117

Princípios, Volume 11, Números 15-16

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Revista Princípios (Natal), UFRN

Citation preview

Page 1: Princípios, Volume 11, Números 15-16
Page 2: Princípios, Volume 11, Números 15-16

PrincíPiosrevista de FilosoFia

v. 11 nos 15-16 Jan./Dez. 2004Universidade Federal do Rio Grande do NorteCentro de Ciências Humanas, Letras e ArtesPrograma de Pós-Graduação em Filosofia

Page 3: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Universidade Federal do Rio Grande do NorteReitorJosé Ivonildo do RêgoVice-ReitorNilsen Carvalho Fernandes de Oliveira FilhoDiretor do Centro de Ciências Humanas, Letras e ArtesMárcio Moraes ValençaCoordenador do PPGFILJuan Adolfo BonacciniVice-Coordenador do PPGFILAbrahão Costa AndradePrincíPios, revista de FilosoFiaEditores ResponsáveisMarkus Figueira da SilvaComissão EditorialÂngela Maria P. Cruz, Cláudio F. Costa, Monalisa Carrilho de MacedoEditor de ResenhasGlenn W. EricksonConselho EditorialColin B. Grant (UFRJ), Walter E. Wright (Clark University/USA), Franklin Trein (UFRJ), Marco Zíngano (USP), Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Enrique Dussel (UNAM – México), André Leclerc (UFPB), Daniel Vanderveken (Quebec/Canada), Maria das Graças de Moraes Augusto (UFRJ), Elena Morais Garcia (UERJ), Gottfried Gabriel (Friedrich Schiller Universität, Jena/Ale-manha), Mario P. M. Caimi (UBA/Argentina), Roberto Machado (UFRJ), Steven Daniel (Texas A & M University/USA), Maria Cecília M. de Carvalho (PUC – Campinas), Matthias Schirn (Universität München/Alemanha). Editoração EletrônicaMarcus Vinícius Devito MartinesPrincípios é uma revista que tem como objetivo principal promover a discussão e a divulgação de idéias pertencentes a qualquer área da filosofia, sem restrições de método. Para aquisição, encomenda ou assinatura, o interessado deverá dirigir-se ao seguinte endereço:

Princípios, PPGFIL, CCHLA, UFRN, Campus Universitário, Km 1, BR 101, Lagoa Nova59. 078-970 – Natal/RN Tel.: (84) 3215-3643 – Fax: (84) 3215-3641www. filosofia. cchla. ufrn. brprincipios@cchla. ufrn. br – ppgfil@cchla. ufrn. brPreço do exemplar: R$ 20, 00 para instituições, R$ 15, 00 para assinantes e R$ 10, 00 para estudantes

ISSN 0104-8694

Articles published in Princípios are indexed in The Philosopher’s Index. Catalogação na publicação. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede. Divisão de Serviços Técnicos.

Princípios, UFRN, CCHLA v. 11 nos. 15-16 (2004) Natal (RN): EDUFRN – Editora da UFRN, 2003.

Semestral

1. Filosofia… – Periódicos

ISSN 0104-8694RN/UF/BCZM CDU 1 (06)

Page 4: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sumário

Markus Figueira da SilvaApresentação, 5

Maria das Graças de Moraes AugustoA arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne, 7

Celso Martins Azar FilhoSócrates e as leis: democracia e metafísica, 29

José Trindade SantosSujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica, 65

Mario A. L. Guerreiro O erro moral na tragédia e na epopéia, 83

Cícero Cunha BezerraAlgumas considerações sobre a leitura procleana do Parmênides de Platão, 99

Giovanni CasertanoMorte, 109

Rachel GazollaO Ofício do Filósofo Estóico, o duplo registro do discurso da Stoa, 111

Normas para redação e apresentação dos trabalhos, 115

PrincíPiosrevista de FilosoFia

v. 11 nos 15-16 Jan./Dez. 2004Universidade Federal do Rio Grande do NorteCentro de Ciências Humanas, Letras e ArtesPrograma de Pós-Graduação em Filosofia

Natal, Rio Grande do Norte Semestral

Princípios UFRN Natal v. 11 nos. 15-16 p. 01-116 Jan./Dez. 2004

Page 5: Princípios, Volume 11, Números 15-16
Page 6: Princípios, Volume 11, Números 15-16

5

Apresentação

A Revista Princípios apresenta um número especial dedicado à Filosofia Antiga. Trata-se de uma seleção de artigos sobre temas fundamentais da antiguidade e constituem um excelente instrumento de pesquisa para alunos e pesquisadores. Há muito esperamos abrir espaço para uma área tão importante da Filosofia que, no entanto, não tem tido a atenção devida para publicação. Os estudos nesta área têm avan-çado significativamente em todo o país e muitos dos pesquisadores que colaboraram com este número mantém profícuas relações que se fortificam a cada encontro, congresso, seminário ou colóquio em diversas regiões do Brasil. Agrademos a colaboração de todos aqueles que contribuíram para a realização deste trabalho.

Markus Figueira da Silva(Organizador)

Page 7: Princípios, Volume 11, Números 15-16
Page 8: Princípios, Volume 11, Números 15-16

7

A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne1

Maria das Graças de Moraes AugustoDepartamento de Filosofia – UFRJ

Quem não vê bem uma palavra. Não pode ver bem uma alma.

Fernando Pessoa

O desafio que Gláucon e Adimanto fazem a Sócrates na República, de construir o elogio da justiça (dikaiosýne) de modo a demonstrar, através de um argumento estritamente filosófico, que a justiça é me-lhor do que a injustiça terá como contrapartida uma longa narrativa acerca do modo de ser da philosophía na cidade e de como esse modo de ser dá origem a uma espécie de politeía, aquela que é boa e reta2. Nesse sentido, não podemos esquecer as exigências que os dois irmãos de Platão fazem a Sócrates: encomiar a justiça, no nível do conteúdo e da forma, isto é, demonstrar que a dikaiosýne é um bem que vale em si e por suas conseqüências, o que por si só já estabelece o grau de complexidade dessas exigências, dar conta do “ser da dikaiosýne” e das ações que ela engendra3. Portanto, se o conteúdo fundamental

1 Uma primeira versão do presente texto foi apresentada no II Colóquio Internacional do GIPSA – Grupo Interdisciplinar de Pesquisa sobre as Sociedades Antigas – Imagem e Narrativa na Antigüidade Clássica, realizado em outubro de 2000, na Faculdade de Letras da UFMG. A atual versão valeu-se das discussões e sugestões feitas pelos professores David Bouvier, Jacyntho Lins Brandão, Maria Sylvia Carvalho Franco e Marcelo Pimenta Marques, ao longo de agradáveis − e algumas vezes intempestivas − conversas nas noites mineiras do GIPSA. Em especial agradeço também a Alice Bitencourt Haddad, doutoranda em Filosofia na UFRJ, não só pela revisão do texto, mas, sobretudo, pela amizade e pela interlocução sempre inteligente. 2 Cf. Rep., 449 a: Agathèn mèn toínyn tèn toiaúten pólin te kaì politeían kaì orthèn kalô. [A uma cidade e constituição dessas chamo eu, portanto, boa e reta. ]3 Cf. Rep., 358 b: “epithymô gàr akoûsai tí t’éstin hekáteron kaì tína ékhei dýnamin autò kath’ autò enòn en têi psykhêi, toùs dè misthoùs kaì tà gignómena ap’ autôn eâsai khaírein.” [Desejo ouvir o que é cada uma delas, e que dýnamis possuem por si, quanto existem na alma, sem ligar importância aos salários nem aos prazeres. ]; 366e: “...autò d’ hekáteron têi autoû dynámei en têi toû ékhontos psykhêi enón, kaì lanthánon theoús te kaì anthrópous, oudeìs pópote oút’ en poiései oút’

Page 9: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga8

já diz respeito à idéia de bem, a questão da forma não será, por sua vez, menos complexa, pois quando Gláucon e Adimanto exigem a composição do “épainos/enkómion”4 da dikaiosýne, nela mesma e por ela mesma, coisa que nem Gláucon jamais viu ser feita pela maioria (hoi polloí), nem Adimanto pelos poetas5, estão sugerindo a Sócrates a demonstração do argumento filosófico como um gênero do lógos, isto é, que o filósofo determine a diferença entre o seu modo de argu-mentar e os modos sofístico e poético, explicitando, enfim, em que consiste a “utilidade” do lógos filosófico. Colocando de lado sua adynamía, Sócrates proporá a seus interlo-cutores auxiliar a dikaiosýne nos limites de sua dýnamis (dýnamai epikoureîn autêi)6. E aí cabe, então, perguntar: que limites são esses? A resposta parece-nos, à primeira vista, simples: de um lado, a phýsis,

en idíois lógois epeksêlthen hikanôs tôi lógoi hos tò mèn mégiston kakôn hósa ískhei psykhè en hautêi dikaiosýne dè mégiston agathón.” [...quanto ao que são cada uma [a justiça e a injustiça] em si e o efeito que produzem por suas próprias dynámeis, pelo fato de se encontrarem na alma do seu possuidor, ocultas a homens e deuses, ninguém jamais demonstrou suficientemente, em prosa ou em verso, até que ponto uma é o maior dos males que uma alma pode albergar, ao passo que a outra, a justiça, é o maior dos bens. ]4 Platão parece não estabelecer uma diferença rigorosa entre épainos e enkómion, na República eles são usados indistintamente para referir-se ao “louvor”, seja às ações virtuosas, seja aos ho-mens bons e virtuosos. Se seguirmos as indicações dadas no Banquete, veremos que a diferença aí sugerida entre o épainos e o enkómion está na forma do louvor: os poetas o fazem em versos, enquanto os sofistas o fazem em prosa: “Não é estranho, Erixímaco, que para outros deuses haja hinos e peãs, feitos pelos poetas, enquanto que ao Amor todavia, um deus tão venerável e tão grande, jamais um só dos poetas que tanto se engrandeceram fez sequer um encômio (enkómion)? Se queres, observa também os bons sofistas: a Hércules e a outros eles compõem louvores (epaínous) em prosa, como o excelente Pródico − e isso é menos de admirar, que eu já me deparei com um livro de um sábio em que o sal recebe um admirável elogio (épainon), por sua utilidade; e outras coisas desse tipo em grande número poderiam ser elogiadas (enkekomias-ména).” Cf. Banquete, 177a-b (Tradução de José Cavalcante de Souza). Dover em sua edição do Banquete comenta: “The speech which each guest delivers is described indifferently as épainos ‘praise’ (e. g. 177d2) or an ‘encomium’ (e. g. 177b1) of eros.” DOVER, K. 1980. p. 11. 5 Cf. AUGUSTO, Maria das Graças. O visível e o invisível nos argumentos do livro II da República. Textos de Cultura Clássica. Belo Horizonte. V. 8, n. 19, p. 19-42, onde discuto os ar-gumentos apresentados por Glaúcon e Adimanto a partir da relação entre o visível e o invisível, efetivada pela dýnamis do anel encontrado por Gyges e pelo lógos dos poetas que leva os homens ao Hades, tornando visível o que é, por natureza, invisível. 6 Cf. Rep., 368a-c: “...mas quanto mais confio em vós, mais me sinto embaraçado com o que hei de fazer. Pois não tenho maneira de defender a justiça. Parece-me que sou incapaz. [...] E, por outro lado, não posso deixar de a defender. Com efeito, tenho receio que seja impiedade que, atacando-se a justiça na minha presença, eu não a defenda, nem lhe acuda enquanto pu-

Page 10: Princípios, Volume 11, Números 15-16

A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 9

do outro, os érga em que ela se manifesta. Mas, nessa moldura com-posta de phýsis e érgon, como tornar visível isto que é, por natureza, a areté dos homens, a dikaiosýne?7

Recorrendo ao lógos, pois ele guarda a possibilidade assinalada por Adimanto em sua crítica ao argumento poético8, de tornar visível aquilo que é por natureza invisível, e utilizando-o como substrato na composição do tópos da dikaiosýne, Sócrates proporá, então, a mode-lagem de uma “pólis lógoi”. Assim, nosso objetivo aqui é discutir como nesse processo de com-posição Sócrates determinará: [i] a philosophía como um gênero do lógos; [ii] a forma e o conteúdo desse gênero; e, [iii] como nele se mesclam o divino e o humano nos limites do que é pseûdos e alethés.

1. A tékhne e a coalescência entre lógos e érgon

1. 1 O axioma fundador da “pólis lógoi”Ao propor a seus interlocutores a composição de uma cidade feita com lógos para tornar visível a justiça tanto na pólis quanto na alma dos homens9, Sócrates enfatiza que essa busca é um “grande érgon”10, inferindo, a seguir, que a gênese da cidade dá-se pela impossibilidade da autarkeía entre os homens, uma vez que temos necessidade de muitas coisas, daí a exigência de koinonía, a qual atribuímos o nome de pólis,11 e que se determina a partir de nossas necessidades (khreía)

der respirar e for capaz de falar. O melhor, portanto, é socorrê-la dentro dos limites da minha capacidade (dýnamis).” (Tradução de M. H. da R. Pereira). 7 Cf. Rep., 335c: “Mas a justiça não é a areté dos homens?” (Tradução de M. H. da R. Pereira, com modificações). 8 Rep., 363c: “Efetivamente [os poetas], levam-nos com o lógos ao Hades, instalam-nos à mesa, preparam-lhes um banquete dos bem-aventurados, coroando-os de flores, e fazem-nos passar todo o tempo, daí em diante, a embriagar-se, imaginando que o mais poderoso salário da virtude é uma embriaguez perpétua.”.... Sobre o argumento poético exposto por Adimanto, cf. AUGUSTO, M. G. M. op. cit., 1996. p. 27-31; 34-35. 9 Cf. Rep., 369a7-8: “...ei gignoménen pólin theasaímetha lógoi, kaì tèn dikaiosýnen autês ídoimen àn gignoménen kaì tèn adikían?10 Cf. Rep., 369b2-3: “oîmai mèn gàr ouk olígon érgon autò eînai.”11 Cf. Rep., 369b6-7: “Gígnetai toínyn, ên d’égó, pólis, hos egôimai, epeidè tynkhánei hemôn hékas-tos ouk autárkes, allà pollôn endeés; è tín’oíei arkhèn allen pólin oikízein? Ao afirmar o princípio da koinonía como fundante da pólis, Platão está já a contrapor-se às teses sofísticas, e, certamente,

Page 11: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga10

primordiais, sendo a alimentação (trophé), que conserva o ser e a vida, a maior dentre elas, seguindo-se a habitação, o vestuário, o calçado e tudo que com elas se relaciona.12

Dessa koinonía, Sócrates vai inferir, a seguir, o princípio que sustentará toda a sua composição, melhor dizendo, o seu encômio da justiça: cada cidadão da “polis lógoi” deve executar o que lhe é próprio para ser comum a todos, pois cada um de nós não nasceu semelhante ao outro, mas com naturezas diferentes, cada um para agir através de seu érgon.13

Ora, isto equivale a dizer que a cada érgon cabe, por natureza, uma práxis que se constitui de modo belo (kállion), se for executada através de uma, e somente uma, tékhne 14, no momento “oportuno” do obrar (érgou kai-rón), sendo, pois, necessário que essa práxis esteja em consonância com o érgon, não como skholé , mas como expressão da phýsis.15

já poderíamos ver aqui uma alusão à tese de Hípias acerca de sua “integral” autarkheía: “Pois és o mais sábio dos homens em todas as artes, como de uma feita já te ouvi gabar-te na ágora, junto de uma banca de câmbio, ao enumerares a variedade verdadeiramente invejável de tuas aptidões. Dizias que certa vez em que foste a Olímpia tudo o que trazias sobre o corpo havia sido feito por ti. Em primeiro lugar, o anel que tinhas no dedo − foi por aí que principiaste − era trabalho teu, pois, sabia muito bem entalhar anéis; trazias, também, um cinto feito por ti; tua escova de banho e um frasquinho de óleo eram de tua fabricação. De seguida, disseste que tu mesmo havias cortado os sapatos que então calçavas, bem como havias tecido o manto e a túnica. Porém o que mais deixou a todos estupefatos, como demonstração de tua extraordinária sabedoria, foi dizeres que o cinto da túnica que tinhas no corpo, também feito por ti, era igual aos da mais fina fabricação persiana. Ademais, levavas contigo poemas diferentes, epopéias, tragédias e ditirambos, além de composições em prosa da mais variada espécie. A respeito das ciências a que há momentos me referi, apresentavas-te como superior a quem quer que fosse, bem como em ritmo, em harmonia e na arte de bem escrever, e em muitos outros gêneros, se bem me lembro, em que também te sobressaias. Sim, quase ia esquecendo a tua menmotécnica, em que te consideras particularmente brilhante. É certeza haver-me olvidado de muita coisa.” PLATÃO. Hípias Menor, 368b-e. [Tradução de Carlos Alberto Nunes, com modificações]. 12 Cf. Rep., 369c1-4; 369d1-2 ...“ állon ep’ állou, tòn d’ ep’ állou khreíai, pollôn deómenoi, polloùs eis mían oíkesin ageírantes koinonoús te kaì boethoús, taútei têi xynoikíai ethémetha pólin ónoma. [...] Allá mèn próte ge kaì megíste tôn khreíon he tês trophês paraskeuè toû eînai te kaì zên héneka. 13 Cf. Rep., 369e2-3: “...héna hékaston toúton deî to autoû érgon hápasi koinòn katatithénai; 370a9-b1-2: “...hóti prôton mèn hemôn phýetai hékastos ou pány hómoios hekástoi, allà diaphéron tèn phýsin, állos ep’ állou érgou prâxin. 14 Cf. Rep., 370 b3: “...póteron kállion práttoi án tis heîs òn pollàs tékhnas ergazómenos, è hótan mían heîs? 15 Rep., 370c2: “...Ek dè toúton pleío te hékasta gígnetai kaì kállion kaì rhâion, hótan heîs hèn katà phýsin kaì em kairôi, skolèn tôn állon ágon, práttei.”

