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VII Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica UFMT Cuiabá 17 a 20/07/2016 Anais VII CIPA ISSN 2178-0676 ________________________________________________________________________________ PRIMITIVO MOACYR: A HISTÓRIA DE UM HISTORIADOR Guaraci Fernandes Marques de Melo UERJ/[email protected] Introdução: [...] mas sabia, como todo historiador, que escrever é encontrar a morte que habita este lugar, manifestá-la por uma representação das relações do presente com seu outro, e combatê-la através do trabalho de dominar intelectualmente a articulação de um querer particular com forças atuais. Michel de Certeau 1 Era uma sexta feira o dia dois de outubro de 1942. Passara um pouco do meio dia e o dia no Rio de Janeiro estava ensolarado, como de costume. Neste início de tarde o Dr. Eduardo Salgado Filho descia a Ladeira da Glória com uma certeza apenas: fora arteriosclerose, descompensação cardíaca, conforme atestara no óbito deixado na residência de Primitivo Moacyr no apartamento 37 do número 12. A incumbência agora passava às mãos de Primitivo Bueno que cuidaria de certificar o acontecimento do falecimento de seu pai, aos 75 anos, branco, viúvo de Maria Pimenta Bueno Moacyr. Bueno, ao dirigir-se ao Cartório da 4ª Circunscrição à Rua Correia Dutra no Bairro do Flamengo, planejara o melhor modo de contar a Carmen 2 e aos seus dois meninos sobre a morte do avô. Não bastasse notícias lidas no Jornal do Commercio, sobre a continuação da Batalha do Pacífico, mais mortes, mais lutas e mais material para escrita de acontecimentos dolorosos. Ainda bem que escolhera a Engenharia, seu pai [pensou] deveria ter desejado 1 Citando Lucien Fevbre, Prefácio a Charles Morazé, Trois essais sur Histori ET Culture, A. Colin, Cahiers dês Annales, 1948, p. viii. 2 Cf. Nota de falecimento no Jornal do Comércio (outubro de 1942)

PRIMITIVO MOACYR: A HISTÓRIA DE UM HISTORIADOR Guaraci

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VII Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica

UFMT – Cuiabá – 17 a 20/07/2016

Anais VII CIPA – ISSN 2178-0676

________________________________________________________________________________

PRIMITIVO MOACYR: A HISTÓRIA DE UM HISTORIADOR

Guaraci Fernandes Marques de Melo

UERJ/[email protected]

Introdução:

[...] mas sabia, como todo historiador, que escrever é encontrar a

morte que habita este lugar, manifestá-la por uma representação

das relações do presente com seu outro, e combatê-la através do

trabalho de dominar intelectualmente a articulação de um querer

particular com forças atuais.

Michel de Certeau1

Era uma sexta feira o dia dois de outubro de 1942. Passara um pouco do meio dia e o dia no

Rio de Janeiro estava ensolarado, como de costume. Neste início de tarde o Dr. Eduardo

Salgado Filho descia a Ladeira da Glória com uma certeza apenas: fora arteriosclerose,

descompensação cardíaca, conforme atestara no óbito deixado na residência de Primitivo

Moacyr no apartamento 37 do número 12. A incumbência agora passava às mãos de

Primitivo Bueno que cuidaria de certificar o acontecimento do falecimento de seu pai, aos

75 anos, branco, viúvo de Maria Pimenta Bueno Moacyr.

Bueno, ao dirigir-se ao Cartório da 4ª Circunscrição à Rua Correia Dutra no Bairro do

Flamengo, planejara o melhor modo de contar a Carmen2 e aos seus dois meninos sobre a

morte do avô. Não bastasse notícias lidas no Jornal do Commercio, sobre a continuação da

Batalha do Pacífico, mais mortes, mais lutas e mais material para escrita de acontecimentos

dolorosos. Ainda bem que escolhera a Engenharia, seu pai [pensou] deveria ter desejado

1 Citando Lucien Fevbre, Prefácio a Charles Morazé, Trois essais sur Histori ET Culture, A. Colin, Cahiers

dês Annales, 1948, p. viii. 2 Cf. Nota de falecimento no Jornal do Comércio (outubro de 1942)

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que ele o seguisse na carreira, pois não quisera ser nem professor nem advogado, não

seguindo assim os passos do pai. Tantas providências a tomar: o enterro será no São João

Batista, com certeza; e o rol de amigos? Necessário de fazia avisá-los.

