próprios interesses, e os so- nhadores, que perseguem um apelo interior. Ela si- tuou-se entre estes últimos, entre os idealistas que "não merecem rique- zas porque não as desejam". Em finais do sé- culo XIX, quando o acesso a muitas universi- dades da Europa era vedado às mulheres, Marie sonhou a vida que teve. Jamais dese- jou a opulência, embora no fim ousasse uma ressalva: que aos sonhadores fossem dadas condições para viverem "livremente devota- dos ao serviço da investigação científica". No seu caso, cumpriu-se apenas a última parte da premissa. O seu percurso foi marcado por dificuldades financeiras e pela falta de meios para levar a cabo o seu labor. A mulher de cabelo apanhado e vestido es- curo, que as fotografias raramente mostram a sorrir, revelou numa carta à irmã Bronisla- wa ter pensado mudar-se para o campo e de- dicar-se à jardinagem. A seguir, porém, con- fessava não saber viver fora do laboratório. À exceção dos passeios de bicicleta na compa- nhia do marido, Pierre Curie, as férias no campo a apreciar a natureza ou os momentos junto das filhas pequenas, Irene e Eve, Marie passava as horas devotada aos segredos da ciência, quase sem abandonar o espaço onde levava a cabo as experiências que a haveriam de tornar a primeira mulher a ganhar um pré- mio Nobel ea primeira pessoa a receber dois Nobel em áreas científicas diferentes, além de ter sido a primeira mulher a lecionar na Universidade de Sorbonne. Pierre Curie dizia que tinha encontrado "uma esposa feita ex- pressamente para partilhar com ele as suas preocupações" e apoiou-a nos seus empreen- dimentos, chegando a abandonar a própria pesquisa para se juntar à de Marie. Mas quem foi Marie Curie? Antes de ser, foi Maria Slodowska, nascida a 7 de novem- bro de 1867 numa Varsóvia sob ocupação rus- sa. Última de sete irmãos, filha de um profes- sor de matemática e física e da diretora de uma escola para mulheres, cresceu entre con- versas sobre ciência e artes. Era uma criança dotada que aprendeu a ler aos quatro anos e que devorava livros, incluindo poesia e os vo- lumes técnicos da biblioteca do pai. A mãe morreu com tuberculose aos 42 anos, perda que Maria, na altura com 12, lembraria como a "catástrofe" da sua infância. Iniciados os estudos no ensino privado, concluiu-os num

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CLAROCIÊNCIA

ara Marie Curie, a humani-divide-se em dois gru-

-1 pos: os homens práticos, quetrabalham em função dos

próprios interesses, e os so-

nhadores, que perseguemum apelo interior. Ela si-

tuou-se entre estes últimos,entre os idealistas que "não merecem rique-zas porque não as desejam". Em finais do sé-

culo XIX, quando o acesso a muitas universi-dades da Europa era vedado às mulheres,Marie sonhou a vida que teve. Jamais dese-

jou a opulência, embora no fim ousasse umaressalva: que aos sonhadores fossem dadas

condições para viverem "livremente devota-

dos ao serviço da investigação científica". No

seu caso, cumpriu-se apenas a última parteda premissa. O seu percurso foi marcado pordificuldades financeiras e pela falta de meios

para levar a cabo o seu labor.A mulher de cabelo apanhado e vestido es-

curo, que as fotografias raramente mostrama sorrir, revelou numa carta à irmã Bronisla-

wa ter pensado mudar-se para o campo e de-

dicar-se à jardinagem. A seguir, porém, con-

fessava não saber viver fora do laboratório. À

exceção dos passeios de bicicleta na compa-nhia do marido, Pierre Curie, as férias no

campo a apreciar a natureza ou os momentos

junto das filhas pequenas, Irene e Eve, Marie

passava as horas devotada aos segredos da

ciência, quase sem abandonar o espaço onde

levava a cabo as experiências que a haveriamde tornar a primeira mulher a ganhar um pré-mio Nobel e a primeira pessoa a receber dois

Nobel em áreas científicas diferentes, alémde ter sido a primeira mulher a lecionar naUniversidade de Sorbonne. Pierre Curie dizia

que tinha encontrado "uma esposa feita ex-

pressamente para partilhar com ele as suas

preocupações" e apoiou-a nos seus empreen-dimentos, chegando a abandonar a própriapesquisa para se juntar à de Marie.

