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Principio da Legalidade O principio da Legalidade , como uma das principais garantias individuais do cidadão, tem aplicação em todos os ramos do direito. Restringimo-nos aqui a abordar a Legalidade no âmbito do Direito Penal, fazendo breve menção à sua previsão constitucional no inciso II do art. 5º da Constituição Federal pretendemos, com este lacônico estudo, apontar as características fundamentais do principio da legalidade, suas funções, bem como as implicações que daí decorrem, os principios que com ele se relacionam diretamente e a aplicação da lei penal no tempo, trazendo algumas orientações jurisprudenciais dos Tribunais Superiores sobre os assuntos mais relevantes. É garantia individual de cunho constitucioanl cuja análise é imprescindpivel aa a compreensão de todos os outros institutos do Direito Penal, sendo também o princípio mais importante desse ramo do Direito. Sem a pretensão de esgotar o tema, estudaremos apenas as questões do instituto que reputarmos mais relevantes. ESTADO DE DIREITO E PRINCÍPIO DA LEGALIDADE Estado de Direito é uma concepção imediatamente ligada ao princípio da legalidade INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO remota o conceito de Estado de Direito ao direito alemão, mencionando BÖCKENFÖRDE, o qual ressalta que o surgimento dessa expressão se deu na Alemanha. Seu significado não tem correspondente exato em outro idioma, significando, no âmbito da teoria do Estado do liberalismo alemão, dentro da qual foi cunhada a expressão, o Estado da razão, do entendimento, ou “[...] o Estado em que se governa segundo a vontade geral racional e somente se busca o que é melhor para todos”. O autor aponta, então, características

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Principio da Legalidade

O principio da Legalidade , como uma das principais garantias individuais do cidadão, tem aplicação em todos os ramos do direito. Restringimo-nos aqui a abordar a Legalidade no âmbito do Direito Penal, fazendo breve menção à sua previsão constitucional no inciso II do art. 5º da Constituição Federal pretendemos, com este lacônico estudo, apontar as características fundamentais do principio da legalidade, suas funções, bem como as implicações que daí decorrem, os principios que com ele se relacionam diretamente e a aplicação da lei penal no tempo, trazendo algumas orientações jurisprudenciais dos Tribunais Superiores sobre os assuntos mais relevantes. É garantia individual de cunho constitucioanl cuja análise é imprescindpivel aa a compreensão de todos os outros institutos do Direito Penal, sendo também o princípio mais importante desse ramo do Direito. Sem a pretensão de esgotar o tema, estudaremos apenas as questões do instituto que reputarmos mais relevantes.

ESTADO DE DIREITO E PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Estado de Direito é uma concepção imediatamente ligada ao princípio da legalidade INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO remota o conceito de Estado de Direito ao direito alemão, mencionando BÖCKENFÖRDE, o qual ressalta que o surgimento dessa expressão se deu na Alemanha. Seu significado não tem correspondente exato em outro idioma, significando, no âmbito da teoria do Estado do liberalismo alemão, dentro da qual foi cunhada a expressão, o Estado da razão, do entendimento, ou “[...] o Estado em que se governa segundo a vontade geral racional e somente se busca o que é melhor para todos”. O autor aponta, então, características essenciais do Estado de Direito: não é criação de Deus, estando a serviço dos interesses de todos os indivíduos; sua atividade cinge-se a garantir a liberdade, a segurança e a propriedade, assegurando-lhe a todos a possibilidade de desenvolvimento indivídual; e: ¹

[...] a organização do Estado e a regulamentação das suas atividades obedecem a princípios racionais, do que decorrem em primeiro lugar o reconhecimento dos direito básicos da cidadania, tais como a liberdade civil, a igualdade jurídica, a garantia da propriedade, a independência dos juízes, um governo responsável, o domínio da lei, a existência de representação popular e sua participação do Poder Legislativo .

Um Estado com predicativo “ de Direito” tem como principal característica, então, exatamente o domínio da lei. Daí a garantia de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei ( art. 5º, II, da Constituição). É exatamente esse o princípio da legalidade, sendo inclusive individual.²

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ZAGREBELSKY, citado por INOCÊNCIO COELHO, afirma categoricamente que, a lei não depende da legitimação material, ainda que possa vir a ser invalidada por incostitucionalidade. Ela vale porque é leim e não pelo conteúdo de sua prescrição³. Vemos que a afirmação é fruto da tamanha importância que é dada à lei no Estado de Direito. É claro que não podemos aderir cegamente à ideia de que a lei, sendo formalmente válida, sê-lo-á invariavelmente no âmbito jurídico. Hodiernamente temos que admitir uma legalidade comprometida com a Costituição, lei fundamental do moderno Estado de Direito.4 Vale a lembrança de que todas as Constituições brasileiras trouxeram o principio da legalidade no sentido do Direito Penal em seu bojo.5

PRINCÍPIOS QUALIFICADOS DA LEGALIDADE NO DIREITO PENAL

Translado especificamente para o âmbito do Direito Penal, o princípio da legalidade assume feições peculiares. Sua aplicação é idêntica, tendo-se-o como verdadeira garantia do cidadão (art. 5º, XXXIX, CF),2 todavia vários outros princípios, associam-se a ele. NUCCI aponta três sgnificados principais de legalidade : o político, que o posiciona como garantia constitucional dos direitos fundamentais; o jurídico lato sensu, traduzido pelo art. 5º, II, da Constituição; e o jurídico stricto sensu, consoante o qual os tipos penais incriminadores apenas podem ser criados por leis em sentido estrito, produzidas pelo Poder Legislativo e em conformidade com o process legislativo constitucionalmente disciplinado.7

Auxiliando-o, surge uma série de princípios, os quais não abordaremos aqui em sua totalidade, por não ser essa a pretensão deste estudo. Vale a menção de alguns deles, de suma importância para a eficiência da legalidade para criar leis penais incriminadoras, mas também a uma gama de outros princípios.8 O princípio da intervenção mínima, por exemplo, designa a exclusividade da intervenção do Direito Penal para os casos de violação aos bens jurídicos mais importantes; é a criação da lei penal vinculada ao Direito Penal como última ratio. Esse princípio limita o poder incriminador do Estado, qualificado o princípio da legalidade, tornando-o mais benéfico ao cidadão. 9 Complementando a intervenção mínima, temos o princípio da fragmentariedade. Diz esse princípio que o Direito Penal, apesar de proteger apenas os bens jurídicos mais importantes, somente deverá intervir em situações específicas de grave violação a esses bens. “Fragmentariedade” porque importará ao Direito Penal apenas um “fragmento” das hipóteses de violação aos bens jurídicos mais importantes.10

Mencionemos também o princípio da taxatividade, segundo o qual a lei penal deverá ser categórica e o mais calra possível, garantindo maior segurança jurídica ao cidadão.11

Não podemos deixar de citar o princípio da proporcionalidade, também qualificador da legalidade. No momento de combinação das penas de cada crime ( bem

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como na aplicação), deverá o legislador atender ao critério da proporcionalidade. Deverá o valor da pena corresponder razoavelmente à gravidade da conduta praticada pelo agente.12 Ademais, o princípio da limitação das penas, garantido constitucionalmente (art. 5º, XLVII, CF), impede que uma lei penal imponha de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimentos ou cruéis.13

O princípio da ofensividade, bem lembrado por LUIZ FLÁVIO GOME, determina que uma conduta punível pelo Direito Penal não é só aquela que se subsume a uma descrição típica, senão aquela que efetivamente lesiona o bem jurídico protegido por aquele tipo penal (nullum crime sine iniuria).14 Acompanhando o princípio da legalidade, temos també o da itrretroatividade da lei penal (constitucional, apenas se permitindo a retroatividade se a lei for mais benéfica ao réu).15 São todos os princípios voltados a beneficiar o cidadão, corroborando a intervenção mínima exigida pela natureza repressiva do Direito Penal.

Finalmente, os princípios da territorialidade e da extratividade contribuem também para uma maior segurança jurídica para os cidadãos. De nada adianta saber que para se ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo deve haver uma lei dizendo que deve ser assim se não se sabe em que lugares será aplicada essa lei. Pelo princípio da territorialidade, é aplicada a lei brasileira a todo o crime cometido no território brasileiro. Para efeitos de aplicação da lei penal no espaço, território é o espaço onde o estado exerce sua soberania. Dessarte, compreende a área terrestre, limitada pelas fronteiras; os mares interiores, lagos e rios; o mar territorial e as ilhas marítimas; o espaço aéreo correspondente e as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro, onde quer que estejam, bem como aéro naves embarcações brasileiras mercantes ou de propriedade privada que se encontrewm no espaço aéreo correspondente ou em alto mar (art. 5º, § 1º,cp).16

O princípio da extraterritorialidade é aplicável em situações excepcionais. Serão punidos agentes que houverem praticados crimes no estrangeiros nas hipóteses previstas no art. 7º, I (extraterritorialidade incondicional) e II (extraterritorialidade condicionada). 17

ORIGEM

Muitos afirmam remontar à Magna Carta, de 1215, a primeira aparição do princípio da legalidade. Seu art. 39 assim dispunha:18

Art. 39. Nenhum homem livre será detido, nem preso, nem despojado de sua própriedade, de suas liberdades ou livres usos, nem posto fora da lei, nem exilado, nem pertubado de maneira alguma; e não poderemos, nem faremos pôr a mão sobre ele, a não ser em virtudo de um juízo legal de seus pares e segundo as leis do País.

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Desenvolveram essas ideias John Lock e Montesquieu20, do final do século XVII ao inicío do século XVIII, propagando-se com os enciclopedistas, com os filósofos, entre outros.

Por outro lado, foi com a Revolução Francesa que o princípio amoldou-se às exigências do Direito Penal, mais precisamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Antes dela, o Bill of Right. O Congresso da Filadélfia, de 1744, erigiu-o à categoria de direito fundamental. Na Europa, o primeiro registro após a Magna Carta fora a Ordenança Penal Austríaca, de José II, a Josefina, do início de 1787. Logo após, ainda em 1787, nasceu a Constituição Americana de 1787, fazendo menção expressa ao princípio.22 Quem trouxe o princípio à América Latina foi FEUERBACH, sob o brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege.23

Vale lembrar que esse princípio sempre foi expressamente previsto no Código Penal brasileiro (desde o Código do Império, de 1830, até Código de 1940, com a Reforma de 1984),24 o que não seria necessário, haja vista que a Carta Magna já dispões nesse sentido. Atualmente, o Código Penal traz o princípio da legalidade (ou da anterioridade da lei penal, como preferem alguns) no seu art. 1º.

Insta salientar que muitos autores diferenciam princípio da legalidade, princípio da reserva legal e princípio da anterioridade da lei penal. Consideramos equivalentes os três conceitos. Mesmo que se os consideremos diversos, abordaremo-los como aspectos atinentes ao princípio da legalidade, apenas não mencionando o nomen juris pretendido por alguns autores.

FUNÇÕES

O princípio da legalidade apresenta quatro funções fundamentais: proibir a retroatividade, criação de crimes e de penas pelos costumes, o emprego da analogia na criação de crimes ou na fundamentação ou agravação de penas e as incriminações vagas e indeterminadas.26

Essa é apenas uma sistematização das funções do princípio da legalidade, pois, ao analisarmos os princípios qualificadores da legalidade, já fizemos menção a todas elas.Vejamos-las, então.

A primeira delas é a de proibir a retroatividade. Vimos que o princípio da irretroatividade da lei penal, com fulcro constitucional (art. 5º, XL, CF), reforça a legalidade, pois, além de uma pessoa só poder ser punida por previsão legal, essa punição apenas se poderá dar a partir do início da vigência daquela lei. Está é a redação do inciso XL, do art. 5º da constituição: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Aqui o próprio dispositivo constitucional que disciplina o princípio prevê uma exceção. Como dissemos, os princípios qualificadores da legalidade estão sempre voltados para o bem do cidadão, portanto a exceção se coaduna com essa ideia. Assim, dize-se que aplicar a lei mesmo se ainda estiver em vaction legis, desde que

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benéfica ao réu. Um brocardo resume essa função do princípio da legalidade: nullum crien nulla poema sine lege praevia.

A segunda diz respeito à impossibilidade de se criarem crimes ou penas pelos costumes. Ora, vimos que a principal implicação do princípio da legalidade é o fato de ser a lei a fonte precípua do Direito Penal (a única fonte imediata). A incriminação e a penalização são funções atribuídas exclusivamente à lei. Dessarte, é imperioso admitir que os costumes não têm o condão de criminalizar condutas, ou seja, nullum cirmen nulla pena sine lege scripta.28 Por outro lado, não podemos afirmar categoricamente que os costumes não exercem influência no Direito Penal. Doutrinária e jurisprudencialmente se reconheçe o costume como fonte do Direito Penal quando apareçe para beneficiar o réu.29

Vale aqui uma observação. Temos o chamado princípio da adequação social, segundo o qual não deve ser criminalizadas (ou devem ser descriminalizadas) conduta socialmente adequadas ou reconhecidas. Se a sociedade não abomina determinada conduta a ponto de ser tão importante que demande uma proteção do Direito Penal, essa proteção não deverá ocorrer. Atentemo-nos para a afirmação: o princípio da adequação social não tem o poder de revogar tipos penais incriminadores. Destina-se, antes de tudo, ao legislador, para que adapte o Direito Penal à cultura da época e do local nos quais se o aplicará.30 outrossim, deve ser admitida a aplicação do princípio da adequação como critério para determinação, pelo juiz, da atipicidade de certas condutas. Tanto deve ser assim que até recentemente se aderiu a essa prática, quando os juízes, desconsiderando o tipo penal do adultério, não o aplicavam, sob o pretexto de que, para a sociedade, não havia aquela repugnância de tempos atrás com relação à conduta adúltera.

A terceita função é a de proibir o emprego de analogias para se criarem crimes ou para se fundamentarem ou agravarem penas. Em resumo, o princípio da legalidade é voltado também para impedir a analogia in malam partem.31 A analogia não poderá ser empregada em prejuízo da parte. Isso porque as normas devem estar escrítas, legalmente, não se pode impor, por exemplo, a pena do crime do estupro sobre uma mulher que constrangeu um homem a conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça, pois o tipo penal do art. 213 do Código Penal apenas faz mensão a “constranger mulher”. Ora, não há lei alguma dizendo, expressamente (na forma escrita), que o constrangimento feito pela mulher sobre o homem com essa finalidade é punível como crime de estupro, razão pela não se deverá aplicar a pena desse crime. Por outro lado, a analogia in bonam partem é amplamente aceita, por se basear num princípio de equidade.32 Empresta-se a essa função o brocardo nullum crimen nulla pena sine lege stricta.

A última função sugerida por GREGO é a proibição de incriminações vagas e indeterminadas. Já vimos também essa função quando falamos do princípio da taxatividade. O crime, além de ter que ser previsto legalmente, deve ser disposto de forma catefórica e claro. A lei deve ser tacativa. Não pode o cidadão fica à mercê do intérprete. O art. 5º, II, da Constituição diz que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo se não em virtude de lei. Imaginamos um tipo penal com o seguinte preceito primário: ‘atentar contra os interesses da pátria. Pena – reclusão, de 8 (oito) a

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20 ( vinte) anos”. Pelo dispositivo constitucional, o cidadão só é obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo em virtude de lei. Sendo esse tipo penal instituido por lei, estará o cidadão obrigado a “deixar de atenta contra os interesses da pátria”. O que vêm a ser “interessess da pátria”? Que condutas almodariam-se o tipo em questão? São perguntas sem resposta exata. Diante da vaguesa do tipo penal, o cidadão encontra-se em situação de extrema insegurança, não sabendo exatamente o que deve deixar de fazer em função daquela norma. É justamente isto que o princípio da legalidade abomina: tipos penais abertos.33

Para burlar o princípio da legalidade (mediante a violação do princípio da taxatividade), regimes totalitários lençaram mão de tipos penais vagosm com o objetivo de deixar ao talante do seu aplicador as hipóteses de subsunção. Foi o que ocorreu na alemanha nazista, na Itália ascista e também na União Soviética, após a revolução bolchevique. Na atual Dinamarca, há previsão profundamente hostil ao princípio da legalidade, e na Inglaterra não há disposição constitucional expressa relativamente ao princípio da Legalidade. No Brasil temos ainda tipos penais vagos. Exemplo é o art. 9º da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83): “Art. 9º. Tentar submeter o território , o nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país [...]”. É o caso que se assemelha ao do exemplo dado anteriormente. Como ocorre a submissão do território nacional à soberania de outro país? Tipos penais obscuros como esse são o que queria o princípio da legalidade repugna (nullum cimen nulla poena sine lege certa). Dessarte, é perfeitamente plausível defender-se a incostitucionalidade desse dispositivo. Na falta de uma tipificação mais taxativa, seria até possível defender-se a tese da “lei ainda constitucional”, porém de fato devemos rechaçar essa prática.

É mister salientarmos que, no pós-guerra, o princípio da legalidade se fez mais presente nos códigos penais: art. 2º do Código Penal tcheco de 1950; art. 4º do iugoslavo de 1951; arts. 2º e 9º, I, dos búlgaros de 1951 e de 1968, respectivamente; art. 1º do húngaro de 1961, e poderia citar inumeros outros artigos de outras constituições mas não é esse o nosso objetivo.

Vale dizer um dos objetivos princípiais do princípio da legalidade, além de ser garantia individual constitucional dos cidadãos, é impedir que o Judiciário e o Executivo possam especificar as condutas que devem ser punidas pelo Direito Penal. Aqui há uama forte demanda pela segurança jurídica. A certeza do direito é fundamental para a proteção das liberdades individuais, alvos principais das sanções penais, e o Legislativo é o poder nas melhores condições para conceder essa certeza. Não há segurança maior do que ter um documento escrito disciplinando as situações em que o Estado poderá exercer seu direito de punir, cerceando a Liberdade de um cidadão.

Legalidade formal e Legalidade Material

Mencionamos, no início deste trabalho, que o princípio da legalidade não exige apenas que uma lei discipline a conduta que se pretende prescrever. Esse é o aspecto formal do princípio. A afirmação de ZAGREBELSKY, citado por INOCÊNCIO

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COELHO, não pode prosperar rigidamente num Estado de Direito. O Estado é regido pela lei, porém o é, antes de tudo, pela Lei Fundamental, que é a Constituição.