Page 12: Princípios, Volume 11, Números 15-16

A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 11

Na seqüência, reconhecendo que a satisfação das quatro necessidades fundamentais aos homens não pode ser suprida apenas por quatro cidadãos, Sócrates proporá a introdução na cidade de agricultores, demiurgos, marinheiros, retalhistas, negociantes e assalariados16, es-truturando de tal modo as tékhnai e os érga na pólis que, ao descrever esse modo de ordenação, concluirá que o caráter desse regime (trópon diaitésontai)17, por ser moderado (metríos)18, proporcionará a seus ci-dadãos uma vida,

...em paz e com saúde, morrerão velhos, como é natural, e transmitirão aos seus descendentes o mesmo regime de vida.19

Assim, no que tange à modelagem da primeira cidade narrada por Sócrates na República, podemos inferir: [i] que, embora ela seja feita de e com o lógos, essa modelagem é tomada como um “grande érgon”, logo, que entre lógos e érgon há uma coalescência primordial; [ii] que essa coalescência é compreendida como phýsis; e, [iii] que sua utilida-de consiste na produção da paz e da saúde através de uma metrética garantida pelo natural exercício das tékhnai.

Portanto, poderíamos, para já, concluir a partir dessa “modelagem bruta” da “pólis lógoi” que ela supõe também uma tékhne. Qual é esta tékhne, é o que nos cabe agora indagar. E para responder a essa questão, contamos com o auxílio de Gláucon, quando, refutando a legitimidade desse “natural” regime de vida, exige que Sócrates intro-duza na cidade o nomízein.

1. 2 As tékhnai na cidade phlegmáticaA exigência de Gláucon fundamenta-se no fato de que os homens sob esse regime “natural” sentir-se-ão infelizes, sofrerão, por não desfruta-

16 Rep., 370e -371a-e. 17 Rep., 372 a-b. 18 Rep., 372 d-1. 19 Rep., 372 d1-2: “...kaì hoúto diágontes tòn bíon en eirénei metà hygieías.”

Page 13: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga12

rem do que já é o “costume”20; a utilidade do nómos consiste, então, na possibilidade de mediar a dor e o sofrimento.

E Sócrates, seja por ardil metódico, seja por necessidade de agudizar a visão de seus interlocutores, acatará a exigência de Glaúcon intro-duzindo na cidade a zographía e a poikilía, a pintura e a variedade, de tal modo que as antigas necessidades primordiais, inchadas pela ação da phlégma, farão da “cidade verdadeira”21, a que era “pacífica e saudável”, uma tryphôsa pólis, uma cidade de luxo22, que abrigará, assim, duas espécies de cidadãos desnecessários à cidade: os caçado-

20 Rep., 372d-7-10: “Háper nomízetai, éphe: epì te klinôn katakeîsthai, oîmai toùs méllontas mè talaipopreîsthai, kaì apò trapezôn deipneîn, kaì ópsa háper kaì hoi nýn ékhousi, kaì tragémata.” [“O costume − respondeu ele −. Acho que devem reclinar-se em leitos, se não quiserem que se sintam infelizes, e que jantem, à mesa, iguarias como hoje há, e sobremessas.”] 21 Rep., 372e-7: “He mèn oûn alethinè pólis dokeî moi eînai hèn dielelýthamen, hósper hygiés tis; ei d’ aû boúlesthe kaì phlegmaínousan pólin theorésomen; oudèn apokolýei.” 22 O estabelecimento da “tryphôsa pólis” com suas novas modalidades de vida comunitária facilitará a Sócrates a exposição da paideía como o procedimento capaz de purificar, e, conse-qüentemente, restabelecer a saúde da “cidade phlegmática”. Um exemplo do caráter do cidadão da “tryphôsa polis” está demarcado no Mênon quando Sócrates, apontando a hýbris de seu inter-locutor afirma que Mênon se esquece da geometria e age como os “tryphôntes” , os que vivem no luxo, no excesso, e que tiranizam enquanto dura sua beleza. Portanto, a figura ambivalente de Mênon, personagem do diálogo homônimo, que nas palavras de Xenofonte desejava sempre obter vantagens e que para chegar a seus objetivos usava o perjúrio e a fraude, sendo hábil em inventar mentiras (cf. XENOFONTE. Anábase, III, 21-26) e que interroga Sócrates acerca da areté, parece ser uma das espécies de cidadãos que habitam a “cidade phlegmática”. Cf. Mênon, 76a-c. Por outro lado, ao contrapor a “cidade saudável” à “cidade phlegmática” Platão parece estar a valer-se da tese hipocrática, apresentada no Perì phýsios anthrópou, de que o homem é com-posto de quatro humores −a fleuma, a bílis amarela, a bílis negra e o sangue −, que são a causa da doença e da saúde, para compreender a formação da justiça e da injustiça na cidade e no homem: quando os quatro humores estão em justa proporção, tanto de quantidade quanto de qualidade, se sua mistura é perfeita, existe a saúde, mas quando um desses humores se isola no corpo, em pequena ou grande quantidade, em lugar de permanecer misturado com os outros, temos a doença. Com o movimento dos humores, não só o lugar deixado por ele torna-se do-ente, mas, também, aquele no qual ele se fixa e se acumula, seguindo-se, assim, uma obstrução que provoca sofrimento e dor. Portanto, a doença, tanto no corpo, quanto na cidade, é fruto de excessos. Cf. HIPOCRATE. La nature de l’ homme. 4, 2-3. E aqui poderíamos ainda remeter o leitor ao livro VIII da República, onde Platão, analisando a constituição democrática, mostrará que no excesso de liberdade da democracia reside o “belo e sedutor começo da tirania”, bem como que as doenças que acometem os homens que habitam sob a constituição democrática e tirânica são provocadas pela fleuma e pela bílis: “Quando estas duas espécies de homens [o democrata e o tirano], por conseguinte, se formam, causam per-turbações em toda a politeía, tal como a fleuma e a bílis relativamente ao corpo.” Rep., 564b-c. Para uma análise do modelo político das doenças, ver o texto de CAMBIANO, G. Pathologie

Page 14: Princípios, Volume 11, Números 15-16

A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 13

res (hoi thereutaí) e os imitadores (hoi mimetaí). Por sua vez, esses mimetaí serão também divididos em duas espécies: aqueles que mi-metizam através da zographía, valendo-se das figuras e das cores (tà skhémata te kaì khrômata); e aqueles que se dedicam à mousiké, vale dizer, os poetas e seus servidores − rapsodos, atores, coreutas, empre-sários, além de artíficies (demiourgoí) que fabriquem todas as espécies de utensílios, acrescentando-se, ainda, servidores de várias espécies: pedagogos, amas, governantas, açafatas, cabeleireiros, cozinheiros e açougueiros23.

Dessa forma, ao tornar a cidade phlegmática, Sócrates introduzirá entre seus cidadãos duas necessidades: médicos para “salvar” o cor-po, e, também, o alargamento da khôra da cidade de modo a ter espaço suficiente para a “alimentação” de seus habitantes, o que implicará em conflitos com seus vizinhos, ou seja, alargar a khôra significa a necessidade de um exército que lute na defesa dos bens (tês ousías) da cidade.

Para essa “salvaguarda”, se vale aqui o princípio genético da cidade − o de que é impossível a um único homem exercitar-se numa plu-ralidade de tékhnai, se temos por horizonte a “perfeição” do que se produz24 −, fazer a guerra exige um saber próprio a uma tékhne e, con-seqüentemente, um cidadão cujo érgon seja também coalescente com o seu exercício25. Por conseguinte, se a guarda da cidade é uma tékhne, e se visamos à perfeição do que é por ela produzido, a guerra exige do guerreiro não só a aquisição de uma epistéme e de uma meléte que a torne suficiente (hikané), mas, sobretudo, uma natureza apropriada ao exercício de ambas. Ao tornar o antigo guerreiro (polemikós) “guar-dião da pólis” (póleos phylakén), Sócrates insistirá na necessidade de demarcar a natureza desse “cidadão” como parte da tarefa do “grande

et analogie politique, 1983. p. 441-58. Veja, também, para relação política-doença no pensa-mento político de Platão, WOLIN, S. Política y perspectiva, 1974. 23 Cf. Rep., 373 c-d. 24 Cf. Rep., 374 b-d. 25 Rep., 374 b1-2: “...he perì tòn pólemon agonía ou tekhnikè dokeî eînai?”

Page 15: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga14

érgon” em que consiste a composição da “pólis lógoi”, tarefa essa que deve, ainda mais uma vez, estar delimitada pela dýnamis socrática26.

É, pois, assimilando a função dos guardiões a dos cães de boa raça27, que Sócrates estabelecerá as exigências no nível do corpo (sôma) e no nível da alma (psykhé) que a phýsis do guardião deve preencher: [i] a “acuidade de visão” para perceber o inimigo e, a partir do momento em que o perceber, ser “veloz” na perseguição e “forte” no combate, caso seja pego28; devendo ser, além disso, corajoso para lutar bem (eû makheîtai); e, [ii] como toda coragem exige a irascibilidade (thymoei-dés), ele deve possuir o thymós que é “invencível e indomável”, e uma alma possuída por ele não conhece medo nem derrota29.

Entretanto, essas exigências podem ser apropriadas não apenas à luta dos guardiões com os inimigos, mas, também, aos próprios guardiões, conclusão que termina por levar Sócrates a reconhecer em seu argu-mento uma “aporía” provocada pelo abandono da imagem (eikôn) da “cidade saudável e pacífica” 30. Como fazer para que a guarda da cida-de se efetive como sendo a “preservação” de seu princípio fundante e não a sua destruição? Não seria, então, necessário que o guardião fos-se doce para com aqueles que lhe são familiares (toùs oikeíous práious) e irritadiço para com os inimigos (toùs polemíous khalepoús)31?

Retomando a analogia com os cães32, Sócrates responderá que a natureza daqueles que são de boa raça expressa esse êthos, uma vez

26 Rep., 374 e. 27 Rep., 375 a. 28 Rep., 375 a. 29 Rep., 375 a-b. 30 Rep., 375d. 31 Rep., 375 c. 32 Aqui não seria inoportuno lembrar que Trasímaco é assimilado por Sócrates à figura do lobo, quando aquele se introduzir na discussão fazendo menção à dialética socrática como mera “tagarelice” (phlyaría), em 336c-2, Sócrates replicará: “Ao ouvir isto, fiquei estarrecido; volvi os olhos na sua direção, atemorizado, e pareceu-me que, se eu não tivesse olhado para ele antes de ele ter olhado para mim, teria ficado sem voz. Mas neste caso, quando começou a irritar-se com a nossa discussão, fui eu o primeiro a olhá-lo, de maneira que fui capaz de lhe responder.” (Rep., 336d-e). Nesse passo, Platão faz menção à tradição que dizia que se encontrássemos um lobo e ele nos visse primeiro ficaríamos privados de voz, e Sócrates, ao ver primeiro Trasímaco,

Page 16: Princípios, Volume 11, Números 15-16

A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 15

que, possuindo a capacidade de “conhecer”(gnorímous) os que são familiares e aqueles que não o são, podem agir de modo “doce” para com os primeiros e “feroz” para com os segundos. Portanto, se há nos cães essa capacidade natural de discernimento, certamente ela deverá existir nos guardiões. Como e onde encontrá-la nos guardi-ões? A resposta socrática é, mais uma vez, aparentemente simples, acrescenta ao thymoeidés um natural “instinto” filosófico”(pròs tôi thymoeideî éti prosgenésthai philósophos tèn phýsin)33! A rapidez da res-posta socrática não deixará de provocar espanto e incompreensão em Gláucon, que exigirá a explicação dessa “estranha” relação: thymoeidés e philósophos.

Ora, a única maneira de discernir (diakrínein) através da visão o que é amigo (phílos) do que é inimigo (ekhtrós) é pela via da aprendizagem (katamatheîn), logo, como não ser amigo de aprender (philomathés) se é pela máthesis que podemos determinar quem é familiar (oikeîon) e quem é outro (allótrion)?

Desse modo, se a natureza do guardião deve ter a capacidade de dis-cernir as coisas familiares das outras que não o são, não será difícil a Sócrates concluir que para ser um guardião perfeito (kalòs te kaì agathós) é preciso admitir que: [i] ser naturalmente philósophos e na-turalmente philomathés, é o mesmo (tò ge philomathés kaì philósophon t’autón); [ii] para ser doce com os familiares é preciso ser, por nature-za, philósophos e, [iii] para ser feroz com os inimigos o guardião deve ser, por natureza, thymoeidés, veloz e forte.

Ao exigir de Sócrates o alargamento da “polis lógoi”, seja pela intro-dução de uma multiplicidade de tékhnai, seja pelo alargamento das dimensões territoriais da cidade, Gláucon permite a Sócrates a intro-

garante a possibilidade do diálogo. Ao valer-se da analogia do cão com o guardião e do lobo com o sofista, pensamos que Platão está, mais uma vez, contrapondo a diferença de forma e conteúdo em relação aos argumentos sofístico e filosófico. Sobre essa questão cf. MAINOLDI, C. L’ image du loup et du chein dans la Grèce Ancienne, 1984, e, também os comentários de, ALLAN, D. J. Plato: Republic Book I, 1962. p. 45-6 e ADAM, J. The Republic of Plato, 1963. v. 1, p. 22-23. 33 Rep., 375 e.

