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Texto extraído de “Coleção Explorando o Ensino – Sociologia – Volume 15. Brasília:
Ministério da Educação, 2010.”
Cap. 2 – Metodologia de Ensino de Ciências Sociais
Princípios epistemológicos: estranhamento e desnaturalização
As Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Conhecimentos de
Sociologia (OCEM-Sociologia) indicam uma disposição necessária – dois fundamentos,
perspectivas, ou princípios epistemológicos – para o desenvolvimento do ensino da
Sociologia no Ensino Médio: estranhamento e desnaturalização.
Estranhamento
Estranhamento é o ato de estranhar no sentido de admiração, de espanto diante de
algo que não se conhece ou não se espera; por achar estranho, ao perceber (alguém ou
algo) diferente do que se conhece ou do que seria de se esperar que acontecesse daquela
forma; por surpreender-se, assombrar-se em função do desconhecimento de algo que
acontecia há muito tempo; por sentir-se incomodado ou ter sensação de incômodo diante
de um fato novo ou de uma nova realidade; por não se conformar com alguma coisa ou
com a situação em que se vive; não se acomodar; rejeitar.
Estranhar, portanto, é espantar-se, é não achar normal, não se conformar, ter uma
sensação de insatisfação perante fatos novos ou do desconhecimento de situações e de
explicações que não se conhecia. Estranhamento é espanto, relutância, resistência.
Estranhamento é uma sensação de incômodo, mas agradável incômodo – vontade de
saber mais e entender tudo –, sendo, pois, uma forma superior de duvidar. Ferramenta
essencial do ceticismo.
Problematizar um fenômeno social é fazer perguntas com o objetivo de conhecê-
lo: “– Por que isso ocorre?” “– Sempre foi assim?” “– É algo que só existe agora?” Por
exemplo: quando hoje estamos frente à questão da violência, devemos perguntar: “–
Houve violência em todas as sociedades? Como era a violência na Antiguidade? Em
outros países, há a violência que vemos no nosso cotidiano? Há um só tipo de violência?
Quais as razões para tais e quais tipos de violência?”
Estranhar situações conhecidas, inclusive aquelas que fazem parte da experiência
de vida do observador, é uma condição necessária às Ciências Sociais para ultrapassar –
ir além – interpretações marcadas pelo senso comum, e cumprir os objetivos de análise
sistemática da realidade.
Desnaturalização
É muito comum no nosso cotidiano ouvirmos a expressão: “– Isso é natural”. Esta
expressão nos remete à ideia de algo que sempre foi, é ou será da mesma forma, imutável
no tempo e no espaço. Em consequência, é por isso que também ouvimos expressões
como: “– É natural que exista a desigualdade social, pois afinal está na Bíblia e os
pobres sempre existirão”.
Assim, as pessoas manifestam o entendimento de que os fenômenos sociais são de
origem natural, nem lhes passando pela cabeça que tais fenômenos são na verdade
constituídos socialmente, isto é, historicamente produzidos, resultado das relações
sociais.
Para desfazer esse entendimento imediato, um papel central que o pensamento
sociológico realiza é a desnaturalização das concepções ou explicações dos fenômenos
sociais. Há uma tendência sempre recorrente de se explicarem as relações sociais, as
instituições, os modos de vida, as ações humanas, coletivas ou individuais, a estrutura
social, a organização política etc. com argumentos naturalizadores. Primeiro, perde-se de
vista a historicidade desses fenômenos, isto é, que nem sempre foram assim; segundo,
que certas mudanças ou continuidades históricas decorrem de decisões, e essas, de
interesses, ou seja, de razões objetivas e humanas, não sendo fruto de tendências naturais.
Procurando fazer uma ponte entre o estranhamento e a desnaturalização, pode-se
afirmar que a vida em sociedade é dinâmica, em constante transformação; constitui-se de
uma multiplicidade de relações sociais que revelam as mediações e as contradições da
realidade objetiva de um dado período histórico. É representada por um conjunto de
ações que se caracterizam pela capacidade de alterar o curso dos acontecimentos, e
provocar transformações no processo histórico. Os saberes sociológicos são construídos a
partir da sistematização teórica e prática do processo social e a ação concreta dos homens
delimita o campo de análise sociológica; além disso, a dinâmica da vida social oferece as
ferramentas fundamentais para a sistematização do conhecimento.
Se o objeto de análise da Sociologia tem como foco principal a vida social, e
todos nós fazemos parte desse objeto – seres sociais em ação e, ao mesmo tempo,
protagonistas da análise sociológica –, como manter o distanciamento necessário para a
apreensão científica do real?
Uma das respostas a esse questionamento está na postura inicial de atuação das
Ciências Sociais, que supõe a superação do senso comum em direção a uma análise
científica da sociedade. É o estranhamento diante de situações já consagradas como
óbvias, familiares, naturais que caracteriza e confere especificidade às Ciências Sociais.
Estranhar o já conhecido, o tido como natural, permite que fenômenos aparentemente
evidentes revelem dúvidas, contradições, desmandos e arbitrariedade em sua composição.
Esse processo de estranhamento, que é tarefa típica do pesquisador social, só é
possível mediante o distanciamento do fenômeno social. Colocar-se à distância do
fenômeno social – ainda que o mesmo faça parte da experiência de vida do pesquisador –
é a possibilidade de ultrapassar os limites do senso comum – que supõe a naturalidade da
cultura –, e inquietar-se com questões rotineiras e consagradas pela normalidade.
É essa propriedade das Ciências Sociais – olhar para além da realidade imediata –,
que possibilita a dessacralização e desnaturalização dos fenômenos sociais, ao submetê-
los a critérios científicos de análise: pois os fenômenos sociais não participam do sagrado
– não são obras divinas –, nem da natureza – não são regidos por leis naturais –: são
humanos.
É contribuição das Ciências Sociais, como a disciplina Sociologia para o nível
médio, propiciar aos jovens o exame de situações que fazem parte do seu dia a dia,
imbuídos de uma postura crítica e atitude investigativa. É sua tarefa desnaturalizar os
fenômenos sociais, mediante o compromisso de examinar a realidade para além de sua
aparência imediata, informada pelas regras inconscientes da cultura e do senso comum.
Despertar no aluno a sensibilidade para perceber o mundo à sua volta como resultado da
atividade humana e, por isso mesmo, passível de ser modificado, deve ser a tarefa de todo
professor.