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Atualidades Ornitológicas Nº 144 - Julho/Agosto 2008 - www.ao.com.br 33 Primeiro registro documentado (Gyalophylax hellmayri Reiser, 1905) na pátria da da reprodução do João-chique-chique Anodorhynchus leari. O João-chique-chique (Gyalophylax helmayri) é uma espécie endêmica do bioma Caatinga e ocorre nos estados da Bahia, Piauí, Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco. O seu ninho é uma grande aglomeração de espinhos de uma espécie de cacto, o “chique-chique” (Sick 1997). Pacheco & Whitney 1994, relatam a presença de G. helmayri em áreas abertas freqüentadas por cabras no Raso da Catarina, sendo que nessa mesma região, maiores concentrações desta espécie de ave se localizam na Caatinga mais densa. A primeira descrição de um ninho dessa espécie foi relatada por Von Ihering em 1914, e o ninho foi encontrado por E. Garber (coletor do Museu Paulista), que fez o relato. Tratava-se de um grande aglomerado de espinhos de cactos, o chamado “chique-chique” (Pilocereus gounellei). Garber o descreveu como uma espécie muito distinta, de um metro de comprimento, incluindo o tubo de entrada. Gaber recolheu um dos três ovos encontrados no ninho e os descreveu como sendo esféricos e de tonalidade esverdeada, suave e lustrosa. Del Hoyo 2003, relata que essa espécie se reproduz provavelmente entre outubro e abril, e que a postura se inicia em outubro e que as aves se emplumam em janeiro. Relata ainda que a espécie provavelmente é monogâmica e que o comprimento dos ninhos varia entre 500 mm e 1000 mm, e ainda que serão necessárias mais informações sobre a reprodução dessa espécie no futuro. Desde 1992, a equipe do Programa de Estudo e Preservação da Fauna da Cetrel vem desenvolvendo atividades de pesquisa com as aves do bioma Caatinga na área de ocorrência da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) e até o presente momento foram registradas 233 espécies. (Lima 2006). Após o término das pesquisas de levantamento, resolvemos estudar o comportamento reprodutivo das aves daquele bioma, dentre elas o do Gyalophylax helmayri. Pedro Cerqueira Lima¹, Thyers Novaes de C. L. Neto e Luiz Eduardo S. Silva Em todos os locais onde desen-volvemos nossas pesquisas, costumamos envolver as comunidades locais, procurando repassar conhe-cimento e através de sua participação, promover a conservação das espécies ali existentes. Graças ao envolvimento das comuni-dades, conseguimos descobrir vários ninhos de João-chique-chique no mês de março de 2008. No dia 16 de março de 2008, viajamos até Jeremoabo para registrar o fato. Os ninhos se assemelham bastante aos descritos por Von Ihering, diferindo apenas em relação ao material utilizado na construção. Ihering relata que o ninho é um grande aglomerado de espinhos de cactos, o chamado “chique-chique”, quando na realidade esse material é utilizado apenas na superfície exterior do tubo de entrada do ninho e na boca do mesmo. Todo o restante do ninho é construído de gravetos e no seu interior também não existem espinhos de cactos. Os espinhos são colocados na parte exterior do tubo de entrada e na boca, com o objetivo de impedir o acesso de predadores terrestres, tais como cobras e lagartos. Os ninhos, na sua grande maioria, são construídos no solo, porém podem ser edificados também em alturas que variam entre 500 mm e 1000 mm do solo, nos pés de chique-chique (Pilocereus gounellei). Além dos ninhos construídos longe do solo, notamos dois outros formatos, sendo que um deles possuía dois tubos de entrada na parte posterior formando um “T”, e o outro com dois tubos de entrada, mas um deles na parte posterior e o outro na parte anterior. Esses dois formatos são estratégias eficientes dos adultos para fugir de um possível predador durante o período de incubação ou de alimentação dos filhotes, caso o predador consiga transpor a barreira de espinhos na entrada do ninho. Se houver algum dano ao ninho, o casal se reveza na sua recuperação. Observamos que essas aves sempre reformavam 9 771981 887003 4 4 1 0 0 ISSN 1981-8874

Primeiro registro documentado da reprodução do joão-chique

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Atualidades Ornitológicas Nº 144 - Julho/Agosto 2008 - www.ao.com.br33

Primeiro registro documentado

(Gyalophylax hellmayri Reiser, 1905) na pátria da

da reprodução do João-chique-chique

Anodorhynchus leari.