Page 17: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga16

dução das tékhnai que, purificadas de seus excessos através da paidéia, poderão contribuir na composição de um novo gênero do lógos, ca-paz de tornar visível o ser da justiça e as ações que ela engendra. Para isso, a escolha dos “caçadores e imitadores” que processaram esse alargamento não parece ser aleatória, mas perfeitamente direcionadas aos interesses argumentativos platônicos. Acerca dos “hoi thereutaí ” pouco dirá aqui Sócrates, apenas que são de muitas espécies e que são desnecessários à saúde e à paz da cidade34; dos “hoi mimetaí” fa-lará mais largamente, e daí já podemos inferir que eles são aqueles que praticam a mousiké e a zographía, artes que Sócrates, em algum momento de sua vida, parece ter praticado35, e que, posteriormente, no Livro VI, estarão diretamente associadas à filosofia − apresentada como a décima Musa − e ao filósofo − definido como um politeiôn zográphos. Mas, as implicações que a inserção das tékhnai produzem não terminam aí: as exigências que a guerra, como uma dessas tékh-nai, acarreta é de vital importância para as “intenções” platônicas quanto à filosofia.

Em primeiro lugar, vale lembrar que ao phýlax é exigida a mesma “acui-dade de visão” que Sócrates exige de si mesmo e de seus interlocutores quando decide socorrer a dikaiosýne nos limites da sua dýnamis36, e, em segundo lugar, que apenas àqueles que são naturalmente philóso-phos é dada a possibilidade de discernir, através da visão (ópsin oûdenì álloi phílen kaì ekhtràn diakrínei), o que é amigo do que é inimigo;

34 Todavia, não podemos esquecer que “thereutés” é a primeira definição do sofista, no diálogo homônimo: “Dokô mèn gár, tò prôton heuréthe néon kaì plousíon émmisthos thereutés”. [“Creio que, em primeiro lugar, nós descobrimos ser ele um um caçador interesseiro de jovens ricos.”] Sofista, 231d1-2. Nesse sentido, poderíamos afirmar que o alargamento da “cidade saudável e pacífica” em “phlegmática” supõe a sofística como uma das causas do movimento que introduz a doença na cidade. 35 Aqui não podemos esquecer o passo do Fédon em que Sócrates conta a Cebes como, ao lon-go de sua vida, foi acompanhado pela visita de um sonho que sempre dizia: “Sócrates, pratica a mousiké ”(cf. Fédon, 60-d-e), e de como ele o estimulou a seguir praticando a philosophía, pois acreditava que ela era a mais alta espécie da mousiké (cf. Fédon, 61 a-b). Por outro lado, vale lembrar, ainda, que a figura do Sócrates histórico parece também estar vinculada à escultura e ao uso habilidoso do lógos conforme nos conta Diógenes Laêrcios, D. L. II, 5, 18-21 e Platão, Teeteto, 149 a. 36 Cf. Rep., 368 c: “...all’ oxy blépontos hos emoì phaínetai.”

Page 18: Princípios, Volume 11, Números 15-16

A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 17

ou seja, cabe aos guardiões esse primeiro conhecimento (gnorímoûs) acerca dos amigos e dos inimigos − exposto por Polemarco quando, interpretando as palavras de Simônides, não soube identificar nelas a dikaiosýne −, que dar-se-á na aprendizagem (supondo-se aí uma epis-téme e uma meléte) de “guarda da cidade”, na sua salvação daqueles que lhe são “allótrion”, isto é, outro, estrangeiro.

Ora, se a cidade é feita de e com o lógos, podemos também inferir que essa guarda consiste em salvá-lo, tomando o érgon como o lu-gar natural dessa salvação. Talvez, seja por isso que Sócrates não faz referência à identidade desses caçadores, pois o caçador aí pode ser um dos sofistas que ensinam as doutrinas dos “hoi polloí”, como é apontado depois no livro VI37, e na “pólis lógoi” há apenas espaço para aquele “caçador” da dikaiosýne , que não é um theuretés, mas um kynegétes. Que Sócrates é esse kynegétes e que Gláucon e os demais interlocutores de Sócrates não são mais do que esses cães-guardiões, 38

37 Rep. 493a: “Que cada um desses particulares mercenários, a quem essa gente chama sofistas e considera como rivais, nada mais ensinam senão as doutrinas da maioria (tá tôn pollôn dógma-ta), que eles propõem quando se reúnem em assembleia, e chamam a isso sophía.” 38 Rep., 432 b: “Ora pois, Glaúcon, agora temos de nos postar em círculo à volta da moita, como caçadores de inteligência atenta, (hósper kynegétas tinàs thámnon kúkloi periístasthai pro-sékhontas tòn noûn), não vá a justiça fugir por qualquer lado, tornar-se invisível e desaparecer. Pois é evidente que ela anda aí por qualquer canto. Olha então e esforça-te por a descortinares, a ver se a avistas antes de mim e me prevines. Quem dera! − exclamou ele −. Mas se, em vez disso, te servires de mim como de um seguidor, capaz de ver o que lhe apontarem, achar-me-ás muito satisfatório. Vem atrás de mim − disse eu − depois de teres feito a tua oração comigo.” (Grifos nossos)Assim, após determinar os sentidos de sophía, andreía e sophrosýne, Sócrates, no Livro IV da República, passará à investigação acerca da dikaiosýne, afinal o que “restou” das investigações anteriores? A justiça, tomada assim como “resíduo”, vai ser mostrada a partir de duas variantes: [i] a analogia entre caça e filosofia, e, [ii] a contrapartida cômica que possibilita a visão primeira da “dieta filosófica” e sua função determinadora daquilo que necessita ser visto. A metáfora do filósofo-caçador aparece em vários outros diálogos, recurso da cena e do argumento, onde a comparação entre as duas “artes” possibilita a indicação do caráter difícil e lúdico dos érga do filósofo. Assim, encontramos nas Leis, 654a, no Parmênides, 128b e no Lysis, 218a-e, situações que são, de certo modo, recorrentes em relação ao contexto da passagem 432a da República. No contexto do passo 432a-e da República, a proposta socrática a Glaúcon e Adimanto de colo-carem-se “como caçadores” (hósper kynegétas) para tentarem apreender e ver a justiça, parece-nos ter como contraponto imediato o texto xenofontiano, onde a caça e seus utensílios, a caça e sua diversidade de presas, a caça como tékhne e como paidéia, produtora de bons guardiões, bons cidadãos e, de certo modo, como elemento determinante da diferença entre filósofo e sofista,

Page 19: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga18

guardadores do lógos, levados à caça da dikaiosýne através do exercício de um érgon, talvez já não seja tão difícil de ver.

Porém, como constituir a “guarda do lógos” sem prevaricar a coales-cência entre lógos e érgon?

Responder a essa questão é já perguntar pelo modo como se deve conduzir a aprendizagem do discernimento daquilo que é oikeîos e do que allótrios, isto é, como é possível educar e alimentar o trópos39 desses que são naturalmente philósophos, tomando o lógos de modo su-ficiente, a fim de avançarmos em nossa composição do “encômio da dikaiosýne”? É o que discutiremos a seguir.

2. A paideía e a coalescência entre lógos e mythos

A resposta socrática à questão colocada acima, como já sabemos de antemão, não deixa de surpreender a tradição filosófica:

Ora, vamos lá! como se estivéssemos no mito mitologando e de-socupados conduzindo no lógos a educação desses homens.40

Chegamos agora a um segundo nível fundante do lógos: a modelagem bruta da “pólis lógoi ” deve submeter-se ao refinamento da paideía. Educar e alimentar os guardiões é velar pela beleza da alma e do corpo, e aqui é preciso não esquecer que a paideía feita de e com lógos supõe no-vas démarches da philosophía no âmbito da tradição. Retomar a forma tradicional da educação grega, a mousiké e a gymnastiké, é ir conhecen-do lentamente a tékhne própria ao guardião através da purificação dos excessos de caçadores e imitadores de todas as espécies.

Começando a educação do phýlax pela mousiké, e alternando seu in-terlocutor, Sócrates indagará a Adimanto: [i] se o lógos faz parte da mousiké; [ii] se ele está de acordo que há duas espécies de lógos, uma

permitir-nos-á uma mais larga compreensão de tudo o que está em jogo na cena que antecede a definição da dikaiosýne. Cf. XENOFONTE. De la Chasse, II, 1-7; III-IV e XII-XIII. 39 Rep., 376c: “...thrépsontai dè dè hemîn hoûtoi kaì paideuthésontai tína trópon.”40 Rep., 376 d-e: Íthi oûn, hósper en mýthoi mythologoûntés te kaì skholèn ágontes lógoi paideúo-men toùs ándras.

Page 20: Princípios, Volume 11, Números 15-16

A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 19

mentirosa (pseûdos) e outra verdadeira (alethés), e, [iii] se ambas as espécies serão ensinadas na cidade. Aceitando as duas primeiras asser-tivas, Adimanto mostrar-se-á inseguro na compreensão do que quer dizer Sócrates quando afirma que ambas as espécies serão ensinadas, e que a educação deve iniciar-se através do lógos pseûdos.

2. 1. O lógos pseûdosComeçar a educação dos guardiões pelo lógos pseûdos significa, então, que ele se manifesta através dos mythoi, que “em seu conjunto são mentiras, embora contenham algumas verdades”, e, é também por isso, que a mousiké deve preceder a gymnastiké.

Ora, como em todo “grande érgon”41, o começo é vital, porque é nes-se momento, sobretudo quando se é jovem e tenro, que é possível a modelagem a partir de um týpos 42 que se imprime no ser da modela-gem. Por isso, não podemos permitir que as crianças emprestem seus ouvidos à escuta de qualquer mythos produzido ao acaso, plasmando em sua alma opiniões diversas daquelas que quando crescerem deverão possuir, se pensamos na composição do “encômio da dikaiosýne”. Daí a necessidade de vigiar os “fazedores de mythoi”, pois, modelar as almas das crianças através dos mythoi exige muito mais cuidados do que mo-delar os corpos com as mãos43. Como a maior parte dos mythoi que se contam, diz Sócrates, deverão ser rejeitados por serem desprovidos de nobreza (mè kalôs pseúdetai)44, e se os mythoi devem ser compostos a partir dos mesmos týpoi para produzirem o mesmo efeito, os primeiros mythoi a serem contados aos nossos guardiões devem ser compostos com a maior nobreza possível e na direção da areté.

41 Rep., 377a-12-377b-12: “Oukoûn oîsth’ hóti arkhè pantòs érgou mégiston, [...].”42 Rep., 377b1-2: “...málista gàr dè tóte pláttetai, kaì endúetai týpos hòn án tis boúletai ensemé-nasthai hekástoi.”43 Rep., 377 c. 44 A mentira sem nobreza assimilada a um “kakòs lógos” é compreendida por Sócrates a partir da pintura: “É o que acontece quando alguém delineia erradamente com o lógos a maneira de ser de deuses e heróis, tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar.” Rep., 377 d-e.

Page 21: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga20

Para que isso ocorra, é preciso que os “fundadores de uma cidade”, estabeleçam os týpoi a partir dos quais os poetas poetarão:

Ö Adimanto, de momento, nem eu nem tu somos poetas, mas fundadores de uma cidade. Como fundadores, cabe-nos co-nhecer os moldes segundo os quais os poetas irão mythologar, e dos quais não devem desviar-se ao fazerem versos, mas não é a nós que cumpre produzir os mythoi.45

Essa atividade, a de determinar os týpoi, terá como ponto de partida uma primeira classificação dos gêneros do lógos − a épica, a lírica e a tragédia −, constituídos a partir do modo como os poetas falam dos deuses46. Criticando os poetas, Sócrates tornará conhecidos os dois týpoi a partir dos quais poetas e prosadores fabularam acerca dos deu-ses: [i] que eles são bons, donde não podem ser acusados de nenhum mal; [ii] que eles são simples, estando, por isso, impossibilitados de alterar sua forma.

Ao começar a composição do primeiro týpos, Sócrates acrescentará à crítica dos poetas os “hoi polloí” que também acusam os deuses de serem a causa dos males que advêm aos homens, sem atinarem que a verdadeira causa reside em suas ações.

Passando a seguir à demonstração da “simplicidade” dos deuses, Sócrates afirmará que ser simples consiste em: [i] ser o menos capaz de estar sujeito a metabolé, e, [ii] ser incapaz de mentir em palavras e em obras (pseúdesthai theòs ethéloi àn è lógoi è érgoi)47. Isto equivale a dizer que não estar sujeito às alterações e mudanças é próprio do que é agathós, uma vez que o que é nobremente constituído é menos

45 Rep., 378e-8-379a-1-4: “Kaì egò eîpon: ô Adeimante, ouk esmèn poeitaì egó te kaì sú en tôi parónti, all’ oikistaì póleos, oikistaîs dè toùs mèn týpous prosékei eidénai en hoîs deî mythologeîn toùs poietaás, par’ hoûs eàn poiôsin ouk epitreptéon, ou mèn autoîs ge poietéon mýthous.”46 Cf. Rep., 379a: “Está certo − declarou − mas isso mesmo dos moldes respeitantes à teologia (hoi týpoi perì theologías), queria eu saber quais seriam. Seriam do teor seguinte, disse eu, tal como o deus é realmente (ho theòs ón), assim é que se deve sempre representar, quer se trate de poesia épica, lírica ou trágica.”47 Rep., 382a1-2.

Page 22: Princípios, Volume 11, Números 15-16

A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 21

sujeito a metabolé e ao movimento, seja no corpo, seja na alma48, do mesmo modo e “pelo mesmo lógos”,

todas as coisas comuns, utensílios, edificações, vestuário, se fo-rem bem confeccionados e em bom estado, alterar-se-ão o mí-nimo por efeito do tempo e de outras afecções. [...] Portanto, tudo que se encontrar em bom estado, por efeito da natureza, da arte, ou de ambas, receberá o mínimo de alterações por efeito de outrem.49

E, quanto ao ser incapaz de mentir em palavras e atos, talvez consista em afirmar que o lógos pseûdos, quando for alethés, é “detestado pelos deuses e pelos homens”, pois,

um deus quereria mentir por palavra ou por obra, apresen-tando-nos um fantasma? [...] Que queres tu dizer?O seguinte: que ninguém aceita, de livre vontade, ser enga-nado na parte principal de cada um e sobre os assuntos prin-cipais, mas receia, acima de tudo, que a mentira aí se instale. [...] Mas o que eu digo é que ninguém quereria aceitar ser en-ganado, e fiar com o erro na sua alma em relação à verdade, permanecer na ignorância, tendo e conservando aí a mentira, e que a detesta sobretudo nesse caso.50

Isto equivale a dizer que o lógos pseûdos, quando for alethés, supõe uma coalescência entre lógos e érgon, e se às palavras injustas seguirem-se obras injustas, teremos, por exemplo, um verdadeiro lógos pseûdos.

Dessa primeira etapa da paideía dos guardiões, referente aos deuses, podemos inferir: [i] que entre “fundadores de cidades” (philósophos?!) e poetas há diferenças no nível do lógos: os primeiros modelam tý-poi e os segundos compõem, em versos, mythoi, valendo-se de certos gêneros (a épica, a lírica e a tragédia); [ii] que todas as coisas bem

48 Rep., 380e -381a. 49 Rep., 381 a-b: “...xýntheta pánta skeúe te kaì oikodomémata kaì amphiésmata katà tòn au-tòn lógon tà eû eirgasména kaì eû ékhonta hypò khrónou te kaì tôn állon pathemáton hékista alloioûtai.”50 Rep., 382 a-b.

