Santiago Villela Marques

PRIMEIRO

Edição do Autor Sinop - 2004

Capa: Santiago

Impressão: Amazônia Gráfica e Editora

Av. das Itaúbas, 2.062 — Jardim Botânico (66) 531-6991 - Sinop (MT)

Marques, Santiago Villela (1967-). Primeiro / Marques, Santiago Villela — Sinop : Edi-

ção do Autor, 2004, 104 p.

ISBN

1. Poesia : literatura mato-grossense

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, sem autorização prévia do autor, sejam quais forem os meios em-pregados. A violação dos direitos do autor é crime estabelecido no Códi-go Penal.

2004

Edição do Autor Fone (66) 531-2328

e-mail: paulosmarques@yahoo.com.br Sinop (MT)

Minha voz inaugura os sussurros. (Manoel de Barros)

PRIMEIRO Quase destino

PRIMEIRO

O fim primeiro que tudo, um jeito de acabar o mundo feito um deus enjeitado anjo aturdido e atirado ao fogo de seu próprio abismo e castigo. O naufrágio de toda firmeza antes de elevarem-se as terras que homem possa pisar como nuvens e águas. A morte primeiro que as outras — abrir de estradas num fechar de olhos — mão no solo sagrado do outro não para o roubo da flor mas de entrega do novo grão e de cinco dedos na alma como no chão da primavera as raízes da promessa. O crespúsculo primeiro, depois a

manhã. O futuro antes do parto o passado adiante suspenso e morto e o corpo indivíduo sem deuses, divino para receber a graça pura e vácua da palavra prometida em poesia: no fim o Verbo para primeiro a Vida.

7

POEMA DA SOMBRA

É porque sou quem não devo e o ser que desejo me nego que agora um outro me escrevo e no que não sou tudo entrego.

Se noutro me fui surdo e cego e, enquanto me fiz, fiz-me oculto, neste não-ser-me me entrego e no que não digo me escuto.

Palavra que invento é meu vulto, a sombra de mim que me vem e sonha, vestida de luto, um sonho de ser mais ninguém.

10.07.99

8

POEMA OCULTO

Dos versos que fiz, o melhor é aquele que não vou escrever, que, por medo ou excesso de pudor, de um aborto espontâneo quis morrer, pra não ter que falar da minha dor e ocultar na palavra o que é sofrer.

Dos versos que fiz, o maior é aquele que pra sempre escondi como esconde o pecado o pecador, pra evitar o pecado de mentir, pra não ter que falar do sonhador sem saber explicar por que o perdi.

30.04.99

9

POR FAZER

Em tudo que sou sou sempre futuro, não passo da sombra de um pensamento que, cego ao momento, tateia no escuro tentando apanhar na sombra o momento. Não vejo que, lento, o futuro que eu tenha e a mente deseja impede ao futuro que venha e que seja.

Se agora pensei, pensei ser agora a vida que estava querendo escrever. A vida que eu tive pensada e não fora fugiu-me entre os dedos antes de ser. Perdido em querer e sempre ocupado em querer ser feliz, ficou no passado a vida que eu quis.

Aquilo que amei, amei na vontade, achando melhor que o ter a procura e melhor a aventura que a felicidade.. Pensava que o amor no tempo se cura, e nesta aventura de esperar ser um dia o que o dia perdeu, perdi a esperança de um dia ser eu.

10.10.99

10

MAYA

Tudo finge, o Ser não é mais que a solidez do Nada; a certeza de uma fé pela própria fé criada.

Tudo é sopro sob a lama, pó que pensa estar sofrendo. Nada é carne, nada é chama, só desejo, medo e vento.

Tudo é pleno de vazio, faz que existe e faz que passa, corpo é sombra sem pavio, nada é fogo, só fumaça.

Tudo mente e acredita que respira por mentir e se empenha audaz na vida, tempo a mais pra se iludir.

23.10.03

11

FELIZ DECEPÇÃO

Eu quis não ser mais do que eu, fazer de meu sonho uma reta, busquei dentro em mim pôr um deus, mas Deus pôs em mim um poeta: meus desejos não podem ser meus.

Tentei caminhar sobre a linha que achei para mim fosse escrita, ser menos que aquilo que eu tinha. Mas tinha somente uma vida e minha vida não pôde ser minha.

Se ao homem não coube o que quis ao poeta ao menos restou o querer inventar ser feliz entre o sonho de vida que sou e esta vida de sonhos que fiz.

19.06.99

12

O URSO

jamais esquecerei esta lição que um urso na floresta me ensinou: estar sempre comigo lá onde estou é abrigo que outros chamam solidão.

Vai sempre, sem faltar, aonde vou, levada pela minha, a minha mão. Vivendo de si mesmo um coração, são muitos corações tudo o que sou.

São só minhas as trilhas que percorro, mordidas de meus dentes, quando morro, apenas meus os passos sob o pé.

É a mim que persigo quando corro e me venho, se peço, em meu socorro. Descanso em mim, e a isso chamo fé.

17.08.03

13

SUPERFÍCIE

Existe em tudo o que procuro uma parte ignorada não atrás, mas ante o muro além do qual a vista errada busca e acha sempre nada.

Se buscasse a superfície desse nada em que me afundo, surpreendido, talvez visse, não a casca, mas o fundo deste abismo que é meu mundo.

02.10.99

14

SEGREDO

Perdi minha chave quando fechei-me por fora. Há alguém que me salve?

25.03.00

O OUTRO Vara Yjiáana

Mora um homem em mim que nunca em mim se fará. Chora por vir aonde vim e querendo por mim morrerá.

Fez-nos a vida assim, um para o outro ocultar. Enquanto souberem de mim, do outro ninguém saberá.

Só quando o arcanjo ruim o meu coração desvelar, o homem que morre por mim, liberto de mim, viverá.