Uma obrigação, para ser imposta ao cidadão (art. 5º, II, CF), deve estar prevista em lei e em harmonia com a Constituição. A Carta Magna de 1988 prescreve vários direitos e garantias fundamentais que são invioláveis, tanto por uma conduta quanto por qualquer ato normativo.

Ora, uma lei não deve ser obedecida apenas por ser lei. Sua natureza não lhe confere uma aura de inquestionabilidade e de exigência de obediência incondicional. Para que uma lei seja válida e possa produzir os efeitos pretendidos pelo legislador, ela seguir os trâmites legais para a sua criação, bem como deve estar em consonância com a Lei Maior em seu aspecto material.

A legalidade formal, então, é exatamente o seguir o procedimento formal para a criação de uma lei daquela natureza. Legalidade material, por sua vez, é o amoldar-se o conteúdo da lei aos direitos e às garantias fundamentais, previstos constitucionalmente. Num Estado Constitucional de Direito, e legalização diz respeito a um Estado regido por uma Constituição, a lei suprema, portanto as leis hierarquicamente inferiores devem sempre obediência à suprema. Já que devem observar o procedimento formal, disciplinado na Master Legis, devem também, e com muito mais razão, conformar-se com as normas constitucionais materiais. O princípio da legalidade exige obediência incondicional à Constituição, seja em âmbito formal (processo legislativo) ou em âmbito material (direitos e garantias fundamentais). Aqui tem lugar a máxima nullum crimen nulla poena sine lege valida.

Conflito de Leis Penais

As leis penais podem entrar em conflito. Assim, por serem as leis penais sempre de mesma hierarquia, podemos dizer com certeza que lei posterior revoga anterior. A revogação é instituto que está no âmbito da invalidade das normas jurídicas. São espécies de revogação a ab-rogação e a derrogação. Aquela designa a invalidação total de uma norma jurídica; esta, a parcial. Assim, como se dá com qualquer norma jurídica, a lei penal posterior revogará a anterior das disposições em que forem incompatíveis apenas. A revogação pode ser, ainda, tácita ou expressa, não se alterando, contudo, seus efeitos. Será tácita quando as disposições de cada lei forem incompatíveis entre si, de forma que não possam coexistir num mesmo sistema jurídico. Por outro lado, será expressa quando a lei posterior trouxer na forma escrita que determinada lei está revogada, ou a clássica expressão “revogam-se as disposições em contrário”, desnecessária, pelo raciocínio que ora demonstramos.

Dissemos que as leis penais são sempre de mesma hierarquia. Isso no âmbito das normas penais incriminadoras, pois uma lei penal pode ser contrária a certa disposição constitucional relativa ao Direito Penal. Nesse caso, é cediço que a lei penal é incostitucional, sendo, por isso, nula. Ainda, se a Constituição surgir quando a lei penal

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com ela incompatível já estava vigente, tratar-se-á do fenômeno da não-recepção. Cessará a produção de efeitos pela lei a partir da vigência da nova Carta Magna.

Tanto a parte material da Mater Legis é fundamental para que seja válida a lei penal que uma norma, penal ou não, cuja incompatibilidade com a Constituição for apenas formal será válida, desde que materialmente compatível. Se, por outro lado, a incompatibilidade for exclusivamente material, havendo harmonia entre as duas leis, será ela válida. Queremos dizer aqui que não importa a roupagem dada à lei (o Código Penal, por exemplo, foi elaborado em 1940 sob a forma de Decreto-Lei. A Constituição de 1988 não previu essa espécie legislativa (art. 59), e nem po isso deixou o diploma repressivo de ser válido. Apenas ganhou nova roupagem, hoje sendo tido hierarquicamete como lei ordinária, pois é a espécie legislativa designada pela Lei Maior para a elaboração de normas penais.

Vale lembrar que o fênomeno da repristinação é probido no Brasil (art. 2º, § 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil) para qualquer espécie normativa. Quer dizer essa proibição que, “salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”, conforme o dispositivo mencionado.

Lei Penal no Tempo

A regra geral da lei penal no tempo é tempus reit actum, isto é, aplica-se a lei vigente à época do fato, preservando-se, assim, o princípio da legalidade (ou da anterioridade da lei penal). Havendo, conflitos de leis no tempo, poderão surgir quatro situações: a lei posterior é mais grave, aboliu o crime, é mais benigna no que tange á pena ou à medida de segurança, contém uns preceitos mais benéficos, e outros mais gravosos. Aplicam-se a essas hipóteses os arts. 2º, 3º do Código Penal.

No caso de lex gravior (lei posterior mais grave), opera a irretroatividade absoluta. A lei nova tenha criado tipo penal novo ou inovado na agravação de consequências penais, submete-se incondicionalmente ao princípio da irretroatividade. Aplica-se a lei nova apenas aos fatos ocorridos a partir da sua entrada em vigor, e essa regra vale para todas as normas de direito material.

Se, durante a consumação de um crime permanente (que se consuma, como é cediço, a cada instante), surgir lei nova maléfica, e o agente permanecer cometendo o crime, temos duas posições. ASSIS TOLEDO afirma que a lei mais maléfica se aplica, e CIRILO DE VARGAS diz que não, por contrariar o princípio da irretroatividade in pejus. Já nas hipóteses de crime continuado, temos duas situações: se a lei nova surge no curso de série criminosa, só se aplica às condutas praticadas durante a sua vigência, se os fatos anteriores eram impuníveis; se os fatos anteriores já eram puníveis, vindo a lei nova apenas a agravar a sua pena, aplicando-se-a, em tese, a toda a série delitiva. Em casos bem particulares, a solução será diversa, porém sempre se observando a anterioridade da lei penal e o tempus regit actum. CIRILO DE VARGAS, entendendo diversamente, critíca a posição de ASSIS TOLEDO e afirma sempre o princípio

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segundo o qual só pode ser aplicada a lei posterior se mais benigna, ainda que venha a entrar em vigor durante uma série delitiva ou durante um crime permanente. Em 2003, a Súmula nº 711 do STF veio corroborar o posicionamento de ASSI TOLEDO, o qual perfilhamos.

A hipótese de abolitio criminis tem solução bastante simples na doutrina e na jurisprudência. Havendo lei nova que extripe determinado tipo penal do ordenamento jurídico-penal, aplicála-se-á imediatamente, esteja o processo penal na fase em que estiver. Muitos doutrinadores, inclusive, admitem a aplicação da lei nova mais benéfica (lex mitio) já no período de vacatio legis, por uma questão lógica; o período de cavância da norma é criado em beneficio do cidadão, logo não faz sentido que o prejudique. Pode-se fundamentar esse raciocínio, ainda, com o art. 5º, XL, e § 1º da Constituição. Havendo abolitio criminis cessam todos os efeitos penais da sentença condenatória (se já houver sido proferida, obviamente), porém persistem os efeitos civis.

A situação de lex mitior também se resolve com facilidade. Sempre que a lei for mais benéfica ao réu, em qualquer sentido, aplicá-la-se-á. Se for anterior, opera com ultraatividade; se for posterior, retroage. CERNICCHIARO atenta para a dificuldade de se determinar com clareza em muitos casos, qual é a lei mais benéfica. O Código Penal de 1969, em seu art. 2º, § 2º, assim dispunha, sem muita utilidade: “para se reconheçer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente, cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato”. Atualmente, não temos definição de lex mitio na lei brasileira. O mesmo autor lembra que, em se tratando de diminuição da pena, aparentemente a aferição da lei mais benigna ficaria facilitada. Não é bem assim. Exemplifica o caso de mudança de uma pena de 6 (seis) a 20 (vinte) anos para uma de 4 (quatro) a 25 (vinte e cinco) anos. Defende a avaliação, no caso concreto, de qual lei será mais benéfica. Assim, se, dadas as circunstâncias do caso, o juiz tiver que aplicar a pena mínima, a lei nova será mais benéfica; já se for aplicada a pena máxima obviamente será mais benigna a lei anterior. Alguns autores, ainda, entendem que, havendo dúvida quanto à maior benignidade de uma norma ou de outra, perguntar-se-á ao réu qual lei ele prefere que sejas aplicada. Entendemos bastante razoável esse entendimento.

Ainda sobre a lex mitio, CERNICCHIARO propõe interessantíssima observação acerca do Direito italiano no tocante à lei mais benéfica inconstitucioanl. A inconstitucionalidade está no âmbito da invalidade, portanto uma norma inconstitucioanl é uma norma inválida, na modalidade nula. Sendo nula, é como se nunca tivesse existido, portanto a decretação de inconstitucionalidade produz efeitos ex tunc. Nesse caso, teoricamente seria imperiosa a aplicação da lei posterior, ainda que maléfica. A doutrina italiana propõe solução mais afeta à justiça. Conjugando o raciocínio com o art. 25, 2, da Constituição italiana, reputa aplicável a lei inconstitucional aos fatos ocorridos durante a sua vigência, aplicando-se normalmente o princípio tempus regit actum (operam os efeitos ultraativos da lei mais benéfica). É um raciocínio interessante e admissível, dede uma perspectiva da realização da segurança jurídica.

Por fim, havendo lei posterior com alguns preceitos mais benéficos e outros mais maléficos, a doutrina se divide quanto à possibilidade de retroagir apenas a parte boa da

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lei nova, ou de ultraagir somente a parte boa da lei anterior. A combinação de leis, como chamam os doutrinadores, é aceita por autores como ROGÉRIO GRECO e ASSIS TOLEDO. De fato, não podemos, por mero formalismo, deixar de beneficiar o réu. A retroatividade da lei mais benéfica já é uma medida de política criminal, pois tecnicamente a lei produz efeitos a partir de sua vigência. Que problema haveria, então, em aplicarem-se parte de uma lei e parte de outra? Trata-se de medida protetiva do acusado que condiz com os ditames da política garantista adota pelo Direito Penal brasileiro. Relata-nos GRECO, citando um acórdão de felicíssima constatação, do TACrim/SP:

Malgrado o dissenso doutrinário sobre a combinação de leis mais benignas o julgador, no caso concreto, pode e deve, em obediência aos princípios da equidade consagrados pela Constituição Suprema, selecionar parte da lei anterior e parte da lei superveniente, desde que, de qualquer modo, favoreça o agente.58

Normal Penal em Branco

Entre as leis penais, existem as normas penais em branco, que remetem o seu preceito primário a uma outra norma, externa ao direito penal. Na precisa lição de FREDERICO MARQUES, “[...] são disposições penais cujo preceito é indeterminado quando a seu conteúdo e nas quais só se fixa com precisão a parte sancionadora”. Nas palavras de ANÍBAL BRUNO,

Normas penais em branco são normas do tipo incompleto, normas em que adescrição das circunstâncias elementares do fato tem de ser completada por outradisposição legal, já existente ou futura. Neles a enunciação do tipo mantémdeliberadamente uma lacuna, que outra disposição (sic) legal virá integrar.60

As leis penais em branco podem ser homogêneas ou heterogêneas. As homogêneas são complementadas por leis cuja elaboração advém da mesma autoridade competente para a criação de normas penais (22, I, CF). As heterogêneas, simetricamente, são integradas por normas elaboradas por autoridade diversa da responsabilidade pela legiferação penal.

É exemplo de norma penal em branco o art. 269, que tipifica o crime e omissão de notificação de doença. Portaria do Ministério da Saúde será a norma regulamentadora das doenças sobre as quais o médico deve notificar, pois o tipo penal não as traz em seu preceito primário.

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Forte discução doutrinária cinge a existência de normas penais em branco. Questionam alguns autores a sua constitucionalidade por ferirem o princípio da legalidade. Se apenas a lei é fonte imediata do Direito Penal, perguntam como podem normas de terceiro escalão (portarias, regulamentos, decretos) regulamentarem questões penais? Não vê problema nas normas penais em branco CERNICCHIARO, propondo perfeito raciocínio. Para ele, “O caráter absoluto da reserva legal é entendido da seguinte maneira: somente a lei pode referir-se a outra norma, integrando-a à definição do delito ou da contravenção penal”. Em outras palavras, se é a lei penal que, por determinação própria, permite a remissão a uma norma não-penal, não há violação ao princípio da legaliade, pois a regulamentação da lei penal foi indicada por ela própria, “[...] mantendo-se intacto o princípio que confere somente à lei a origem da relevância penal”.

PRINCÍPIO DA HUMANIDADE

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS PENAS

Para que se tenha o entendimento do surgimento e evolução do princípio da humanidade da pena necessária se faz a compreensão do próprio histórico das penas em geral, pois diante de tal evolução pode-se perceber a constante humanização gradual das punições como decorrência do desenvolvimento da sociedade.

Noticia Zvirblis (2001, p.19) que as penas surgiram juntamente com a própria humanidade. Tal autor relata que em um primeiro momento punia-se as violações aos chamados totens, sendo estes objetos tidos como sagrados pelos povos primitivos e aos quais se devotavam respeito. Estas relações denominavam-se relações totêmicas, onde o infrator, ou seja, aquele que desagradasse a entidade deveria ser penalizado.

A pena imposta a tal infrator era a perda de sua vida e, segundo Bitencourt (2006, p. 36) inexistia até então qualquer noção de proporcionalidade entre infração e pena.

Verifica-se, assim, que neste primeiro momento há forte influência do sagrado, da religião, na vida em sociedade, e, por tal motivo, denominou-se esta primeira fase de aplicação das penas de fase da vingança divina. Destaca Bitencourt (2006, p. 36) que este período caracteriza-se pela necessidade de satisfação da divindade aviltada pelo transgressor e cuja pena aplicada deveria ser tão cruel quanto maior fosse o deus, servindo tal pena como forma de expiação da alma e de busca do perdão junto à divindade cultuada.

Dentre as legislações que se destacam neste período tem-se o Código de Manu da Índia, os Cinco Livros do Egito, o Livro das Cinco Penas na China, a Avesta na Pérsia, o Pentateuco em Israel e Babilônia, bem como as leis dos demais povos do oriente.

Desta fase de vingança divina evolui-se para a chamada vingança privada, onde os próprios membros da sociedade impunham suas sanções que poderia ser de banimento, caso o punido fosse do mesmo grupo dos executores da pena, ou de

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"vingança de sangue", caso o infrator pertencesse a grupo diverso, o que redundava em uma grande guerra entre os grupos (BITENCOURT, 2006, p. 36).

Diante da hipótese que se impunha até então nasce a chamada Lei de Talião que, com sua máxima "olho por olho, dente por dente", representou, a primeira manifestação de proporcionalidade e humanidade na aplicação das penas.

Tais princípios da Lei de Talião acabaram adotados pelo Código de Hamurabi da Babilônia, Êxodo dos Hebreus e na Lei das Doze Tábuas dos romanos.

Ainda dentro da fase da vingança privada observou-se alguns avanços maiores com o instituto da compensação, podendo o infrator cumprir sua punição através de uma pena pecuniária (BITENCOURT, 2006, p.37).

Surge, enfim, a chamada fase da vingança pública, fase esta em que o Estado toma para si o poder e dever e aplicar sanções e penalizar os agentes infratores. A finalidade de tal fase era a proteção do monarca soberano, informando Bitencourt (2006, p. 37) que, ainda nesta época, o poder político restava bastante influenciado pela religião, onde a vontade do monarca era a vontade de um deus, bem como que as penas aplicadas ainda restavam cruéis e desumanas.

No século XVIII, chamado século das luzes, destacava-se o movimento filosófico denominado Iluminismo, sendo tal fase de extrema importância à evolução não só das penas, mas de todo o Direito Penal. Nas palavras de Zvirblis (2001, p. 24):

"O Iluminismo foi, em Direito Penal, uma forte reação contra as penas corporais, aplicadas em larga escala, promovendo a substituição pela pena de prisão. A liberdade foi dignificada com o movimento iluminista e entendeu-se que a eficácia intimidativa e repressiva da pena só teria razão de ser se traduzisse em privação da liberdade, privação esta que deveria estar ligada ao espírito de regeneração ou de readaptação do delinqüente à vida social."

Durante o Iluminismo, tendo como ápice a Revolução Francesa é que começam a eclodir grandes e severas críticas ao regime de aplicação de penas até então praticado (BITENCOURT, 2006, p. 48). Nomes como Voltaire, Montesquieu e Rousseau defenderam a dignidade e liberdade do homem e pregando a necessidade de aplicação de uma pena proporcional ao delito praticado.

Dentre os principais autores do Iluminismo no que concerne às idéias penais destacamos Beccaria cuja obra "Dos Delitos e Das Penas" trouxe à época importante estudo propondo um novo sistema criminal a substituir o antigo, marcado pela imprecisão e desumanidade.

Apesar da obra de Beccaria não se apresentar como um tratado de idéias originais, vez que rememora as conclusões de Montesquieu, Rousseau, Voltaire e Locke, a mesma se destaca para Bitencourt (2006, p. 49) por ter sido a primeira obra a traçar um raciocínio lógico sobre um novo modelo de sistema penal, tendo o mesmo sido imprescindível na construção da reforma penal de então.

Ressalte-se que Beccaria também apresentou idéias ligadas à necessidade de humanização e racionalização das prisões, chegando a afirmar tal autor (2006), "entre as penas, e na maneira de aplicá-las proporcionalmente aos delitos, é mister, pois, escolher os meios que devem causar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável, e, ao mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado", e, ainda, que "o fim das

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penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um crime que já foi cometido".

Destacam-se, também, os ensinamentos de John Howard por sua concepção no que se trata da necessidade de humanização da pena e a recuperação do encarcerado, bem como as idéias de Jeremias Bentham pra quem a pena não deveria objetivar a imposição de sofrimento ao apenado, devendo ser aplicada de forma proporcional ao delito praticado acentuando-se a finalidade retributiva da pena (BITENCOURT, 2006).

Apresenta-se ainda relevante o entendimento de Foucault (2006, p. 31) que visualizou a necessidade de tornar mais humanas as penas aplicadas, não podendo estas servirem de afirmação do poder estatal e expiação da culpa através do sofrimento alcançado pelos suplícios. Nestes termos diz Foucault (2006, p. 31):

"O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento. [...] Além disso, o suplício faz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências. Em relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se, ou pela cicatriz que deixa no corpo, ou pela ostentação de que se acompanha, a tornar infame aquele que é sua vítima; o suplício, mesmo se tem como função "purgar" o crime, não reconcilia; traça em torno, ou melhor, sobre o próprio corpo do condenado sinais que não devem se apagar; a memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente constatados. [...]. O suplício penal não corresponde a qualquer punição

corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle. Nos "excessos" dos suplícios, se investe toda a economia do poder."