Page 23: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga22

constituídas, seja pela phýsis, seja pela tékhne, são pouco suscetíveis a alterar-se; [iii] que a mentira verdadeira é ignorância, amathía, e se a mentira sem nobreza deve ser silenciada − mesmo que fosse, even-tualmente, verdadeira −, sobretudo entre jovens, privados ainda da phrónesis e que devem ser formados como “cidadãos justos”, o espaço do mitologar se constitui em uma espécie da diégesis: a mímesis, visto que a mentira que consiste “em palavras é uma imitação do que a alma experimenta e uma imagem (eídolon) que surge posteriormen-te”, não sendo, portanto, isenta de mistura; e, [iv] que, misturado com a verdade, o lógos pseûdos assenta sua utilidade em duas funções: [iv. i] como phármakon, que impede aos amigos e aos inimigos de agirem mal, e, [iv. ii] como mythología, que, ao acomodar a verdade à mentira, abre a possibilidade de um eidénai acerca do passado51.

Porém, o lógos pseûdos deve também permitir a elaboração dos tý-poi que conformarão os mythoi acerca dos heróis, do Hades e dos homens. Na primeira parte do Livro III, Sócrates dedicar-se-á aos heróis e ao Hades, delineando-os de modo a servirem de modelo aos guardiões que deverão ser corajosos e temperantes, portanto, os heróis não poderão ser apresentados lamentando-se, mentindo, rindo em excesso, nem infringindo os pontos cardinais da sophrosýne, como acontece nos poemas de Homero.

Uma vez concluída essa discussão, torna-se necessário estabelecer os typoi a partir dos quais os mythológoi e os logopoioí falarão dos ho-mens. Mas Sócrates, salientando a multidão de dislates ditos por eles, afirma ser impossível determiná-los, e, embora Adimanto e Gláucon concordem no que tange aos deuses, heróis e ao Hades, no que tange aos homens só chegarão a um “acordo quando descobrirem o que é a dikaiosýne e se, por natureza, é útil a quem a possui, quer pareça sê-lo ou não” 52. Nesse sentido, então, ter o conhecimento do que é a diakiosýne é condição necessária para passarmos para o nível do lógos alethés, e como ela não pode ainda ser vista (ou definida), Sócrates

51 Rep., 382 c. 52 Rep., 392c.

Page 24: Princípios, Volume 11, Números 15-16

A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 23

necessita concluir seu discurso acerca do lógos pseûdos de tal modo que, purificando a “tryphôsa pólis” de seus excessos através da paidéia, possa tornar visível a justiça, e aí, então, articular o “lógos alethés”. Portanto, se o “lógos alethés” diz respeito à ordem dos homens, sua constituição “typológica” deve ser precedida do “estilo”, da léxis con-sonante ao “lógos pseûdos.

É preciso, pois, pôr fim aos týpoi referentes ao lógos pseûdos53, e passar-mos à questão da lexis:

Quanto ao lógos, ponhamos-lhe fim. A seguir a isso, deve buscar-se a léxis, em meu entender, para examinarmos por completo o conteúdo e a forma.54

2. 2 A léxis e o lógos alethésA léxis, o estilo no qual os poetas e prosadores deverão dar forma ao conteúdo indicado pelos týpoi, como continuidade da reflexão acerca do lógos, será definida por Sócrates como uma diégesis, que, media-da pela temporalidade dos acontecimentos narrados, pode dar-se em três modos:

Acaso tudo quanto dizem os prosadores e poetas não é uma nar-rativa de acontecimentos passados, presentes ou futuros? [...]Porventura eles não a executam por meio de simples narrati-va, através da imitação, ou por meio de ambas?55

Todavia, Adimanto não compreendendo, ainda, o que se diz, exigirá de Sócrates mais clareza, não deixando a este senão o recurso de to-mar a parte em lugar do todo, ou seja, de recontar o começo da Ilíada

53 Cf. o comentário de ADAM, ao passo 392 a: “This is the alethès eîdos lógon Plato has prescri-bed canons for the pseudeîs lógoi or legends about gods, etc. ; but rules for aletheîs lógoi, i. e., lógoi relating to men and human affairs, cannot be drawn up without begining the conclusion which the Republic seeks to establish.”, ADAM, J. A. op. cit., 1063. p. 143. v. 1. 54 Rep., 392c: Tà mèn dè lógon péri ekhéto télos; tò dè léxeos, hos egò oîmai, metà toûto skeptéon, kaì hemîn há te lektéon kaì hos lektéon pantelôs esképstai.” 55 Rep., 392d: “âr ou pánta hósa hypò mythológon è poietôn légetai diégesis oûsa tynkhánei è gegonóton è ónton è mellónton? Ar oûn oukhì étoi haplêi diegései è dia miméseos gignoménei è di amphotéron peraínousin?

Page 25: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga24

tornando visível a seu interlocutor as três possibilidades da diégesis: a simples, a mimética e a mista.

Nessa passagem, Sócrates tanto mimetiza quanto “reescreve” a poesia de Homero56, mostrando a Adimanto como se faz uma “narrativa mista” e uma “narrativa simples” e que a grande diferença entre elas está no modo como cada uma afeta a diánoia do ouvinte: na nar-rativa mimética o “narrador” torna-se semelhante a alguém na voz (phoné) e na figura (skhéma) movimentando a diánoia para vários lados; na narrativa simples, como o “narrador” nunca se oculta, a di-ánoia não é afetada pelo movimento da mímesis. E, clarificando mais seu argumento, Sócrates classificará os gêneros do lógos a partir dessa definição: o épico, quando a diégesis é mista; o trágico e o cômico, quando ela é mimética, e, o ditirambo, quando ela é simples. 57

Ora, se compreendermos esse novo argumento à luz do axioma fun-dador da “pólis lógoi”58, veremos que não é próprio à natureza dos homens imitar muitas coisas ou fazer aquilo que é reproduzido pela imitação, logo, os guardiões como “demiurgos da eleuthería da cida-de”, se imitarem algo, que essa imitação seja imitação daquilo que é próprio ao guardião, a saber, a andreía, a sophrosýne, a eleuthería e tudo o que for com elas assemelhadas, pois, a imitação que se faz desde a infância e se prolonga pela vida, torna-se hábito e natureza, atingindo o corpo, a voz e a diánoia.”59 E será, pois, nesse sentido que Sócrates falará de uma maneira de narrar que é própria do métrios anér , e na qual deve-se utilizar “muita narrativa simples” e “pouca narrativa mimética”60.

Assim, podemos concluir que a discussão acerca da léxis deslocan-do a paideía do âmbito estrito do lógos pseûdos61, para o domínio da

56 Cf. Rep., 393d-394b. 57 Cf. Rep., 392e-393d. 58 Rep., 394d; 395b. 59 Rep., 395b-c. 60 Rep., 396e. 61 Isto é, do âmbito do que se deve dizer acerca dos deuses, do Hades e dos heróis.

Page 26: Princípios, Volume 11, Números 15-16

A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 25

temporalidade que a diégesis acarreta ao estabelecer os estilos que nos permitem narrar acontecimentos passados, presentes e futuros, permitirá a Sócrates a introdução dos assuntos humanos através do estudo da beleza, seja na “música” que acompanha os poetas, seja na ginástica na produção dos belos corpos que deverão ser um dos frutos da educação pela mousiké . De tal modo que, ao concluir a leitura do manuscrito em maiúscula, estando a dikaiosýne vista e compreen-dida como “a areté dos homens” − e definida como “a posse do que é familiar a cada um e a execução do lhe é próprio”62 −, possamos passar à leitura do manuscrito em minúscula. Concluída essa leitura, e, confirmada a homología de forma e conteúdo entre os dois manus-critos, deveríamos, então, passar às formas corrompidas da politeía, não fosse a exigência de Adimanto de que Sócrates dê conta de uma parte do todo da discussão63: a narrativa do filósofo governante, a possibilidade da “cidade justa”, ou seja, o nível do “lógos alethés”.

Então, se tudo o que os poetas e prosadores (poietaì kaì logopoioí) disseram acerca dos homens não passa de grandes asneiras − que mui-tos homens são felizes apesar de injustos; que o justo é infeliz; que a dikaiosýne é um allótrion agathón; que a injustiça é vantajosa se não for visível etc...64 − e, se é preciso “elogiar a dikaiosýne” como um bem em si e por suas conseqüências, de tal modo que,

...quem encomiar a justiça falará verdade, e quem encomiar a injustiça mentirá65

só resta, então, ao Sócrates platônico a possibilidade de constituir um novo gênero do lógos, capaz de compor a narrativa da orthè politeía e,

62 Rep., 433e12-434a-1: “Kaì taútei ára pei he toû oikeíou te kaì heautoû héxis te kaì prâxis dikaiosýne àn homologoîto.” A definição da dikaiosýne no livro IV coloca problemas que não discutimos aqui, mas, cabe observar, entretanto, que a definição proposta por Sócrates com-porta uma compreensão mais larga do axioma fundante da “polis lógoi”: às noções de “érgon” e “práttein” , é preciso acrescentar a de “oikeîon”, que traduzimos por “familiar”. 63 Rep., 449c2-3: “Aporraithymeîn hemîn dokeîs, éphe, kaì eîdos hólon ou tò elákhiston ekkléptein toû lógou hína mè diéltheis [...].”64 Rep., 392 a-b. 65 Rep., 589b-c.

Page 27: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga26

modelando como um politeiôn zográphos, a “simplicidade” necessária à conformação da “pólis boa e bela”66, agudizar os olhos e os ouvidos de seus interlocutores para a visão e a escuta desse lógos filosófico.

Se todas as virtudes tiram sua utilidade da idéia de bem, como é dito em 504 d-e, e se afinal a “arte de narrar” comporta a purificação de uma multiplicidade de tékhnai produtoras de imagens – a poesia, a pintura, a escultura, a sofística –, a idéia de bem, para ser “conhecida”, não supõe uma narrativa? Compor uma “pólis lógoi” não é já começar a compor a narrativa possível acerca do bem em si (autoû toû agathoû), ingenua-mente postergarda por Gláucon para uma outra ocasião?67

Referências

Textos Antigos

a. Platão

ADAM, James. The Republic of Plato. Edited with notes, commentary and appendices by J. Adam. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1963. 2v.

ALLAN, D. J. Plato: Republic Book I. Edited by D. J. Allan. London: Methuen, 1962.

CHAMBRY, Émile. La République. Traduit par E. Chambry, avec introduction de A. Diès. Paris: Les Belles Lettres, 1981. 3v.

CORNFORD, F. M. The Republic of Plato. Oxford: Oxford University Press, 1951.

DIÈS, A. Platon: Le Sophiste. Texte établi et traduit par A. Diès. Paris: Les Belles Lettres, 1969. [1ére edition 1925].

DOVER, K. Plato: Symposium. Cambridge: Cambridge University Press, 1980.

66 Cf. Rep., 449a: “Agathèn mèn toínyn ten toiaúten pólin te kaì politeían kaì orthèn kalô, [...].”67 Cf. Rep., 506a- 507a.

Page 28: Princípios, Volume 11, Números 15-16

A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 27

JOWETT, B. & CAMPBELL, L. Plato’s Republic. Oxford: Oxford University Press, 1894. 3v. [ v. 1: The Greek Text; v. 2: Essays; v. 3: Notes].

MURRAY, Penelope, ed. Plato’s On Poetry: Ion; Republic 376e-398b9; Republic 595-608b10. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. [Cambridge Greek na Latin Classics].

NUNES, Carlos Alberto. Hípias Menor. 3. ed. revisada. Belém: Editora Universitária da UFPA, 2001.

OSMANCZIK, Ute Schmidt. Platón: Menón. México: Universidad Nacional Autônoma de México, 1986. [Bibliotheca Scriptorum Graecorvm et Romanarvm Mexicana].

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. A República. Introdução, tradução e notas por Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

VEGETTI, Mario, ed. La Repubblica. Libri II e III. Napoli: Bibliopolis, 1998. v. 2.

b. outros autores

HIPOCRATE. La nature de l’homme. Edité, traduit et commenté par Jacques Jouanna. Berlin: AkademiaVerlag, 1975. [Corpus Medicorum Grecorum].

XENOPHON. Anabase. Introduction, notices et notes par P. Chambry. Paris: Flammarion-Garnier, 1967.

______. De la Chasse. Introduction, notices et notes par P. Chambry. Paris: Flammarion-Garnier, 1967.

c. comentadores

AUGUSTO, Maria das Graças de Moraes. Poder e persuasão: o visível e o invisível no livro 2 da República. Textos de Cultura Clássica. Rio de Janeiro, v. 8, n. 19, p. 19-42, set. 1996.

______. O filósofo e o sofista no Mênon de Platão. Kléos. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 211-30, jul. 1997.

BALANSARD, Anne. Technè dans les dialogues de Platon. Sankt Augustin: Academia-Verlag, 2001. [International Plato Studies, 14].

CAMBIANO, Giuseppe. Pathologie et analogie politique. In: LASSERE, F. e MUDRY, Ph. Actes du IVème Colloque International Hipocratique: Formes

Page 29: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga28

de pensée dans la Collection Hipocratique. Gèneve: Librairie Droz, 1983. p. 441-58.

______. I rapporti tra episteme e techne nel pensiero platonico. In: Scienza e tecnica nelle litterature classiche. Seste Giornae Filologiche Genovesi. Genova, 23-24 fev. 1978. p. 43-62.

CALAME, Claude. Le récit en Grèce ancienne. Paris: Belin, 2000.

DESCLOS, Marie-Laurence. Aux marges des dialogues de Platon. Grenoble: Jerôme Millon, 2003.

IRWIN, T. Plato’s Ethics. New York, Oxford: Oxford University Press, 1995.

LYONS, John. Structural Semantics. An analysis of part of the vocabulary of Plato. Oxford: Oxford University Press, 1963.

KENT-SPRAGUE, R. Plato’s philosopher king. Columbia: The University of South Carolina Press, 1976.

MAINOLDI, Carla. L’ image du loup et du chien dans la Grèce Ancienne. Paris, Strasbourg: Éditions Ophyrs, Association des Publications Press les Université de Strasbourg, 1984.

NIGHTINGALE, Andrea W. Genres in dialogue. Cambridge: Cambridge Universit Press, 1997.

ROOCHNIK, David. Of art and wisdom. Plato’s understanding of techne. Pennsylvania: The Pensylvania State University Press, 1996.

______. The tragedy of reason. Toward a platonic conception of Logos. London: Routledge, 1990.

ROSEN, Stanley. The quarrel between philosophy and poetry. In: ______. The quarrel between philosohphy and poetry: Studies in ancient thought. New York, London: Routledge, 1988. p. 1-26.

SCHAERER, René. Epistéme et Tékhne. Études sur les notions de connaissance et d’ art d’ Homère à Platon. Macon: Protat Frères, Imprimeurs, 1930.

WOLIN, S. Política y perspectiva. Buenos Aires: Amorrotur Editores, 1974.

Page 30: Princípios, Volume 11, Números 15-16

29

Sócrates e as leis: democracia e metafísica

Celso Martins Azar FilhoUNESA e IES/RJ

O injusto é mais infeliz que o injustiçado. Demócrito: Diels/Kranz, frag. 45

1. Hoje há o que se poderia chamar de consenso entre a grande maioria dos especialistas em tomar a obra platônica como a mais importante depositária da doutrina socrática. Tal concordância geral não elide, porém, as dificuldades correlatas de se saber até onde os escritos de Platão representam de maneira fiel os ensinamentos de seu mestre, e até que ponto as outras fontes merecem crédito para esten-der ou mesmo corrigir suas informações1. Mas só quando se junta a este dilema fundamental as complicações básicas inerentes à forma, além de oral, dialogal da filosofia socrática, é que se torna evidente a verdadeira envergadura do problema imenso – quedando necessaria-mente sempre em aberto – de sua reconstrução.