12.06.98

16

GENEROSIDADE

Esquece o céu no horizonte e lança-te ao mundo que nasce e traça na areia sua face com a água que brota da fonte.

Encosta teu ombro no chão e não na sombra das velas, que, enquanto te esforças por elas, mais falsas te parecerão.

Pensando nas vozes do mar não ouves a onda, que cala. Não é preciso buscá-la — a vida sempre se dá.

Enterra no barro tua prece e teus pés alados na praia, espera que o dia te caia e a noite, se cai, te apresse.

Não queiras a vida avançar. A vida, que sempre foi cega, se queres ou não, não se nega — a vida sempre se dá.

01.07.98

17

DOIS Para Yjjáana

Metade de mim vem do céu, a outra metade do inferno. Trago o espírito ateu dentro de um corpo divino. Busca a pureza o adulto, quer corrompê-lo o menino, e um no outro me oculto.

Metade de mim vem do céu, a outra metade do inferno. Trago o espírito enfermo dentro de um corpo tardio. Desceu-me um demônio do céu, subiu-me um anjo do inferno, e o encontro de ambos sou eu.

Metade de mim vem do céu, a outra metade do inferno. Trago o espírito em sonho dentro de um corpo desperto. Se a vida, não sei onde a ponho, a carne, esta entrego a deus. (A alma tomou-me o demônio.)

Metade de mim vem do céu, a outra metade do inferno. Trago o espírito em fome

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dentro de um corpo infértil. Um que eu sou me consome o outro, que é resto de um fóssil daquilo que um dia foi homem.

Metade de mim vem do céu, a outra metade do inferno. Trago o espírito triste dentro de um corpo sadio. Enquanto um se orgulha da dor, o outro mergulha no cio pra dar-me o que chamam de amor.

Metade de mim vem do céu, a outra metade do inferno. Trago o espírito astuto dentro de um corpo sereno. Se às vezes me sinto seguro dou-me a beber meu veneno pra ver se de mim eu me curo.

Metade de mim vem do céu, a outra metade do inferno. Trago o espírito eterno dentro de um corpo já morto — o mal que um deus concebeu. Metade de mim vem do inferno e a outra metade do céu.

28.08.99 19

VIDA NÁUFRAGA

Sonho é pedra que se atira da margem ao meio do mar e morde as ondas e fura a água até naufragar.

De pedras constrói-se a vida contra a dureza do mar, castelo de areia que dura na praia até naufragar.

De pedra se faz a jangada que lança o homem ao mar que rema a buscar sempre nada e nada até naufragar.

A vida é uma onda que nada da areia pro meio do mar, é praia a fazer-se de homem de pedra só pra naufragar.

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SAFÁRI

Sóbria, essa coragem só seria uma vertigem triste da viagem.

Sombra, ela transige e se permite ser selvagem; triste, salva um homem.

16.04.00

NIRVANA

Existe um minuto na vida que é um minuto de morte, em que ela não é mais vivida e por isso mesmo é mais forte.

É quando não sou feliz sem entregar-me à tristeza e encontro no que não fiz e no que não sinto certeza.

E nesta hora de não que tudo em mim diz que sim e, livre das coisas que são, posso livrar-me de mim.

Se sou ruim ou sou bom, prefiro ser sem saber, pois quando sei que não sou é que me sinto mais ser.

25.09.99

22

ADIANTADO

Enquanto busco meu destino minha vida não me espera: permaneço em mim menino e vai sumindo quem eu era.

Pra saber aonde ia o que em mim pensei ser eu confiei na estrela-guia e a estrela minha se perdeu.

Entrei sempre na saída e pra mim sempre previ vida dada e não vivida. Vida veio e não a vi.

05.02.00

CÍRCULO VICIOSO, A ESPIRAL

Se alguém teve de seu o que pensava ser de si, quem o achou, o perdeu;

se um dia o que vi pensava que fora meu, quem eu achei, o perdi;

pensando que era seu o que era só de mim, quem me achou, me perdeu;

pensando que era em mim o que de mim se perdeu, quem me achei, me perdi;

achando que era eu o que de mim eu me vi, quem eu achei se perdeu;

e por querer sempre aqui o que pensava ser meu, quem me achou, eu perdi;

e se pensava ser eu este que está sempre aqui, quem me achou, se perdeu;

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longe daquilo que sou e perto do que acha ser seu, quem se perdeu, me achou;

e no que em mim me neguei por força daquilo que sou, quem me perdi, me achei;

e se assim mesmo me amou no que eu não sou o que sei, quem se perdeu se achou;

e por amar o que dei e por tirar-me o que sou, quem me perdeu, o achei;

por ensinar-me o amor quando levou-me o que amei, quem me perdeu, se achou;

e aquele que sempre busquei e a vida me sempre negou, quando o perdi, me achei.

25.09.99

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NECRÓFILO

Mim não chorar no meu enterro é o que torna triste a morte: quem mais poderá fazê-lo?

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PELA METADE

A vontade que aqui me guiou nunca me quis terminado: sempre me opôs ao que sou e ao lado que fez, outro lado.

Nunca me deu a certeza de ser por inteiro o que fiz: metade de mim fez tristeza e a outra metade feliz.

Estive sempre no meio daquilo que pude escolher: o amor que tive foi feio e a dor me fez renascer.

Pois um dia essa minha vontade, tomada de estranha cegueira, fez do amor só metade e da dor que ficou, dor inteira.

25.09.99

ATÉ O FIM

Era manhã e amavas a aurora dourada das asas pousadas nas faces rosadas da irmã. Gostavas das horas tal o sol da manhã.

O meio-dia floriu margaridas. O ombro do amigo trazia consigo o que o amor prometia. Inteira era a vida e só meio o dia.

Então pela tarde amaste o brinquedo que o medo te deu e por isso era teu. A pressa é covarde: tu eras tão cedo, que tudo era tarde.