2 CONCEITO

O princípio da humanidade da pena caracteriza-se pela presença tanto uma vertente positiva como uma vertente negativa.

A vertente negativa caracteriza-se pela presença de proibições que se apresentam nas vedações constitucionais da pena de morte, de penas perpétuas, indignas ou desumanas. Já a vertente positiva caracteriza-se pela proteção da dignidade da pessoa humana em especial daquele que se encontra no cárcere.

Neste sentido temos o posicionamento de Franco (2005, p. 64):

"Assim, o princípio da humanidade da pena, na Constituição brasileira de 1988, encontrou formas de expressão em normas proibitivas tendentes a obstar a formação de um ordenamento penal de terror e em normas asseguradoras de direitos de presos ou de

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condenados, objetivando tornar as penas compatíveis com a condição humana. [...]

O princípio da humanidade da pena implica, portanto, não apenas na proposta negativa caracterizadora de proibições, mas também, e principalmente, na proposta positiva, de respeito à dignidade da pessoa humana, embora presa ou condenada."

O princípio da humanidade da pena encontra aplicação em um dos objetivos da execução penal que é a ressocialização. A presença de tal princípio no ideal ressocializador se apresenta na aplicação dos princípios da atenuação ou compensação e no princípio do nihil nocere.

O princípio da atenuação ou compensação caracteriza-se pela impossibilidade da pena privativa de liberdade resumir-se ao isolamento total do preso, devendo ser proporcionado a este medidas compensatórias ao encarceramento como forma de estimular a sua efetiva ressocialização.

Já o princípio do nihil nocere compreende a idéia de que os riscos da dessocialização deverão ser evitados através de um sistema prisional que não contribua para a produção de tais efeitos. Neste sentido:

"Daí a razão pela qual o modelo ressocializador não dispensa, na atualidade, um programa básico, um mínimo ético que deve estar fundamentado em dois vetores: o princípio de atenuação ou compensação e o princípio do nihil nocere. E o que significa cada um desses princípios? O princípio da atenuação ou compensação tem seu núcleo essencial na idéia de que o cumprimento da pena na prisão não deve resumir-se exclusivamente no trancafiamento de uma pessoa em estabelecimento prisional para o efeito de ser submetida a normas de segurança e de disciplina. Ao afastamento obrigatório do recluso da vida em liberdade devem corresponder compensações que visem estimulá-lo ao exercício de direitos não atingidos pela condenação, atenuando, assim, os efeitos desse afastamento e possibilitando promoção de um processo de gradual reintegração social. Já o princípio do nihil nocere fundamenta-se na idéia de que os efeitos deletérios da internação forçada devem ser evitados através de um procedimento prisional que reduza significativamente o perigo da dessocialização." (FRANCO, 2005, p. 65)

O princípio da humanidade relaciona-se a um chamado mínimo ético que se mostra impositivo em se tratando da Execução Penal. Exemplifica o referido autor a necessidade do referido mínimo quando da proibição de pena cumprida em regime integralmente fechado, isto sob pena da sanção de prisão apresentar unicamente a função retributiva. Neste sentido:

"O princípio da humanidade da pena importa, portanto, no acolhimento de um sistema progressivo de cumprimento de pena, através do qual se possibilite ao condenado, por meio de etapas, e ainda, em razão de seu mérito, alcançar a liberdade. Assim, um texto legal que proscreva toda e qualquer progressividade no cumprimento da pena privativa de liberdade, deixando o recluso subordinado unicamente ao regime forçado, num estabelecimento prisional de segurança máxima, tem, assim, um significado claro e preciso:

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transforma a finalidade da pena numa resposta estatal que paga o mal causado com outro mal, de igual ou superior intensidade, dela eliminando não apenas qualquer intento ressocializador (que pode ter expressão até na evitação de um processo dessocializador), mas também o "mínimo ético" que é exigível na execução penal." (FRANCO, 2005, p. 65).

Já Nucci (2006, p. 48) entende que o princípio da humanidade: "Significa que o direito penal deve pautar-se pela benevolência, garantindo o bem-estar da coletividade, incluindo-se o dos condenados. Estes não devem ser excluídos da sociedade, somente porque infringiram a norma penal, tratados como se não fossem seres humanos, mas animais ou coisas. Por isso estipula a constituição que não haverá penas: a) de morte (exceção feita à época de guerra declarada, conforme previsão do código Penal Militar); b) de caráter perpétuo; c de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis (art. 5º, XLVII), bem como que deverá ser assegurado o respeito à integridade física e moral do preso (art. 5°, XLIX). Na realidade, houve, em nosso entendimento, um desvio na redação desse inciso. O que a constituição proíbe são as penas cruéis (gênero), do qual são espécies as demais (morte, perpétua, trabalhos forçados, banimento). E faltou, dentre as específicas, descrever as penas de castigos corporais. Logo a alínea e é o gênero (penas cruéis); as demais representam as espécies."

O princípio da humanidade da pena significa aquele ligado à proibição da tortura, tratamento cruel, degradante, bem como o respeito à integridade física do detento, caracterizando-se, ainda, como referencial para a aplicação de qualquer sanção penal que interfira em direitos fundamentais da pessoa sendo, assim, característica essencial das penas. Neste sentido:

"A respeito desse princípio já tivemos oportunidade de sublinhar o seguinte: a humanização constitui certamente uma das características fundamentais das penas e da Política Criminal nos últimos três séculos. Estamos longe ainda de alcançar o sistema ideal, é dizer, um sistema penal e penitenciário totalmente humanizado, mas é inegável o progresso obtido. O Iluminismo com Beccaria à frente e seus contemporâneos ou sucessores imediatos (Lardizábal, Bentham etc), combateram vigorosamente a crueldade das penas do direito Penal do "Antigo Regime" (direito medieval), que se baseava na utilização massiva da pena de morte e das penas corporais, destacando-se a tortura, açoites, mutilações etc." (GOMES, MOLINA E BIANCHINI, 2008, p.550)

Deve-se ater, ainda, que o princípio da humanidade não consiste unicamente em proibir certas espécies punitivas, mas vir também a controlar o modo de execução das penas admitidas no ordenamento jurídico-penal. É nesse sentido que se manifestam Queiroz e Melhor (2006, p. 26) acerca da incidência do princípio da humanidade na Execução Penal:

"Disso também resulta que as penas constitucionalmente admitidas, em especial as privativas de liberdade, hão de ser executadas condignamente, em condições mínimas de higiene, salubridade etc., assegurando-se o livre exercício dos direitos não atingidos pela privação da liberdade, sob pena de se tornarem inconstitucionais na sua execução, por degradarem a condição humana, inviabilizando a reintegração social do cidadão infrator (Lei n. 7.210/84, art. 41)."

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3 FUNDAMENTO JURÍDICO

Verifica-se que o princípio da humanidade da pena, conforme sua própria conceituação, deriva de um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, qual seja, a dignidade da pessoa humana.

Prevista no artigo 1º, III da Constituição Federal a dignidade da pessoa humana classifica-se como um princípio relativo ao regime político e caracteriza-se como um valor supremo que abrange todos os direitos fundamentais do homem, desde o seu direito primário à vida.

Tal princípio deve incidir não só em relação aos direitos fundamentais da pessoa, mas sim deverá incidir sobre as demais disposições da Constituição Federal, tais como direitos sociais e ordem econômica, vez que apresenta-se como base de garantia da própria existência humana. Neste sentido:

"Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. "Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir 'teoria do núcleo da personalidade' individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana"." (Grifos do autor) (SILVA, 2002, p. 105)

A noção de dignidade humana surge para Camargo (2008) em razão de duas grandes correntes: o pensamento cristão e a filosofia de Kant.

Junto ao pensamento cristão, a noção de dignidade humana surge a partir do entendimento de que pelo fato do ser humano ser criado a imagem e semelhança de Deus, e por sua existência ser obra deste ser divino, deve, portanto, possuir uma vida com dignidade.

Já na filosofia de Kant, observa-se à época do Iluminismo a chamada racionalização ou laicização da idéia de dignidade humana, abandonando-se os ideais do pensamento cristão e adentrando-se em uma visão antropocentrista de mundo.

É com Kant que a dignidade humana encontra sua base filosófica fundamental, afirmando o mesmo em sua obra "Fundamentação da Metafísica dos Costumes" que o homem é digno de respeito, vez que este é um fim em si mesmo, ressaltando, ainda, como fundamento da dignidade do homem a autonomia da vontade (CAMARGO, 2008, p. 210).

A dignidade da pessoa humana apresenta-se, ainda, como um atributo sob o qual se fundamentam todos os direitos fundamentais, não se mostrando para Camargo (2008) como um direito fundamental propriamente dito. Ressalte-se que a proteção da dignidade humana ganhou maior relevo após a Segunda Guerra Mundial tendo em vista as terríveis práticas empregadas pelos regimes nazista e facista.

Pelo princípio da dignidade humana o homem passa a se constituir como o objetivo supremo de todo o ordenamento jurídico, impondo-se ao poder público os deveres de observar, proteger e promover a dignidade humana. Neste sentido: "Observar significa que os poderes públicos não poderão realizar atividades prejudiciais à dignidade ("obrigação de abstenção"); proteger implica uma ação positiva por parte desses poderes no sentido de defender a dignidade contra qualquer espécie de violação, sendo que esta ação positiva não consiste em uma proteção em

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face da necessidade material, mas sim uma intervenção frente a atuação de terceiros que possam violá-la; e, promover consiste em proporcionar - aqui sim, através de prestações materiais positivas - os meios indispensáveis para que todos tenham acesso às condições necessárias para vida digna." (Grifos do autor) (CAMARGO, 2008, p. 207).

"Uma das conseqüências da consagração da dignidade humana no texto constitucional é o reconhecimento de que a pessoa não é simplesmente um reflexo da ordem jurídica, mas, ao contrário, deve constituir o seu objetivo supremo, sendo que na relação entre indivíduo e o Estado deve haver sempre uma presunção a favor de ser humano e de sua personalidade, vez que o Estado existe para o homem e não o homem para o Estado.

A consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro impõe não só o reconhecimento de que o individuo deve servir de "limite e fundamento do domínio político da República", mas também a necessidade da observância desse valor como elemento informador do conteúdo da Constituição e de todo o ordenamento jurídico, o que significa dizer que na criação, interpretação e aplicação das normas deve-se buscar sempre a promoção das condições e a remoção dos obstáculos para que a dignidade seja respeitada." (Grifos do autor) (CAMARGO, 2008, p. 206).

Apesar de não haver um conceito exato do que seja dignidade da pessoa humana, tem-se clara a idéia de que quando o mesmo se mostra violado, ou seja, quando o ser humano deixa de ser um fim para mostrar-se como meio para alcançar determinado objetivo, tal concepção possui uma idéia negativa de não violação da dignidade, seja por parte do Estado, seja por parte do particular (CAMARGO, 2008, p. 212).

Outra vertente apresenta uma idéia que para Camargo (2008, p. 213) se mostra num comportamento positivo por parte do Estado e trata da concepção do mínimo existencial, ou seja, que o poder público não só deve se abster da prática de atos violadores da dignidade humana, mas também deve conceder as prestações materiais indispensáveis a uma existência digna (direitos sociais, por exemplo).

No mesmo sentido merece destaque o posicionamento de Gomes, Molina e Bianchini (2008, p. 544):

"Não existe liberdade onde o ser humano deixa de ser pessoa e é transformado em coisa. O respeito à dignidade da pessoa humana implica para o Estado não só a abstenção da prática de atos lesivos, como também o cumprimento de pautas positivas de inclusão."

4 PREVISÃO NORMATIVA

Em um primeiro momento insta salientar que o princípio da humanidade da pena encontra assento não só na Constituição Federal, mas também junto a tratados internacionais e à Lei de Execução Penal.

Em sede da Constituição Federal, o princípio da humanidade da pena encontra assento no artigo 4°, II, onde se fixa o princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais da República Federativa do Brasil, in verbis:

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"Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - [...]; II - prevalência dos direitos humanos;"

Verifica-se ainda na Constituição Federal a consagração do princípio da humanidade da pena dentre os direitos fundamentais da pessoa, em disposições do artigo 5° nos incisos III, XLV, XLVI, XLVII, XLVIII e XLIX: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; [...] XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido; XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis; XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;"

No que se refere ao previsto no inciso XLVII, observa-se que o constituinte proibiu expressamente as penas de morte, de trabalhos forçados, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e as cruéis.

Em tais proibições percebe-se que este buscou o resguardo não só do princípio da humanidade da pena, mas também do princípio da dignidade da pessoa humana.

A pena de morte, permitida apenas em caso de guerra declarada e nos casos específicos do Código Penal Militar, e a de caráter perpétuo, são vedadas justamente por suprimirem os direitos fundamentais à vida e à liberdade, respectivamente.

Quanto à pena privativa de liberdade, prevista no artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal, ao contrário da prisão perpétua, não se trata de supressão da liberdade do indivíduo de forma permanente, mas de sua restrição temporária, verificado o limite de trinta anos previsto no art. 75 do Código Penal Brasileiro, sendo, portanto admitida sua aplicação, desde que respeitada tal garantia.

Quanto à vedação da pena de trabalhos forçados, esta deve ser entendida como aquela que proíbe a obrigação do condenado a um trabalho exaustivo, humilhante e que traga prejuízo à sua saúde física ou mental. Não deve tal espécie de pena ser confundida com os dispositivos da Lei de Execução Penal, quais sejam os artigos 28, 31 e 39, V,

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que prevêem a obrigatoriedade do trabalho do preso, com finalidade educativa e produtiva.

Já a pena de banimento consiste, nas palavras de Greco (2006, p. 91), em "uma medida de política criminal que consistia na expulsão do território nacional de quem atentasse contra a ordem política interna ou a forma de governo estabelecida".

Sua vedação visa, pois, preservar o direito à nacionalidade e à permanência no território nacional, ao teor do que prevê o artigo 5º, XV da Constituição Federal que prevê que "é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens".

Por fim, no que concerne às penas cruéis, podem assim ser consideradas todas as penas que submetem o condenado a tratamento desumano ou degradante ou a sofrimento excessivo, como, por exemplo, mutilações, castração, tortura, humilhação, maus-tratos, ou ainda, aquelas que impossibilitem a sua reinserção social, a exemplo do isolamento por período excessivo, na qual se inclui o regime disciplinar diferenciado.

Em verdade, todas as penas elencadas no inciso XLVII do art. 5º da CF se tratam de penas cruéis vez que promovem tratamento desumano ao condenado ou obstam a sua ressocialização. Nesse sentido, bem explica Nucci (2006, p. 48) que: "Na realidade, houve, em nosso entendimento, um desvio na redação desse inciso. O que a Constituição proíbe são as penas cruéis (gênero), do qual são espécies as demais (morte, perpétua, trabalhos forçados, banimento)".

Segundo Gomes, Molina e Bianchini (2008, p. 544) estaria previsto no inciso XLVII do artigo 5º da Constituição Federal não o princípio da humanidade da pena, mas sim o denominado princípio da proibição da pena indigna, vez que no referido inciso se encontram vedadas as penas cruéis que, em razão de sua indignidade, acabam violando o princípio da humanidade da pena bem como a dignidade humana, informando referidos autores que:

"A própria Constituição Federal em seu art. 5°, XLVII, manifestando clara preocupação coma humanização das penas, assim como com o particular aspecto da sua indignidade, cuidou da proibição de várias delas. São vedadas no Brasil: (a) a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; (b) de caratês perpétuo; (c) de trabalhos forçados; (d) de banimento; (e) cruéis. Nesse último item incluem-se as penas corporais, que também estão proscritas. Algumas penas desse elenco violam mais diretamente o princípio da humanização das penas (v.g.: penas cruéis, pena de morte), de qualquer modo, não há dúvida que sempre e também é afetada a dignidade humana."

No inciso XLVIII verifica-se seu conteúdo como reflexo do princípio da humanidade da pena, na medida em que prevê a individualização da sanção penal e seu cumprimento em estabelecimentos adequados de acordo com as características pessoais do apenado, bem como seu sexo.

Já os incisos III e XLIX de forma extremamente direta prevêem o direito do encarcerado ao respeito à sua integridade física e moral, refletindo esta previsão em dever do Estado na preservação de tal direito tido como inalienável e indisponível, vez que o constituinte:

"Impôs também normas de garantia aos presos, condenados ou provisórios assegurando direitos inalienáveis e indisponíveis aos quais o Estado não pode restringir,

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pois versam sobre a integridade física e moral daquele sujeito temporariamente limitado em sua liberdade de ir e vir (art. 5o., XLIX)." (VIEIRA, 2008, p. 30)

No campo do Direito Internacional o princípio da humanidade da pena encontra guarida em diversos tratados internacionais, estes mencionados por Gomes e Mazzuoli (2008) e Souza (2008).

Destaque-se, primeiramente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, celebrada pela Resolução nº 217 durante a 3ª Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em Paris, França, na data de 10-12-1948, e tida por Gomes e Mazzuoli (2008, p. 36) como a base internacional do princípio da humanidade da pena. Tal princípio encontra previsão no artigo 5º da referida declaração que prediz: "ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante".

Já o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16-12-1966, prevê a humanidade da pena em seu artigo 7° e 10, itens 1 e 3, dispondo que:

"Art. 7º Ninguém poderá ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. 1. Toda pessoa privada da sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana; [...]

3. O regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo objetivo principal seja a reabilitação moral dos prisioneiros."

Já a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (aprovada em 22-11-1969, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n° 27 de 25-09-1992 e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 678 de 06-11-1992), mais conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, resguarda o princípio da humanidade da pena em seu artigo 5º, itens 1 e 2, in verbis:. "Art. 5° Direito à integridade pessoal. 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano."

Observa-se, ainda, a Resolução 45/110 da Assembléia Geral das Nações Unidas, denominada Regras de Tóquio, que prevê na regra 6.2 o dever de respeito à humanidade quando da aplicação de prisão cautelar.