Sócrates era um professor – mesmo se certamente de um tipo todo especial –, e é somente recuperando seus ensinamentos segundo a sua coerência, não apenas lógica, porém pedagógica, que poderemos che-gar a pretender separá-lo das vozes de seus alunos. Utilizar o critério da coerência pedagógica significa, neste caso, trilhar o único cami-nho possível para perceber a possível coerência filosófica. Pois, em Sócrates, a intenção pedagógica faz coincidir vida e filosofia, estando ligada, por um lado, a uma disposição de busca e questionamento característica do pesquisador, por outro, à missão que ele acreditava

1 E aqui a discordância sempre foi bastante grande entre os especialistas, já que (embora as outras fontes antigas tomem freqüentemente a obra platônica como fonte primária) Platão também incorre em anacronismos, sua preeminência como fonte advindo de seu talento filosó-fico e estético. Ademais, a historicidade de qualquer literatura socrática deve ser sempre posta entre parênteses: cf. Kahn 1998: 34-35; Parker 1996:45; Magalhães-Vilhena 1984: 481-486; Vidal-Naquet 1996: 121-137.

Page 31: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga30

divina de ensinar filosofia: esta correlação entre ensino, pesquisa, de-voção e dúvida, tornando seu pensamento algo sempre a ser realizado, o constitui como o enigma que ele era já para seus contemporâneos – e talvez para si mesmo.

Se nada escreveu, foi porque não encontrou no texto fixado pela es-crita a forma mais eficiente e fecunda para passar seus ensinamentos – provavelmente por achar, como parecem confirmar diversos tex-tos2, que o discurso só teria força no presente: somente se estivesse vivo no diálogo constituir-se-ia em verdadeira filosofia. Assim, atra-vés da atenção à forma dialogal do pensamento de Sócrates – pelo estudo do vínculo intrínseco de seu método com uma filosofia que se queria sobretudo prática – equacionaremos melhor o problema por este posto.

2. Estas preliminares plenamente se justificam no caso do presente estudo, já que seremos levados a tangenciar o problema do verda-deiro aspecto do silênico Sócrates, por força da investigação de seu conceito de lei. A questão básica do fundamento ou da justificação das normas legais conduz naturalmente à consideração de seu supor-te metafísico. Ora, reside precisamente na atitude relativa ao saber que se convencionou chamar metafísico, a distinção entre Sócrates e Platão mais freqüentemente assinalada pelos estudiosos, servindo as noções concernentes ao realismo platônico das idéias como critérios de sua aproximação e distanciamento da meditação socrática. E se já houve quem definisse a filosofia de Sócrates desde sua recusa de toda sustentação transcendente para o saber humano, creio perceber, não obstante, correspondendo à teorização metafísica explícita do funda-dor da Academia, uma outra metafísica, própria ao pensamento do ironista, implícita, pois aí permanece como uma espécie de centro e fonte de sustentação exterior ou oculto – o qual, paradoxalmente,

2 A relação entre discurso e ação é especialmente realçada nos textos que retratam as circuns-tâncias da condenação, julgamento e morte de Sócrates; e seria fácil acumular aqui referências a respeito. Quero apenas ressaltar uma passagem tirada das primeiras linhas da Apologia (17a-18a6) e outra das Memorabilia de Xenofonte (IV, 4, 10-11) que concordam no afirmar a implicação, crucial no contexto, entre a justiça dos atos e a das palavras.

Page 32: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 31

constitui também seu objeto de pesquisa – ponto de fuga de sua pers-pectiva filosófica.

3. A questão que quero examinar nestas páginas pode ser, inicialmen-te, posta em seu enunciado mais simples: de onde vem o impulso, a motivação, para que Sócrates obedeça de forma tão estrita às leis de Atenas, respondendo com sua cabeça por crimes que ele sabe que não praticou? Ou, como é costume se interrogar: por que, quando se apresentou a oportunidade, ele não fugiu da prisão?

Parece que a via mais óbvia e segura para tentar responder a esta interrogação – a qual sempre esteve bem presente em nossa tradi-ção cultural, porque vem atormentando sua consciência desde então – está em estudar o conceito de lei socrático através do exame da atitude do mestre ateniense frente à ordem jurídica estabelecida.

4. Embora o desacordo seja a regra geral com relação à possibilidade de se discernir exatamente quais diálogos pertenceriam à fase socráti-ca do pensamento platônico, são os primeiros (identificados segundo critérios literários e estilísticos sobre os quais também não há concor-dância) que se tem como constituindo a fonte mais pura, ao menos em um sentido geral, das idéias genuínas de Sócrates. E mais que todos a Apologia e, após, o Críton, têm sido citados como dignos de alguma confiança histórica: o primeiro, por pertencer ao gênero tradicional específico de discurso jurídico (escrito em forma propria-mente forense: Kahn 1998: 88; Burnyeat 1997: 134; Brickhouse e Smith 1985: 33, n. 51), possui a intenção inerente de reproduzir pelo menos o espírito da célebre defesa; o segundo, por depender de um relato fiel dos acontecimentos, dado seu propósito de convenci-mento sobre os reais motivos da atitude de Sócrates diante da morte3. Escolhendo-os como fonte principal deste estudo pretendo também

3 Ambos os diálogos tendo sido compostos apenas alguns anos após os eventos retratados, como normalmente se acredita – e, portanto, tendo tido leitores muitas vezes contemporâ-neos do julgamento. C. H. Kahn (1998: 46-47), por exemplo, acha razoável acreditar que a Apologia e o Críton foram os primeiros diálogos escritos por Platão. Note-se ainda que existem referências no Críton (45b e 52c) sobre o que Sócrates disse no julgamento que correspondem efetivamente à passagens da Apologia.

Page 33: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga32

estar ao abrigo pelo menos da grande maioria das controvérsias rela-tivas ao Sócrates histórico.

Destes dois textos, se a Apologia provê um relato mais amplo e acura-do das idéias de seu personagem central, é o Críton que mais retém a atenção do leitor interessado em analisar as concepções socráticas de lei, direito e justiça. Muito embora outros diálogos também retratem momentos cruciais, tanto da vida, quanto da visão ético-jurídica de seu protagonista, encontram-se reunidas de forma orgânica no relato da atitude de Sócrates na prisão as proposições que, além de terem sido historicamente consideradas como as decisivas pela trama das interpretações e comentários sacramentais, tocam essencialmente ao problema da conceituação da lei. Não apenas pelo fato de que aqui as leis elas mesmas tomam a palavra, mas talvez porque, mais que as palavras, tenha impressionado aos pósteros a imagem do sereno sábio na prisão, condenado à morte justamente por aqueles a quem tentou ensinar algo. Completado e sublimado por sua recusa em fu-gir, tal quadro – emoldurado pelos outros panegíricos compostos por seus alunos – tornar-se-á de tal forma poderoso que o destino do Ocidente balançará em suas linhas.

5. Em primeiro lugar, deve-se notar o caráter ficcional ou literário do Críton. Não para diferenciá-lo da “história”, ou para depreciá-lo por sua distância dos “fatos”, mas, ao contrário, para realçar sua disposi-ção como um misto de veículo de idéias e aparato estético-pedagógico que facilita a sua apreensão. Se isto não dispensa a história da filosofia de buscar os fatos, deve-se lembrar que estes só surgem como tais no horizonte de um esquema teórico-ideológico qualquer. Como já disse um grande pensador (para quem, aliás, Sócrates constituía um ponto de virada na história do ocidente), os grandes pensamentos são os grandes acontecimentos. Quando a arte platônica retratou a realidade histórica, simplificando e condensando em uma única cena filosófica ideal as várias razões contrárias sobre a conduta socrática, tornou visível um novo mundo de significações e sentidos éticos.

Page 34: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 33

Quando Sócrates, no Críton, reage aos fatos, ele o faz como alguém que enfrenta a realidade de modo extremamente prático (ainda que ao leitor ingênuo pudesse parecer que se trata de um idealista, como se diz vulgarmente). Significa dizer que, como veremos, ele se ocupa com os problemas de seu julgamento, condenação, prisão e finalmen-te execução, como indivíduo determinado, com certa história de vida, interesses pessoais, colocação na sociedade ateniense, família, amigos, etc, e pesa as conseqüências de seus atos levando em conta todos estes fatores. As respostas que encontra e as atitudes então adotadas têm por característica geral a preocupação com o que seria o melhor para todos. Logo, se suas decisões são tomadas visando uma situa-ção particular, os critérios que as sustentam pretendem ser universais. Tais critérios são adotados a partir de teses filosóficas que – antes de qualquer outro personagem histórico reconstruído a partir desta ou daquela visão suportada por tal ou tal texto antigo4 – merecem o nome de Sócrates. Por isso o debate acerca da autenticidade histórica deste ou daquele ‘Sócrates’ só parece hoje poder ser decidido, se é que o pode ser, desde a pesquisa da verdadeira face da doutrina socrática que utilize como medida principal a sua coerência não apenas dis-cursiva, mas vital. E este é um fato que sobressai em toda ficção ou não-ficção já escrita sobre aquele pensador. Até porque foi sobretudo esta interação entre teoria e prática in extremis que tornou a filosofia socrática um ponto de inflexão decisivo para o pensamento ético, político e jurídico ocidentais. Note-se que não se trata apenas de um paralelismo entre teoria e prática, porém de examinar um estilo de vida do qual as falas são atualizações como qualquer outro ato5.

6. A questão do diálogo – ‘é permitido ser injusto?’ –, posta em re-lação com a ordem jurídica, constitui o centro do Críton: lá, esta interrogação fundamental será respondida pelo viés da relação com a lei. Note-se o seu enunciado (49a): Admitimos que em nenhum caso se

4 Ainda que tal reconstrução fosse possível, quando o mais acertado hoje parece ser concordar com a impossibilidade de fazê-lo, ao menos de forma segura: cf. Kahn 1998: 72. 5 O que Platão marca já na cena de abertura do Críton, ao mostrar o sono tranqüilo de Sócrates na prisão, mesmo se acorrentado já há um mês (Memorabilia IV, 8, 2; White 2000: 156), por volta dos setenta anos de idade.

Page 35: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga34

deve ser injusto voluntariamente, ou que, em alguns casos sim, em outros não? O advérbio ‘voluntariamente’ faz aqui toda a diferença quando pensamos nos termos da filosofia moral socrática, tal como esta nos foi transmitida por Xenofonte ou Platão. Verdadeira armadilha lógica que pertence ao cerne do chamado paradoxo socrático, esta questão será indiretamente respondida neste texto através do recurso direto à situação real vivenciada por Sócrates6.

A pergunta pela justiça representa uma espécie de quebra-cabeças éti-co, jurídico, político, lógico e epistemológico, porquanto se questiona aí o próprio critério de correção em geral, ou seja, a base de qualquer critério. A justiça platônica foi amiúde descrita segundo as noções de medida e harmonia, cruciais, como se sabe, para a filosofia grega, como para o direito, a arte, a política, a medicina, a física etc. A difi-culdade está em materializar tais noções diante de situações concretas determinadas – e aqui o ângulo negativo adotado facilita, por con-traste, a visão do correto no caso em pauta. O mal é o que causa mal a seja quem for: o que prejudica de maneira evidente a coletividade, os amigos, a família de Sócrates e a ele próprio – isto deve ser evitado7. Não apenas por isso, porém, o Críton pergunta pela injustiça, antes que pela justiça. Mas porque é mais fácil reconhecer aqui – onde se afirma primordial o ponto de vista legal – o mal do que o bem. A perspectiva negativa está relacionada com a conceituação do justo através da relação com a ordem jurídica, visto que principalmente é tarefa da lei prevenir e evitar o mal de forma pragmática, e deste modo preservar o bem de todos. Porém, partindo daqui, freqüentemente se sentiram os leitores autorizados a reduzir a justiça à lei, confundindo-as de um ponto de vista meramente utilitário: tanto o texto, quanto

6 A tese aqui é apenas o negativo do famoso paradoxo cuja primeira formulação clara está provavelmente no Hípias Menor. Com relação a este ponto, e ao conceito de justiça em geral, o Górgias e a República respondem ao Críton e a Apologia. 7 Não cabe aventar que o mal para Sócrates poderia ser o bem para um outro qualquer, ou vice-versa: o bem (ou a justiça) não causa mal a quem quer que seja (Críton 49a-d; República 335c-d). Richard Kraut (1983: 27-28) nota que adikein, kakourgein e kakos tinas poiein são expressões permutáveis no Críton. E mesmo do ponto de vista lexical, o sentido geral de preju-dicar ou causar dano faz parte dos significados de adikein (Bailly 1995).

Page 36: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 35

a concepção geralmente aceita do pensamento socrático, podem ser forçados a convir a tal interpretação. E é conseqüentemente uma espécie de juspositivismo avant-la-lettre que parte importante da tra-dição acostumou-se a atribuir a Sócrates, vendo neste um pensador autoritário preocupado tão somente com a manutenção da ordem estabelecida. Tome-se o trecho das Memorabilia (IV, 4, 12) em que Xenofonte põe na boca de Sócrates – coincidentemente a partir tam-bém da determinação de evitar a injustiça como marca das ações e dos homens justos – a identificação do justo ao legal: colocando em linha este e outros textos (como, por exemplo, a sua afirmação no final do Críton de não ter sido condenado injustamente pelas leis, mas pelos homens: 54c), chega-se a montar facilmente um quadro em que se entende sua atitude diante da morte como uma reverência final a leis que este acreditaria perfeitas. Trata-se, no entanto, de um engano tão perigoso que pode, além de obscurecer a compreensão da filosofia socrática, desconsiderando algo de determinante em sua base, contri-buir para falsear toda história do pensamento antigo sobre o direito e, por extensão, os fundamentos ideológicos do conceito originário de democracia. Para dirimir tal erro é preciso voltar um pouco atrás no diálogo, antes daquele questionamento sobre a (in)justiça, e con-siderar, em primeiro lugar, o enquadramento metodológico no qual a sua discussão terá lugar.

7. Antes de se colocar diante de si mesmo para avaliar seus atos e suas conseqüências, Sócrates vai retomar certas idéias suas que funcio-narão como princípios reguladores da discussão: primeiro, que não necessariamente a ‘maioria’ detém o monopólio da verdade; segundo, que o essencial não é apenas viver, mas viver bem; terceiro, que o belo, o bem e o justo são o mesmo8.

O último ponto constitui algo de essencial para o pensamento socráti-co-platônico. Os critérios éticos, lógicos, estéticos, jurídicos, políticos

8 Parece acertado acreditar que, se Platão põe tais idéias como algo pacífico, se parte delas como pertencendo evidentemente ao pensamento socrático, temos aí um signo confiável (até certo ponto, ao menos) de sua historicidade.

Page 37: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga36

etc, convergem ontologicamente na figura do deus ou no Bem, o que explica e garante a convergência do bem e do útil na justiça9.

Com relação ao segundo princípio, o importante é notar como, com sua conduta diante da morte, Sócrates talvez tenha dado sua mais elo-qüente resposta a respeito do que seja viver bem. A multidão não sabe o que faz (44d), diz ele; é capaz de matar (48a; 48c), mas não de fazer de um homem sensato, um insensato, nem de fazer-lhe, portanto, realmente mal (44d), se ele escolhe viver bem (48b). Expõe assim o fundamento último de todas as suas ações e palavras: não há mal nes-ta vida, nem na outra, para o homem de bem (Apologia 41d), ou seja, para aquele que age corretamente – conseqüência e causa diretas do pensar correto. E daí a necessidade de se tentar saber em cada situa-ção o que é o bem – conhecimento que, embora reconheça reservado aos deuses, constitui o principal objeto de sua doutrina10.