Antes que a ortopneia o impedisse de respirar, pediu que se lhe abrisse as cortinas das

janelas do quarto; o ar fraco da noite lhe trazia lembrança de Lençóis, gratas lembranças de

um tempo insensato e moço, que permitiam esquecer-se da estagnação dos humores que até

lhe parecera mais suave e a dispneia não atingira ainda o paroxismo, embora as crises

estivessem com menor intervalo de dor. Nesta condição sua vida passou rapidamente pela

memória, memória de historiador que fora tentando ser meticuloso, em especial nas

questões da educação brasileira, o que procurou fazer com grande prazer. As imagens

desfilaram pela sua mente tal qual uma película de filme, desses passados no cinema

Odeon, tendo à frente o Sr. Clarke Gable, desfilaram diante dos seus olhos em sucessão

contínua de retratos.

Sua entrada na Câmara dos Deputados se dera em 20 de maio de 1895, ocasião em que fora

admitido para trabalhar. Em 30 de dezembro de 1906 concorreu à vaga de Redator dos

Debates em virtude do concurso público, após aprovação no concurso recebeu sua

nomeação, pela mesa da Câmara3. Tentou levantar e olhar-se no espelho, sua bela cor

amorenada, herança baiana, estava ficando azulada, passou a mão pela cabeleira prata e

despenteada, em um gesto inútil de tentar concatenar os pensamentos, afinal esse exercício

já lhe valera uma monumental produção bibliográfica. No entanto, pensou que apesar das

muitas publicações ainda precisaria de tempo porque havia tantas outras histórias para

contar...

Na ocasião fora interessante notar que não mais de cinco meses depois da sua posse no

cargo, seu saudoso amigo particular Carlos Peixoto de Melo Filho elegeu-se presidente da

Câmara, permanecendo no cargo até 1909, ocasião em que resolveu renunciar. Embora seu

pedido tenha sido rejeitado, Carlos, com sua fineza de temperamento, reapresentou-o dois

dias depois e, finalmente, a renúncia foi concedida em seguida no dia 244.

3 Conforme o Almanaque nº 1 da Câmara dos Deputados

4 In: Anais, 1909, v.2, p.150\60, 167, 207\8, ed. 1909, Câmara dos Deputados

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Em janeiro do ano seguinte, Primitivo Moacyr foi designado Redactor dos Documentos

Parlamentares função que permitiu amealhar um volume expressivo de informações sobre a

instrucção publica. Seis anos5 depois foi nomeado Chefe da Redação dos Debates, embora

continuasse como incumbido dos Documentos Parlamentares. Tantos debates a revisar,

acompanhar a discussão, tomar as notas necessárias para resumo dos discursos e auxílio aos

oradores na revisão dos mesmos, pois cada redator estava encarregado da audição e registro

dos oradores. Já em 19266, apesar da extinção da redação dos debates permaneceu

incumbido dos documentos parlamentares até sua aposentadoria em 1933. No decorrer de

38 anos nessa atividade ouvira debates muitas vezes carregados de silêncios nas novas

tentativas de implantação do regimen universitário, que por sua vez, indicavam que se

continuasse a cuidar da diffusão da instrucção primaria e profissional7. No seu caso, entre

todos os serviços atribuídos ou sobre a sua responsabilidade, o que não gostava mesmo era

de expedir e cobrar documentos.