Verifica-se, ainda, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, adotada em 09-12-1985, no XV Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, em Cartagena das Índias (Colômbia) e ratificada pelo Brasil em 20-07-1989, que prevê em seu artigo 2º: "Artigo 2º - Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica."

Já em se tratando das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, Resolução nº 14 de 11-11-1994, as mesmas prevêem em seus artigos 31 e 32 que:

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"31. Serão absolutamente proibidos como punições por faltas disciplinares os castigos corporais, a detenção em cela escura, e todas as penas cruéis, desumanas ou degradantes. 32. 1) As penas de isolamento e de redução de alimentação não deverão nunca ser aplicadas, a menos que o médico tenha examinado o preso e certificado por escrito que ele está apto para as suportar. 2) O mesmo se aplicará a outra qualquer punição que possa ser prejudicial à saúde física ou mental de um preso. Em nenhum caso deverá tal punição contrariar ou divergir do princípio estabelecido na regra 31. 3) O médico visitará diariamente presos sujeitos a tais punições e aconselhará o diretor, se considerar necessário terminar ou alterar a punição por razões de saúde física ou mental." Em se tratando da previsão do princípio da humanidade da pena em sede da Lei de Execução Penal observa-se o mesmo presente nos seguintes artigos, dentre outros: "Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado. ...] Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. Art. 11. A assistência será: I - material; II - à saúde; III -jurídica; IV - educacional; V - social; VI - religiosa. [...] Art. 40 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios. [...] Art. 45. Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar. § 1º As sanções não poderão colocar em perigo a integridade física e moral do condenado. § 2º É vedado o emprego de cela escura. [...] Art. 83. O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva. [...] Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados)."

Observa-se dos artigos antecedentes que a Lei de Execução Penal em seus dispositivos garante aos presos, sejam provisórios ou definitivos, o respeito a sua integridade física e moral, operacionalizando tais garantias através da imposição de

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condições de salubridade no ambiente carcerário, bem como de assistência em diversas áreas destinadas à sua ressocialização, tais como a saúde, trabalho e educação.

Em seu artigo 40 a Lei de Execução Penal apresenta-se em sintonia com o artigo 5°, XLIX da Constituição Federal, e dada a relevância de tais dispositivos, que a Lei nº 9.455/1997 tipifica como crime a submissão de pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal, bem como aquele que se omite em face dessas condutas quando tinha o dever de apurá-las (art. 1º, §§ 1º e 2º), in verbis: "Art. 1º Constitui crime de tortura: [...] § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. § 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos."

Assim, o tratamento dado à pessoa presa, seja provisoriamente ou em definitivo, deve ser condizente com a sua condição de pessoa humana, devendo o cumprimento da prisão se dar com o mínimo de condições de salubridade, higiene, respeitando-se todos os direitos não atingidos pela condenação, bem como aqueles previstos no artigo 41 da Lei de Execução Penal, quais sejam: "Art. 41 - Constituem direitos do preso: I - alimentação suficiente e vestuário; II - atribuição de trabalho e sua remuneração; III - Previdência Social; IV - constituição de pecúlio; V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado; X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; XI - chamamento nominal; XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento; XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes. XVI - atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente. (Incluído pela Lei nº 10.713, de 13.8.2003)"

Deve-se considerar, ainda, as palavras de Mirabete (2004, p. 135): "Estão assim proibidas todas as sanções disciplinares que impliquem castigos físicos, redução de água, alimentação ou vestuário, isolamento em celas insalubres, sem iluminação ou aeração etc. Não se podem, a pretexto de execução de uma das sanções disciplinares previstas, como a de suspensão ou restrição de direitos ou de isolamento e de inclusão no regime disciplinar diferenciado, aplicar métodos ou meios que levem a esses efeitos desumanos ou degradantes. A infração a essa regra pelas autoridades constituirá, sem dúvida, crime de abuso de autoridade (arts. 3º e 4º da Lei nº 4.898, de 9-12-65)."

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Assim, no que concerne à disciplina carcerária, não poderia se operar de maneira diferente, dispondo o artigo 45, §1º da Lei de Execuções Penais que "as sanções não poderão colocar em perigo a integridade física e moral do condenado". Pela mesma razão também é vedado pelo artigo 45, § 2º da Lei de Execução Penal o emprego de cela escura, como forma de sanção disciplinar, em face do evidente prejuízo que tal medida causa à saúde física e, especialmente, mental do preso.

Desta feita, mesmo que em cumprimento de sanção disciplinar, também deve o preso faltoso ver preservada a sua dignidade, sob pena de violação do princípio da humanidade da pena.

Princípio da Culpabilidade

O Estado deve organizar o seu Direito Penal com base em princípios modernos, mesmo que venha enfrentar a tarefa de estabelecer os requisitos e limites da responsabilidade individual em razão de condutas antijurídicas e ameaçadas com penas. Cabe ao legislador fixar a imputa9ao penal de acordo com a qualidade moral da conduta humana, estabelecendo o principio da culpabilidade como base fundamental da responsabilidade individual.

Culpabilidade no sentido lato, é da responsabilidade do autor do ato ilícito que fez. O julgamento de culpa expresa a consequências ilegal (Unrechtsfolge), que traz o ato cometido e é atribuída à pessoa do infrator "

O Direito Penal não pode ser tido como uma mera ciência de proteção de interesses objetivos e formais. Muito pelo contrário, o Direito Penal não e apenas um catálogo de crimes e penas, mas sim e substancialmente o sustentáculo da ordem e garantia dos princípios fundamentais da vida organizada e para que o Direito Penal consiga cumprir sua relevante finalidade social, suas normas deverão ser sentidas, isto e, mais que compreendidas. A culpabilidade se apresenta como exigência da sociedade e da comunidade jurídica, não e um fenômeno individual, mas social. E através do juízo de culpabilidade que se examina a reprovação do indivíduo que não haja observado as exigências gerais. o conceito de culpabilidade e um conceito social e jurídico, pois a sua construção se da conforme os requisitos da vida social, dependendo, muitas vezes, da situação econômica, dos fundamentos socioeconômicos, enfim, das mínimas exigências sociais de cada época. Se ha transformações, certamente o conteúdo da culpabilidade sofrera alterações,. denominando-se "a medida do juízo de culpabilidade".

No campo do ilícito, censurar, reprovar, não é função nem do legislador, nem do juiz. A lei não determina os elementos pelos os quais uma conduta se torna reprovável, porque com isso não diria nada de juridicamente eficiente. A sua função essencial é, ao

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invés, a de esclarecer os coeficientes na base dos quais a conduta produz determinadas conseqiiencias jurídicas. Igualmente, no caso concreto, o juiz não é chamado a estabelecer a reprovabilidade de um determinado comportamento, mas, apenas, a determinar se neles estão presentes, segundo a previsão da lei, os coeficientes que o tomam apto a produzir aquelas conseqiiencias. A culpabilidade, como reprovabilidade pessoal, e ainda vista como um conceito formal, não indicando qual será, efetivamente, 0 fundamento dessa reprovabilidade.

"O direito penal liberal concebe uma sociedade de homens que elegem sua vida, que existem e a os que se lhe proíbem certos atos, cuja realização é a única que justifica o

exercício do poder punitivo na estrita medida da imputação objetiva e subjetiva do ato. As distintas versões do direito penal autoritário concebem a sociedade como uma

estrutura de homens que só podem eleger sua vida - existir dentro do marco das operações que lhes permite uma superposição que e de caroter social e aos que se the

proibem todas as demais formas de vida ou eleir;oes existenciais, sendo os atos proibidos meros sintomas destas eleir;oes ou formas de viver, de existir ou de ser

proibidas".

Em efeito, toda pessoa é e se explica por seu berço sociocultural em que se ha formado. É preciso então indagar e conhecer o meio onde ha vivido e crescido, os princípios, ideias, normas e valores que lhe informam e de todo o grupo em que participa o individuo, razão pela qual pode-se entender ou explicar a sua conduta. Sem duvida, uma vez conseguido o perfil sociocultural, é possível chegar a conhecer e dimensionar o individuo, embora não seja a conc1usão única e exc1usiva sobre o agente.

No âmbito de muitos países, reconhece-se em geral a vigência do chamado principio da culpabilidade. Esse principio, original e essencialmente, proclama a responsabilidade penal pessoal, frente a coletiva, e a proscrição da responsabilidade penal objetiva, em razão da exigência do dolo e da culpa logo no exame do comportamento humano. Alem disso, o principio da culpabilidade é também a segurança de uma pena justa, proporcional a culpabilidade pessoal do autor do delito, frente as penas excessivas, desproporcionadas a gravidade do fato ou reprovação moral que o autor do mesmo esteja a merecer.

Na realidade, o principio da culpabilidade, como fundamento do Direito Penal moderno, não pode admitir penas que não se considerem merecidas, não podem exercer uma influencia positiva, nem sobre o condenado, nem sobre a coletividade e, portanto, no podem lograr nem a prevenção geral nem a especial. Na pratica judicial, só o principio da culpabilidade pode aplicar-se como principio de medição das penas, e estas, por sua vez, visem a correção do agente, só lhe podendo imputar culpavelmente a violação da norma, se o mesmo agente, através da pena aplicada, puder ser corrigido.

A medida da culpabilidade significa o limite superior da pena, fixando uma barreira a faculdade de intervenção estatal, protegendo o delinqiiente, impedindo uma ingerência mais severa em sua liberdade pessoal, por razoes preventivas, que o limite a

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que corresponda a sua culpabilidade. Figueiredo Dias defende a culpabilidade, e aqui reafirma ser mérito de Roxin, como uma "função limitadora do intervencionismo estatal, visando defender a pessoa do agente de excessos e arbitrariedades que pudessem ser desejados e praticados pelo poder do Estado".

É oportuno frisar que a culpabilidade, segundo a visão política criminal atual, não deve ser tida como o pressuposto isolado de aplicação da pena. Ha outros princípios também importantes, como o da intervenção mínima, defensor da inaplicabilidade da pena ante a inexistência da reprovabilidade intensa da conduta ou delitos de escassa lesividade social.

O principio da culpabilidade marca a oposição a uma responsabilidade pelo resultado referida exclusivamente a imputação de fatos objetivos. Afirma-se que a imputação do ilícito a uma pessoa só é procedente se houver a vinculação individual com o ilícito realizado através da possibilidade de reconhecer a contrariedade a norma de seu comportamento e de motivar-se conforme a ela.

A prevenção necessária há de encontrar o limite democrático da igualdade real ante a lei. Esse limite impede tratar aquele que se acha em situação de inferioridade ante a norma penal por razão de uma causa que exclui sua motivabilidade normal, do mesmo modo que os sujeitos que atuam normalmente.

Jakobs evidencia que a culpabilidade resulta de uma imputação de reprovação, produzida pela vontade defeituosa do individuo, tanto que o Tribunal Constitucional Federal Alemão tem o principio da culpabilidade não só resultante "dos princípios gerais do Estado de Direito material, senão ademais especificamente da obrigação de respeitar a dignidade humana".

Mir Puig, nesse sentido, tem que o principio da culpabilidade se funda no principio da dignidade humana, resultado de um Estado democrático que respeita o individuo. A dignidade humana "exige e oferece ao individuo a possibilidade de evitar a pena comportando-se segundo o Direito".

O principio da culpabilidade e uma exigência do respeito à dignidade humana do individuo. A imposição de uma pena sem culpabilidade, ou se a medida da pena extrapola o grau de culpabilidade, supõe a utilização do ser humano como um mero instrumento para a consecução de fins sociais, neste caso preventivamente, o qual implica um grave atentando à sua dignidade. A liberdade, como característica da pessoa, e o pressuposto irrenunciável de toda a culpa juridico-penal e do modelo politico-criminal próprio de um Estado de Direito Democrático. Só assim se pode falar da dignidade pessoal com o valor mais alto e o bem mais digno de proteção de toda a ordem jurídica constitucional.

O conceito de culpabilidade ha de ser coerente com o conceito de ser humano que inspira a nossa Constituição. Um Estado Democrático de Direito consagrado em nossa Carta se baseia, sem duvida, na concepção do homem como pessoa, como ser responsável, como um ser capaz de autodeterminação conforme critérios normativos.

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"O Estado democrático, voltado à proteção da dignidade humana e orientado no sentido da proteção ao pluralismo político, deve ser entendido juridicarnente como um

Estado garantidor e incrementador tano das liberdades individuais e das características diversificadas de cada um de seus cidadãos, quanto da realização integral das potencialidades humanas e de sua concreta execução dentro de uma

política de integração e de participação".

Dai, portanto, Jescheck se posiciona contrariamente ao Direito Penal funcional, corrente doutrinal alemã que acredita na prescindibilidade do principio da culpabilidade, pois nesse não há lugar para o principio da culpabilidade, substituindo-o pela necessidade preventivo-geral de pena, a qual deve ser imposta com o fim de manter a confiança da provação no Direito e de ordem publica. Segundo Jescheck "O principio da culpabilidade serve também como uma proteção necessária do cidadão contra qualquer excesso na intervenção repressiva do Estado e se preocupa de que a pena quede limitada estritamente a condutas que merecem um juízo de desvalor etico-social".

A culpabilidade na determinação da pena consiste na totalidade de pressupostos subjetivos da punibilidade e na responsabilidade do autor pelo injusto culpável cometido, assim como pelo seu comportamento prévio e posterior ao fato, junto com o conjunto dos fatores dos quais se deriva o grau de reprovabilidade do fato para a determinação da pena. A sentença penal não condena a integridade da pessoa, mas o individuo que agiu num momento critico da sua vida. Pune-se o culpado pelo seu ato e não o homem falível atrás da sua infração. É censurabilidade do fato, que exprime uma contradição entre a vontade do agente da vontade da norma penal. É expressão de indisciplina social, de rebeldia. A culpabilidade e o resultado de uma censura ao agente, porque seu comportamento externo é a revelação de sua personalidade, a revelação de seu psiquismo. Essa revelação ontem mercê da analise da personalidade do sujeito, de sua normalidade psíquica, da qualidade dos motivos, de sua força determinadora das circunstancias em que a decisão foi tomada. Sobre a culpabilidade, diz Assis Toledo que "age culpavelmente aquele que, numa situação dada, submete-se a estímulos. e impulsos orientados para o crime, deixando de opor-lhes suficientemente os meios de resistência de que dispunha, adquiridos no aprendizado da existencia comunitaria".

Para Jakobs, falar em culpabilidade e pressupor normas legitimas e exemplifica: "se todos os bens vitais estão concentrados em mãos de algumas poucas pessoas, pode que o ordenamento jurídico garantisse aos demais o direito de propriedade sobre sua própria pessoa e o direito de adquirir a propriedade de bens, mas como todos os meios de subsistência de fato se encontram em mãos alheias, aqueles que não tem nada mais que seu próprio corpo dificilmente poderiam aceitar essa ordem como ordem do geral; a mera existência de uma personalidade abstrata é demasiado pouco para que assim o façam".

A culpabilidade, concluindo, como principio da dignidade da pessoa humana, efetivamente, proclama a responsabilidade penal pessoal, frente a coletiva, inadmitindo a responsabilidade penal objetiva, em virtude da exigência do dolo e da culpa logo no exame da ação humana. Alem disso, o principio da culpabilidade e também a segurança de uma pena justa, proporcional a culpabilidade pessoal do autor do delito, frente as

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penas excessivas, desproporcionadas a gravidade do fato ou reprovação moral que o autor do mesmo esteja a merecer.

Seguem-se alguns tipos de Princípios da Culpabilidade

Das concepções: psicológica e normativa

A divisão clássica da culpabilidade – efetuada pela doutrina – é a das concepções: psicológica e normativa. A concepção dominante nas ciências penais, durante longo tempo, fora a psicológica.

Tal concepção surge quando a doutrina volta seus estudos para o campo subjetivo da ciência penal, numa análise dúplice de dolo e culpa. É a visão de buscar uma ligação existente entre o fato ocorrido e o agente, é a chamada verificação do previsto ou do querido, ou ainda, do não querido podendo ser previsto ou previsível, apresentando-se como querido apenas a conduta praticada pelo agente.

Daí o magistério de BETTIOL acerca da concepção psicológica da culpabilidade, "(...) se Fulano previu e quis a morte de Beltrano como consequência da própria ação ou omissão, afirma-se que há dolo; ao passo que se Fulano quis apenas a conduta da qual derivou a morte de Beltrano, prevista ou previsível, diz-se que há culpa. Portanto, o liame psicológico que une um evento ao sujeito agente pode ser doloso ou culposo: doloso quando foi previsto e querido; culposo quando o evento, não querido, é previsto ou ao menos era previsível. A concepção psicológica da culpabilidade fundamenta-se pois sobre um vinculo de caráter subjetivo que relaciona o fato ao seu autor, nos limites respectivos do dolo ou da culpa”.

No entanto, surge a concepção normativa da culpabilidade, que objetiva uma análise recheada por alguns outros elementos que não apenas o do liame psicológico. A concepção normativa não se divorcia do vinculo psicológico como alguns autores – buscando sua eliminação – procuram dar a entender em seus escritos. Não quer também significar que a concepção normativa procure efetivar uma associação entre o liame psicológico com o caráter normativo de exigência da norma penal. A norma penal tem a sua exigência de valoração por essência, pois, o direito penal é um sistema de proteção bens valorados. O que ocorre na concepção normativa da culpabilidade, é que o vinculo psicológico continua a existir e de forma objetiva, no entanto, sua valoração vai ser determinada pela norma penal, no âmbito de uma hierarquia presente nesse sistema de valores.

O que a concepção normativa da culpabilidade descobriu, é que a culpabilidade é um juízo de reprovação, é uma situação de antítese entre vontade do agente e o preceito determinado pela normal penal. "Ela é o resultado da filosofia dos valores no campo do direito penal, daquela filosofia que, contrapondo o fato ao valor, não podia, numa ciência valorativa como a jurídico-penal, manter-se, a propósito da culpabilidade, atada a uma concepção psicológica e, portanto, naturalística. Não é o nexo psicológico como tal, mas a valoração deste nexo em relação às exigências de uma norma, que dá significado à doutrina da culpabilidade”.

O conceito normativo de culpabilidade fornecido por BETTIOL é no sentido de que "podemos, pois, definir a culpabilidade, sob o prisma normativo, como ‘um juízo de reprovação pessoal pela prática de um fato lesivo a um interesse penalmente protegido’. Os elementos sobre os quais o juízo se baseia são a capacidade de entender e de querer,

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a voluntariedade do fato nos limites respectivos do dolo e da culpa e a possibilidade de uma motivação normal da vontade”.