Mas dos três princípios é o primeiro que deve merecer mais atenção de nossa parte: a partir da crítica das exortações iniciais de Críton para que seu amigo fuja da prisão, vai se afirmar que o número das pes-soas que acreditam em algo não é prova de sua correção (orthótetos: 46b2). Como julgar, então, o que é correto? Antes de tudo, o exame não terá por objetivo o dever em um sentido moderno, deontológico digamos. Porém avaliar ‘o que se deve fazer’ (praktéon: 46b4)11. Esta ‘correção’ ressoa com a justiça, se a entendermos simultaneamente, tanto como retidão moral, quanto como conveniência prática: justi-ça, mas também justeza. Ou seja: não é uma hipóstase do ‘Dever’ que orienta a busca daquela correção – ao contrário, é a própria busca do

9 Como notou Maurice Croiset (1985, Belles Lettres, tomo I, p. 223, nota 2) em sua tradução do Críton, a verdade parece ser identificada ao deus, o único que conhece a justiça (48a7); idéia que parece estar presente também na alusão ao ‘único’ que sabe (47d2). 10 Apologia 20d-23c. Cf. Klaus Döring (1992: 6-9). A passagem citada do Críton (44d) parece querer dizer que o único mal verdadeiro seria tornar-se insensato (áphrona); isto mostra que, apesar da posse completa da sabedoria ser reservada apenas aos deuses, é possível dela ao menos se aproximar, pois existem homens sensatos de posse daquela sabedoria humana referida por Sócrates na citada passagem da Apologia – o que o Críton confirma (47a2-48c6). 11 Logo depois (47b9) este adjetivo verbal de prátto é empregado com um sentido simples-mente prático para se referir a maneira correta de fazer ginástica e comer ou beber. Este mesmo termo é utilizado no próprio subtítulo do diálogo.

Page 38: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 37

correto (com relação a mim mesmo e frente ao outro, nas circunstân-cias dadas) a me guiar na escolha do que parece ser aquilo que devo fazer. Claro: não se trata de uma moral casuística, mas do princípio de se deixar persuadir apenas pela razão que aparece como melhor segundo o critério ele mesmo racional do exame e confronto rigoroso das possibilidades. Pois não é de hoje, mas sempre somente me deixo persuadir pela razão [lógos] que me parece a melhor ao ser examinada [logizoménoi] (46b3-5). Este exame das razões consiste assim em um raciocinar acerca de quais são os melhores argumentos. E encontrada assim a razão mais justa, não será apenas a fortuna ou o acaso dos acontecimentos que o fará mudar de idéia (46b8). Às opiniões da multidão, não se deve dar crédito apenas porque estão em voga, diz Sócrates; porém, sim, às boas opiniões, aquelas dos homens sensa-tos (phronimon: 47a9; epieikéstatoi: 44c7) – e mesmo que seja um só contra todos os outros juntos (47d). A repetição constante desta idéia foi muito provavelmente uma das causas da morte de Sócrates, gerando a impressão entre os atenienses de uma atitude antidemo-crática. Entretanto – postas as premissas do exame a ser realizado –, Sócrates marca o começo da discussão dizendo: Logo, é a partir disto sobre o qual se concorda que deve ser examinado se é justo que eu tente sair daqui sem a permissão dos Atenienses, ou não (48bc). A questão é: se a multidão nada sabe (como foi mais do que suficientemente dito até este ponto do texto), porque se preocupar com o que pensam os Atenienses?12 Esta contradição (seja ou não aparente) deve ser subli-nhada: é tentando resolvê-la que examinaremos a relação entre os conceitos socráticos de justiça e de lei.

8. O começo da resposta está na insistência com que Sócrates logo a seguir novamente demanda a concordância de Críton sobre cada ponto a ser ou não admitido na seqüência: a verdade só surge no horizonte do diálogo.

12 E esta não é uma expressão isolada ou fortuita: logo após, Sócrates mostra-se preocupado em não ir ‘contra a vontade dos atenienses’ (48e3), bem como em não sair da prisão ‘sem o assentimento da cidade’ (49e9-50a).

Page 39: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga38

A dialética platônica é o método científico que eleva ao conhecimen-to das idéias através da reminiscência, purificação do pensamento que nos permite encontrar suas estruturas fundamentais, reconhecendo nestas os próprios alicerces do cosmos: ela pode pretender orientar-se por um conhecimento absoluto da realidade porque na verdade dele parte. No âmbito epistemológico do método socrático, todavia, a esmagadora maioria das diversas conclusões de cada debate só vale episodicamente. Porque, aqui, é a própria discussão em si mesma o importante, já que nela se realiza o fortalecimento e o aperfeiçoamen-to da razão e da alma (Críton 47e).

E esta, creio, é a solução de uma polêmica que freqüentemente as-sombrou os especialistas: se nada Sócrates sabe, como pode ser um professor? Se não é possível chegar a um conhecimento definitivo sobre a justiça, a virtude, o bem etc., por que se preocupar em discuti-las? Porque muito embora não saibamos enfim o que é a amizade, a verdade, o bem, a coragem, etc, passaremos nossa vida tentando, por exemplo, reconhecer quem é nosso amigo ou não – questão essencial para a vida de todos nós –, e ainda se morrendo sem saber com certeza, é através deste exame que teremos nos tornado ao menos mais capacita-dos para tanto. Da mesma forma, como Sócrates (Apologia 40a e seq.), nada sabemos de certo acerca dos acontecimentos post-mortem – mas já respondemos a este enigma mais que todos momentoso, mesmo se apenas de forma inconsciente, e estamos vivendo de acordo com nossa solução, pois orientamos necessariamente nossa vida a partir do que pensamos da morte. Igualmente, se nunca soubermos o que é realmen-te a justiça, isto não nos dispensará de nos confrontarmos, talvez todos os dias, com o problema de decidir o que é justo. E mesmo que muito freqüentemente nossa escolha não possa nem sequer ser feita entre o justo e o injusto, mas apenas entre o mais e o menos injusto, é no exa-me do sentido universal da justiça e da injustiça que aprimoraremos, uns com a ajuda dos outros, o nosso juízo acerca do justo aqui e agora. Por isso ‘a vida sem exame é indigna do homem’ (Apologia 38a): não é a posse do conhecimento, mas sua busca, que define o homem; o qual

Page 40: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 39

somente através da consciência da inevitabilidade e responsabilidade desta assunção justifica-se como ser.

9. Em Atenas, as leis são percebidas como a expressão do senso de jus-tiça coletivo da cidade: o demos governa e julga em conjunto (Gernet 2001:137-138). Aquiescer às leis, para Sócrates, não é considerá-las absolutamente justas13, mas pôr em prática, de um ponto de vista éti-co e político, o seu mesmo método filosófico do diálogo como meio de aproximação e esclarecimento da verdade e do dever14.

Contudo, se as pessoas pouco ou nada sabem de certo do justo ou do injusto, do belo ou do feio, do bem ou do mal, qual é a garantia de que se aperfeiçoarão, e as leis, pelo diálogo? Pois, não possuindo referências seguras para se orientarem na direção do progresso – padrões fixados ou paradigmas universalmente dados dos quais se pudessem julgar pelo distanciamento ou aproximação – não dispõem, portanto, de critérios indubitáveis para medir seu aprimoramento. O exame, porém, que Sócrates conduzirá a seguir não é fortuito, realizado ao acaso como o da multidão insensata, ou inconseqüente, como o de um cálculo que tivesse por fim apenas o interesse pessoal, mas possui um alvo bem claro: a justiça. E na sua conceituação socrática prolonga-se o muito antigo (e presente em diversas culturas arcaicas) significado do justo como medida correta da vida humana, a qual deve espelhar, individual e coletivamente, o próprio funcionamento do cosmos.

13 Por exemplo, dando voz às leis no Críton, Sócrates assinala que estas podem errar (51e); e, na Apologia (37a-b), critica o ordenamento jurídico ao lamentar que os processos capitais em Atenas terminem em um dia apenas (cf. Harrison 1998: v. 2, 161). 14 Apologia 21c: Sócrates começa sua busca da sabedoria justamente dialogando (dialegóme-nos: 21c5) com um político – e descobrindo a ignorância deste, garante sua inimizade. Nesta mesma passagem, é interessante a maneira como o saber dos artesãos é valorizado acima daque-le dos políticos e dos poetas (21b-22e): atitude socrática que se repete em outros dos primeiros diálogos de Platão (no Críton, os primeiros modelos do conhecimento são médicos e pedo-tribas: 47b e seq.), e inclusive na famosa ‘analogia artesanal’ como modelo do conhecimento filosófico (Guthrie 1992: 149; Snell 1992: 242-245; Brickhouse e Smith 2002: 198-199). Filho de um artesão, Sócrates apresenta para si mesmo uma linhagem “artesanal” no Alcibíades (121a): Dédalo e Hefestos.

Page 41: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga40

10. Neste ponto retomo a narrativa da investigação da ação justa no Críton, suspensa atrás. Naquele momento, Sócrates, para decidir o que deveria fazer, começara por se perguntar se fugir da prisão seria ou não justo. Toma, então, uma via negativa, como era de seu agrado. Uma vez que a injustiça causa mal tanto a si mesmo, (49b) como aos outros (49c), se sua fuga da prisão acarretar dano à alguém, sua ação é injusta (50a)15. A resposta afirmativa – a qual, já sabemos, chegará – vai resultar em uma defesa da lei como medida positivada da jus-tiça. Mas, muito ao contrário de qualquer positivismo, de qualquer espécie de justificação da lei apenas por si mesma, manifesta-se aí sub-repticiamente a noção de uma justiça universal, a qual se tor-na perceptível pela sua transgressão. Ecoa nas entrelinhas, na costura da trama conceitual em jogo, uma noção muito antiga que liga a filosofia moral socrática ao direito e à religião gregos por meio da idéia de uma ordem ou de um equilíbrio sociocósmico, cuja proteção constitui a missão principal de deuses e homens. O ordenamento jurídico representa apenas a face palpável da justiça, como aparato de poder político votado a sua salvaguarda, o qual se materializa quando é negado, através da punição ao ato transgressor. Notemos o termo que comanda o campo lexical dos vocábulos significando injustiça preferencialmente utilizados por Sócrates – adikein. Muito embora este represente uma concepção mais moderna e abstrata do delito, preserva – mesmo em meio ao racionalismo e relativismo da nova noção democrática, citadina, de injustiça – um sentido religio-so, característico de termos mais antigos (Gernet 2001: 52, 58-59, 82). O texto da acusação formal a Sócrates, tal como conservado por Diógenes de Laércio, Xenofonte ou pela própria Apologia, imputa-

15 O princípio ‘não fazer o mal / não cometer injustiça’ é absoluto: nunca se justifica frente a ele nenhuma espécie de exceção (Críton 49a-50a) – e isto é repetido até a exaustão (implicita-mente inclusive) ao longo deste e outros diálogos. Não se deve nem mesmo retribuir a injustiça com a injustiça (Críton 49b; República 335e) O que não significa, contudo, que o mal não deva ser combatido. O herói de guerra ateniense não está recomendando que se dê a outra face. Pois a punição justa é um bem. A concepção de conhecimento aqui em causa não admite um uso operacional do mal, usar o mal para o bem, como se diz de fins que justificam os meios: o bem não faz mal e vice-versa (República 335d). E não se trata aí de uma questão meramente lógica, porém ontológica: para Sócrates, os deuses são bons e favorecem o homem de bem.

Page 42: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 41

va a este o ser injusto utilizando precisamente este termo – Adikei Sokrates ...(Diógenes Laércio II, 40; Apologia 24c; Memorabilia I, 1, 1). Ainda que tal ambivalência de sentido subsista apenas de forma implícita ou inconsciente, gera, no interior do conceito de (in)justiça, uma tensão entre as suas dimensões objetiva e subjetiva – e a linha em que se separam e se tocam é precisamente a lei.

11. O texto caminha para a famosíssima personificação (prosopopéia) das leis de Atenas e o subseqüente diálogo do condenado com estas (ou consigo mesmo). Este debate imaginário foi freqüentemente lido como se servisse somente para tornar mais uma vez clara a obediência, a resig-nação e mesmo o apego deste à ordem jurídica da cidade, por percebê-la como a garantia da paz e da segurança dos atenienses e, portanto, do fortalecimento de Atenas. Porém, as coisas deixam de ser tão simples se prestarmos atenção a certos textos que negam esta conclusão.

Antes de tudo, não há simples obediência às leis: pelo menos em três ocasiões Sócrates parece contrariar as leis ou a ordem jurídica insti-tuída. E tal desobediência relatada e afirmada de maneira incisiva na Apologia gerou e gera muita controvérsia entre os especialistas que de muitas formas tentaram resolver a incoerência entre esta e a aparen-temente incondicional prescrição de obediência às leis que forma o núcleo argumentativo do Críton16. Creio que esta incoerência pode ser, senão resolvida, ao menos mitigada, seguindo-se o mesmo caminho pelo qual tento resolver a aparente contradição já apontada no texto do Críton entre a recusa das opiniões da multidão e a obediência às leis (as quais representam, em princípio, o juízo da mesma multidão).

Ora, dois dos casos de desobediência de Sócrates podem ser resolvidos se explicados justamente por seu apego legalista à ordem democráti-ca (Apologia 32b-e). Um refere-se à ocasião em que Sócrates opôs-se

16 Uma bibliografia, aliada a um resumo das diferentes posições sobre a contradição entre o Críton e a Apologia com relação à obediência ou desobediência civil de Sócrates, pode ser en-contrada em Cécile Inglessis-Marcellos (1994), de quem, creio, é preciso subscrever a opinião com relação a esta controvérsia como um todo: “[...] je suis intimement convaincue qu’aucune solution entièrement satisfaisante et raisonnablement cohèrente ne peut être trouvée en l’état actuel de notre documentation”.

Page 43: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga42

ao corpo dos cidadãos que queriam julgar os generais da batalha de Arginusas em bloco – procedimento, porém, segundo este, ilegal17. O outro é relativo à desobediência às ordens dos Trinta que o enviaram em busca de Leão de Salamina para o executar: a própria narração evidencia o desprezo socrático pela ditadura como criminosa e, por-tanto, injusta e ilegítima18. Em todo caso, ainda que não se aceitasse a explicação legalista, não caberia imaginar que o protagonista destes feitos, certamente de grande coragem, quisesse ser justo mesmo se contra as leis: se fosse esta sua motivação, porque não agiu de acordo também quando de sua condenação e, declarando-a injusta, não fu-giu19? Acredito que tenha pensado que, nas duas ocasiões referidas, sua conduta seria justa se considerada segundo o ponto de vista de uma ordem jurídica construída de forma democrática e continuamente submetida à vontade da Assembléia para ser testada e aperfeiçoada pelo diálogo.

Assim é que se consegue também desatar o nó ainda mais complica-do do terceiro momento em que Sócrates desafia a cidade e a ordem por ela estabelecida. Diz ele que, se os juízes atenienses lhe proibis-sem a investigação e o filosofar20, responderia: “obedecerei antes ao deus que a vós” (Apologia 29d3-4). Afronta aos cidadãos, à cidade, às

17 Apologia 32b5-6; Memorabilia I, 1, 18. Inglessis-Marcellos (1994: 95), examinando o caso à luz do que se sabe hoje sobre o funcionamento da ordem jurídica ateniense, mostra que a afirmação de Sócrates não faz muito sentido relativamente aos seu papel de prytane na ocasião. De todo modo, o fato é que Sócrates acreditava que o procedimento era ilegal; e, segundo Xenofonte (Helênicas I, 7, 35), seus concidadãos acabarão por concordar com ele. 18 Contudo, é claro que, de um ponto de vista legalista absoluto, os Trinta representam a or-dem estabelecida segundo a vontade dos cidadãos (Marcellos 1994: 96). Porém, o que tornou os Trinta injustos foram seus crimes, dos quais Sócrates os acusa (Apologia 32c). Eles romperam o diálogo: apelaram para a violência e não para a discussão na Assembléia (Constituição de Atenas XXXV-XXXVII) e é a persuasão que faz as leis (Memorabilia I, 2, 45) e não por acaso a chamada doutrina ‘persuadir ou obedecer’ relativa à atitude do cidadão diante das leis é tão importante no Críton (51b). Note-se ainda que Sócrates diz na Apologia que não se importa com a morte, mas que não quer realizar nada de injusto ou ímpio (32d4): esta associação entre injustiça e impiedade é obviamente sintomática. 19 Epicteto (Giannantoni 1990, v. 1: 199-200 – Dissert. IV 1, 167-169), por exemplo, ima-ginou um ótimo motivo para tanto: fugir precisamente para lutar contra a injustiça reinante em Atenas. 20 Segundo Xenofonte (Memorabilia I, 2, 31; Diógenes Laércio II, 19), uma lei semelhante teria sido realmente promulgada pelos Trinta para atingir Sócrates.