Da batalha oral que se travava na tribuna, lembrou-se nessa ocasião específica do deputado

rio-grandense Germano Hasslocher por ocasião da apresentação do projeto reorganizando o

território do Acre, cujo teor não quis revisar, e ao ver publicado no Diário do Congresso8 o

apanhamento do seu debate, se sentiu desolado e descoordenado de ideias, ao se dar conta

do dito em relação a sua falta de amores pelo governo republicano e por não ser partidário

do regime democrático (rodeio oratório que talvez pretendesse mostrar desinteresse pela

questão). Atribuiu tudo isso à obra dos senhores tachygraphos com a cumplicidade da

redacção dos debates, principalmente aos nomeados mediante concurso, funccionarios que

para auferirem maiores proventos accumulam essas funcções em detrimento de outras que

abandonam9. O secretário Sá Freire pronunciou-se em defesa dos redatores possibilitando

ao Germano uma nova publicação, ao que ele respondeu não ter tempo para revisar

discursos...

5 Em 04 de janeiro de 1906 e 27 de novembro de 1916, respectivamente

6 07 de julho de 1926

7 MOACYR, Primitivo, 1916, p.26

8 Edição de outubro de 1907, pág. 2249, Emenda ao projeto nº 301, 1907 (Discussão da emancipação política

do Acre). 9 Sessão de 11 de outubro de 1907.

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Acertado os procedimentos com o cartório, Bueno partiu para o Largo do Machado

pensando em marcar o velório na Igreja da Glória, um século depois da colocação de sua

pedra fundamental. Em seus átrios seu pai seria velado, imaginando que isso devia ser de

seu agrado, pois ele foi de certa forma o fundamento de sua família [e uma lágrima rolou

inquieta dos olhos de Primitivo Bueno]. Enquanto andava pensava em Carlos, no tempo em

que eram pequenos e nem percebiam os motivos intrínsecos nem a razão do pai se declarar

não eleitor em 1911, pois pertencera a seção eleitoral do distrito da Glória até maio de

1897, quando se mudou de distrito segundo o presidente da comissão da seção, o cidadão

Tertuliano da Gama Coelho. Nesse mesmo ano fora exonerado do cargo de procurador dos

Feitos da Saúde Pública, nada adiantando o apelo que fez ao deputado mineiro Fonseca

Hermes10

de sua condição apolítica e por nem ao menos ser um eleitor da República,

supondo estar sofrendo uma injustiça partidária. Embora não se esclareça o partido que

teria promovido essa ação, pede ajuda, pois precisa de condições para sustentar sua família.

Tempo passível de falhas e eivado de fraudes, imagino que não se saberá se ele sufragava

ou não. Como nasceu no período imperial, será que carregava marcas de não participação?

Mesmo com essas questões Bueno manteve a declaração do pai como não eleitor, e de cor

branca, respeitando assim o que considerou sua vontade.

Aliás, difícil saber o que se passava nos pensamentos de Primitivo Moacyr, o seu caráter,

muito arredio, não revelava em palavras, embora farto do uso da escrita, suas intenções

eram menos reveladas em seu retraimento, retraimento esse apenas aparente. Primitivo foi

um homem muito ativo, participou de conselhos fiscais de sociedades, advogou causas e

tantas outras atividades. A multiplicidade nele era perceptível aos que de perto conviviam.

Trabalhou cerca de trinta e oito anos na Câmara, e nunca assinava o ponto, ponto do qual

fora dispensado apenas em maio de 1921.

Por onde andará Afrânio Peixoto, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo? Josino de

Araújo, Afonso Taunay, Rodolfo Garcia, Max Fleiuss, entre tantos amigos? Seu pai,

sempre cortês, comparecia aos velórios dos ilustres, como no caso do enterro de Machado

de Assis, na Biblioteca Nacional, triste perda para a nossa Literatura, então era importante

10

Ver correspondência manuscrita por Primitivo Moacyr em Anexo

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convidá-los. Conjecturou Primitivo Bueno ao pensar a quem participar sobre a morte do

pai.

Enquanto esperava o atendimento no cartório, Bueno lembrou-se da Biblioteca Nacional

instituição tão querida essa biblioteca. Palco durante algum tempo de reuniões acadêmicas

informais da elite intelectual na qual meu pai se inseria. Essas reuniões tomaram corpo e

eram promovidas por Rodolfo Garcia, então diretor da instituição havia treze anos

(1932/1945), contando com presenças de Afrânio Peixoto, D’Escragnolle Taunay,

entretanto, não sei se por ironia ou galhofa, as tais reuniões compunham a saudosa

Academia Garciana, bem mais informal e mortal que a outra. Na verdade, pensou Primitivo

Bueno, essas reuniões culturais11

não são bem do meu interesse, mas o chá era ótimo...