Veio o escuro e a noite sem cor envolveu o teu mundo num sono profundo de amor entre muros. Teimoso no amor, amaste no escuro.

È madrugada. O sol e a irmã, o brinquedo e o ombro repousam nas sombras. Na vida sobrada que te trouxe o amanhã aprendeste a amar nada.

05.02.00

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ESPERANÇA j

Tu virás. Tua chegada é inelutável como a sede no deserto. Mas virás? Na miragem a água seca tão logo o lábio a toca.

03.11.97

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QUADRINHAS NOSTÁLGICAS

Não sente falta da infância o velho que foi criança; sente saudade do agora que, lembrando, ele põe fora.

Saudade não é o passado feito, mas o abortado. Saudade é ter o não-ter do que teve sem o saber.

25.09.99

SEMPRE O MESMO

Por que penso, se o pensar só esconde o que eu sinto? Por que teimo em não me dar e quando penso é quando minto.

Minha regra é não sentir pra manter-me com razão. Me obrigo a me'mentir pra não ter que,dizer não.

Sempre dou meu pensamento pra não ter que dar de mim, pois de mim sou avarento — dou de mim só o que é ruim.

Dando, assim, só o que é mentira (pois se penso, não é meu), penso que, por mais que fira, quando firo, não sou eu.

Mas é o que penso — não o sinto, e se penso, é engano meu: no que sinto e no que minto, nos dois sou sempre eu.

2.0.

32

RETORNO

Se a vida nos foi dada e esquecida por outro que a quis e a não viveu, viver é devolver a própria vida às sombras do que a fez e a esqueceu.

Vivemos para ter ao que nos deu de volta a luz inútil devolvida. Ansioso do caos que o concebeu, o mundo é um sonho suicida.

Caídos de jardins de esperanças, vivemos para a morte e o que arrefece, pois mortas estão todas as infâncias.

E Deus o homem seria, não tivesse uma alma sonhadora de lembranças num corpo que se sonha e que se esquece.

21.03.03

33

A CANÇÃO DE DEUS

Um dia eu disse que não e súbito fiz-me em luz, contra o que sou me compus e vi que o que fiz era bom.

E sobre estas águas pairei como o vento na primeira manhã do primeiro momento.

Acordei com os olhos no céu e o mar espumando nos pés, e o espírito voando através sentiu que era bom o que é seu.

E desejos fincaram-se no firmamento da segunda manhã do segundo momento.

"Terra em mar ainda sois, terra e mar vos farei." Fiz para um o outro lei, que tudo é melhor sendo dois.

E foi mundo de ondas num embate violento a terceira manhã do terceiro momento.

A noite busquei alegria, à lua que fiz dei o sol. Achei que era bom o que sou, mas boa era a noite e era o dia.

E acabou sendo quatro o que era um só sentimento na quarta manhã do quarto momento.

E sobre o que fiz me dei asas e dentro o que era, abraços; no mar e no ar pus meus passos para não pôr minhas mágoas.

De vento e de águas elevei monumentos na quinta manhã do quinto momento.

Do nada que fui me fiz homem e outros seres de terra de sonhos de vida e de guerra de sonhos prazeres e fome.

Cansado de ser me tornei sofrimento na sexta manhã do sexto momento.

E sobre o que fiz descansei sentindo de mim tal saudade que achei ser felicidade o mal que em mim eu neguei.

E ergui sobre mim uma febre pagâ — era a sétima noite e a primeira manhã.

2 . 0 . 0 35

FIM

O fim está logo adiante, por que vou fugir eu do fim, se toda fuga é migrante e me leva pra longe de mim?

Que eu queira o fim sem receio, se o fim é onde aconteço. Por que vou parar eu no meio, se atrás só vem recomeço?

Portanto, se o fim eu apresso, é que busco um começo de mim. Abandono qualquer recomeço pra no fim entender a que vim.

Só o fim vai tirar esta dor de obrigar-me a escolher ser feliz, e então pra escolher o melhor direi simplesmente: "O que fiz!"

Não sou enquanto não cesso, e a fuga prolonga o ruim; a vida que é só recomeço é só recomeço do fim.

2.0.

36

CONTRADIÇÕES

Saudade é sede que sacia: provoca o pranto pra beber da própria lágrima.

03.11.97

PERGUNTAS QUASE SEM IMPORTÂNCIA

De que planetas, que planos, viemos? A que planaltos subimos? Em que planícies corremos?

A que vôos, que sonhos, servimos? Que outonos plantamos? De que sono morremos?

Que dores, que fomes trazemos? Que homens seremos? Que homens tentamos?

Quantos corpos em corpo ocultamos? De que fogo fugimos? Que mortos velamos?

Que cegueira, que estrela apagamos? Que tristeza aceitamos? Que alegria sofremos?

Que razões, que raízes fundamos? Que juízos e teoremas e deuses quisemos?

Com que ventos, em que tempos partimos? Em que nuvem viajamos? A que longes surgimos?

De que olhos a luz que trazemos? A que luz nos lançamos? Com que luz nos fizemos?

De quem estes pés, estas mãos que abrimos? Em que mãos sustentamos estes pés que fingimos?

Que futuro, que minuto, forjamos e no escuro esquecemos? Que luto inventamos?

Que é isso, esse vício que nutrimos, esse fosso, esse sopro afogado em sustos, esse aborto que parimos, esse monstro que amamos e exibimos em sons e rimas, esse estrume que afagamos esperando flor e canto, esse húmus podre e infecundo gestando sombras como cores e angústia como o dia?

E a Vida É o Mundo E a Poesia.