Mas quem foi Marie Curie? Antes de ser,foi Maria Slodowska, nascida a 7 de novem-bro de 1867 numa Varsóvia sob ocupação rus-sa. Última de sete irmãos, filha de um profes-sor de matemática e física e da diretora de

uma escola para mulheres, cresceu entre con-

versas sobre ciência e artes. Era uma criançadotada que aprendeu a ler aos quatro anos e

que devorava livros, incluindo poesia e os vo-

lumes técnicos da biblioteca do pai. A mãe

morreu com tuberculose aos 42 anos, perda

que Maria, na altura com 12, lembraria comoa "catástrofe" da sua infância. Iniciados os

estudos no ensino privado, concluiu-os num

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zo

z

liceu estatal, o que, em tempos de opressão,

significava contrariar os vestígios da identida-de polaca, incluindo a língua. "A instruçãoera dada em russo e por professores que, sen-do hostis à nação polaca, tratavam os alunos

como inimigos", escreveria.

Após o liceu e pronta para começar a edu-

cação superior, Maria não pôde fazê-lo: a uni-

versidade de Varsóvia não admitia mulheres.Passou então a sonhar com a possibilidade de

estudar matemática e física na Sorbonne, emParis. A escassez de dinheiro para o concreti-

zar foi colmatada com um pacto entre ela e airmã Bronislawa, que aspirava a frequentaraquela instituição: por ser mais velha, esta

iria primeiro, enquanto Maria a ajudava finan-ceiramente. Depois, seria a vez de a mais no-

va ser apoiada. Em meados dos anos 1880, afutura Madame Curie foi aceite como gover-nanta, primeiro em Cracóvia, depois em Cie-

chanow, em casa dos Zorawski, onde perma-neceu dois anos. Ali estudou ciências por con-

ta própria, desenvolvendo uma autonomia

que viria a ser crucial nos anos de Paris. Malsabia que se apaixonaria por Kazimierz, filhodo dono da casa, e que a paixão seria recípro-ca ao ponto de ambos planearem casar. Mas

aquele que mais tarde seria um brilhante ma-temático não teve forças para contrariar a

oposição dos pais. De regresso a Varsóvia e

graças ao primo Jósef Boguski — químico quefora assistente de Dmitri Mendeleev, o inven-

tor da tabela periódica— acedeu aos laborató-rios do Museu da Indústria e Agricultura, on-de adquiriu ferramentas analíticas e 'curou'

as mazelas do desgosto amoroso.Em 1891, aos 24 anos, Maria mudou-se pa-

ra a capital francesa. Instalou-se no n° 3 da

Rue de Flatters, no Quartier Latin, num quar-to minúsculo e mal aquecido que no inverno a

obrigava a empilhar pertences e cobertores pa-ra poder dormir. "Nesse quarto eu preparavaas refeições (...) que muitas vezes se reduziam

a pão, ovos ou fruta", registaria. Menos prepa-rada que os seus colegas franceses e a falar

uma língua estrangeira, concluiria a licenciatu-

ra em física em 1893 como a melhor da turma.Em 1894, o ano em que se graduou em mate-

mática, conheceu Pierre Curie, de 35 anos,"um homem alto de cabelo ruivo e olhos límpi-dos", com quem se casou um ano depois. Nas-

cia assim uma das mais frutíferas parcerias da

história da ciência. Nascia Marie Slodows-

ka-Curie, o mito tal como hoje o conhecemos.