Em seu leito, entrecortado por dores, Moacyr lembrou-se com saudades dos chás que

partilhava com Afrânio e Carlos em seu socegado tugúrio de celibatários na Rua

Voluntários da Pátria. Os biscoutos mineiros que o ilustre amigo trazia, ainda são possíveis

senti-los desfazerem na boca. Amigo esse de individualidade tão moça, alcançando realce

tão saliente e posição tão digna12

que em curto espaço de tempo ocupou culminância nos

negócios políticos do país. Entretanto, bom também eram os que Rodolfo Garcia oferecia

nas tardes de terça na academia.

Apesar das cortinas do quarto estarem abertas sentia falta de ar, lhe vindo à boca o gosto do

chá e dos biscoitos. Quem dera saborear agora, biscoitos e chá, sorriu um sorriso amargo,

entrecortado por espasmos, piscando seus olhos negros já embaçados e gastos pela poeira

das bibliotecas. Pensar em biscoutos e, o folhetim13

lhe veio à cabeça.

O amigo Carlos era sempre objeto de chacotas e pedradas. Cousas simples como a

comemoração do seu aniversário renderam lérias maçantes na Revista Fon-fon que tinha no

sensacionalismo o interesse na exploração dos assuntos sobre fatos ou pessoas,

principalmente ligadas ao governo, e, com isso, procurava chocar a opinião pública,

aumentar a tiragem, pois era jornalismo sensacionalista à época.

11

Anais da Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco - Ata da Quadragésima Segunda Reunião

Ordinária da Segunda Sessão Legislativa Ordinária da Décima Quinta Legislatura. Realizada em 06 de maio

de 2004. 12

Revista Fon-Fon! Anno II, n. 9 e 10. 13

Revistas Fon-Fon! Anno II, n. 9 e 10, 6 e 13 de junho de 1908, respectivamente acervos da Biblioteca

Nacional.

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Apesar dos suores, a fadiga e das dores abdominais14

, ele pode entrever, pela abertura das

janelas o crepúsculo daquele dia primeiro de outubro, a lua em quarto minguante15

estava

lá, um luar fraquinho, em terminando sua fase crescente, e a brisa fresca da noite balouçava

a cortina. Derradeira noite difícil de dormir...

Primitivo Bueno conjecturou de como o pai andava meio cansado, fora um ano bem

produtivo com a publicação de cinco livros, será que imaginava que o fim estava próximo?

Será que ao lado dos acordos de escrita e publicação selados com Fernando de Azevedo e

Lourenço Filho teve a ideia de se eternizar pela escrita ou então pela elaboração dos livros

do homem-redator? Será difícil saber, apenas conjecturar. Afinal não é isso que também

fazem os historiadores? E papai foi um, e um dos bons! Pois produziu dezesseis livros e

artigos em Congressos do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e no Jornal do

Commercio. Aliás, este jornal notificou prontamente a morte dele, o mesmo se deu com a

edição do jornal O Imparcial da Bahia, terra natal, e no dia seguinte o Ministro Capanema

também postasse nota no Jornal do Comércio, lamentando a perda para a Educação.

No auge dos dezesseis anos de seu filho, ele publicou o livro das breves notícias das falas

do Congresso Nacional pela Editora do Jornal do Commercio, com algumas transcrições as

quais separou e reuniu para constituí-los em objetos ‘abstratos’ da operação técnica de sua

escrita da história da educação brasileira, pois certamente houve falas outras, que não foram

priorizadas em virtude da temática que quis se reportar.