.0 .0 39

CÍRCULO VICIOSO, A ESPIRAL (REMIX)

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DESCOBERTA

Quando o ritmo sair leve e a vida correr livre serás um homem. Menos que o deus que pra ti criaste porém mais que o teu Deus pra si sonhou. Quando fores de ti senhor e teus domínios forem sonhos que o menino viu e teve tudo será vivo, mais vivo que as asas da crisálida abertas em vôo cego para a luz. Quando o louco em ti souber de ti o que em ti adormeceu serás dono de teus olhos e amante das coisas do céu e a vida terá de ti o que te deu mas guardou pra si como a mãe que esconde o caderno entre livros de receitas que não conhecem o forno e depois revela ao adulto: este és tu.

05.02.00

POEMA DO VENTO

O que o vento disse a alma quis ouvir pra alma ficar triste e o vento ir feliz. Assim faz a poesia: diz o que é pedido. O ouvinte se angustia e o poeta vai tranqüilo.

CENAS DE VIDA SELVAGEM Uma cidade em Mato Grosso

A meus pais, partes deste destino

ÁGUAS DE VERÃO

Horas de janeiro uns arrepios de nuvens e o coração estúpido no peito em profunda contemplação de luz e chuva. Esperança de algum e medo de tudo. Todo dito e feito como um vestido velho que não pode se lavar em novas águas, que o pano esgarça e das certezas desfazem o cerzido.

Os sonhos duvidam e provocam o sol no varal.

15.02.04

45

DOMINGO DE RODAS

Teu solo adora as rodas dos automóveis, todos do ano esperando a viagem de ano no ensaio à roda da praça à roda das rodas de moças a enredar os olhares da roda de olhos rapazes. — De quantas rodas, pergunta a moça, é a tua locomoção? — Duas. — Honda? Yamaha? — Monark, mas trouxe importada.

Domingo de causos e sol 35 graus de sombra e a roda de bombas de mate mata saudades do pampa — Parece que lá era feliz... Papagaios e maritacas tacatacam no céu claro Céu e pássaro de meio-oeste. Insolação no corpo, a alma em geada, a língua embaixo não diz mas queima no passe da chaleira.

.0.0

46

INFANTICÍDIO

"A mãe matou dois filhos" — Cruzes, caiu um parafuso, o juízo saiu dos trilhos, onde se viu tamanho abuso?! (Mãe deu de comer o nome aos filhos que tinham fome.)

PRESENTE DE CRIANÇA

João apaga três velinhas, sopra ao anjo três pedidos: e o diabo, bom de ouvido, disse: "Toma teu destino: saco e pá de catar lixo."

Pedro, quatro, pediria, se pudesse, a bicicleta vista em casa do colega. Tem martelo e picareta pra quebrar e empilhar pedra.

Rosa, nove, só queria o vestido que uma moça mostrou no balcão da loja. Quando em casa, ganhou louça, sabão, escova e vassoura.

José, dez, não mais pedia que uma bola para os pés. Levou bolo, pão, pastel, bala de anis que a mãe fez, não pra si, mas pra vender.

Paulo, doze, uma mochila de levar para a cidade o caderno e livros de arte

foi trocada pela grade de uma caixa de engraxate.

Já Luís, com oito ainda, quis um estojo de mágica, mas uma fada contrária deu-lhe uma caixa de lágrima, serra e lixa para a fábrica.

Emília aniversaria sete velas apagadas. Apesar de pedir nada leva sol forte na cara, na mão o cabo da enxada.

O que espera mãe Maria, e que mda espera a luz do dia, inda em sonho, na barriga, cego à vida, sonha ainda. Longe o mundo infanticida, a alma nova concebida sonha tardes de alegria com brinquedos de corrida, pique-esconde, gude e pipa. Sonha mesas de ambrosias, quitutes de leite e farinha, o ouro gostoso da espiga, o cheiro bom da canjica. Sonha ciranda e cantiga, batuques, cantos e rimas, sonha espetar bexiga,

correr entre a bicharia, tirar cabeça à formiga, perseguir jaguatiricas e besouros bons de briga, riscar o muro de urina, fazer e pular carniça, catar folhas de urtiga pro travesseiro da tia, fazer biscoito de argila, fazer bonecos de argila, fazer um corpo de argila, depois pular na piscina, tomar banho de bica, gritar nu na avenida, pisar entre as margaridas do canteiro da vizinha. Vida à espera de vida, a criança não escrita sonha a terra prometida, mundo cheio de poesia, mundo arteiro de artista, mundo todo de preguiça. E, com alma de anjo ainda, pede Aquele que outro dia disse "Vinde as criancinhas": Se a criança é obra divina, que seja divina a vida de todo menino e menina.

50 .0.0

PEDRA FUNDAMENTAL

No centro a Pedra. Onde foi árvore, o concilio de madeira do gado do pasto dos carrapatos. Teu sangue, fruto virginal servido em mesa de pedra Teu sono de pedra em pedra lavrado Palavra fiada em barba de gato Pedra de teu sono eterno Lápide de poetas Poemas de tua Bolsa de Valores. No centro a Pedra e em redor os ébrios de tuas moedas e o prato de alimento negado: Não comerás deste chão, mas da pedra no centro de teu jardim e sobre esta Pedra te erguerei em firmezas — número, areia e vento, teu futuro soprado em pó.

15.02.04

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DOMINGO

Café com Engov Velhas jovens tardes Faustão A pegadinha no sofá O beijo da namorada Com gosto De macarronada e queijo.

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NAMORO NA SORVETERIA

A tarde de sorvete Toda colorida e sem pressa Adolesce no beijo doce e fresco O coração em caldas A mão gelada E uma cereja por cima.

15.02.04

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LIÇÃO DE VOAR Ô

A tarde o cortejo de anus Pequeno sáurio de pena e asa Ensina a dor de voar: Rasteja na grama seca A cabeça de chumbo e chão Na procura da comida-inseto Então percevejo ao bico Formiga e lixo na garganta Lança ao estômago a matéria benfazeja E ao céu o espírito e seu negrume devoluto.