Page 44: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 43

leis? Transgressão da ordem democrática, do acordo entre os cida-dãos de acatar as decisões da maioria? Não para Sócrates. Para ele, a cidadania, a democracia e a ordem jurídica atenienses são, de certa forma, sustentadas pelo diálogo. Porque é por seu intermédio que podemos ter a esperança de ao menos nos aproximarmos da verdade – da justiça, do belo e do bem. Se o debate democrático e o diálogo socrático não devem ser confundidos21 (como também não se identi-ficam a justiça ou o conhecimento verdadeiro necessariamente com o juízo da multidão), os princípios e valores que os regem são os mesmos – ou deveriam, pois precisam ser: e a educação dispensada por Sócrates trata precisamente de aproximá-los, através do esclareci-mento individual e pessoal dos cidadãos. O diálogo fornece ao debate na Assembléia sua contrapartida filosófica: um método experimental de fundamentação ética, cuja consistência e utilidade não estão sub-metidas única e simplesmente ao voto popular. Da mesma forma que o debate democrático não poderia ser proibido sem que a própria democracia deixasse de ter sentido, a atividade de Sócrates supõe e exige a democracia – e vice-versa.

Além disso, aquela “obediência ao deus” marca não só o princípio (Apologia 20e e seq.) do filosofar socrático nas ruas de Atenas, mas também se coaduna com a proverbial aquiescência ao sinal divino que sempre (desde a infância: 31c8-d3) o guiou na prática do dever (orthos práxein: 40a7). E se Sócrates assim age, crê fazê-lo no interesse dos próprios atenienses, por conta do cuidado do deus com estes22.

O apego a ordem jurídica é apenas superficial, pois na verdade é aos valores fundamentais da democracia e da cidadania – igualdade e liberdade23 – que se aferra Sócrates: as leis são tão somente o ins-

21 Górgias 474a-b: note-se que aqui, apesar de dizer que não dialoga com os muitos, Sócrates afirma que todos os homens estão de acordo em julgar que cometer injustiça é pior que sofrê-la: o diálogo, portanto, manifesta ao indivíduo este conhecimento coletivo da verdade. Cf. Vidal-Naquet 1996: 127. 22 Apologia 30e-31a. Sócrates liga o interesse dos cidadãos ao do deus em uma ética délfica (Reeve 2000: 30) que exige dele pessoalmente a prática da filosofia: cf. Vlastos 1991:173-177. 23 Valores fundamentais para a prática da filosofia, tal como ele a entendia – nunca reservando a capacidade para filosofar a determinado grupo social, e cujos benefícios pretendia estender às

Page 45: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga44

trumento de sua defesa. Em Atenas são as leis que governam. Ora, também em Esparta, como marca Heródoto (VII, 104). Mas na primeira, de acordo com as tão citadas palavras de Péricles, ‘tudo depende não de poucos, mas da maioria’ (Tucídides II, 37). Os ate-nienses ‘[...] não são escravos de ninguém, nem súditos’ (Ésquilo: Os Persas 304). Aristóteles, em famoso texto onde lembra que a justiça política no seu sentido pleno só pode existir entre homens livres e iguais, diz: ‘É por isso que não permitimos que um homem gover-ne, e sim a lei, porque um homem pode governar em seu próprio interesse e tornar-se um tirano’ (Ética a Nicômaco 1134a35-b1). O importante nisto não são apenas as leis em si mesmas, mas o fato des-tas constituírem regras estabelecidas democraticamente. E tais regras podem inclusive servir de limites à vontade da maioria protegendo os princípios democráticos que as justificam (como no caso dos generais das Arginusas). Na citação de Aristóteles, o termo traduzido como ‘a lei’ é ‘tón lógon’ – que significa também razão e discurso. O diálogo – método de pesquisa racional do bem – garante e caracteriza a liber-dade e a igualdade dos cidadãos no fazer as leis e aplicá-las – leis cuja finalidade principal é a defesa destes valores, sendo o meio filosófico desta defesa, o diálogo.

Como dirão as leis, embora Sócrates elogie as constituições de Creta e Esparta (52e), continuou em Atenas. O que, ao lado de muitos outros indícios, manifesta sua preferência pela constituição democrática ate-niense (Vlastos 1994: 92; Kraut 1984: 177-180). E o mais importante nesta não é somente o estabelecimento do acordo popular, mas antes sua construção permanente através da possibilidade do confronto e con-flito das razões, assegurada pela liberdade e igualdade democráticas24.

mulheres, escravos e estrangeiros (cf. Laches 186b3-5; Górgias 470e8-11, 512b3-d6, 515a4-7; Menon 72d-73b; Vlastos 1994: 102-104; Kraut 1984: 201). Aliás, o uso do plural no Críton na personificação das leis atenienses – hoi nómoi – refere-se mais propriamente ao direito (Todd 1995: 18) como sistema legal (e, portanto, também aos princípios, fontes secundárias etc., que o animam e informam) que apenas às suas disposições positivadas em regras. 24 Até porque ganhar a discussão não significa necessariamente convencer: se o Sócrates de Xenofonte sempre (ou quase) obtém o assentimento de todos, não é o caso em Platão: cf. Vlastos 1991: 292, n. 161.

Page 46: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 45

12. O que não deve ser perdido de vista na cena do diálogo de Sócrates com as leis é precisamente o fato de se tratar de um diálo-go, e de um diálogo não só com as leis, mas também com tó koinón tes póleos (Críton 50a8), em busca do melhor para todos, do bem comum, de um ponto de vista racional. O interlocutor é a cidade, organismo sócio-político do qual as leis são a expressão espiritual, assim como sua exteriorização em forma de poder coercitivo, de força coativa que leva a efeito as decisões da assembléia dos cidadãos: as leis são a voz, a constituição da personalidade universal da coletividade e o meio pelo qual se realiza a vontade da comunidade ateniense25: a esta Sócrates pertence como filho e escravo de suas leis (50e4). Deste modo os valores democráticos referidos pouco atrás podem parecer descurados: afinal que liberdade é esta? É a liberdade quando limi-tada pela igualdade, da mesma forma que esta é definida por aquela. Aqui, Estado, sociedade e clã, logo, público e privado, confundem-se de um modo que já não faz parte de nossa democracia. Estamos longe da concepção moderna dos direitos individuais porque estamos bem longe, tanto do indivíduo, quanto do Estado, modernos. E a percepção desta distância é crucial para a compreensão da atitude de Sócrates de um ponto de vista prático. Tanto quanto não querer contradizer suas palavras e sua vida (ministrando desta maneira sua última e mais poderosa lição), importa recusar as conseqüências de sua fuga, as quais estão relacionadas com sua situação pessoal na so-ciedade à qual dedicou sua vida e morte. A situação de um exilado era então particularmente desconfortável, tornando-o não apenas um estrangeiro, mas um pária. E ainda mais o seria para Sócrates que se tornaria com a fuga efetivamente uma espécie de traidor, visto como um elemento perigoso para onde quer que fosse – e com ele sua fa-mília –, pois além de negar seus ensinamentos (53c e seq.), com sua fama de sábio causaria prejuízos morais e políticos para sua pátria aos

25 Gregory Vlastos (1994: 87, 91) mostrou a conexão entre as leis e a cidade no Críton; e como o desrespeito pelas leis era então percebido como desrespeito pela constituição democrática e pelo povo.

Page 47: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga46

olhos da Grécia26. Este mal ainda se une aos danos que seriam muito possivelmente ocasionados aos amigos e alunos que o houvessem aju-dado a fugir (44e): pois a cidade não os perdoaria facilmente. Nesta ordem jurídica, a culpa e a sanção são também coletivas.

Entretanto, a este aspecto que chamei “prático”, relativamente à decisão de Sócrates, corresponde subjacente uma questão “teórica” crucial, a qual venho tentando esclarecer desde o início destas pági-nas. Para compreender por quê, devemos voltar à consideração do método socrático de perguntas e respostas.

13. Primeiro professor-pesquisador, para Sócrates a verdade possível ao homem era somente um aproximar-se, um estar a caminho através da investigação dialógica. Note-se que as leis interrogam – exatamen-te como Sócrates tinha o hábito de fazer. Entre este e aquelas acontece um diálogo: não ouvimos somente uma preleção das leis, mas estas instam seu interlocutor a responder (50c9: ‘...mas nos responde, já que tens o costume de se servir do perguntar e responder’), tal como antes este fizera com seu amigo Críton. E Sócrates, mais que apenas responder, também interroga as leis – ou a si mesmo (por exemplo, em 52a).

Pululam no Críton os termos correlatos de homologéo, relativos à concordância, acordos, contratos, pactos, tratados, compromissos, convenções, etc (Romilly 2002: 127). Era através de um compro-misso político inaugural que o jovem ateniense adquiria a cidadania: a dokimasía (Harrison 1998: vol. I, 74; MacDowell 1986: 68-70; Kraut 1984: 154-157; Todd 1995: 180-181; Carey 2000: 212; Romilly 2002: 132), processo formal no qual devia provar diante da assembléia de seu demos que possuía as qualidades exigidas pela lei, declarando que desejava tornar-se cidadão e jurando obedecer aos magistrados e às leis. Ao se referir a este procedimento, as leis (Críton 51d) afirmam as obrigações ética, jurídica e política que a cidadania representa, abrindo diante de Sócrates uma escolha com três possibi-

26 Veja-se a introdução de Maurice Croiset ao Críton no vol. I da edição da Belles-Lettres das obras de Platão, p. 215.

Page 48: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 47

lidades: ir-se, obedecer ou tentar convencê-las de seu erro27. Ora, o diálogo é o horizonte da verdade socrática. Inevitavelmente provisória e circunstancial, toda pretensa verdade desvela em primeiro lugar a qualidade de minha capacidade de estar acordo comigo mesmo com outrem e com o curso dos eventos. E é neste acordo que se dá a ver-dade. Por isso a necessidade de desenvolver um método de tal forma enigmático de filosofar. Um modo de pesquisar que é também artifí-cio pedagógico e máquina de guerra: a blindagem argumentativa do maior de todos os sofistas visa proteger a possibilidade da verdade e da justiça que se oferece no encontro de cada um de nós com o outro e consigo mesmo. Na mentalidade antiga, a relação entre indivíduo e coletividade estabelece-se de forma muito mais firme e estreita do que para nós hoje: a idéia de que a justiça seja não fazer o mal deve ser situada neste registro sociopolítico. Destarte, estão explicitamente vinculadas as concepções da justiça como respeito ao contrato cívico e como não fazer o mal, na interrogação que motiva a prosopopéia das leis (49e9-50a3). A busca da medida28 na vida pessoal equivale à busca do acordo na sociedade. Ambos devem ser fabricados aqui e agora atualizando a possibilidade sempre dada de uma harmonia uni-versal para a qual todas as coisas devem tender, a ser atingida sempre mais adiante, e cuja realidade funda-se na sua própria necessidade e economia – ponto de fuga de toda perspectiva totalizante, centro de equilíbrio do devir cósmico, esquema transcendental de alguma forma implícito em toda procura de ordem imanente. Seja como pro-porção harmônica na arte, como saúde de um organismo ou como paz e segurança na sociedade.

27 Sócrates, que aparentemente já desperdiçara a alternativa de sair de Atenas (pela saída vo-luntária antes das acusações, pela escolha do exílio como pena ou pela fuga), vai de certa forma uni-la, na morte (o Fédon pode ser lido como uma representação do processo de libertação da alma), com as alternativas de obediência e de persuasão, em um último esforço de convenci-mento por meio de uma pedagogia do exemplo. 28 Segundo M. F. Burnyeat (1997: 139), Sócrates – e precisamente ele que, como se sabe, constituiu para a tradição a própria encarnação do ‘nada em excesso’ apolíneo – pode ter sido visto pelos atenienses como o culpado de perigosa hybris, ameaçando assim a cidade.

Page 49: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga48

O próprio julgamento foi uma espécie de diálogo em que Sócrates tentou persuadir Atenas de seu erro em condená-lo29. Mesmo com seus acusadores, durante o julgamento, procura o diálogo; e a alterca-ção30 entre Meleto e Sócrates em torno das acusações, mostra como estas estavam ligadas para o povo: corromper a juventude, impiedade ou corromper a constituição são crimes relacionados na percepção dos cidadãos atenienses. Corrupção das leis e corrupção da juventude encontram-se explicitamente unidas entre as advertências que as leis fazem a Sócrates no Críton31.

Traição, tirania, imoralidade, falsa divinação, malversa-ção dos fundos públicos, magia, demagogia, irreligiosidade – tudo isto estava confusamente conectado na idéia de um crime contra a cidade, a terra e o povo, injustiça fundamen-tal que é o verdadeiro objeto da acusação32.

29 Ele diz que se tivesse mais tempo talvez tivesse conseguido (Apologia 37a-b). Note-se que o poder de persuasão de Sócrates encontra-se limitado pelos procedimentos legais, não podendo dialogar com os juízes/jurados ou com as testemunhas (Carey 2000: 17). 30 Apologia 24b-28a. Procedimento possivelmente previsto pelas próprias leis atenienses: cf. p. 149, n. 1, da citada tradução do Críton de M. Croiset; Brickhouse e Smith 1985: 30, n. 2; Harrison 1998: v. 2, 162. 31 “Pois quem quer que destrua as leis será certamente considerado um corruptor dos jovens e dos tolos” (53c1-3). Não por acaso o Eutífron tenta defender Sócrates da acusação de corromper a juventude ao mostrar o personagem–título convencido a abandonar o processo contra seu pai (como notou Diógenes Laércio II, 29). Na Apologia (24d e seq.), o diálogo entre Meleto e Sócrates deixa clara a conjunção e implicação das duas partes da acusação, e começando já por uma afirmação do primeiro com relação ao papel educador das leis que o segundo, signi-ficativamente, não contesta. De acordo com Werner Jaeger (1992: 284), no estado ateniense a lei era a escola da cidadania (cf. Protagoras 326c-d). No Criton (50d-e) não apenas são as leis que administram a educação na cidade, mas elas mesmas se portam como mestres e ensinam Sócrates através do diálogo. Aristófanes (Nuvens 1228-1241; 1468) retratará o desrespeito aos contratos e aos pais (falta gravíssima na legislação ateniense) como conseqüência dos ensi-namentos socráticos (cf. Todd 1995: 149). E há uma relação direta disto com a defesa que Sócrates faz de si mesmo, no Críton (48c4; 54a1-54b1;45b10-45d9), quanto aos seus filhos: e não só porque é sua responsabilidade educá-los, mas porque o crime contra a família é um crime contra a pátria – esta percebida como continuação daquela, inclusive no bojo da noção de asebeia (Gernet 2001: 71). 32 Cf. Gernet 2001: 70-77, 86-88. Todd 1995: 310-311: ‘[...] asebeia will have been perceived as an offence against the community, because it is the community who may expect to suffer the consequences of the impious act [...]’.