O que não pode ser esquecido é que a origem remota da culpabilidade e responsabilidade pressupõe o homem como ente livre e auto-determinável para o exercício de suas ações, é vislumbrar que o "objeto da censura de culpabilidade é a defeituosa posição do autor para com as exigências de conduta da ordem jurídica, manifestada no fato antijurídico".

WESSELS procura efetuar uma purificação na sua elaboração de conceito normativo da culpabilidade, afirmando que não existe uma reprovação de caráter moral ou social, as reprovações existentes não determinadas pela norma penal. Diz ele que, "culpabilidade em sentido jurídico-penal, por outro lado, é culpabilidade jurídica, não culpabilidade moral ou social. Decisivas para a censura de culpabilidade são apenas as representações de valor da ordem jurídica (...) A teoria normativa, fundada por FRANK, vê a essência da culpabilidade da culpabilidade na censurabilidade da formação da vontade, portanto, na valoração normativa de uma relação de fato psíquica".

Para GRECO FILHO, o que ocorre é uma mistura entre as concepções, efetuada pela doutrina, entende se tratar de um problema terminológico, chega a criticar a doutrina de BETTIOL por não levar em consideração as presunções e os indícios presentes no Direito Penal. "A presunção existe em direito penal material, dizer que não pode ter presunção é retrocesso". Para o representante das arcadas a imputação subjetiva vai depender de uma tríplice exigência que é: o dolo, a culpa e os aspectos de reprovação. Elabora toda uma teoria para a construção da culpabilidade no Direito Penal, que consiste – de forma simplificada – no seguinte: fato; consequência jurídica; regra técnica, regras da experiência; provas direta e indireta, e a prova prima face.

As inovações presentes na teoria de GRECO FILHO se apresentam em dois apontamentos, que são: nas regras de experiência que são "as formulações normativas dos fatos, e inclusive subjetivas. Como o padrão de comportamento das pessoas seja no subjetivo ou objetivo. E, na reincidência das condutas; e, na prova prima face que quer significar "uma simplificação do raciocínio. São fenômenos da tipificação".

Da culpabilidade: pelo fato singular e pela conduta na vida

Aqui se encontra presente uma enorme problemática do Direito Penal enquanto ciência humana, que é o auferir da culpabilidade levando-se em consideração o fato ocorrido, a conduta praticada pelo agente, e, não, a sua personalidade, o seu caráter, enfim, a sua conduta de vida. O quer significar uma presente exigência de interpretação conjunta e nunca divorciada. É o que se atribui ao mestre HELENO FRAGOSO, que interpretando o Projeto Alternativo do Código Penal Alemão, identificou a abolição do chamado direito penal do autor.

Um direito penal de índole democrática, de obediência a legalidade, é direcionado para uma apuração do fato, do acontecimento como fenômeno social. A lição de BETTIOL, pautada nos ensinamentos de BINDING, é no sentido que "é um fragmento, um segmento da vida de um homem que é objeto de censura (...) um acontecimento singular da vida, uma ação instantânea – talvez de todo excepcional no teor de vida mantido até então pelo agente – torna-o culpável e somente por isto torna-o penalmente responsável, não pelo seu caráter, não pelo seu temperamento permanente, não pela sua conduta antecedente ou subsequente à ação".

O que não quer significar a existência de uma culpabilidade reduzida ou simplificada ao fato, a proclamação do divórcio entre ação e agente, mas sim, uma

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analise da culpabilidade – como regra – que leva em uma maior consideração os fenômenos que envolvem o fato, e uma menor envolvendo o agente. O que sequer afirmar é que a maioria dos acontecimentos no campo do Direito Penal se refere ao fato, enquanto, que uma minoria se refere ao agente. Tal concepção não se furta ao reconhecimento de que há casos em interessa ao direito penal a figura do homem, enquanto ser.

A lição de WESSELS é no sentido de que "o ponto de referência para o juízo de culpabilidade é constituído pela ação do injusto. A culpabilidade do Direito Penal é culpabilidade do fato isolado, não ‘culpabilidade de caráter’ e só indiretamente ‘culpabilidade pela conduta de vida". A doutrina considera o conceito (indiretamente) dado WESSELS, questionável.

Atribui-se a MEZGER como tendo sido o primeiro a conceituar a culpabilidade que direciona uma análise única e total sobre o agente, em desprezo à ação singular, como sendo culpabilidade pela conduta de vida. "a reprovação atém-se a toda personalidade. E é por isto que na doutrina mais recente se acentuou que nem sempre a ‘culpa do autor’ é uma culpa ‘pela conduta’ de vida, podendo-se perfeitamente admitir esta figura também na hipótese em que, independentemente de uma série mais ou menos ampla de ações delituosas, o agente tenha, num determinado momento, decidido dar orientação determinada à sua vida". Já SAUER na sua construção da culpabilidade elabora uma distinção das diversas espécies de culpabilidade por tendência, de maneira a não reconhecer uma culpabilidade pela conduta de vida. Leciona o pensador da escola de MUNSTER "estrutura da culpabilidade tendência crônica de inclinassem, de endereço de vontade ou atitude de vida (ou de qualquer culpa em caso hábito de vida), todas as expressões adequadas, sendo facilmente enganoso falar de culpa e de caráter modo, os poderes não são suficientes, para eles, mesmo as tendências devem ser acrescentadas (ativos) ".

Da culpabilidade: personalidade do réu e capacidade de delinqüir

A questão da culpabilidade se torna de difícil resolução para o Direito Penal quando se chega na problemática da personalidade do réu. Geralmente o que se nota é uma confusão rotineira na apuração da culpa em função de uma interpretação da pessoa em particular do réu. O fator fundamental reside no empreendimento ilimitado que o Direito Penal dispensa para relacionar a ação ao agente, objetiva um enquadramento da culpabilidade na personalidade do agente de forma a descobrir a sua face criminológica.

Daí BETTIOL realizar uma diferenciação fundamental no que concerne a problemática da culpabilidade do agente e à personalidade do réu, vai dizer que "as finalidades das duas questões são diversas: na primeira a personalidade é considerada enquanto objeto de censura, na segunda, é sempre a ação que é objeto da reprovação; mas a culpabilidade pela ação é compreendida apenas com referência a personalidade do réu".

Diante da diferenciação mencionada por BETTIOL, passa-se a enxergar a capacidade limitada da concepção psicológica da culpabilidade para o direito penal, principalmente, por ser este pautado no princípio constitucional da individualização na aplicação pena. "De que serve estabelecer um nexo psicológico entre a mens de um individuo e um evento lesivo a fim de determinar a culpabilidade, se não pode ser negado que esta varia de individuo para individuo conforme a sua personalidade

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naturalística e ética, ou conforme o caráter das condições que podem ter influído na sai ação".

Nessa relação da forma de culpabilidade e a personalidade do réu – para alguns autores – a sua resolução se encontra no conteúdo dos seus elementos de composição, um fato punível e punível de forma mais ou menos gravosa conforme a conduta praticada. Basta se analisar os crimes nas suas formas: culposa e dolosa.

A lição de WESSELS parte da premissa de que "assim como ‘injusto’ e ‘culpabilidade’ se correspondem um ao outro, subsiste uma relação de trocas entre a forma de conduta e a forma de culpabilidade do acontecimento punível. A realização dolosa ou negligente do tipo de injusto constitui, como forma de conduta, o correlato para a forma de culpabilidade estampada pelas ponderações da censurabilidade (= estágios da culpabilidade); à forma de comissão dolosa ou negligente corresponde o tipo de culpabilidade dolosa ou negligente".

Uma outra problemática, no campo da culpabilidade, é a capacidade de delinqüir, já que o Direito Penal insiste em afirmar que é possuidor de mecanismos capazes de identificar tal capacidade. A capacidade de delinqüir, necessariamente, deve ser analisada à luz da correlação existente entre culpabilidade e personalidade do réu. Ou seja, essa tal capacidade de delinqüir não poderá ser auferida de maneira divorciada da ação, ela não é um exame tomográfico que proporcione um diagnóstico definitivo

Porém, perece-nos que o Direito Penal insiste em nos fornecer os instrumentos necessários para a identificação dessa capacidade de delinqüir. O direito pátrio no artigo 59 do Código Penal primeira parte (fixação da pena privativa de liberdade), abre um leque de instrumentos que devem ser utilizados pelo magistrado, na busca da chamada capacidade de delinqüir.

A lição de BETTIOL, portanto, é que "a capacidade de delinqüir não pode ser apreciada independentemente da ação, como se pudesse constituir por si o objeto de uma censura: ela é sim uma qualificação subjetiva mas deve ser relacionada com uma ação a fim de interpretar de forma retributiva a própria ação (...). Ora, capacidade de delinqüir não é senão um sinônimo da personalidade moral do réu, no sentido de que a culpabilidade pela ação assume grau mais ou menos intenso desde que maior ou menor a ‘perversidade’ moral do sujeito agente".

Culpabilidade e periculosidade

Há de ser identificado um aspecto de conflito ou contrariedade entre culpabilidade e periculosidade, principalmente, quando diante da concepção normativa da culpabilidade. Mas onde se encontra, exatamente, este conflito? Pode-se afirmar que, em função do aspecto de valoração (FRANK) atribuído à culpabilidade normativa é que surge a contrariedade com a periculosidade, pois, esta tem finalidades diversas da primeira. Podendo-se vislumbrar o caso concreto de se constatar um vínculo efetivo e real na personalidade criminológica do agente que o leve de forma irrefutável à ação.

Diante deste aspecto valorativo fornecido à culpabilidade normativa, com um elemento ético e social como imperativo para uma reprovação, requerendo a presença de um elemento subjetivo, seja de cunho perverso ou anti-social, para se falar em culpabilidade do agente, é que se diz "entre culpa normativa e periculosidade não há portanto nexo algum, mas antes contradição: uma coisa é julgar um fato merecedor de censura porque fruto de uma motivação que podia ser evitada, outra coisa é dizer que um individuo poderá no futuro vir a cometer crimes ulteriores. Se os dois juízos devem ser igualmente circunstanciados, para aderir à realidade ética e naturalística, a individualização é para fins tolo coelo diversos: num a ‘reprovação’ importa em

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retribuição e portanto em pena, no outro a ‘previsão’ do dano postula uma medida preventiva. Também a capacidade de delinqüir, como critério de medida de culpabilidade, não tem a ver com a periculosidade: uma é um juízo ético, a outra um juízo naturalístico. A primeira diagnostica para fins retributivos, a segunda prognostica para fins preventivo".

Portanto, vislumbra-se na lição de BETTIOL, o núcleo de conflito e contrariedade entre culpabilidade e periculosidade, pois, enquanto uma se trata de juízo ético a outra se refere a um juízo naturalístico. Daí o autor elaborar sua diferenciação definitiva no campo da possibilidade e da probabilidade. A primeira dirigida a todos e a segunda apenas a alguns.

No entanto, se a periculosidade não enseja uma desaprovação ou reprovação por parte da ordem jurídica, pois, não chega a ofender o elemento ético e social, o que é a periculosidade? Utilizando-se dos ensinamentos PETROCELLI para a construção de um conceito de periculosidade, BETTIOL vai dizer que é considerada como "o complexo de condições, subjetivas e objetivas, sob cuja ação é provável que um indivíduo cometa um fato socialmente lesivo ou perigoso" Continua o autor "a periculosidade é destarte uma qualidade pessoal de um indivíduo enquanto causa provável de crimes e a providência que se deve aplicar para elimina-la é a medida de segurança".

Daí a discussão em torno da sua antijuridicidade. Porque (a priori) não se estar diante de uma violação da norma jurídica, o que provoca a dispensabilidade de um exame do direito objeto. Já que a constatação da ilicitude é apontada quando do cometimento de uma ação que colida com os ditames da norma jurídica. Pois, só através da ação é que o homem realiza o vínculo de conflito existente entre a sua vontade de ação e as determinações da norma jurídica, surgindo então o juízo de desaprovação pelo ato lesivo e de reprovação pela ação culposa.A solução é encontra no momento tanto da culpabilidade quanto da periculosidade, que são totalmente distintos. Pois, enquanto a primeira enseja a retribuição, a segunda obriga a prevenção. "Logicamente tudo que é predisposto por medidas de caráter preventivo não pode ser suscetível de um juízo de antijuridicidade, porque a antijuridicidade reivindica necessariamente a idéia de reação peculiar a qual medida repressiva"

Princípio da intervenção mínima no direito penal

Por vivermos num Estado Democrático de Direito, o Direito Penal, assim como

os demais ramos jurídicos, devem adequar-se aos ditames previstos na Constituição

Federal e que regem todo o ordenamento jurídico.

Nessa perspectiva, o Direito Penal assume as funções de proteção efetiva dos

cidadãos, preocupando-se com o direito à vida e à liberdade dos indivíduos e sua missão

de prevenção ocorrerá na medida do necessário para aquela proteção, dentro dos limites

fixados pelos princípios democráticos.

Dentro desse contexto, nasce a preocupação em estabelecer-se um Direito Penal

Mínimo que acima de tudo respeite, de forma objetiva, o direito à vida e à liberdade, ou

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seja, um Direito Penal assentado nas máximas garantias constitucionais, sobretudo nos

princípios basilares advindos, expressa ou implicitamente, da Carta Magna, tais como: o

princípio da dignidade da pessoa humana, da ofensividade, da insignificância, princípio

da legalidade, o princípio da intervenção mínima, dentre tantos outros.

O Princípio da Intervenção Mínima surgiu por ocasião da reação da burguesia

contra o sistema dominante na época, o absolutismo. Era um sistema baseado na

abrangência das legislações. Montesquieu já afirmava que “quando um povo é virtuoso

bastam poucas penas”, assim como a declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

prescrevia que: “a lei não estabelece senão penas estritas e evidentemente necessárias.”

O presente trabalho visa ao estudo desse princípio, inicialmente

contextualizando-o historicamente no âmbito do direito penal e, em seguida,

discorrendo sobre os princípios a ele relacionados, norteadores da criminalização e da

descriminalização. Por fim, mencionaremos algumas decisões de nossos Tribunais, bem

como alguns diplomas processuais que aparelham o Estado com instrumentos penais e

processuais para o controle da intervenção penal.

1. ESBOÇO HISTÓRICO

Com a formação de grupos sociais, surgiu a necessidade de se instituir regras

que garantissem a harmônica convivência social, advindo daí sanções para aqueles que

as desrespeitassem.

Todavia, o direito de punir nem sempre pertenceu ao Estado. Nas sociedades

primitivas o Direito era simplesmente um dos aspectos da religião, evoluindo de mera

vingança pessoal ao exercício da justiça privada.

Antes que a pena privativa de liberdade fosse instituída como sanção penal,

o que somente foi possível após o Iluminismo, no século XVIII, as penas eram todas

corporais, com mutilações e açoites, adotava-se a pena de morte, bem como as penas

infamantes, as violentas e as arbitrárias.

No Oriente Antigo, a punição fundava-se em caráter religioso, na qual o

infrator era duramente castigado, a fim de acalmar a “ira dos deuses”. Notava-se o

predomínio do Talião, expressa pela máxima olho por olho, dente por dente e que,

embora tenha, de certo modo, reduzido a extensão da punição e a vingança privada,

retribuía a violência cometida com mais violência e atos arbitrários contra aquele que a

cometera.

Page 33: Principio Penais

O caráter sacro também pôde ser observado na Grécia antiga, onde a punição

mantinha sua tendência expiatória e intimidativa, prevalecendo, de início, a vingança de

sangue, que terminou cedendo espaço ao Talião e à Composição.

No Direito Romano, prevalecia o poder absoluto do chefe da família – pater

familiae, que era o responsável pela aplicação das sanções que bem entendesse ao seu

grupo.  Na fase do Reinado vigorou o caráter sagrado da pena, firmando-se o estágio da

vingança pública. No período republicano, a pena perdeu o caráter de expiação, pois o

Estado separou-se do culto, prevalecendo o talião e a composição, que poderia consistir,

inclusive, na possibilidade de se entregar um escravo para sofrer a pena no lugar do

infrator desde que houvesse a concordância da vítima.

A Lei das XII Tábuas trouxe um avanço político-social ao igualar os

destinatários da pena. Porém, durante o Império a pena tornou-se novamente mais

rigorosa, restaurando-se a pena de morte e instituindo-se os trabalhos forçados, as penas

infamantes e cruéis.

O Direito Germânico caracterizou-se pela vingança privada e pela

composição, sendo os acusados submetidos a testes de culpa, os quais, caso

sobrevivessem, seriam considerados inocentes.

No Direito Canônico, predominando na Idade Média, perpetuou-se o caráter

sacro da punição, que continuava severa, porém com intuito corretivo, visando a

regeneração do criminoso. A religião e o poder estavam profundamente ligados e a

heresia implicava em crime contra o próprio Estado. Nesse período ressaltam-se os

excessos cometidos pela Santa Inquisição, que se valia da tortura para extrair a

confissão e punir, com medidas cruéis e públicas, os culpados. Inexistia qualquer

proporcionalidade entre a infração cometida e a infração aplicada.

Tais excessos e o caráter de intimidação pura da pena acabaram por

incomodar muitos filósofos e juristas, o que culminou na gestação do Direito Penal

como ciência, marcada pela obra do Marquês de Beccaria (1738-1794), Dos Delitos e

das Penas, dando início assim, ao pensamento sobre a proporcionalidade da pena à

infração praticada e a consideração sobre o dano que o crime havia causado à sociedade.

Era o início da Escola Clássica.

O caráter humanitário presente nessa obra foi um marco para o direito penal,

contrapondo-se ao arbítrio e a prepotência dos juízes, sustentando que somente leis

poderiam fixar penas, não cabendo aos magistrados interpretá-las, mas somente aplicá-

Page 34: Principio Penais

las, além de insurgir-se contra a tortura e ressaltar a responsabilidade pessoal do autor

do delito. A pena seria, antes de tudo, um meio de regeneração do criminoso.