15.02.04

54

PLANTIO

Lavra, lavra a terra Tira do pau a terra para tèu sustento de ouro teu alimento capital Planta teu pampa sobre os ossos do mato cobre de pele amarela a matéria raquítica fruto de teu toque insípido e sua falta de carne Faz teus cadáveres de engorda arrobas de fomes e roubos Cria tua própria Etiópia, tua África de alma branca Cresce e multiplica teu deserto de alma Tu és o sal desta terra, tira-lhe a doçura de paladar selvagem que não soube saborear tua sutil amargura Traz a boa-nova, profeta do apocalipse, faz acabar em fogo a floresta pagã de pedra e espinho onde a palavra não medra Lança a nova semente do espírito dos tempos: pensamento estúpido em alma ríspida e doente.

5.02.0

CATECISMO DO COLONIZADOR

É fácil não ferir meu semelhante. Difícil é não ferir o que de mim é diferente.

56

DE AMOR, SIM, POR QUE NÃO? Poemas para Haya

ACRÓSTICO PARA HAYA

História escrita em asas e fogo A alma vestida em paz e em brasa I magem vasta do Eterno Jogo A Vida está em ti como em casa

12.06.03

59

A FALTA QUE É

amor que te falta convém que te falte amor é no escuro lacunas nos entres presente de homens que nunca se faltam dois que se afastam pensando abraçar-se e no vão do abraço inventam o escuro e falam da luz pensar o passado passar o futuro a limpo um minuto e tudo que fosse é tão mais bonito o amor por isso que vive: de tanto que morre aprendeu ser pra sempre.

HAIKAIS SEM ELA

A vela apagada, Ela, estrela na janela, Triste madrugada.

Dentro a noite escura, Longe a imagem dela foge, O sonho a procura.

Lágrimas na cama, Chuva e solidões na rua. — Sorte de quem ama.

UNIÃO

Teus olhos duas estrelas e todos os meus tristes em redor delas.

Tua boca nuvem de chuva e a minha tonta de sede que te procura.

Teu beijo inseto volúvel pousando em águas longínquas e a língua imóvel.

Prendem-te a ti os teus braços os meus aos céus e ao chão irmãos separados.

Tua pele nua de toques e os dentes uivam à lua a lebre e o coiote.

Teu ventre sacro sudário arca de deuses e homens eu frio e naufrágio.

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Abrem ao nada tuas coxas as minhas vagas das duas navegam loucas.

Tua carne caverna em fogo rubro meu músculo busca teus muros de ouro.

A tua alma em segredo inteira num cofre de pedra e a minha ao meio.

O meu destino em tua mão e em teu coração, e o teu pé no meu coração.

AMOR DE SOMBRAS

Eras de vidro e de ar suspiros e transparências sombras de um beijo negado brancas promessas de ausência vontade de ser sem se dar

Eu, um sopro assustado sedes de deuses contidos sonos de pedras pensando sonhos de deus não vividos homem nascido e abortado

Pedra e ar se beijando somos só duas promessas sopros de deuses ausentes vontades sutis e inconfessas deuses de vidro se amando sombras de amor não viventes.

23.11.01

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DECORAÇÃO PARA O AMOR DISTANTE

A lua reclina, o mar sonha o amor distante, a onda o ilumina.

Rosa na janela. Vaso vazio na varanda. O Sol sobre a Terra.

Desejos de estrelas, lajes de sonhos em luzes. Tristezas e velas.

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TARDE

Se murcham todas as flores sedentas de cor, se dizem adeus os amores com medo do amor, não cabe ser forte: ao sol da tarde só resta a morte.

Se o sonho adormece e os cães pedem à lua, se cantam as nuvens e as rãs e a vida está nua, não cabe ser forte: ao sol da tarde só resta a morte.

Se a noite lúgubre cobre a felicidade, se nada mais há que nos sobre só sobra a saudade. Não cabe ser forte: ao sol da tarde só resta a morte.

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Se cede a alegria do dia à frieza da estrela, se na rota da vida erradia a estrela era ela, não cabe ser forte: ao sol da tarde só resta a morte.

Se morre à míngua o gigante na própria luz, se nunca foi o bastante o amor que compus, nada mais resta. Ao poeta morto nem a morte presta.

AUTO-RETRATO

Das sombras eu me tirei para em tua sombra enxergar. Para amar o sol e o mar de meu corpo te nasci. E minha a luz que enxerguei? Tu eras o olhar e o dia. Eu era o que em mim me via? Só fui depois que te vi.

Pedem meus olhos ao céu a cada estrela que pedes, arde minha língua em tuas sedes, sonhas e eu morro de fome. Penso que sempre sou eu na mão, no verso, no tema, mas ao cabo do poema a mão assina teu nome.

È em teu caminho que vou, são uma as nossas estradas, meus passos são tuas pegadas. Quando te afastas, me mato, levas contigo o que sou. Longe de mim, me desejo mas é teu rosto que vejo — tu és meu auto-retrato.

28.04.01

68

TEU OCULTO

que tudo é isso que não se entende de tanto minuto contado e composto tal vida fosse uma e não tudo e não tanto que não medisse o canto de tão pouco espaço e menor talento que a qualquer contato falseia o espanto tão pronto e pleno e amplo?

o outro tão sonho e tão que é pouco o tempo o olho a mão.

25.02.04

69

TERROR NOTURNO

a noite está de novo à porta você de novo está distante há chuva e lua lá fora aqui há auroras e sangue saciando a fome do medo morcego sombrio e sedento

os amantes vão pela noite povoando a vida de filhos raízes de luz para a foice canteiros de cruzes e lírios na cama a vida explode e treme na noite canta e espera o verme

o colo da noite oferece colares de astros já mortos e leva o que o homem lhe deve seus dias, amores e sonhos a noite está de novo à porta e ela não — desperta e chora

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a mão assassina das trevas prostrou pensamento e destino a dor que me trouxe a estrela é a voz que me traz este grito demorará a madrugada e a alvorada com seus fantasmas?

apelo em vão, que ninguém ouve pois quando a noite já for ontem você ainda estará longe.