Bueno sabia que o pai continuou investigando com sua meticulosidade costumeira os

debates que antecederam a criação de universidades no Brasil. Escreveu em 1934, da sua

casa em Petrópolis, ao secretário perpétuo do IHGB, o senhor Max Fleiuss, interrogando

sobre o paradeiro do manuscrito do esboço para organização e regime das universidades

que José Bonifácio ofereceu à Assembleia Constituinte e Legislativa, em 1823, sendo de

parecer da Comissão de Instrução que se mandasse imprimir conforme a ata da sessão de

14

Características dos Sintomas extraídas de Diagnóstico e Tratamento da Insuficiência Cardíaca

Descompensada Grave – Unidade Coronariana do Hospital Sírio e Libanês, disponível em:

http://www.hospitalsiriolibanes.org.br/medicos_profissionais_saude/diretrizes_assistenciais/pdf/insuficiencia_

card%C3%AD aca.pdf. Acesso em 24-04-2011 15

Disponível no Anuário Interativo do Observatório Nacional: http://euler.on.br/ephemeris/index.php. Acesso

em 25-04-2011.

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15 de outubro. Com a sequente dissolução da mesma, nada mais fora encontrado nas atas.

No entanto depositado e muito bem guardado nos arquivos do IHGB, Max16

lhe permitiu o

acesso.

Primitivo ficou pensando no paulista Bonifácio que elegia São Paulo para a sede da

Universidade Brasileira sob a alegação de bom clima e insalubridade do ar e a barateza de

comestíveis e alojamento. Ele já devia estar senil porque, apesar do sistema hereditário ter

sido extinto pelo Marques e a designação capitania permanecesse até 1821, alegou também

que São Paulo tinha fácil comunicação com as capitanias do Centro e da Costa. Propôs o

Convento do Carmo, não o novo, mas o velho convento da antiga ladeira do Carmo com

boas acomodações e um bom sítio. A memória parece falhar, não sabe se acabou

publicando isso... E vislumbrou um provável fragmento e instintivamente procurou a caneta

tinteiro e papel para anotá-lo e o fez com sua letra bem talhada, se bem que trêmula: O Sr.

José Bonifácio de Andrada e Silva em 1823, apresentou um projecto á Assembléa

Constituinte e Legislativa um Esboço para organisação e regimen das universidades. A

Comissão de Instrucção Publica, em 13 de outubro, foi de parecer que se mandasse

imprimir, mas com a dissolução da Assembléa Constituinte não foi encontrado o Esboço.

Finalmente a memória voltou e conseguiu lembrar na integra o conteúdo do esboço17

,

amassando então o pequeno fragmento de escrita que a força do hábito o fez anotar:

“Constará de 3 Faculdades, Philosophia, Jurisprudencia e

Medecina: a Theologia será ncinada nos Seminarios dos Bispos,

prossegue o Sr. Bonifácio dizendo que a Universidade será

governada por hum concellario q. será sempre hum Principe do

sangue; e por hum Reitor triennal, tirado por turno seguido por

lentes das Faculdades, o qual alem do ordenado da sua cadeira

terá de ajuda de custo no tempo do Reitorado 600 mil RS[...].”

Pelo Esboço o Sr. Bonifácio propunha,

16

Manuscrito a Max Fleiuss (Anexo) 17

Esboço de José Bonifácio é um rascunho manuscrito que contém 2 folhas e 3 páginas (sendo uma no verso)

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[...] “ter a Universidade uma Directoria geral dos Estudos

públicos em todo ultramar, dirigida por uma junta de 5 Deputados,

sendo um deles o secretario e a junta será presedida pelo reitor.

Contará ainda com uma Thesouraria e nesta um thesoureiro, um

contador, um fiscal e quatro oficiaes papelistas, propunha também

a creação de Thipographia, laboratório de Chimica, observatorio

Astronomico, museo de historia natural e um Hospital próprios.

Esboça ainda uma despeza de 29:650,000 rs. a ser provida por

pensão provenientes do Erario Regio, emquanto não chegarem os

outros seguintes fundos:

1º Os restos do subsidio litterario mais aumentados.

2º As matriculas dos estudantes a 24000 rs.

3º Fasendas dos Jesuitas e de alguns conventos suprimidos.

4º Legados pios.

Encerra assim o esboço afirmando que com o andar do tempo, e

havendo

mais dinheiro se poderas acrescentar mais alguas cadeiras

practicas.”

(SILVA, José Bonifácio de Andrade, 1823 págs.1, 2,3).