Mas é inegável que o direito penal somente passou a assumir o caráter

parecido com o que se tem hoje a partir do Iluminismo. Foi o ideário de Rousseau e seu

Estado democrático, voltado para o bem comum, a crítica de Voltaire contra a igreja e a

proposta de Montesquieu de separação dos poderes, que inspiraram Beccaria e o

surgimento da Escola Clássica e, como já dito, de um direito penal visto agora como

ciência.

A racionalização na aplicação das penas foi um dos principais temas do

Iluminismo, assim como a demarcação dos limites entre a Justiça Divina e a Justiça

Humana e entre os pecados e os delitos, proclamando-se a utilidade social da pena,

retirando-lhe o caráter de vingança. A pena ganha um contorno de utlidade, destinada a

prevenir delitos e não simplesmente castigar, sendo tal pensamento Iluminista

consagrado na Declaração dos Diretos do Homem e do Cidadão, de 1789.

Porém, a prisão como pena privativa de liberdade surgiu apenas a partir do

século XVII, consolidando-se no século XIX. De início, as prisões eram simplesmente

um local para guardar os réus, preservando-os até o dia do julgamento. Os sistemas

penitenciários que consagraram as prisões como local de cumprimento da pena foram

principalmente os surgidos nas colônias americanas.

Em 1818, criou-se o sistema pensilvânico, em que o condenado ficava

completamente isolado, somente podendo receber visitas dos funcionários, dos

membros de associação de ajuda aos presos e do sacerdote, assim como realizar trabalho

manufaturado, obedecendo a lei do silêncio.

Posteriormente, surgiu o sistema alburniano, o qual se preocupava

essencialmente com a obediência do criminoso, o silêncio absoluto, voltado ao controle

dos condenados, a segurança do presídio e a exploração da mão-de-obra barata, no

entanto, diferentemente do sistema pensilvânico, consagrou o trabalho do preso durante

o dia.

O fato é que ambos os sistemas adotaram, basicamente, a visão punitiva e

retributiva da pena.

Em 1787, Jeremy Bentham sugeriu a criação do presídio ideal, denominado

O Panóptico ou Casa de Inspeção, em que todas as celas voltavam-se ao centro do

presídio e o condenado passava todas as horas do dia em constante vigilância. Para

Page 35: Principio Penais

Bentham, a pena tinha função de prevenção particular, que se aplica ao delinqüente

individual, e de prevenção geral, que se aplica a todos os membros da comunidade.

Nessa época surgiu o sistema progressivo de cumprimento da pena privativa

de liberdade na Europa. Inicialmente, eram distribuídas marcas ao condenado, de acordo

com seu comportamento e rendimento no trabalho, podendo passar do isolamento

diurno e noturno para o trabalho comum e em silêncio, com isolamento noturno.

Posteriormente o sistema foi aperfeiçoado, passando do isolamento celular ao trabalho

comum, com período de semi-liberdade, ou colônia agrícola, até atingir a liberdade sob

vigilância até o final da pena.

Nesse contexto, contrapunham-se duas teorias: a da retribuição (absoluta) e a

da prevenção (relativa). Pela primeira, defendida por Carrara, Kant, Hegel, etc., a pena

tinha finalidade eminentemente retributiva, voltada ao castigo do criminoso, por

questões de justiça e necessidade moral, pouco importando sua utilidade. Já a segunda,

defendida por Beccaria, entendia que a pena deveria ter um fim utilitário, consistente na

prevenção geral e especial do crime.

Com a escola positiva, inaugurada por Lombroso com a publicação do livro

O homem delinqüente (1876), deu-se início à investigação científica do crime, tentando

explicá-lo segundo a fenomenologia social e segundo os estudos da biologia. Surge a

criminologia como ciência e suas diversas tendências, buscando, através de métodos

empíricos, a explicação do crime, com o precípuo de fim de auxiliar o direito penal.

Os positivistas rechaçaram totalmente a noção clássica de um homem

racional capaz de exercer seu livre arbítrio. Sustentavam que o delinqüente se revelava

automaticamente em suas ações e que estava impulsionado por forças que ele mesmo

não tinha consciência. Para ele, o homem nasceria delinqüente, portador de caracteres

impeditivos de sua adaptação social, tendo como conseqüência o crime. É de Lombroso,

aliás, a descrição do criminoso nato.

Enquanto a Escola Clássica se preocupava apenas com o crime e a pena, a

Escola Positiva se preocupava com o criminoso e as circunstâncias que o levaram à

prática do ato delituoso.

O enfoque sobre a figura da pena, portanto, sofreu enorme mudança, saindo

da esfera meramente retributiva, mera vingança estatal, expiação pura e simples do mal

cometido, para uma tentativa de prevenção, adequando-se a pena ao tipo de delinqüente

objetivamente observado (ocasional, habitual, passional, nato, etc.).

Page 36: Principio Penais

Com a natural evolução das sociedades humanas, portanto, o aparato

punitivo também acabou por alcançar novas idéias acerca dos conceitos de crime,

delinqüente, culpabilidade, antijuridicidade e punibilidade, considerados elementos

reguladores da resposta estatal ao delito. Passou-se a adotar a defesa social como novo

elemento componente da pena. Não mais se via a prisão como simples castigo,

retribuição pura e simples provinda do Estado frente ao delinqüente, mas sim, além do

inseparável caráter de expiação, uma forma de proteção à sociedade.

Várias escolas surgiram após a clássica e a positiva, também chamadas de

Escolas Ecléticas, mas nenhuma atingiu o destaque das primeiras.

No Brasil, as Ordenações Filipinas (1603) refletiam o Direito Penal dos

tempos medievais, fundamentando-se largamente nos preceitos religiosos. O crime era

confundido com o pecado e com a ofensa moral, punindo-se severamente os hereges,

feiticeiros e benzedores e as penas eram desproporcionadas à falta praticada, muito

severas e cruéis (açoites, degredo, mutilação, queimaduras), visando infundir o temor

pelo castigo.

Anos após proclamada a independência, D. Pedro I sancionou, em 1830, o

Código Criminal do Império. De índole liberal, inspirava-se na doutrina utilitária de

Betham, bem como no Código francês de 1810 e o Napolitano de 1819. Fixava-se na

nova lei um esboço de individualização da pena, previa-se a existência de atenuantes e

agravantes, e estabelecia-se um julgamento especial para os menores de 14 anos. A pena

de morte, a ser executada pela força, só foi aceita após debates entre liberais e

conservadores no congresso e visava coibir a prática de crimes pelos escravos.

Com a República foi editado, em 1890, o Código Criminal da República,

alvo de duras críticas pelas falhas que apresentava que decorriam, evidentemente, da

pressa com que fora elaborado.

Em virtude de a Constituição de 1891 haver abolido a pena de morte, a de

galés e a de banimento judicial, o Código Republicano de 1890 contemplou a pena de

prisão, o banimento, a interdição, a suspensão e perda de emprego público e multa.

Apesar de mal sistematizado, o Código Criminal da República constituiu um

avanço na legislação penal da época, uma vez que, além de abolir a pena de morte,

instalou o regime penitenciário de caráter correcional.

Desde seu nascimento, surgiram várias leis para emendá-lo, que pelo grande

número, acabaram gerando enorme confusão e incerteza na aplicação, o que tornou

necessária a edição de um novo Código Penal, em 1940. Este se trata de uma legislação

Page 37: Principio Penais

eclética, que não assumiu compromisso com qualquer das escolas ou correntes que

disputavam a busca pela solução dos problemas penais. Fazia uma conciliação entre os

postulados das Escolas Clássicas e Positiva, aproveitando o que de melhor havia nas

legislações modernas de orientação liberal, em especial nos códigos italiano e suíço.

Até hoje, diversas foram as reformas por que passou nosso Código Penal, a

exemplo da Lei n.º 7.209/1984, que alterou substancialmente a parte geral,

principalmente adotando o sistema vicariante (pena ou medida de segurança), regulando

a execução das penas e das medidas de segurança, pelo que há muito se clamava.

Nosso Estatuto repressivo pátrio foi ainda alterado pela Lei nº 9.714/98 no

que concerne às penas restritivas de direitos, tendo incluído mais dois tipos de penas: a

prestação pecuniária e a perda de bens e valores. Ademais, a Lei Substantiva estabelece

a possibilidade e as condições para substituição da pena privativa de liberdade por

restritivas de direitos.

Destarte, é de se vislumbrar que, cada vez mais, o aprisionamento deixa de

ser regra para se tornar exceção. É que o cárcere, não restam dúvidas, ao invés de

proporcionar a ressocialização, não raro tem se transformado em verdadeira

universidade da delinqüência.

Sem intenção de esgotar o tema, traçamos esse esboço histórico a fim de

fazer um apanhado geral sobre a evolução da idéia de pena e do próprio direito penal,

onde se pode observar que nos primórdios, o Estado atuava em demasia, confundindo o

ius puniendi com o exercício de poder e de preservação política do soberano. As

punições, antes de representarem fins de profilaxia criminal, significavam a vingança

institucional e fixavam as regras do jogo do poder.

Tal situação foi sendo abrandada com o decorrer dos tempos, sendo

desenvolvidas teorias e conceitos, tais como o de bem jurídico, dignidade penal, direito

penal mínimo, etc.

Logo, com a evolução do direito e da sociedade, a tendência é a de que o

direito penal deixe de ser o pronto remédio contra a generalidade dos males sociais, na

medida em que existem meios outros, do Estado ou do sistema social, mais eficazes a

esse fim. Ao direito criminal ficaria reservada a proteção dos bens vitais para a

sociedade, desde que outra forma se não se mostrasse mais eficaz e que o meio punitivo

fosse o mais adequado.

Assim, a função e justificação do direito penal do Estado advém da

necessidade da pena para garantir a manutenção da ordem jurídica e, conseqüentemente,

Page 38: Principio Penais

para a segurança da sociedade. Para tanto, o legislador e o operador do direito contam

com uma série de princípios norteadores de sua atividade, tais como o princípio da

intervenção mínima no direito penal e outros a ele relacionados, como se verá a seguir.

2. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA: CONCEITO E

CARACTERÍSTICAS

Pelo princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima

ratio, o Direito Penal só deve preocupar-se com a proteção dos bens mais importantes e

necessários à vida em sociedade, ou seja, deve atuar somente quando os demais ramos

do direito revelarem-se insuficientes para a tutela desses bens.

Nesse contexto, o direito penal assume um caráter subsidiário, intervindo

somente quando as medidas civis ou administrativas mostrarem-se ineficazes.

O Estado, portanto, não deve recorrer ao Direito Penal e sua gravíssima

sanção se existir a possibilidade de garantir uma proteção suficiente com outros

instrumentos jurídicos não-penais.

Isto porque, quando se está sob a égide de um Estado Democrático de

Direito, há que se ter em mente que a intervenção do Estado na vida dos indivíduos

deve ser mínima, uma vez que quem é o detentor da titularidade da soberania é o povo,

que aliena apenas a quota necessária para que o poder do Estado se constitua.

Para que um bem jurídico receba a proteção do direito penal, portanto, tem

que merecê-la e necessitá-la, cabendo somente ao direito penal a proteção de bens

jurídicos fundamentais dos indivíduos e da sociedade e que sejam imprescindíveis para

o convívio social.

Como já foi dito, o Estado, e como conseqüência o Direito Penal, só

deveriam agir em casos de extrema necessidade. O direito penal e à “última ratio” e

somente pode ser invocado quando todas as demais formas de proteger e assegurar o

bem tutelado pelo Estado lograr-se ineficazes.

A experiência histórica nos tem demonstrado que a violência e a prisão não

são a solução para os problemas de insegurança na sociedade, para a criminalidade. A

sanção penal não pode ser considerada mais como solução de todos os conflitos sociais,

pois é incontestável que o endurecimento da pena não representa, assim como o

aumento de leis penais, prevenção.

Page 39: Principio Penais

Não é por falta de leis que a criminalidade aumenta, aliás, hoje no Brasil

existem uma infinidade de leis, muitas vezes até desconhecidas, o que falta na verdade é

a criação de mecanismos de políticas públicas para que tais leis sejam corretamente

aplicadas do ponto de vista do direito penal mínimo, que não condiz com a  severidade

das penas.

Há de se ter em mente que, quanto mais tipos penais são criados e quanto

mais se tornam as penas mais severas, mais se delimitam as garantias individuais, mais

normas são infringidas e mais abarrotados ficam os cárceres.

Porém, o que vem acontecendo é preocupante, pois o pressuposto básico do

Estado Democrático de Direito e os preceitos e princípios constitucionais que pregam a

mínima intervenção do Estado na sociedade, vem sendo substituídos pelo Princípio da

Máxima Intervenção na vida do indivíduo e da coletividade. O Direito Penal, cujos

efeitos sancionatórios deveriam ficar reservados somente os fatos de grande gravidade e

os de maior intensidade, tem sido desvirtuado pelo função legislativa.

Danos de pequena monta que deveriam ser solucionados pelos

ordenamentos jurídicos menos formais e menos danosos acabam sendo tipificados, o

que contradiz a idéia de um direito penal mínimo.

A intervenção mínima também deveria ser verificada na função judicante,

todavia, na prática o que se observa é que se está fazendo um uso excessivo da pena,

estendendo-se de forma absurda a legislação, o que acaba por acarretar a redução da

força intimidadora da sanção, pois ainda há quem acredite que a aplicação de penas

rigorosas é a única solução para conter a criminalidade.

De certa forma ainda predomina o entendimento que a criminalização de

toda e qualquer conduta indesejável representaria a melhor e mais fácil solução para

enfrentar os problemas de uma sociedade complexa e interdependente em contínua

expansão.

A intervenção máxima do Direito Penal torna-se mais preocupante quando

este passa a ter um caráter eminentemente promocional, pois com a tipificação de

delitos imposta a fim de atender a interesses políticos e não sociais, isto é, quando leis

são criadas e aplicadas após a ocorrência de fatos de grande repercussão social,  com a

intenção de produzir na opinião pública uma impressão tranqüilizadora de um legislador

que está atento à realidade social.

Na medida em que o mecanismo controlador penal perde sua condição de

instrumento a serviço da convivência social e torna-se um interventor precoce nos

Page 40: Principio Penais

conflitos sociais, ou atua, simbolicamente, apenas para efeito de transmitir falsa

tranqüilidade à sociedade sua legitimidade começa a ser posta em dúvida.

Deixa-se, pois, de tutelar apenas aqueles bens considerados fundamentais

para estender a aplicação do direito penal a outros bens que poderiam ter sua proteção

fornecida por outros ramos do direito. O legislador, na ânsia de tipificar um grande

número de condutas e desejando muitas vezes antecipar-se, acompanhar o

desenvolvimento tecnológico, acaba por criminalizar condutas que estariam muito

melhor abarcadas em outros ramos do direito. É o que ocorre, por exemplo, com os

delitos ambientais e as legislações tributárias e previdenciária.

O que ocorre, na verdade, é que hoje o Direito Penal perdeu muito de sua

essência, de garantidor da convivência pacífica na sociedade, o qual somente deve ser

invocado para intervir nos casos em que há uma grave violação social, já que cuida ele

dos bens mais caros para o homem, tais como a vida e a liberdade. Ao transitar e tutelar

condutas que poderiam ser tratadas por  outros ramos do direito, atuando como simples

sancionador da violação de normas de outra natureza, o Direito Penal agravar ainda

mais as condutas previstas nos ordenamentos normas civis e administrativos que se

utilizam do seu caráter sancionador e que já trazem consigo um caráter repressor

bastante severo.

Os bens mais relevantes para a sociedade são aqueles dispostos na

Constituição Federal da República, e é por estes bens que o ser humano luta durante

toda a sua vida e exige para eles a proteção sensata de um Estado Democrático de

Direito. E como o direito vive em constante evolução, deve adequar-se e adaptar-se as

novas figuras delitivas, aos meios e os modos usados pelos criminosos, que são a cada

dia mais complexos.

Entretanto, apesar de termos explanado acerca do desvirtuamento do Direito

Penal e a relutância de parte da comunidade jurídica em aceitar o direito penal mínimo

como a melhor forma de combater a criminalidade e a delinquência, a partir de

pesquisas efetuadas na jurisprudência recente de nossos Tribunais verificamos que o

princípio da Intervenção Mínima vem sendo bastante utilizado, em consonância com os

princípios que lhe são decorrentes.

Tal afirmação pode ser comprovada a partir da leitura do acórdão proferido

pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, vejamos:

Denúncia. Delito do art. 243 da lei 8.069/90 (oferecimento de bebida alcoólica). Rejeição. Mantida. Considerando os princípios da intervenção mínima do direito

Page 41: Principio Penais

penal e da adequação social, mantém-se a rejeição da denúncia que imputou a um jovem de 19 anos de idade o crime do art. 243 da Lei 8.069/90, porque teria oferecido a outro jovem, este com 15 anos de idade, uma lata de cerveja, quando ambos se encontravam no interior de um clube social. DECISÃO: Apelo ministerial desprovido. Unânime. (TJRS - AC 70019592260 - 7ª C. Cr. - Rel. Sylvio Baptista Neto - J. 09.08.2007).

Neste sentido, também já entendeu o Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. PENAL. FURTO. COMPORTAMENTO SOCIALMENTE REPROVÁVEL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. 1. A missão do Direito Penal moderno consiste em tutelar os bens jurídicos mais relevantes. Em decorrência disso, a intervenção penal deve ter o caráter fragmentário, protegendo apenas os bens jurídicos mais importantes e em casos de lesões de maior gravidade. 2. O princípio da insignificância considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de uma mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada (precedentes HC 84.412, STF, Rel. Min. Celso de Mello). 3. Se parece claro que o furto de uns "poucos litros de água potável" não ensejaria o acionamento da máquina jurídico-penal do Estado, pela inexpressividade da lesão jurídica provocada, por outra volta, não se deve olvidar que tal conduta se mostra bastante reprovável, sob o ponto de vista de sua repercussão social. Inaceitável a complacência do Estado para com aqueles que, em condições de arcar com as respectivas contraprestações, venham a usufruir irregularmente e de forma gratuita de bens e serviços públicos, em detrimento da grande maioria da população. 4. Recurso parcialmente conhecido e provido. (STJ - RESP 406986 - MG - 6ª T. - Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa - DJU 17.12.2004).

Das decisões acima transcritas verifica-se, portanto, que a pena é uma

amarga e violenta realidade da qual não pode e não deve necessitar a sociedade, uma

vez que cabe ao Estado manter a pacífica convivência entre seus cidadãos.