MEDIDAS

Pouco tua palavra de consolo Muito teu umbigo e teu colo Muito teus abraços e tuas broncas Pouco teus ouvidos

Muito o calor de tuas coxas Pouca tua vontade pecadora Muito tua alma decaída Pouco tua libido

Muita tua vontade de acolhida Muito teu sonho e tua ferida Pouca tua vontade de sonhar Poucos teus gemidos

Muito meu desejo de te dar Muita minha ânsia de sonhar Muita minha lembrança de sofrer Pouca minha dor

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Pouca minha vida pra esquecer Poucas minhas horas de você Pouco tuas lágrimas sem mim Muito meu temor

Pouco de minhas horas mais ruins Pouco de tuas horas tão ruins Muito nossa hora até ruim Demais o nosso amor.

CONTIGO

O brilho da tua saudade me lembra a luz das estrelas que, mesmo distantes, são belas e nunca, amadas, ausentes. Pleno de felicidade abraço-me à tua lembrança como ao futuro a criança, sonho contigo, tu sentes?

Mesmo se a noite é escura, mesmo se o sonho é de dor, tudo são noites de amor, tudo são sonhos contentes. Entregue todo à loucura, o corpo e a alma perdida longe de mim e da vida, vivo contigo, tu sentes?

Espaço é ilusão do mundo para espíritos errantes. Na vida estamos distantes, no amor estamos presentes. Contigo eu me confundo: se estou de mim afastado, se não estou do meu lado, estou contigo, tu sentes?

28.04.01

E POR CIMA, SONETOS... Ainda, e sempre, para Haya

GRAVITAÇÃO

O fogo e a liberdade de seus dedos tecendo a explosão de toda origem, a água derramando seus cabelos em leitos de descanso pela viagem,

o hálito aéreo dos momentos soprados pelo tempo sobre os mares, os corpos nus terrenos e seus medos erguendo para a morte seus menires,

em ti se unificaram como em centro de toda criação, espaço virgem cavado de um deus por seu espelho;

e estrela de planetas em vertigem, tua alma, como o astro aos elementos, atrai cada palavra que me surge.

05.07.03

77

SONETO PEQUENO

Amar-te me faz largo como o mar e vasto e inalcançável como o vento, ocupa tudo tal contentamento, que é como se fosses água e ar.

Meu dia pouco, árido e restrito alonga-se a buscar pra si os teus, explode minha vida e, como Deus, espalho-me, eterno e infinito.

Mas ao ver-te as grandezas se consomem, o vento se esvazia, o mar acalma, as almas se concentram em só uma alma, e Deus, desconcentrado, cria o homem

e o pousa sobre ti, leve e sereno, pra ver como ao teu lado é tão pequeno.

78

OUTRO SONETO DE FIDELIDADE

Preenches com tua ausência o meu dia e com tristes vazios meu coração; é tanto nada, nunca e tanto não, que minha vida nunca vai vazia.

Estás aqui e além, qual utopia, que toma a vida e nunca a toma a mão. Se vem de ti é boa a solidão, se estou triste por d sinto alegria.

Por isso quando vejo a dor no fim empenho-me em tornar a dor mais forte - por mais pareça esta ser ruim,

não posso desejar-me outra sorte: sofrer-te te faz tão perto de mim que a vir a te esquecer prefiro a morte.

79

ADORAÇÃO CALADA

Acordo para à luz te desejar e sigo te buscando todo o dia, qual náufrago que tem por sol e guia a pedra sobre a qual quer naufragar.

A tarde teu perfume ronda o ar como o anjo preparando a ave-maria; adorando-te, meu corpo em heresia reza ao anjo para à lua te sonhar.

Se és da minha vida único tema, queria que o fosses do meu verso, mas colocar o amor em um poema é concentrar num grão o Universo,

pois tua graça não pode ser descrita e a paixão que ela desperta é infinita.

80

EROS E DISCÓRDIA

No abraço em que entregamos pra morrer a inocência de dois corpos ateus, no espelho em que te vejo pra me ver não sei se somos nós, se muitos "eus".

E quando como a vida a me escorrer meus líquidos misturam-se aos teus não somos mais o homem e a mulher, que Amor transforma toda carne em Deus.

Depois, lavado em mel, desfalecido, repousa o falo exausto em tua mama, por tuas duas luas circunciso.

Agora o que era um vai dividido: um corpo devastado sobre a cama, uma alma transportada ao Paraíso.

81

ADÃO DE EVA

E Deus fez a mulher talhada em mel, doçuras misteriosas em cavernas de estrelas, infinitas e eternas, que vê-las é poder voltar ao céu.

E pôs na criatura algo de seu, um sol guardado entre duas pernas, e duas luas altas por lanternas, que ao ver a criatura, se perdeu.

E Deus, como surpreso e cego lesse o mundo que em tuas linhas sé escreveu, não quis que em carne virgem se perdesse,

e fez o homem à imagem e semelhança a fim de que em teu colo Deus pudesse gozar da criação como criança.

82

DESTINO

Estou colado em ü tal qual um selo em carta de amor sem endereço; espelho que te enxerga pelo avesso e negas por temor de querer vê-lo.

Estou gritando em ti como o apelo na boca apaixonada de um possesso. Estou ligado a ü como o começo ao fim, pontas atadas de um novelo.

Nas minhas noites sangras como um corte suicida, abandonado à própria sorte. Estou puro de ti como de azuis

está o céu depois da chuva forte. Como um deus submetido, entregue à morte, estou pregado a ti como a uma cruz.

83

DOTE

O sopro do meu sangue está guardado à espera de tua língua silenciosa. Minha alma desabrocha como rosa a dar-se ao golpe afável do machado.