O João-chique-chique (Gyalophylax helmayri) é uma espécie endêmica do bioma Caatinga e ocorre nos estados da Bahia, Piauí, Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco. O seu ninho é uma grande aglomeração de espinhos de uma espécie de cacto, o “chique-chique” (Sick 1997). Pacheco & Whitney 1994, relatam a presença de G. helmayri em áreas abertas freqüentadas por cabras no Raso da Catarina, sendo que nessa mesma região, maiores concentrações desta espécie de ave se localizam na Caatinga mais densa.

A primeira descrição de um ninho dessa espécie foi relatada por Von Ihering em 1914, e o ninho foi encontrado por E. Garber (coletor do Museu Paulista), que fez o relato. Tratava-se de um grande aglomerado de espinhos de cactos, o chamado “chique-chique” (Pilocereus gounellei). Garber o descreveu como uma espécie muito distinta, de um metro de comprimento, incluindo o tubo de entrada. Gaber recolheu um dos três ovos encontrados no ninho e os descreveu como sendo esféricos e de tonalidade esverdeada, suave e lustrosa. Del Hoyo 2003, relata que essa espécie se reproduz provavelmente entre outubro e abril, e que a postura se inicia em outubro e que as aves se emplumam em janeiro. Relata ainda que a espécie provavelmente é monogâmica e que o comprimento dos ninhos varia entre 500 mm e 1000 mm, e ainda que serão necessárias mais informações sobre a reprodução dessa espécie no futuro.

Desde 1992, a equipe do Programa de Estudo e Preservação da Fauna da Cetrel vem desenvolvendo atividades de pesquisa com as aves do bioma Caatinga na área de ocorrência da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) e até o presente momento foram registradas 233 espécies. (Lima 2006).

Após o término das pesquisas de levantamento, resolvemos estudar o comportamento reprodutivo das aves daquele bioma, dentre elas o do Gyalophylax helmayri.

Pedro Cerqueira Lima¹, Thyers Novaes de C. L. Neto e Luiz Eduardo S. Silva

Em todos os locais onde desen-volvemos nossas pesquisas, costumamos envolver as comunidades locais, procurando repassar conhe-cimento e através de sua participação, promover a conservação das espécies ali existentes. Graças ao envolvimento das comuni-dades, conseguimos descobrir vários ninhos de João-chique-chique no mês de março de 2008.

No dia 16 de março de 2008, viajamos até Jeremoabo para registrar o fato. Os ninhos se assemelham bastante aos descritos por Von Ihering, diferindo apenas em relação ao material utilizado na construção. Ihering relata que o ninho é um grande aglomerado de espinhos de cactos, o chamado “chique-chique”, quando na realidade esse material é utilizado apenas na superfície exterior do tubo de entrada do ninho e na boca do mesmo. Todo o restante do ninho é construído de gravetos e no seu interior também não existem espinhos de cactos. Os espinhos são colocados na parte exterior do tubo de entrada e na boca, com o objetivo de impedir o acesso de predadores terrestres, tais como cobras e lagartos. Os ninhos, na sua grande maioria, são construídos no solo, porém podem ser edificados também em alturas que variam entre 500 mm e 1000 mm do solo, nos pés de chique-chique (Pilocereus gounellei).