PIONEIRA FOI MARIE CURIE QUEM CRIOU OTERMO 'RADIOATMDADE 1

,PARA NOMEAR A ÁREA

CIENTIFICA A QUE DEDICOU A SUA VIDA; AO LADO,MARIE, PIERRE E A FILHA IRENE, QUE TAMBÉM

VEIO A GANHAR O PRÉMIO NOBEL EM 1935

Juntos em vida e obra. Físico reconhecido e

professor na Escola de Física e Química de

Paris, Pierre conseguiu que a mulher se lhe

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juntasse no laboratório. Em 1897, pouco depoisde dar à luz Irene, a primeira filha do casal, ela

decidiu avançar para o doutoramento. E ba-

seou a sua pesquisa na radiação emitida pelossais de urânio, descoberta por Henri Becquerel(já depois da produção de raios X por Rõntgen). De início, investigou cada um dos elementosconhecidos até então e determinou a capacida-de de radiação de um deles, o tório. Descobriutambém — o que não é despiciendo — que ape-nas o urânio c o tório possuíam propriedadesradioativas. A seguir, a sua atenção focou-se

em dois minerais de urânio, a torbernite e a

pechblenda. E não tardou a compreender queambos revelavam uma radioatividade muito su-

perior à do urânio. A pechblenda, em especial,revelou-se quatro vezes mais radioativa do que

aquele elemento no estado puro. A conclusão

era óbvia: o mineral devia conter pequenas

quantidades de outra substância, bastante mais

ativa do que o urânio e ainda desconhecida.

Meses depois, os Curie encontram o novo

elemento, a que dão o nome de 'polónio' — emhomenagem à terra natal de Marie. Ela comu-nica a descoberta em junho de 1898 e no rela-tório fixa, pela primeira vez, o termo 'radioati-vidade'. Mas a pesquisa estava longe do fim:ainda desvendam a existência de outro ele-

mento, que viria a ser o mais importante dos

dois e a que denominam 'rádio', um milhão de

vezes mais radioativo do que o urânio. Come-

çava agora a árdua tarefa de o isolar. O des-

provido laboratório em que trabalhavam tor-nou-se pequeno para tal empresa, pelo quelhes foi cedido um telheiro que em tempos fo-

ra sala de dissecção da Escola de Medicina.Tratava-se uma estrutura de madeira com umtelhado em vidro que quase não protegia dachuva. No verão, o local era tórrido, no inver-

no custava a aquecer. Apesar disso, Marie es-

creveu: "Foi neste miserável e velho telheiro

que passámos os melhores e mais felizes anos

das nossas vidas." Quatro anos demorou a iso-

lar, de uma tonelada de pechblenda, um deci-

grama de cloreto de rádio. Em 1902 pôde des-

ta forma determinar o seu peso atómico. "Pre-cisei de quatro anos para produzir o tipo de

evidência que a ciência química exige. Mas

um ano teria sido suficiente se tivesse à minha

disposição meios razoáveis", constatou.Pierre ocupava-se dos efeitos biológicos

da substância. Tanto ele como Marie queixa-vam-se de fortes dores nas articulações e de

feridas que demoravam a sarar. A exposição

maciça à radiação sem proteção adequada co-

meçava a dar sinais. Mas começava tambéma delinear-se todo um campo de utilização do

rádio para fins terapêuticos — nomeadamen-

te na destruição de tecidos cancerígenos. Em

1903 Marie entrega a sua tese e ganha, comPierre e Becquerel, o prémio Nobel da física.

Ao contrário do que se poderia supor, esta

fase foi de confusão para os cientistas. "Du-rante algum tempo não tivemos paz. A saída

do nosso isolamento voluntário foi causa de

real sofrimento para nós e teve o efeito de

um desastre", registou Marie.Em 1906, num dia de chuva, Pierre morre

atropelado por uma carruagem. Ela fica comas filhas pequenas e o fardo de "uma solidão

incurável". A Sorbonne oferece-lhe a cátedrado marido e ela torna-se a primeira mulher a

lecionar naquela universidade, enquanto con-

tinua, no laboratório, o trabalho de obter clo-

reto de rádio. Em 1910 consegue isolar o me-tal em estado puro, feito que lhe vale, em 1911,

o Nobel da química. Ironicamente, a Acade-mia das Ciências de Paris rejeita-a como mem-bro por ser mulher. Aquele ano ficou tambémmarcado pelo escândalo que o seu affair comPaul Langevin, homem casado e assistente de

Pierre, provocou na imprensa francesa. Mariefoi alvo de difamação e de xenofobia, ao pontode Estocolmo sugerir que não viajasse parareceber o prémio. Mas ela foi. A um passo de

conseguir, com a criação do Instituto do Rá-

dio (hoje Instituto Curie), as condições de tra-balho há anos almejadas, a guerra estala. Ma-rie não lhe vira as costas, criando unidadesmóveis de raios X para assistir os feridos, queficaram conhecidos como petites Curies.