As cinzas do meu sonho tatuado no fogo de uma lua impetuosa aguardam mão misericordiosa que elevem da mortalha o amor queimado.

Imploram teus lençóis meus pesadelos e quer a tua voz por defendê-los a agônica mudez dos meus desejos.

Desejo, sonho, alma e sangue, Deus os pôs em mim, mas só pra serem teus. A noite vem buscá-los em meus beijos.

84

SONETO FORA DO CENTRO

Se como folha ao vento frio do outono o peito amante em si não se mantém, se o coração divide com alguém, não é da própria vida mais o dono.

Perdida a alma e o corpo em abandono, o ser que ama já não é ninguém, é um aqui e outro sempre além, metade em fogo, outra metade em sono.

Assim de minha essência apartado e sentindo tua ausência em todo lado na cama passo o tempo a te criar

qual deus de um paraíso exilado, caído como espírito danado, expulso de mim mesmo por te amar.

85

RENDIÇÃO

Eu tinha um sonho e um beijo guardado Que trouxe comigo desde menino. O céu enviou-me um anjo assassino E o beijo foi morto e o sonho roubado.

Eu tinha a alma audaz de soldado, Saudade humana de um tempo divino. Na guerra enganosa contra o destino Restou por terra só o corpo cansado.

Quisera de volta o sonho levado, Quisera meu beijo de amor devolvido, No corpo de novo a alma perdida.

Mas anjo, me fazes sofrer encantado, Destino, me prendes a ti, seduzido, Vencido, entrego-te ainda a vida.

21.04.01

86

SEPARADOS

Neste mundo animado de partidas conhece a natureza o movimento se às folhas mortas vem unir-se o vento e faz de um mundo vidas divididas.

Partindo meu mundo, num violento sopro, fizeste em mim duas feridas rasgando um só destino em duas vidas: uma anda morta, a outra eu tento

chamar de tuas sombras num grito rouco que a voz não sustenta; do pensamento a razão fugindo-me pouco a pouco

vago sem nome, sem rumo e sem calma, o espírito longe, perdido e louco — não está meu corpo onde tenho a alma.

12.05.01

87

CANÇÃO PARA NINAR O AMOR

Não desperteis, não acordeis o amor até que ele o queira!

Cântico dos Cânticos

Aquieta, coração, e aguarda a aurora, que Amor que dorme em peito fresco e terno, semente sob o solo frio do inverno, fenece se acordar antes da hora. Se Amor parece quase morto agora, desperto em tempo certo é eterno.

Pois sirva a Amor de acalanto materno o pranto sereno que o mundo chora.

Pregada no terror da noite austera, lamenta a lua à bruma o abandono; ansiosa do calor da primavera, a chuva molha as pálpebras do outono.

Dorme, Amor, que a chama fiel te espera! Dorme, que minha dor vela teu sono!

13.05.01

88

HORIZONTES

Estrada aberta em meu largo deserto, calma, deitaste tua alma em minha alma, pura, entregaste à minha mão tua palma e eu à tua mão meu amor descoberto.

Sol entre pernas, teu ventre liberto pôs primaveras nos lagos de rocha e eu plantava na tua a minha coxa, estrada larga em ter deserto aberto.

Hoje é alma e alma o que eram almas longe tuas pernas, extinta a tocha, tudo ficam muros, em sombras calmas sobre o lago amarga uma rosa roxa.

Busca ao longe a ti meu corpo alerta — só deserto largo na estrada aberta.

89

RENASCIMENTO

Como fosses a terra prometida e eu o filho da necessidade, rendi-me, para ter minha vontade no calor de teu colo recolhida.

Em tuas sombras tracei minha medida, no teu riso encontrei felicidade, na prisão de teus braços, liberdade, no pulsar do teu sangue minha vida.

E quando me pergunto o que foi feito do ser que em mim sentia respirar, o coração, batendo em outro peito,

responde que isto deve ser amar: por ver que tudo em ti é mais perfeito, matar-me para em ti me recriar.

18.05.01

90

PERMUTA

A cada um conforme lhe cabia a vida concedeu uma riqueza; enquanto uns têm amor, outros certeza, ganhei pureza, mágica e poesia.

Pureza pra manter a chama acesa se às vezes nào estás e a noite é fria; magia pra criar-te em fantasia, poesia pra cantar tua beleza.

Mas nada do que tenho sinto meu por isso tenho a vida ainda vazia, pois tudo tua ausência concebeu.

Por teu olhar, que a vida não me deu, feliz, o que me deu eu perderia — daria minha vida pra ser teu.

19.05.01

91

ABELHA E FLOR

Teus olhos, luminosos girassóis, herdeiros celestiais da luz sem fim, como os astros, a tudo dizem sim, tão bons e belos como os meus são sós.

Calorosos como juras de lençóis, teus lábios, outra parte do jardim, duas pétalas ternas de jasmim, aquecem com perfume, como sóis.

Reflexos do infinito, quando os vejo, são teus olhos que me permitem ver; se conduzo à tua boca o meu desejo

não é só porque és todo o meu prazer — procura minha sede o teu beijo como a abelha o jardim: pra não morrer.

02.06.01

92

DESVIO

Há dias em que o mundo está perdido e a vida é um quarto lúgubre e vazio em que teu sonho vaga, erradio, à espera de que o deixem ser vivido.

Também já preferi não ter nascido, também já desejei o mar sombrio, mas encontrei em ti feliz desvio que terminava num jardim florido.

Se, portanto, cansares da jornada e se a trilha te pôs na encruzilhada, interrompe teu passo indeciso.

Se tudo só são ruas dando ao nada, meus braços te abrirão uma nova estrada, percorre-me e te levo ao Paraíso.

07.06.01

93

ABERTURAS

O que é o mundo senão beco e rua depois que a noite desce e o amor fugiu? Partiste, e a alma é triste e o corpo frio, abismo aberto em tua ausência nua.