Além dos ninhos construídos longe do solo, notamos dois outros formatos, sendo que um deles possuía dois tubos de entrada na parte posterior formando um “T”, e o outro com dois tubos de entrada, mas um deles na parte posterior e o outro na parte anterior. Esses dois formatos são estratégias eficientes dos adultos para fugir de um possível predador durante o período de incubação ou de alimentação dos filhotes, caso o predador consiga transpor a barreira de espinhos na entrada do ninho. Se houver algum dano ao ninho, o casal se reveza na sua recuperação. Observamos que essas aves sempre reformavam

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os locais que utilizávamos para observar o interior do ninho.O ninho mede em média 700 mm, incluindo o tubo de

entrada que mede 110 mm e a boca que mede 60 mm. Encontramos um ninho abandonado que pesava 600g e o maior graveto nele encontrado media 305 mm e pesava 11g, o que equivale a 42,30 % do peso de uma ave adulta, que pesa em média 26g. O ninho é forrado interiormente com lã de cacto “chique-chique” onde os ovos são postos. Encontramos também ninhos que não eram forrados e os ovos eram postos diretamente sobre os gravetos. O período reprodutivo inicia-se no mês de fevereiro e os ovos eclodem em meados de março e maio. Durante a corte, o macho oferece alimento à fêmea, e em seguida eles se acasalam. Os ovos são de cor esverdeada, suave e lustrosa, assemelhando-se à descrição de Ihering. A postura consta de dois a três ovos que medem, em média, 23 mm x 17 mm e pesam 3.4g, sendo que a casca do ovo pesa 0,2538g o que equivale a 7,5 % do peso do ovo. Tanto o macho quanto a fêmea se alternava na incubação dos ovos e no aquecimento dos filhotes nos primeiros dias de vida. O filhote pesava 3.1g e tinha a pele rosada com plumagem negra no dorso e no alto da cabeça e o interior do bico tinha a cor amarela.

Pacheco & Whitney 1994, relata que a grande maioria das aves possui uma tonalidade mais escura e um negro intenso na garganta, vermelho brilhante nos ombros e olhos de cor vermelha ou laranja, enquanto outras aves tinham a plumagem mais pálida e olhos alaranjados. Observamos que os indivíduos de plumagem pálida e de olhos alaranjados são aves jovens que acompanham os pais no território dos alimentos, aprendendo as técnicas de forrageamento.

Mapeamos duas áreas de Caatinga uma preservada de 100m x 100m onde localizamos quatro ninhos, sendo que a distância do primeiro para o segundo era de 27 m, do segundo para o terceiro de 26 m e do terceiro para o quarto de 87 m. Nesse território havia dois casais: um deles dominava a área entre o primeiro e o segundo ninho, e o segundo dominava o território do terceiro para o quarto ninho. Na segunda área, degradada, de 100m x 100m localizamos seis ninhos, sendo que a distância do primeiro para o segundo era de 22 m, sendo que o primeiro era novo e o segundo velho. A distância do segundo para o terceiro de 56m do terceiro para o quarto de 16m, sendo que o quarto era novo e foi construído sobre um “chique-chique” numa distância de 1200 mm, o terceiro era velho e construído no solo. A distância do quarto para o quinto foi de 63m, esse ninho foi construído também em um pé de “chique-chique” numa distância do solo de 1000 mm, a distância do quinto para o sexto foi de 16m sendo que o quinto era velho. Nesse território havia três casais: um deles dominava o território entre o primeiro e o segundo ninho, o segundo dominava o território do terceiro para o quarto ninho e o terceiro dominava o território do quinto para o sexto.

A Caatinga degradada é usada como área de alimentação de muitas espécies de animais domésticos tais como: bovinos, eqüinos, caprinos e ovinos, esse animais alimentam-se de vários tipos de vegetação da Caatinga e consequen-temente há um grande pisoteio. Os ninhos construídos sobre os “chique-chique” é uma adaptação a essas condições, evitando dessa maneira o pisoteio dos ninhos.