A partir da descoberta de Marie Curie, to-da uma indústria de produção de rádio veio a

ser desenvolvida. O casal publicara sempreos seus métodos de extração da substância,recusando-se a patenteá-los, deixando o cam-

po aberto à comunidade científica. Como

consequência, os Curie não usufruíram dos

benefícios materiais que poderiam advir das

suas descobertas. Foi uma decisão conscien-

te. No fim da vida, Marie referiu: "Renunciá-

mos a uma fortuna que poderia ter ido paraos nossos filhos (...). Os nossos amigos argu-mentaram, não sem razão, que se tivéssemos

garantido os nossos direitos, teríamos tido os

meios apropriados para trabalhar. Mas eu

acredito que fizemos a coisa certa."

Apesar de cidadã francesa, Marie jamaisdeixou de ser polaca, e ainda viveu para, em

1932, ajudar a fundar o Instituto do Rádio cmVarsóvia— hoje o Maria Slodowska-Curie Ins-titute of Oncology. Dois anos mais tarde su-

cumbiria a uma leucemia, provavelmente pro-vocada por uma vida exposta à radiação. Ain-

da hoje os seus apontamentos permanecemradioativos. O seu nome cunhou um elemento

químico, o cúrio, e um método de tratamentodo cancro em França denominado "curiethe-

rapie". Mas Marie Curie é também um tipo de

rosa, cor de salmão, de flor pequena e — ou

não homenageasse quem lhe deu o nome —

adaptável, vigorosa e resistente. ¦II eiderfarbt* expresso.impresa.pt

0 casal publicavasempre os

seus métodos,recusando-se apatenteá-los, nãoretirando deles

qualquer benefíciomaterial

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A cientista portuguesaimpedida de seguir Curie

iranca Edmée Marques trabalhou com Curie em Paris e podia ter ido mais Longe comocientista se o governo português não Lhe tivesse adiado a carreira texto de anabela natário

VariaCurie queria que a cientista

continuasse no seu laboratóriode Paris, julgava-a capaz de che-

gar a uma descoberta importan-te. Mas a bolsa de estudo estava a

acabar e os governantes portugueses tarda-

vam em renová-la. Irão adiar-lhe a carreira, co-

mo voltarão a fazê-lo quando ela conclui o dou-

toramento e a impedem de ser assistente nauniversidade ou quando, aprovada com méritoabsoluto no "concurso para professor catedrá-tico de Química da Faculdade de Ciências de

Lisboa", lhe retêm esse direito durante 12

anos... Ser mulher num país "orgulhosamentesó" foi o seu maior problema.

"Certifico que Branca Edmée Marques fez

um trabalho bastante útil no meu laborató-rio desde o início de novembro de 1931", es-

creveu a cientista francesa de origem pola-

ca, já prémio Nobel por duas vezes. "Mada-me Marques empregou o seu tempo parase pôr ao corrente da técnica das medidas

no laboratório e aprender os métodos utili-zados para a dosagem de rádio e de urânio

nos minerais", dizia ainda na carta dirigi-da, em maio de 1932, ao presidente da Jun-

ta de Educação Nacional, ele próprio umbeneficiário do ensino francês — em Paris,Marck AnahoryAthias estagiou, licenciou-se

e doutorou-se na Faculdade de Medicina co-

mo, na época, faziam aqueles que queriam (e

podiam) valorizar o percurso académico

Silêncio castrador. "Para poder continuar, sei

que mmc. Marques solicitou a prorrogação da

bolsa de que beneficia atualmente e eu julgo ser

desejável que ela obtenha esta prorrogação pormais um ano". Nem assim a prémio Nobel con-

seguiu convencer as autoridades portuguesas,muito ocupadas na transição da ditadura mili-tar para a civil. Nunca lhe deram uma resposta,nem que sim nem que não. Apesar disso, passa-do um ano, Maria Curie voltou a insistir, preten-dia atribuir nova e importante tarefa a Branca

Marques. A resposta foi, mais uma vez, o silên-

cio da Junta. Nesta altura, já António de Olivei-

ra Salazar passara de ministro das Finanças a

presidente do Conselho de Ministros, fazendo

aprovar a Constituição de 1933, a espinha dor-

sal do Estado Novo, entalada entre Deus, a Pá-

tria e a Família, e criadora de ilusões.