Enlouquecido, sigo eu e a lua e embaixo de nós dois o imenso estio de um sonho que era o mundo e hoje é vazio, vida que já não é, porque era tua.

Vagando, duplo só, sem d e sem mim, naufrago apenas por querer ser mar e abrindo as asas sobre os teus desertos

descubro que o horizonte não tem fim: abriste-me ao amor, e por te amar meus braços te esperam sempre abertos.

24.06.01

94

PARÁBOLA DO MENINO SANDEU

Em uma vez um menino sandeu, que — farto de ter, sorrir e cantar, pediu aos anjos querer desejar, e uma voz feliz veloz socorreu.

Quis para si uma fada do ar, e a voz lhe gritou: "Se atire no Céu!" Quis doutra vez o harém de Nereu, e a voz repedu: "Se atire no Mar!"

Felizes pra sempre, as três personagens, unidas por Deus num trágico abraço, vivem de buscas, paixões e miragens:

— tu, as imagens errantes do espaço, — eu, o menino perdido em viagens, — o Amor, este louco a guiar o meu passo.

10.07.02

95

SONETO PARA VIAGEM

Meu coração romeiro e peregrino Não cansa de buscar tua luz sagrada. Por seres muitas, todas meu destino, O meu amor percorre muita estrada.

Por onde quer que leve os teus passos Teu coração andante e aventureiro, No fim encontrarás sempre meus braços, Pois, vasto, o amor está no mundo inteiro.

No início, meio ou fim de tua viagem, Estou em ti, aonde quer que vás. Sou tua irremovível tatuagem. Está o meu amor sempre onde estás.

Amor não vê distância e para amar-te Estou como teu ar, em toda parte.

14.07.01

96

SONETO DE RETORNO

"Lázaro, vem para fora!" Qo 11,43)

Dois astros se ocultando atrás de um muro, assim foram teus olhos em viagem; dos meus foi esta a última imagem, pois desde então fui cego, e o mundo, escuro.

Sem tua leve mão a me levar o mundo foi deserto e incerteza. Sem ter para movê-lo tua beleza, meu coração não soube mais pulsar.

Parei de respirar com tua partida (não vivem os meus lábios sem os teus). Fugiste de meu lado, e eu da vida.

Agora que estás de novo aqui, tal como a pedra ao sopro de um Deus à vista de teu rosto renasci.

20.07.01

97

SONETO DE ANIVERSÁRIO

Um dia, o inverno já dizia adeus como quem quer dizer: "Ela já vem!" Minha alma compreendeu: "Nasceu alguém!" E o mundo respondeu: "Nasceu dos céus!"

Criança, já sentia como meus, distantes, os olhares do meu bem. Em mim tudo sabia: "Ela já vem trazendo ao mundo o espírito de Deus."

Era um setembro áureo e sorridente e, embora não te conhecesse ainda, meu coração batia mais contente: um anjo lhe anunciara tua vinda.

E só então a vida começou — porque nasceste, hoje sou quem sou.

07.09.01

98

CRIAÇÃO

"Deus disse: "Eu vos dou todas as ervas (...) e todas as árvores que dão frutos (...).' Deus viu tudo o que tinha feito e era muito bom."

(Gen 1,29-31)

Acorda e vem pisar o chão de flores que minha mão plantou na madrugada. Vem ver, eu pus um sol na tua estrada, que atira à sombra todos teus temores.

Pra iluminar o caos tirei do nada estrelas, luas, mares, sons e cores, galáxias te seguindo aonde fores, e em cada noite tua uma alvorada.

Não fez pra Si o mundo o Criador mas deu tudo que fez a um ser maior, que esta era a maior obra de Deus:

sair do sono pra inventar o Amor. Também, qual Deus, te digo: "Olha ao redor — os mundos que sonhei são todos teus."

04.11.01

NOVA CRIAÇÃO

Um dia acordou Deus de sua calma — um anjo revelara-lhe num sonho: a criação estava inacabada e o mundo precisava novo sopro.

E Deus desceu à terra os mansos olhos cansados de abrir-se para o nada e, vendo a falta que enlutava o cosmo, ao corpo inconcluso deu-lhe uma alma.

E fez a ti, soprando no Infinito a alegre inspiração de Seu sorriso, e pôde retornar à Eternidade,

pois viu que agora tudo estava bom: criando-te, Deus permitiu que o Amor viesse enfim ao mundo em tua carne.

10.09.02

100

Há que se estar vazio para o Amor, há que trazer o espírito sereno e a alma morta e o coração terreno livre da vida a receber a flor;

há que se fazer vivo para a Dor e sorrindo acolher fatal veneno, como, após a colheita, o velho feno, o fogo alegre e purificador;

pois que a cada amor que a mim mesmo aceno mato em mim o eterno; e o que há de Amor vibrante e febril, buscando, condeno.

Que o fogo e o veneno inspirem a Dor extrema de amar a morte que enceno para enfim na morte encontrar o Amor.

05.06.03

101

A NOVA CIÊNCIA

Eu, que, descrente de tudo que leio, acabo descrendo da própria vida, descubro que existe vida não lida quando minha mão descobre teu seio.

Eu, que sempre me mantenho no meio pensando que vive mais quem duvida, sem crer no amor, pra não crer na ferida, quando te vejo despida, eu creio.

Percebo que apenas sei se te sinto, ciência de homens e de poetas. Eu, um filósofo entre tuas pernas,

crio universos e, qual deus faminto, escondo minhas mentiras secretas nas doces verdades de tuas cavernas.

24.06.01

102

ÍNDICE

PRIMEIRO Quase destino 5

CENAS DE VIDA SELVAGEM Uma cidade em Mato Grosso 43

DE AMOR, SIM, POR QUE NÃO? Poemas para Haya 57

E POR CIMA, SONETOS... Ainda, e sempre, para Haya 75