Sick (1985) relata que a vocalização da espécie Gyalophylax helmayri é repetida várias vezes durante o forrageamento de um par para se localizar e, quando cantam alto, é para manter contato com pares vizinhos. Pacheco & Whitney 1994, estudaram o comportamento da Gyalophylax através da gravação de vários sons emitidos durante o período reprodutivo, sendo um deles muito semelhante ao da espécie Synallaxis hypospodia. Em nossos estudos, constatamos que além do som semelhante ao da S. hypospodia que é utilizado para a delimitação do território, eles emitem os sons descritos por Sick no momento em que estão forrageando, para que o casal permaneça junto. Também são emitidos quando um dos pares está retornando para o ninho, quer seja no revezamento da incubação em que ambos tomam parte, quer seja no momento que estão alimentando os filhotes. Serve para atrair os filhotes, após abandonarem o ninho para as proximidades dos pais. Além desses dois sons, há o som típico da espécie que é utilizado tanto para delimitação do território, como também para a localização dos pares dentro do território. Além desses três sons, existem vários outros que são emitidos durante o período de reprodução. Tentamos, por várias vezes, gravar tais sons, no entanto, o nosso gravador apresentou defeito, o que impediu a gravação.

Em nossos estudos constatamos além do som semelhante ao de S. hypospodia que é utilizado como delimitação de território, eles também emitem os sons descritos por Sick no momento em que estão forrageando para que o casal permaneça junto e também os filhotes após abandonarem o ninho. Esse som também é utilizado quando um dos pares está retornando para o ninho quer seja no revezamento da incubação, ambos incubam, quer seja no momento que estão alimentando os filhotes. Além desses dois sons existe o som típico da espécie que é utilizado tanto para delimitação do território como também para os pares se localizarem dentro do

território. Além desses três sons existem vários outros sons que são emitindo durante o período de reprodução, por várias vezes tentamos gravar esses sons, no entanto, o nosso gravador apresentava defeito impedindo a gravação.

Pacheco & Whitney 1994, relatam que a espécie costuma buscar alimento no solo onde predominam bromélias e cactáceas, sendo assim um ambiente de difícil acesso. A ave forrageia com os pés e cisca e remexe debaixo das folhas secas. Observaram apenas a captura de artrópodes e aranhas. O forrageamento no solo é devido às condições do habitat, principalmente na época seca, onde há pouca vegetação viva. Nós também observamos esse comportamento e conseguimos fotografar alguns itens alimentares, tais como aranhas, lagartas e larvas de besouros.

Agradecimentos:Agradecemos a Carlos Antônio Silva

Ribeiro que se dedica a descobrir ninhos no Raso da Catarina, para que possamos estudar o comportamento das espécies. Agradecemos especialmente à alta direção da Cetrel que sempre incentivou as nossas pesquisas de campo, especialmente ao Dr. Ney Silva, diretor superintendente da Cetrel.

Agradecemos especialmente a Zacarias de Jesus, meu amigo e descobridor do ninho.

Referências Bibliograficas:Cory, C. B., & Hellmayr C. E. 1925. Catalogue of

birds of the Americas. Field Mus. Nat. Hist. Publ. Zool. Ser. Vol 13 (4).

Del Hoyo, J. A., Elliott, A. & Sargatal, J. (eds) 2003. Handbook of the birds of the word. Broadbills to tapaculos, v. 8. Barcelona: Lynx Editions.

Hellmayr, C. E. 1929. A contribution to the ornithology of Northeastern Brazil. Field Mus. Nat. Hist. Publ., Zool. Ser. Vol 12(18):235-501.

Lima, P.C. Aves da Pátria da Leari. v.1 2ª ed. 259 p (www.ao.com.br)

Sick:H., L. P. GONZAGA, & D. M. TEIXEIRA. 1987. A arara-azul-de-Lear, Anodorhynchus leari- Bonaparte, 1856. Rev. Bras. Zool.,3(7):441- 463

Sick, H. 1985. Ornitologia Brasileira, uma introdução. Brasília: Universidade de Brasília.

Sick, H. 1997. Ornitologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.

VON IHERING, H. 1914. Novas contribuições para a ornitologia do Brazil. Rev. Mus. Paulista, 9:410

Whitney, B. M & Pacheco J . F. (1994)BEHAVIOR AND VOCALIZATIONS OF G YA L O P H Y L A X A N D M E G A X E N O P S (F'URNARIIDAE), TWO LITTLE-KNOWN GENERA ENDEMIC TO NORTHEASTERN BRAZIL' Field. Condor 96 (3): 559-565.)

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