Não fora este desinteresse, a cientista portu-guesa poderia ter estudado as leis da separaçãodo actínio, "o que necessariamente a poria emface dos problemas de medição daquele radioe-

lemento, que mais tarde proporcionaram a

Marguerite Perey a descoberta do AcK", comorefere a própria num dos seus currículos. A físi-

ca e química, sua colega no período da bolsa,descobriu em 1939 o elemento químico que se-

ria batizado de francium, em homenagem a

França. Marguerite Catherine Perey douto-

rou-se em 1946, tornou-se diretora do Institu-to de Rádio e três anos depois professora de

Química na Universidade de Estrasburgo.

Não era a primeira vez que lhe plantavamobstáculos na progressão profissional. BrancaEdmée Marques já vira a sua primeira candi-datura à bolsa 'chumbada' em 1930, emborafosse licenciada, há cinco anos, em Ciências

Físico-Químicas, e tivesse estagiado, antes de

acabar o curso, no Laboratório de QuímicaAnalítica do Instituto Superior Técnico, emLisboa, sob a orientação do engenheiro quími-co francês Charles Lepierre. Ainda finalista,fora nomeada "segundo-assistente efetivo",

apesar de ser a única mulher entre professo-

res e funcionários do laboratório. Exercerá o

cargo até terminar o último ano da faculdade

e decidir frequentar aulas no Instituto Bacte-

riológico de Câmara Pestana.

Sair do país? Só com a mãe. Branca fora

sempre uma ótima aluna. Nos liceus Ma-ria Pia e Pedro Nunes, onde concluiu os

dois últimos anos, as suas notas marca-vam a diferença. Quando passou para afaculdade continuou a obter classifica-

ções que auguravam uma carreira fulgu-rante. Era ainda estudante universitária,quando a convidaram a integrar o labora-tório que iria ser instalado no Huambo pa-

ra apoiar a Missão Geológica de Angola.Tornar-se analista não era, porém, o seu so-

nho. E recusou-se a trocar a conclusão do

curso por um emprego e a cidade de Lisboa

por uma terra desconhecida e longínqua. O

seu objetivo era especializar-se em radioativi-

dade, portanto, o melhor seria ir para Paris,

para o Institut dv Radium, dirigido por Curie.Mas só seguiria o seu sonho se ganhasse a

bolsa, por isso candidatou-se uma segundavez. E conseguiu. Foi para França, deixandocá o marido, António Sousa Torres, o profes-sor da Faculdade de Ciências, mais velho 23anos, com quem entretanto se casara. Como

se viviam tempos em que pouco ficava bem a

uma mulher, para lá da vestimenta e do cor-te de cabelo, Branca não pôde viajar sozinha.Não indo o esposo, acompanha-a a mãe, Ber-ta Rosa Marques, que a educara sem ajuda

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desde os oito anos, idade em que morreu o

pai, Alexandre Théodor Roux. Ao fim de qua-tro anos, as autoridades portugueses conti-

nuavam sem se pronunciar sobre a renova-

ção da bolsa e Maria Curie morrera. Branca,

apesar de ser convidada a ficar, resolveu vol-

tar a Lisboa e partilhar o que aprendera.

"Uma referência para toda a gente". A Lis-

boa, onde nascera em 14 de abril de 1899, re-

gressará com 36 anos e um doutoramento em

que foram arguentes os prémios Nobel Jean

Perrin e Frédéric Joliot-Curie, genro de Marie,e o professor André Debierne, descobridor do

actínio e sucessor de Curie à frente do institu-

to. Virá ainda carregada com os cadernos em

que apontara as aulas que tivera com Marie Cu-

rie e nos outros três cursos de Química e Física

que frequentou durante a bolsa. Traz também

na bagagem o registo de uma patente sobre

um método de separação do rádio, que interes-

sou à Union Minière dv Haut Katanga, empre-sa de Bruxelas exploradora das riquezas mine-rais do então Congo Belga.