O aplicador do direito deve estar atento às mutações da sociedade, que com

sua evolução deixa de dar importância a bens que, no passado, eram da maior

relevância, fazendo retirar do ordenamento jurídico-penal certos tipos incriminadores.

A realidade que emerge do caso concreto é que delimita a aplicação do

princípio da intervenção mínima, com esteio, aliás, em outros princípios que servem de

base para a criminalização e para a descriminalização.

3. PRINCÍPIOS BASILARES PARA A DESCRIMINALIZAÇÃO

Como visto até aqui, o princípio da intervenção mínima é também

responsável por fazer com que ocorra a chamada descriminalização. Isto porque, o

Direito Penal só deve se interessar pelos fatos que causem grandes prejuízos individuais

ou coletivos, cujas soluções não puderem ser tuteladas pelos demais ramos do direito.

Page 42: Principio Penais

O Princípio da Intervenção Mínima, na verdade, atua como um princípio

limitador do poder punitivo do Estado, restringindo a atuação legislativa, posto que só

deverá o legislador tratar em direito penal dos fatos mais relevantes com o intuito de

coibir determinadas condutas, além de indicar os bens de maiores valores que deverão

ser tratados pelo Direito Penal, ou seja, a criminalização, ou ainda indicar os de menores

valores para serem retirados e descriminalizados.

Vale ressaltar que o princípio da menor intervenção não descarta a

criminalização, desde que esta se faça necessária ante a realidade social e quando outros

meios da política criminal mostrarem-se ineficazes. Assim, quando determinado

interesse ou valor não tiver alcance social, não se poderá instituir um bem jurídico

sujeito à proteção penal.

Nessa discussão acerca da definição do socialmente importante ou

indiferente encontram-se as maiores controvérsias sobre criminalização e

descriminalização, que encontram amparo em diversos princípios, aliados ao da

intervenção mínima, a fim de orientar o legislador e o aplicador do direito.

Costuma-se dizer que a base de todos os princípios é o da dignidade da

pessoa humana, entendida como o atributo imanente ao ser humano para exercício da

liberdade e de direitos como garantia de uma existência plena e saudável, constituindo-

se um mínimo que todo ordenamento jurídico deve assegurar, podendo apenas

excepcionalmente sofrer limitações sempre que ofender outros direitos fundamentais.

Dentre os mais importantes princípios penais derivados do princípio da

dignidade da pessoa humana e, particularmente, da dignidade penal, estão a legalidade,

insignificância, adequação social, fragmentariedade, subsidiariedade e

proporcionalidade.

O princípio da legalidade está elencado no artigo 5º, XXXIX, da

Constituição Federal, que reza: "Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena

sem previa cominação legal". Em consonância com esse princípio, surgiu para o Direito

Penal os princípios da anterioridade: "Não há crime sem lei anterior que o defina" e o

da reserva legal:"Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege".

Tal princípio norteia a atuação do legislador no sentido de este dever

tipificar condutas que realmente necessitem de tipificação, já que o crime, embora seja

sempre um fato ilícito para todo o Direito, nem sempre agrega todos os elementos

necessários para subsumir-se a um fato típico penal. Somente alguns, os mais graves,

são alcançados pelo Direito Penal.

Page 43: Principio Penais

O princípio da lesividade também apresenta uma relação muito próxima

com a concepção minimalista do Direito Penal, pois somente os bens mais valiosos para

a coexistência dos cidadãos poderão ser objetos de uma norma incriminadora.

Efetivamente, parece evidente que sendo o Direito Penal o meio ou instrumento que

mais intimida e por ser uma forma violenta de combater a criminalidade, deverá ser

chamado a atuar somente em situações de extrema necessidade.

Logo, pelo principio da lesividade, ou ofensividade, somente a conduta que

ingressar na esfera de interesses de outra pessoa deverá ser criminalizada, não podendo

haver punição enquanto os efeitos permanecerem na esfera de interesses da própria

pessoa, como, por exemplo, nos casos de prostituição, a homossexualidade, etc. Tal

princípio, cuja origem se atribui ao período iluminista, buscou desfazer a confusão entre

o direito e a moral, enfatizando que ninguém pode ser punido por aquilo que pensa ou

por seus sentimentos pessoais.

Prosseguindo no estudo de princípios relacionados ao da intervenção

mínima, vale a pena tecer comentários acerca do princípio da adequação social.

De acordo com o princípio da adequação social, apesar de uma conduta se

subsumir ao modelo legal, não será tida como típica se for socialmente adequada ou

reconhecida, isto é, se estiver de acordo da ordem social da vida historicamente

condicionada.

Logo, se o fato não ferir o “sentimento social de justiça” o agente não pode

ser considerado criminoso, ressaltando-se, aí, o caráter de subjetividade de aceitação ou

reprovação determinado pela sociedade, exteriorizado pelo legislador e pela

comunidade jurídica.

Além disso, o Direito como um reflexo dos anseios da sociedade, não tem

por meio da comunidade jurídica a "permissão" da população de cominar uma sanção

ao fato concreto, se ele for considerado como algo típico e costumeiro.

Como exemplo, podemos citar a recente edição da Lei n.° 11.103/2005,

que  descriminalizou o art. 240 do Código Penal Brasileiro, que antes cominava uma

pena para os crimes que configurassem como adultério. Embora socialmente reprovável,

o adultério não mais poderia ser considerado crime, tanto que tal prática já nem era mais

objeto de punição criminal. Tanto que o cônjuge traído pode requerer judicialmente

indenização por danos morais, não havendo necessidade de intervenção penal.

A fragmentariedade e a subsidiariedade são outras duas características do

Direito Penal que se relacionam com o princípio da intervenção mínima.

Page 44: Principio Penais

O principio da fragmentariedade reza que o direito penal deve ter um

caráter fragmentário, só podendo intervir se o fato for relevante. O Direito Penal limita-

se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes,

uma vez que se ocupa somente de um fragmento dos bens jurídicos protegidos pela

ordem jurídica.

Muito próximo da fragmentariedade, o principio da subsidiariedade

preconiza que o direito penal só pode intervir em "ultima ratio", depois de passar por

todos os outros ramos do direito.

A subsidiariedade determina que o Direito Penal deve ser aplicado apenas

quando falham as defesas do bem jurídico predispostas por outros ramos do Direito.

Obtendo-se o mesmo resultado através de um recurso mais suave, torna-se

desnecessária a aplicação de um recurso mais grave, que é o Direito Penal.

O princípio da proporcionalidade, a seu tempo, preconiza que a norma

incriminadora deve trazer proveito à sociedade.

Por fim, partindo da idéia de que a tipificação não se esgota no juízo lógico-

formal de subsunção do fato ao tipo legal de crime, a comunidade jurídica tem evoluído

no sentido de que uma ação descrita tipicamente, para ser punida, deve revelar-se

ofensiva ou perigosa para o bem jurídico protegido pela lei penal. Esta é a base para o

princípio da insignificância, o qual repousa no princípio maior de que é inconcebível um

delito sem ofensa: nullum crimen sine iniuria.

A jurisprudência do Supremo Tribunal vem agasalhando o princípio da

insignificância e extinguindo ações penais, mormente, quando referentes à subtração de

bens, cujo valor seja irrisório. Nesse sentido, vale transcrever trecho da seguinte decisão

do Supremo Tribunal Federal:

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - RES FURTIVA NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO - O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL - O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade

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penal, a presença de certos vetores, tais como a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) a nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. (STF - HC 84412 - SP - 2ª T. - Rel. Min. Celso de Mello - DJU 19.11.2004)

No mesmo compasso, o Superior Tribunal de Justiça também vem

entendendo, vejamos:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE, EM SENDO IRRISÓRIO O VALOR SUBTRAÍDO. RECURSO PROVIDO. 1. O poder de resposta penal, positivado na Constituição da República e nas leis, por força do princípio da intervenção mínima do Estado, de que deve ser expressão, "(...) só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não se deve ocupar de bagatelas." (in Francisco de Assis Toledo, Princípios Básicos de Direito Penal). 2. A incidência, contudo, do princípio da insignificância requisita a mínima ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada, como na lição do Excelso Supremo Tribunal Federal, circunstâncias induvidosamente ocorrentes no caso de furto de pouco mais um quilo de carne bovina, avaliados à época do fato em R$ 17,13 (dezessete reais e treze centavos). 3. Recurso provido. (STJ - RHC 16890 - RS (200401621205) - 6ª T. - Rel. Min. Hamilton Carvalhido - DJU 06.02.2006).

Isto posto, considera-se atípico o fato que, dada a sua irrelevância, sequer

ofende o bem juridicamente protegido. Afinal, não parece lógico movimentar o aparelho

estatal de persecução criminal para penalizar uma conduta que não configura uma

mácula relevante ao patrimônio da vítima da conduta tipificada pelo direito penal.

Em síntese, o princípio da insignificância penal deve ser observado sempre,

em todos os crimes tipificados no Código Penal ou na legislação especial, pois, não se

deve punir o agente que não lesa de forma relevante o objeto jurídico tutelado pelo

direito penal.

Em razão dos princípios elencados, o tipo legal assume verdadeira função

seletiva, decidindo sobre o que seja crime e o que não seja, o que deva ser punido e o

que não deva.

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Com amparo em tais princípios, busca-se aplicar o Direito Penal de forma 

mais consciente, ponderando se vale a pena recorrer-se à pena privativa de liberdade,

pois, tratando-se de situações em que o grau de impacto causado pela atitude desviante é

baixo, não se justifica a imposição de uma modalidade de sanção revelada como a

forma mais drástica de intervenção punitiva.

Não se está aqui defendendo o fim do cárcere, já que este ainda se impõe

para as situações gravíssimas contra os bens jurídicos tidos como de maior importância

para o corpo social, em face da inexistência de outra forma punitiva.

O que se entende é que manutenção de tipos incriminadores desnecessários

atrapalha não só a atividade policial, que ao invés de estar investigando casos de real

importância, perde tempo com condutas de pouca lesividade, assim como também

sobrecarrega a Justiça Criminal, que se mantém emperrada devido ao grande número de

processos versando sobre questões irrelevantes.

Defende-se, pois, a harmonização entre a aplicabilidade de um Direito

Penal mínimo, com todas as garantias constitucionais e as necessárias

descriminalizações de tipos penais, e a eficiente concretização das finalidades do Direito

Penal.

Vejamos, a seguir, a tendência brasileira quanto à aplicação do princípio da

intervenção mínima e a idéia de Direito Penal Mínimo, verificando que a visão

tradicionalista tem cedido espaço a uma concepção humanista da pena.

4. A INTERVENÇÃO MÍNIMA NA REALIDADE DO DIREITO PENAL

BRASILEIRO

O Supremo Tribunal Federal, seguido em diversos julgados dos tribunais 

brasileiros, tem aplicado, com grande freqüência, o Princípio da Intervenção Mínima e

as regras de interpretação restritiva da lei penal, como os Princípios da Adequação

Social e da Insignificância em seus acórdãos. Por oportuno, transcrevemos as seguintes

ementas:

FURTO. TENTATIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO. 1. A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa e casuística. 2. Princípio que se presta a beneficiar as classes subalternas, conduzindo à atipicidade da conduta de quem comete delito movido por razões análogas às que toma São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, para justificar a oculta compensatio. A conduta do paciente não excede esse modelo. 3. A tentativa de furto de roupas avaliadas em míseros R$ 65,00 (sessenta e cinco reais) não pode, nem deve se considerados os vetores que identificam o princípio da insignificância merecer

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a tutela do direito penal. Este, mercê do princípio da intervenção mínima do Estado em matéria penal, há de ocupar-se de lesões significativas a bens jurídicos sob sua proteção. Ordem deferida. STF. HC 94415, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 13/05/2008).  CRIME DE DESCAMINHO. DÉBITO TRIBUTÁRIO INFERIOR AO VALOR PREVISTO NO ART. 20 DA LEI Nº 10.522/02. ARQUIVAMENTO. CONDUTA IRRELEVANTE PARA A ADMINISTRAÇÃO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. 1. Crime de descaminho. O arquivamento das execuções fiscais cujo valor seja igual ou inferior ao previsto no artigo 20 da Lei n. 10.522/02 é dever-poder do Procurador da Fazenda Nacional, independentemente de qualquer juízo de conveniência e oportunidade. 2. É inadmissível que a conduta seja irrelevante para a Administração Fazendária e não para o direito penal. O Estado, vinculado pelo princípio de sua intervenção mínima em direito penal, somente deve ocupar-se das condutas que impliquem grave violação ao bem juridicamente tutelado. Neste caso se impõe a aplicação do princípio da insignificância. Ordem concedida. (STF. HC 95749, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 23/09/2008).

O Superior Tribunal de Justiça tem igualmente consagrado os Princípios da

Fragmentariedade, Subsidiariedade e Ofensividade do Direito Penal em suas recentes

decisões:

 TENTATIVA DE FURTO DE 09 LÂMINAS DE ALUMÍNIO AVALIADAS EM 20 REAIS. LESÃO MÍNIMA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.APLICABILIDADE. ORDEM CONCEDIDA.1.   O princípio da insignificância, que está diretamente ligado aos postulados da fragmentariedade e intervenção mínima do Estado em matéria penal, tem sido acolhido pelo magistério doutrinário e jurisprudencial tanto desta Corte, quanto do colendo Supremo Tribunal Federal, como causa supra-legal de exclusão de tipicidade.Vale dizer, uma conduta que se subsuma perfeitamente ao modelo abstrato previsto na legislação penal pode vir a ser considerada atípica por força deste postulado. 2.   Entretanto, é imprescindível que a aplicação do referido princípio se dê de forma prudente e criteriosa, razão pela qual é necessária a presença de certos elementos, tais como (I) a mínima ofensividade da conduta do agente; (II) a ausência total de periculosidade social da ação; (III) o ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento e (IV) a inexpressividade da lesão jurídica ocasionada, consoante já assentado pelo colendo Pretório Excelso (HC 84.412/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU 19.04.04). 3.   No caso em apreço, aplicável o postulado permissivo, eis a mínima reprovabilidade e ofensividade da conduta. Precedentes. 4.   Ordem concedida, para, aplicando o princípio da insignificância, absolver o ora paciente, com fulcro no art. 386, inciso III do Código de Processo Penal, apesar do parecer ministerial em sentido contrário.(HC 99.990/SP, Rel. Ministro  NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 18/09/2008, DJe 20/10/2008).  TENTATIVA DE FURTO QUALIFICADO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.1. A intervenção do Direito Penal apenas se justifica quando o bem jurídico tutelado tenha sido exposto a um dano com relevante lesividade. Inocorrência de tipicidade material, mas apenas a formal, quando a conduta não possui relevância jurídica,

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afastando-se, por conseqüência, a ingerência da tutela penal, em face do postulado da intervenção mínima.2. No caso, não há como deixar de reconhecer a mínima ofensividade do comportamento do paciente, que subtraiu, juntamente com outra pessoa, do interior de um estabelecimento comercial, uma garrafa de bebida e um pacote de goma de mascar, sendo de rigor o reconhecimento da atipicidade da conduta.3. Ordem concedida.(HC 118.481/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 18/11/2008, DJe 09/12/2008)

Não são poucas as causas que concorrem para o descontrole dos índices de

criminalidade, que só fazem crescer, no entanto, adotar um direito penal máximo não é

o caminho para se combater a marginalidade, que envolve questões eminentemente

sociais.

Decisões como as dos tribunais superiores que mencionamos deveriam ser

utilizadas com maior freqüência, a fim de mudar a estereotipada visão de que o sistema

carcerário brasileiro é considerado como um dos piores do mundo, devido à

superlotação nas prisões e à violação dos direitos humanos.

Aproveitando tal contexto, entendemos por bem ressaltar que a tão falada

crise do Direito Penal decorre da ausência de uma adequada visão do problema e da

ausência de uma política criminal que acompanhe a legislação correspondente. A

questão deve ser analisada desde a falha no sistema educacional, a ausência de

capacitação profissional, os índices de desemprego, os exemplos de impunidade, a

ausência de punição severa em relação aos crimes graves, o aumento do crime

organizado, do narcotráfico, os incontáveis problemas sociais, entre outros.

Para dificultar tal quadro, temos uma enxurrada de leis confusas,

desnecessárias, que só fazem tumultuar as lides penais e as instâncias recursais,

contribuindo para a insegurança e incerteza junto a população e aos profissionais

compromissados com a distribuição da justiça, ou seja, leis penais de cunho meramente

simbólico.

Com a Lei n.º 9.099/95, tentou-se consagrar no Brasil o discurso de

intervenção mínima. Tal lei proporcionou a suspensão condicional do processo e a

exigência da representação em alguns tipos delitivos, além da transação para delitos de

pequeno potencial ofensivo, evidenciado forte tendência descriminalizadora.

O fato é que os juízos criminais encontravam-se assoberbados. Inúmeros

processos aguardando o longo curso de instrução, muitos deles em vias de prescrição,

preenchiam a pauta dos juízes e dos promotores de justiça. Inquéritos Policiais que se

arrastavam por anos, embora muitas vezes não revestidos de qualquer formalismo.

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Embora criticada, a Lei dos Juizados Especiais Criminais foi uma grande

tentativa de inserir o Estado na moderna concepção menos intervencionista, pois

concebe uma atividade judicial mais célere e eficaz, na medida em que dispensa, nos

casos de menor complexidade, a fase de inquérito policial, remetendo o delinqüente e

vítima à apresentação imediata ao juiz e ao representante do Ministério Público.

Já nesse momento, pode ocorrer a transação civil entre ofendido e

delinqüente, significando em reparação de danos materiais ou morais. Nos casos em que

a persecução do crime dependa de representação do ofendido, a transação civil importa

na extinção de punibilidade. Também na apresentação inicial, pode o representante do

Ministério Público propor a pena, não consistente em segregação que, aceita pelo

delinqüente, é de imediato executada.

Ao remeter aos Juizados Especiais todos os crimes de menor potencial

lesivo, quando a pena máxima não fosse superior a um ano de prisão, incluiu as

contravenções, além de condicionar a persecução das lesões leves, culposas ou dolosas,

à representação do ofendido.