O esforço por recordar a questão do regime universitário provocou uma camada fina de

suor em sua testa e cabeleira. Nesse momento, tentou se soerguer mais uma vez e sentir a

brisa que vinha das águas salgadas há poucos metros do seu apartamento. Primitivo

inclinou a cabeça e sentiu o vapor da morte chegando e cada vez foram ficando mais

difíceis as lembranças, miscelâneas embaralhadas, recortes esfarrapados. Definitivamente

não estava pronto para deixar esse mundo; gostava do que fazia, era bom nisso, entretanto

sentiu que suas forçam se esvaíam...

Num derradeiro gesto de luta pela vida, afinal fora um lutador, lutador de pena e não de

espada, com tosse entrecortada, sentou-se no leito e olhando através das janelas, no entanto

sem perceber a quietude que se fazia na ladeira e nem sequer o brilho das estrelas, sabia

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intuitivamente que aos fundos de sua propriedade erguia-se o casario cedido pelo imperador

à sua amásia, que de suas rendas sobrevivera no início dos tempos republicanos.

Vislumbrou fragmentos da carta de Aluízio Azevedo18

enviada de Nápoles (06 de outubro

de 1906) por conta da carreira diplomática. Calculou mentalmente uns trinta e poucos anos

quando apresentou o Afrânio Peixoto para ele. Na verdade, ficou encantado e de quem se

fez amigo, como era mesmo que disse? “É um prodígio o diabo do rapaz! Com as nossas

palestras fiquei a par do que é hoje o Rio de Janeiro, depois de suas transformações físicas e

morais...”. Primitivo ficou imaginando se a questão era dar na balda do prefeito e sua

campanha higiênica, embelezamento e saneamento, o alargamento das ruas do centro e

calçamento macadamizado enquanto que as ruas dos subúrbios caiam no esquecimento e

desatenção das obras públicas e as demolições dos cortiços e a ocupação dos morros, em

princípio ocupados por militares rasos, espólios de Canudos. Definitivamente o Rio de

Janeiro estava mudando...

Viu os primeiros raios de sol, pois escolhera justamente esse apartamento de frente ao leste

e, assim, acompanhou o seu último nascer do astro, com a fulgência do seu rastro

esparramando sobre seus lençóis a luminosidade clara e quente a aquecer seu rosto; e no

apogeu desse fulgor deu seu último suspiro...

18

Publicada no livro Touro Negro de Aluizio Azevedo, páginas 149, 150.

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IPLANRIO, 1997

AZEVEDO, Aluízio. O Cortiço. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.

BRASIL, CÂMARA DOS DEPUTADOS. Documentos Parlamentares Instrucção Publica:

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(1904 - 1915). 1º volume. Rio de Janeiro: Typographia do Jornal do Commercio de

Rodrigues & Cia., 1918, 212 pág.

__________. O Touro Negro (Crônicas e Epistolário) pág. 149.150. São Paulo: Martins

Editora, 3ª ed. 1954.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

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02.06.11.

LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Editora Selo

Negro, 2004.

MELO, Guaraci Fernandes Marques de. Primitivo Moacyr: a arte de produzir material

historiográfico, 2012, 84 f. Monografia – Faculdade de Educação, Universidade do Estado

do

Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2012.

MOACYR, Primitivo. O Ensino Público no Congresso Nacional: Breve Notícia. Rio de

Janeiro: s/Editora: 1916.

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NETO, Casimiro. A Construção da Democracia. Coordenação de Publicações. Brasília.

2003. Sistema de Informações Legislativas (SILEG) - Módulo Deputado. cd/cpsn/julho

2006. Disponível em http://www2.camara.gov.br. Acesso 11/06/2012.

VAMPRÉ, Spencer. Memórias para a História da Academia de São Paulo. São Paulo:

Saraiva & Cia, 1924.

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Cartas em Anexo:

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Fonte: Instituto Histórico Geográfico Brasileiro - IHGB

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Fonte: Instituto Histórico Geográfico Brasileiro - IHGB

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Fonte: Foto da autora tirada na Biblioteca da Câmara dos Deputados