No meio do desgosto deste regresso, ficou

satisfeita ao receber um documento enviado

pelo diretor da Faculdade de Ciências de Lis-

boa, Vítor Hugo de Lemos, referindo que dois

dias antes o conselho escolar resolvera felici-

tá-la "pelo brilho que revestiam os atos de dou-

toramento que realizou na Universidade de Pa-ris". No ano seguinte, o Conselho Permanenteda Ação Executiva dará parecer favorável à

equivalência do doutoramento tirado em Fran-

ça e o ministro da Educação Nacional, Máriode Figueiredo, homologará o "grau de Doutorem Ciências Físico-Químicas das Universida-des Portuguesas". Apesar do título, só em

1942 será promovida a primeiro-assistente,muito embora desempenhe, desde 1936, fun-

ções de encarregado de curso e tenha um con-trato de regente. E só à beira da reforma, em

1966, após ganhar um segundo concurso, con-

segue a categoria de "professor catedrático".Branca — recorda o seu aluno Dias Lopes,

num texto escrito para a revista "Tecnologia e

Qualidade", de junho de 2008 — era "uma pes-

soa de hábitos espartanos, que chegava todos

os dias de elétrico. Era uma referência para to-da a gente, sobretudo, para o corpo docente e

discente da velha Faculdade", a funcionar naRua da Escola Politécnica. Outro seu aluno lem-bra que a professora "tinha muito orgulho" na

relação que teve com Curie. "De vez em quan-do, nas suas aulas referia-se de forma carinho-

sa a uma tal Maria (Maria, seulement...) quenós, depois, viríamos a saber tratar-se de Mada-me Curie... Fazia gala em nos transmitir o graude intimidade que adquiriu com aquela célebre

cientista", escreve João José Mendes de Matos,no bloque "Memória Recente e Antiga".

Branca levava uma vida sobrecarregadacom aulas, mas mesmo assim arranjou tem-

po para criar, em 1936, o Laboratório de Ra-

dioquímica, o primeiro centro de investiga-ção de Química e do qual será diretora atéterminar a carreira académica. Começou porprojetar as obras necessárias à adaptação da

sala de aulas de Álgebra a laboratório para,sete anos mais tarde, sacrificando as suas fé-

rias, o modernizar e, em 1944, conceber as

plantas dos novos espaços dedicados à inves-

tigação de que a Faculdade de Ciências daUniversidade de Lisboa necessitava.

BRANCA EDMÉE MARQUESFOTO (ALTERADA) DO CERTIFICADODE INSCRIÇÃO NO CONSULADO GERALDE PARIS, EM 1934 (PÁGINA AO LADO);NO CENTRO DE ESTUDOS DE RADIOQUI-MICA, EM 1936, EM LISBOA (EM CIMA);BILHETE DE IDENTIDADE DE ALUNADA FACULDADE DE CIÊNCIAS, EM 1918

Exposição em Coimbra. Mesmo tão ocupada,Branca não cede quando se trata de se atuali-

zar, como fez em 1949, quando a suas expen-sas efetua viagens de estudo a diversos labo-ratórios franceses do Comissariado da Ener-

gia Atómica e também ao Instituto do Rádio,onde colabora nos trabalhos de química nu-clear em curso. E participou em conferên-cias no estrangeiro, além de representar Por-

tugal em acontecimentos internacionais. Aos

87 anos, morreria deixando uma obra sólida.

Um pouco da história desta portuguesapode ser observado até 31 de agosto, no Mu-seu da Ciência da Universidade de Coimbra.Na exposição "Maria Skodowska Curie: Ma-dame Curie", integrada nas comemoraçõesdo Ano Internacional da Química, fala-se ain-da de outros dois portugueses que foram dis-

cípulos da cientista em França: Mário Augus-to da Silva, que lá se doutorou em 1929, e

Manuel José Nogueira Valadares, que ainda

se cruzou no Instituto do Rádio com Branca

Marques. Ambos viram também, embora um

pouco mais tarde, as suas carreiras interrom-pidas: em 1947, por questões políticas, o pri-meiro foi aposentado compulsivamente pordecreto do governo de Salazar e o segundodemitido da Universidade. ¦

[email protected]

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