Outro avanço rumo ao direito penal mínimo é a imediata execução da pena,

substituindo-se a pena de prisão pelas penas restritivas de direitos, de prestação de

serviços à comunidade e de multa. A intenção é, notoriamente, a de evitar o meio

pernicioso das prisões para os delinqüentes não habituais e menos perigosos. A prisão

ficou restrita para os casos graves, em que a retirada do delinqüente do meio social é

medida necessária.

No entanto, críticas são tecidas contra a referida Lei, no sentido de que a

transação vulneraria o princípio da culpabilidade, já que o indivíduo poderia receber

uma pena restritiva de direito transformando-se em restritiva de liberdade, caso não

cumpra a primeira adequadamente, sem serem obedecidas as garantias de um processo

justo em um Estado Democrático de Direito. Além do que, o infrator acaba renunciando

à possibilidade de se defender para não por em risco a aplicação de uma pena maior. O

minimalismo se oporia às tendências de transação penal, porque ofenderia estes

princípios fundamentais, afetando os direitos individuais.

De qualquer forma, já há um bom tempo que os tribunais brasileiros vêm

temperando os rigores das leis penais com soluções mais consentâneas com a moderna

política criminal.

Como exemplo, podemos citar a usual não punição do agressor quando

evidenciado, pelo juiz, que a sanção penal pudesse abalar a relação daquele com sua

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esposa, quando vítima e o restante da família. Claro que neste caso se exigia uma

especial prudência do magistrado, que deveria perceber as intenções da vítima em

relação ao desfecho do processo.

De todo o exposto verifica-se que o Direito Brasileiro caminha a passos

lentos, mas importantes na persecução das máximas garantias individuais. Os estudiosos

do direito penal não podem olvidar que a implementação de um Direito Penal mínimo

requer a existência de meios que combatam crescentemente a vingança privada, pois

cominar penas aleatoriamente dá lugar às crescentes investidas violentas por parte dos

indivíduos na suposta realização de justiça, o que, indubitavelmente, não condiz com

nosso Estado Democrático de Direito.

Princípio da Irretroatividade da Lei

Conceito

Irretroatividade é a qualidade de não retroagir, não ser válido para o passado. As leis e atos normativos em geral, a princípio, são editadas para que passem a valer para o futuro, desde a data da publicação ou a partir de um período fixado, geralmente no final do seu texto.

A principal razão para isso é que, se o ato passa a ser de cumprimento obrigatório, não poderia ser exigido antes do seu conhecimento dos que devem cumpri-lo. Isso não impede, todavia, que uma lei que institua um benefício a ser concedido pelo Poder Público (um aumento salarial aos servidores públicos, por exemplo), gere efeitos retroativos, como exceção à regra geral.

No Direito Tributário

O princípio da irretroatividade da lei, especialmente no âmbito do Direito Tributário é a regra geral, significando que deve-se aplicar a lei vigente no momento da ocorrência do fato gerador.

Tratando-se, assim, de aumento de tributo o princípio da irretroatividade da lei deve ser cumprido rigorosamente, não sendo possível em um Estado Democrático de Direito que se exija o pagamento de tributos relativamente a atos jurídicos já realizados.

No Direito PenalO princípio da irretroatividade da lei também tem aplicação pacífica tratando-

se da definição de novas hipóteses para a caracterização de crime ou contravenção, ou mesmo aumento da pena ou nova agravante.

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Dessa forma, no momento que o agente realiza um ato que possa ser moral ou socialmente condenável, ele tem condições de saber de antemão se a lei penal caracteriza aquela ação como crime ou não, se haveria algum agravante e qual a pena máxima prevista.

Aplica-se aqui o princípio universalmente aceito do nullum crimen nulla poena sine lege , que o Código Penal brasileiro colocou no seu artigo primeiro nos seguintes termos: "Art.1. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal".

Exceções ao princípio da irretroatividade da lei

No Direito Penal a irretroatividade não tem aplicação se a lei estabelecer pena mais branda ou deixar de considerar alguma ação como crime. É a chamada retroatividade benigna.

No Brasil

De acordo com o artigo 106 do Código Tributário Nacional - CTN, é possível a aplicação retroativa da lei, desde que nos mesmos contornos da retroatividade do Direito Penal.

Isso implica dizer que no direito tributário, tal como no direito penal, apenas admite-se a retroatividade benigna.Nos termos do artigo 106 do CTN, a lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados

tratando-se de ato não definitivamente julgado: o quando deixe de defini-lo como infraçãoo quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou

omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo

o quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.

Princípio da Adequação Social

Welzel foi o primeiro penalista a perceber a impossibilidade de se considerar como delituosa uma conduta aceita ou tolerada pela sociedade, mesmo que se enquadre em uma descrição típica. Logo, se um comportamento, em determinadas circunstâncias, não recebe juízo de reprovação social, não pode constituir um crime. Surgiu, então, o Princípio da Adequação Social. Como observa Mir Puig (4), "não se pode castigar aquilo que a sociedade considera correto".

De acordo com o seu introdutor no Direito Penal, seria um princípio geral de hermenêutica (5). O tipo penal não pode alcançar condutas lícitas, que se realizam dentro de uma esfera da normalidade social. Um exemplo de condutas formalmente típicas que, no entanto, tem a tipicidade excluída devido à Adequação Social, seria a

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circuncisão, realizada na religião judaica. Outro exemplo seriam as lesões corporais causadas em partidas de futebol. São ações destituídas de tipicidade material, pois são coletivamente permitidas. É importante ressaltar que, todavia, a sociedade deve tolerar tais condutas, portanto, este princípio não abarca ações excessivas, que enquadrem-se fora dos limites da normalidade.

Princípio da Insignificância

O princípio penal da insignificância, adotado pela jurisprudência no Brasil e difundido pela doutrina, possui guarida implícita no modelo constitucional brasileiro. Entretanto, o alargamento de seu campo de incidência, que ignora às suas raízes e finalidade, é crescente e representa uma ameaça à sobrevivência desse importante vetor de interpretação material do direito penal.

Origem

A origem remota do princípio da insignificância ocorreu no direito romano com a máxima contida no brocardo minima non curat pretor1. Essa perspectiva de nascimento merece crítica, pois o direito romano se sedimentava nos conceitos do direito privado, pouco se conhecia sobre o alicerce da legalidade do direito penal. A origem próxima do princípio é verificada no século XX. Com as severas dificuldades econômicas após a segunda guerra no continente europeu e o consequente aumento da criminalidade de bagatela, expressão preferida dos alemães (Bagatelledelikte), nasceu o princípio da insignificância vinculado inicialmente aos crimes patrimoniais2.

A formulação teórica do referido princípio com a possibilidade de restringir o alcance da tipicidade se deve a Claus Roxin em 1964 (das Geringfügigkeitsprinzip). O ponto de partida, utilizado pelo autor, foi o crime de constrangimento ilegal. Depois, com suporte na fragmentariedade do direito penal, defendeu-se a ampliação do princípio da insignificância para afastar a tipicidade de outras condutas que ofendessem de forma irrelevante o bem jurídico tutelado.

Conceito

Pode ser definido como um princípio implícito de interpretação do direito penal que permite afastar a tipicidade material de condutas que provocam ínfima lesão ao bem jurídico tutelado.

A aceitação doutrinária e jurisprudencial do princípio da insignificância só foi possível em razão da compreensão de que a tipicidade penal não é meramente formal. A tipicidade penal é a soma de tipicidade formal (conformação do fato à letra da lei) + tipicidade material (valoração da ofensa ao bem jurídico no caso concreto). Numa visão moderna, ainda é preciso acrescentar à tipicidade material o caráter conglobante. Desse modo, se a conduta for permitida, fomentada ou determinada por qualquer ramo do ordenamento jurídico, não haverá tipicidade penal3.

O confronto axiológico (valorativo), no caso concreto, entre a conduta formalmente típica e o grau da lesão jurídica causado é que permite inferir se há ou não necessidade de intervenção penal e, portanto, se é possível aplicar o princípio da insignificância.

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Esse princípio constitucional implícito, ligado à fragmentariedade do direito penal, deve ser utilizado pelos operadores processuais no momento da promoção de arquivamento da investigação, do não recebimento da ação penal e da absolvição. Importa alertar que o fato de uma conduta constituir infração de menor potencial ofensivo não significa necessário espaço para a aplicação do princípio da insignificância, pois a valoração dessas infrações (lesão leve, injúria, ameaça etc) já foi feita pelo legislador e cabe ao interprete, neste aspecto, respeitar a reserva legal4. Não se pode “confundir o princípio da insignificância com os crimes de pouca significação”. A análise que deve ser feita é sobre o grau e a intensidade da lesão produzida, não sobre o tipo formal abstrato.

Relação com o princípio da irrelevância penal do fato

O princípio da insignificância não se confunde com o princípio da irrelevância penal do fato. O primeiro possibilita o arquivamento ou o não recebimento da ação ou a absolvição penal nas imputações de fatos bagatelares próprios, ou seja, os que não possuem tipicidade material, após desvalor da ação ou do desvalor do resultado, em razão da ofensa mínima ao bem jurídico tutelado.

Noutro giro, o princípio da irrelevância penal do fato não afasta a tipicidade material, uma vez que o fato será típico (formal e materialmente), ilícito e culpável. Aqui, haverá a possibilidade de não aplicar a pena no final do processo diante de dano não muito relevante ao bem jurídico que foi reparado pelo agente e à inexistência de antecedentes penais6. Há, portanto, uma valoração judicial na sentença e conclusão pela desnecessidade de aplicação de pena.

O princípio da irrelevância penal do fato ainda não possui grande espaço na doutrina e jurisprudência do Brasil, uma vez que envolve critérios mais axiológicos e menos ontológicos, exigindo uma interpretação teleológica do direito penal com o rompimento de dogmas positivistas.

Campo de incidência segundo a doutrina

Na doutrina, não existe precisão sobre os limites do princípio da insignificância. Parcela doutrinária já defende uma amplitude maior na sua interpretação. Rogério Greco sustenta a sua incidência “nos delitos de furto, dano, peculato, lesões corporais, consumo de drogas etc”7. Paulo Queiroz, ao fazer uma correlação com o princípio da proporcionalidade, invoca o princípio da insignificância “nos crimes violentos ou com grave ameaça à pessoa, consumados ou tentados, se não para absolver o réu, pelo menos para desclassificar a infração penal, por exemplo, em crimes complexos, como o roubo (CP, art.157)”8. Com isso, o referido autor sustenta a desclassificação, com suporte no princípio da insignificância, do roubo de valor patrimonial ínfimo para o constrangimento ilegal.

O professor Maurício Antônio Ribeiro Lopes, na excelente obra sobre o tema, adverte, com acerto, sobre os riscos da imprecisão e ampliação da interpretação do princípio da insignificância:

“Apenas o registro, porque parece faltar à doutrina, como um todo, a evidenciação do procedimento reconhecedor da criminalidade de bagatela. Urge retirá-la do empirismo, da conceituação meramente individual e pessoal de cada autor ou pretor que faça do seu senso de justiça um conceito particular de bagatela. Esse é o caminho mais curto ao caos e à ruína do princípio, posto que, construído para a

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garantização da justiça material, aplicado arbitrariamente tende a reproduzir escala de injustiça análoga à praticada pelo sistema legal em sua dogmática. [...] Deixar vazar sem controle a amplitude do princípio da insignificância implica não apenas na quebra da garantia do princípio da legalidade- que de resto já é transformado pelo princípio da bagatela- mas na ruptura daquilo que se tornou a razão mais nobre para a sua defesa- a igualdade”1.

Campo de incidência segundo a jurisprudência

Atualmente, é aplicado pelos Tribunais brasileiros nas condutas formalmente típicas que causam danos de pouca importância, restringindo-se, como regra, aos crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa. Esse ainda é o entendimento majoritário.

Observa-se que as decisões recentes do STF e STJ sobre o tema apresentam vários pressupostos para a aplicação do princípio, não considerando apenas o valor econômico do bem ofendido, mas apontando os requisitos seguintes: mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e a inexpressividade da lesão jurídica provocada10.

Dos julgados do STF e STJ extraem-se ainda as seguintes regras, que não são precisas e nem duradoras, sobre o princípio da insignificância:

não se aplica nos crimes contra a administração pública porque os bens jurídicos tutelados, nesses delitos, são a moral administrativa e o patrimônio, e a moral administrativa não pode ser mensurada como ínfima11 . Exceção- aplica-se no descaminho quando o valor devido for inferior ao mínimo passível de execução pela fazenda pública;

da mesma forma, por se tratar de tutela da confiança nos papéis do Estado (moral administrativa), impossível de ser mensurada como bagatela, não se aplica o princípio da insignificância nos crimes contra a fé pública12;

quanto ao uso de drogas, importa exarar que o STF aplicou o referido princípio em julgamentos de uso de drogas por militar em serviço13. Em seguida, afastou esse entendimento, de forma liminar, no HC 94.685 de 09/09/2008, o qual foi submetido ao Pleno, com novo exame no INFO 526 de 30/10/2008, ainda sem decisão final. Importa alertar que tanto STJ quanto STF não aplicavam o princípio da insignificância na vigência do art.16 da 6368/76, substituído pelo art.28 da Lei 11343/06. Entendiam que o uso, pelas suas próprias elementares, deveria corresponder a uma quantidade insignificante, mas que não haveria atipicidade material, pois se tratava de crime de perigo abstrato contra a saúde pública14.

Além disso, de outros julgados, é possível constatar que a jurisprudência dos Tribunais Superiores considera ainda, para não aplicação do princípio da insignificância, a importância do bem para a vítima no caso concreto e a habitualidade criminosa do agente autor da conduta.

Insignificância no crime de descaminho

No que atine ao crime de descaminho (art.334 do CP), na época do extinto Tribunal Federal de Recursos, a pequena quantidade da mercadoria apreendida, a boa-fé do agente e a ausência de destinação comercial eram exigidos para se aplicar o princípio da insignificância15.

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Atualmente, o STF e o STJ aceitam a incidência do princípio da insignificância no descaminho quando o valor do tributo devido for inferior ao mínimo executável pela Fazenda Pública. Todavia, as poucas linhas abaixo revelarão a necessidade de uma guinada desse entendimento.

A corrente jurisprudencial majoritária, na aplicação da insignificância no descaminho, leva em conta o valor inferior ao mínimo executável pela Procuradoria da Fazenda. Assim, considera o valor limite de R$ 10.000,0016, com suporte na Lei 10.522/2002, com a redação dada pela Lei 11.033/2004, cujo artigo 20 preceitua: “Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais)”. Porém, no § 1º desse artigo, escreve que “os autos de execução a que se refere este artigo serão reativados quando os valores dos débitos ultrapassarem os limites indicados."

Há pequena divergência sobre o tema, pois o limite de R$100,00 (cem reais) já foi utilizado pelo STJ como patamar para a incidência do princípio da insignificância no descaminho, com a justificativa de constituir o valor possível de dispensa pela Fazenda, conforme art.18 §1º da Lei 10.522/2002. Essa corrente nega a aplicação do limite de R$10.000,00 (art.20 da Lei 10.522/2002), pois esse se refere ao ajuizamento da execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, não significando a extinção do crédito, “daí não poder invocar tal dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizador de matéria penalmente irrelevante17”. Entretanto, nas decisões recentes, tanto STF quanto STJ superaram a celeuma e seguem aplicando o princípio da insignificância no descaminho com valor devido não superior a R$10.000,00, aplicando o art.20 da Lei 10.522/2002 em detrimento do art.18 §1ºda mesma norma18.

A questão objeto de exame é se o parâmetro para a incidência do princípio da insignificância no descaminho deve ser R$ 10.000,00 (dez mil reais), valor limite para a Fazenda arquivar os autos de execução fiscal sem baixa na distribuição; ou se é o valor de R$ 100,00 (cem reais), quando a Fazenda abre mão do valor, ou seja, arquivamento com baixa na distribuição.

Ora, o fato de não existir, por ora, interesse fiscal na cobrança judicial de débitos iguais ou inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais) não pode levar à conclusão de que o não pagamento do tributo é insignificante, que constitui uma lesão ínfima ao bem jurídico penal e, portanto, uma atipicidade penal material. Assim, além dos pressupostos genéricos para a incidência do princípio, é crucial afirmar que, no tocante ao descaminho, se existe algum critério razoável para a incidência do princípio da insignificância, esse há de ser o amparado no limite de R$ 100,00 (cem reais), valor que possibilita o cancelamento da cobrança com suporte no §1º do art.18 da Lei 10.522/2002, pois constitui o limite para arquivamento com baixa na distribuição. Além de ser um patamar que admite a valoração de bagatela, inclusive, em outras infrações penais.

Soma-se a isso a falta de fundamento jurídico sólido para valorar como uma atipicidade material a conduta parâmetro de perpetrar descaminho com valor não superior a dez mil reais. As peculiaridades sócio-econômicas do Brasil não suportam tamanha interpretação, capaz de favorecer a prática do delito em análise.

Ademais, a prática do descaminho, em não poucas vezes, fomenta outros crimes conexos que decorrem da importação de produtos sem o recolhimento do tributo devido. Desse modo, o critério atual (limite de R$ 10.000,00) não preenche o conteúdo de crime

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insignificante, que exige uma lesão ínfima ao bem jurídico tutelado e leva em conta as consequências sociais da conduta.

Nessa perspectiva, segundo nosso juízo, a solução que subsiste no descaminho com valor superior a cem reais, é o exame, na fase da sentença, da necessidade de pena com suporte no princípio da irrelevância penal do fato. Assim, poderá o juiz, nos casos de débitos superiores a cem reais, desde que o processado realize a reparação do dano e não possua antecedentes penais, sem prejuízo de outras valorações com suporte no art.59 do CP, aplicar o princípio da irrelevância penal do fato no crime de descaminho.

É certo que, para adotar esse entendimento, haverá necessidade de compreender a estrutura do direito penal de forma axiológica, com suporte nos princípios constitucionais penais, os quais guiam a política criminal do Estado, numa visão funcionalista racional-teleológica do sistema penal. Nas palavras de Claus Roxin:

“Parto da ideia de que todas as categorias do sistema do direito penal se baseiam em princípios reitores normativos político-criminais, que, entretanto, não contém ainda a solução para os problemas concretos; estes princípios serão, porém, aplicados à ‘matéria jurídica’, aos dados empíricos, e com isso chegarão a conclusões diferenciadas e adequadas à realidade”.