Page 50: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 49

Consideremos brevemente alguns pontos da instauração e desenvolvimen-to do processo. Sócrates é julgado pela corte dos Heliastas, o principal tribunal de Atenas, no curso de uma ação penal pública (Eutífron 2a-b, 12e). Embora pública, tal ação é desencadeada pela vontade priva-da dos acusadores: no sistema legal ateniense indivíduos acusavam e processavam outros indivíduos (MacDowell 1986: 61-62; Carey 2000: 9-13). Entre as instituições atenienses não se conta similar ao nosso Ministério Público, ao qual a Constituição brasileira (art. 129) atribui privativamente a função de promover a ação penal pública, na forma da lei, em nome do Estado, exercendo assim uma espécie de acusação pública. Cabia ao rei-arconte, um dos nove magistra-dos da cidade, entre cujos encargos jurídicos contava-se o exame das acusações de impiedade (Constituição de Atenas LVII, 2), acolher ou não a acusação, julgando em uma audiência preliminar (a anakrisis: MacDowell 1986: 239-242; Todd 1995: 126-129; Harrison 1998: vol. 2, 94-105) se esta correspondia de fato à disposição legal. A lei contra impiedade era, no entanto, apesar de constitucional, vaga, e por isto seu alcance provavelmente devia ser determinado ad hoc – pre-liminar e provisoriamente diante do rei-arconte –, mas decisivamente pelo júri no julgamento33. O que, por si só, já faria do julgamento uma cena formal de discussão e argumentação coletivas a respeito dos fatos e da justiça das imputações e das penalidades. Porém, há ainda mais em jogo, pondo em discussão também matérias apenas subentendidas, porém cruciais. Graças a Anistia de 403, paralela à qual se empreendeu uma completa reforma das leis (aliada a uma provável tentativa de codificação: Todd 1995: 56-58), proibiram-se as represálias com relação aos fatos passados durante as convulsões e períodos de exceção anteriores à restauração da democracia, interdi-tando as acusações que àqueles se reportassem (Constituição de Atenas XXXIX-XL; Helênicas II, 4, 38-43). Além disso, a reforma legal rea-lizada paralelamente à Anistia trouxe como regra geral e fundamental

33 Daí a variedade de procedimentos nos casos de a*sebevia: cf. MacDowell 1986: 199-200, 240-242; Brickhouse e Smith 1985: 16; Rhodes 1993: 639; Todd 1995: 307-315. Como disse Vlastos (1991: 294), o crime de impiedade não possuía definição formal e dependia apenas do que uma maioria simples de juízes em certo dia entendesse como sendo ímpio.

Page 51: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga50

do devido processo legal ateniense a obrigação de referir as acusações à violação de alguma lei escrita34. Ora, com relação à acusação de corromper a juventude, não se tem registro de nenhuma lei que a prescrevesse (Brickhouse e Smith 1985: 18). Assim, a imputação de corrupção da juventude, ligada à de impiedade (como já o era, de todo modo, no senso comum da cidade) e por esta como que absorvi-da, poderia parecer estar em segundo plano, mas provavelmente não foi o caso: Sócrates contava entre seus alunos homens que estiveram envolvidos em escândalos religiosos e movimentos antidemocráticos, fatos que – mesmo não podendo ser matéria de acusação – todos em Atenas tinham na memória35. O julgamento constitui assim um diálogo de Sócrates com cada um dos “homens de Atenas’36 sobre as próprias diretrizes com referências às quais se deve gerir a própria vida, caminhando em direção à excelência ou, ao contrário, corrom-pendo-se; e onde se apresentam a todos, diante do grupo, as mesmas alternativas – persuadir, obedecer ou ir-se – que guiam a argumen-

34 Ver o texto da disposição legal conservado por Andócides (Sobre os Mistérios I, 87) em Arnaoutoglou 2003: 104. 35 Assim é fundamental saber, como Xenofonte (Apologia 59; Memorabilia I, 2, 31-38) e Platão (Apologia 32c-e) deixam entrever, que Atenas culpava seu mestre por seus maus alunos Crítias e Alcibíades. Ora, a cidade tinha passado recentemente por eventos traumáticos, tanto do ponto de vista político, como do religioso – o que suscitava então um ambiente provavelmente propí-cio ao acirramento dos ânimos (Mossé 1990: 16-45; Parker 1996: 40-42; Todd 1995: 312-315) –, eventos nos quais aqueles produtos da educação socrática tiveram papel decisivo. Este parece ter sido o núcleo das acusações do famoso panfleto de Polycrates. E a sempre citada passagem de Esquines (Contra Timarco, 173; Giannantoni 1990: v. 1, 82) aparentemente o confirma. De todo modo, a Anistia não basta para que se considere que os motivos da condenação foram simplesmente políticos (a questão religiosa representando somente uma estratégia de diversão), pois não há razão pela qual uma atitude subversiva de Sócrates posterior aos Trinta não fosse trazida à baila – assim como aquele não teria porque não se referir aberta e preferencialmente ao problema político se este constituísse realmente o centro exclusivo (ainda que subentendido) das acusações (Brickhouse e Smith 2002: 5-8, 207-209). 36 Dentre as alternativas formais de se dirigir ao júri ou à Assembléia (Burnyeat 1997: 144), Sócrates escolhe esta em primeiro lugar na Apologia, utilizando a designação juízes (dikastai) apenas no final (40a) para falar àqueles que o absolveram. Falar aos homens de Atenas significa aí também que ‘[...] os quinhentos jurados amadores formavam uma assembléia popular em pequena escala’ (Kraut 1984: 80). É preciso marcar, não obstante, que se tratava, dadas as características mesmas de constituição dos tribunais atenienses, de uma assembléia provavel-mente algo conservadora, e de um povo já por si conservador em matéria de religião (Carey 2000: 4-6).

Page 52: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 51

tação socrática diante das leis da cidade, bem como sua posterior decisão de permanecer na prisão.

14. Do ponto de vista socrático, verdades definitivas – do tipo “sem-pre obedecer às leis” –, mesmo quando aparentemente enunciadas de forma peremptória, permanecem de todo modo problemáticas. Não porque Sócrates despreze as leis ou ponha o seu próprio senso de justiça acima destas – ele mesmo exige que seus juízes o julguem conforme a lei (Apologia 35c) –, mas porque nenhum dogma pode dar conta das questões realmente fundamentais “Como viver bem?” ou “O que é o bem ?” – que, já se sabe, são apenas uma outra forma de perguntar pela justiça. Para Sócrates a justiça é uma questão in-contornável, porém sem respostas definitivas – e talvez sua qualidade mais importante como pensador fosse ter consciência disto.

No Górgias a questão de que o maior dos males é praticar a injus-tiça (469b) permite uma aproximação bastante elucidativa com o Críton37. Ao longo do texto, não é a adequação às opiniões dos ci-dadãos atenienses que conta: na verdade, estas opiniões serão visadas todo o tempo, porém de acordo com um método de filosofar que po-deríamos qualificar de democrático: ainda que seu critério de verdade não seja simplesmente a concordância da maioria, mas a coerência do raciocínio, a participação está aberta a todos. Para o diálogo socrático o importante não é apenas o acordo, mas o acordo que resulta do exame correto da verdade (471e). Como ele diz adiante (506a): “não é verdade da qual esteja certo, mas quero procurar convosco; e se meu oponente tiver razão abandono”. Mas o diálogo como método filosó-fico só funciona – e isto é o decisivo – por causa de sua sustentação metafísica implícita. Com relação ao direito, se Sócrates segue as leis é pela possibilidade que estas representam de refletir em sua letra a jus-tiça. A veemência com que Caliclés, o sofista, separa lei e natureza já

37 Também lá Platão aponta a medicina e a ginástica como téknai que visam o bem do corpo e, correspondendo respectivamente a estas duas, a justiça e a legislação, que formam a política, visando o bem da alma (Górgias 464bc).

Page 53: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga52

é um signo de qual, por contraste, é a visão de seu oponente38. Esta se tornará explícita a seguir (488c-489b) e no discurso de Sócrates vere-mos os mesmos princípios do Críton retornarem fundamentados por uma noção cada vez mais evidente de ordem universal (506c-507e). O importante é que não se pontifica sobre tal noção39: Sócrates con-fessa falar a partir dela sem compreendê-la totalmente (508e-509a) e continua a pô-la em discussão; e é precisamente por esta pesquisa da verdade e do bem, em um debate aberto a todos, com a finalidade precípua de educar seus interlocutores e a si mesmo, que este pensa ser um dos raros atenienses a cultivar a verdadeira arte política (521d) – razão suficiente, vaticina, para ser condenado à morte.

Em todo o Górgias subjaz a idéia de se adequar através do raciocínio em conjunto, do lovgo”, à alguma espécie de razão universal – ‘razões de ferro e diamante’ (509a1-2) que estruturam e sustentam o discurso socrático. É evidente e constante em geral nos sokratikoi lógoi a pre-sença de um certo misticismo, que também se manifesta claramente no Críton, desde o objetivo de aperfeiçoar a alma (47c-48a), passan-do pelo sonho profético (43d-44b) até o encontro com a própria verdade (48a) e com as leis do Hades (54c). O que não significa que Sócrates não possa ser descrito como um racionalista; embora aplicar a ele o conceito moderno de racionalismo sem mais fosse anacrôni-co. Como se sabe, a idéia do conflito entre fé e razão era estranha à mentalidade pagã (Kahn 1998: 97; Snell 1992: 50). Se o diálogo constitui um método filosófico de investigação racional da verdade, e se pode ser uma forma democrática de forjar acordos e compromissos

38 Os sofistas não inventaram a distinção entre a justiça divina ou natural e a humana, ou entre a ordem do mundo e a ordem humana (Gernet 2001: 81-82), mas a utilizaram em suas teorias; as quais floresceram na nova ambientação intelectual citadina, empregando uma nova noção, mais abstrata, de justiça. Com relação a esta evolução, Sócrates representa a um tempo um passo à frente, com seu racionalismo, e um passo atrás, tentando recuperar o passado político e filosófico retomando a noção arcaica de uma harmonia individual e coletiva com a ordem sagrada do universo. E daí as suas contradições: educação elitista – método democrático, valores aristocráticos – disposição popular, razão humana – sabedoria divina, etc. 39 A prova final de tudo que é dito não é alguma asserção definitiva sobre a ordem das coisas, mas a constatação de que ninguém, mesmo entre os mais sábios, consegue refutar o discurso socrático (527a-b).

Page 54: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 53

políticos, é porque abre a via divina do conhecimento, como meio da missão religiosa40 de fazer ver na busca da verdade, do bem e do belo uma sagrada obra coletiva, tarefa de todos e de cada um.

15. O que impediu muitos leitores de perceber o caráter fundamental-mente democrático do pensamento socrático foram antes de tudo as constantes afirmações de Sócrates – a começar pelo Críton (46d-48b) – sobre a necessidade de se tentar obter verdadeiro conhecimento para se tomar decisões em qualquer área.

Não parece muito inteligente defender que o único critério democrático de, por exemplo, escolher médicos, professores de ginástica ou enge-nheiros, seja a votação. Pelo menos em algum grau é preciso empregar critérios baseados no mérito. Significa que se deve decidir levando em conta a opinião daqueles que são especialistas na matéria, para tentar eleger o melhor. Ainda que não haja concordância com relação ao que seja o melhor – e não por acaso é este (seja como questionamento acer-ca do bem ou da melhor vida possível) o objeto da filosofia socrática –, somente erigindo como critério, não apenas a opinião da maioria, mas também a aparente irrefutabilidade da argumentação (a qual deve se impor pela força de sua própria coerência racional), podemos ter a esperança de pensar, falar e agir de maneira justa.

O problema maior, porém, reside, não nas questões técnicas, mas nas questões morais, importantes mais que todas, e para as quais só um conhecimento mais que humano seria suficiente (Apologia 23a-c) – e, possivelmente por isso, a última passagem citada do Críton sobre a necessidade de se buscar conhecimento que não se reduza apenas à opinião da maioria, desemboque, como se viu, em uma alusão velada à divindade (48a7; 47d1-2). Pois esta busca, ordenada pelo deus por diversos meios (Apologia 33c), foi, por vezes, orientada pela interfe-rência direta deste41. Mas o interessante nisto tudo é que, se o diálogo,

40 Latreía, palavra com que se refere Sócrates na Apologia (23c) ao seu questionamento co-tidiano dos cidadãos atenienses, destina-se alhures em Platão, e normalmente na tragédia, especificamente ao serviço em nome dos deuses olímpicos (White 2000: 173, n. 52). 41 Nem sempre de forma negativa, como acontece no julgamento, quando o silêncio do sinal divino é interpretado como consentimento (Apologia 41d5-6), ou de forma passiva, como no

Page 55: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga54

o método racional de pesquisa da verdade tem seu funcionamento exigido e garantido por uma intuição metafísica do funcionamento da realidade, por outro lado esta intuição, o sinal do deus, só ocorre em função e no enquadramento daquela pesquisa. Ou seja, não es-tamos diante de uma simples revelação da verdade a um iluminado que transmite aos meros mortais as palavras do deus. O tempo todo Sócrates raciocina em conjunto com seus interlocutores para tentar descobrir o que é melhor.

A rejeição da lex talionis no Críton (49c-d), movimento central na revolução moral que empreende Sócrates, está sustentada, por exem-plo, pela afirmação já referida da Apologia (41c9-d3): ‘[...] não há mal nenhum para o homem bom, nem na vida, nem na morte, nem se descuidam os deuses de seus afazeres’. Esta afirmação mostra a revo-lução religiosa que o pensamento socrático implica: os deuses são bons, favorecem e protegem o bem42. O que confundiu os atenienses, e continua surpreendendo os especialistas, é o fato de que, embora estejamos diante de um homem profundamente religioso, está em curso aqui uma revisão racionalista (cujos primeiros movimentos se encontram no pensamento pré-socrático) da imagem dos deuses, da prece, e do próprio sentido da devoção. O alcance epistemológico da citada afirmação da Apologia é ainda mais notável por ser introduzida como uma recomendação dirigida aos juízes de Sócrates de “pensar sobre esta verdade”. Transformar a religião é aqui pretender transfor-mar a política, o direito, a filosofia etc – e vice-versa43.

sonho do Críton (43d-44b), mas também de forma positiva, interferindo diretamente nas de-cisões (Eutidemo 272e1-273a2; cf. Reeve 2000: 31-35). Segundo Jean-Pierre Vernant (1990: 162) – referindo-se a Empédocles, aos pitagóricos e a Platão –, o daimon é o princípio divino que liga nosso destino individual à ordem cósmica: ora, a ‘justiça’ funciona como designação desta ligação quando corretamente disposta, em boa sintonia e sincronia. 42 Sócrates critica a visão tradicional dos deuses (Eutifron 6a). Ver, entre vários outros, Burnyeat 1997; Vlastos 1991: 163-165; McPherran 2000: 100-102; Gocer 2000; Parker 1996. 43 ‘Greek religion did not comprise a unified, organized system of beliefs and rituals distin-guished from the social, political and commercial aspects of life we would now ordinarily term “secular”’ (McPherran 2000: 91). Ademais, seria até mesmo difícil identificar um substantivo no grego antigo significando propriamente ‘religião’ (Gocer 2000: 115, n. 3).

Page 56: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 55

Por isso, quando se tenta responder a pergunta – Por que Sócrates foi acusado, julgado e condenado? – é importante levar em conta as circunstâncias históricas. Mas sem tentar obter apenas daí as respos-tas. Porque se estamos adstritos, como se disse no começo, a tentar entender o pensamento de Sócrates a partir de sua vida (e não de suas próprias palavras), sua filosofia a partir de sua atitude diante da morte (conseqüência de sua forma de viver), foi o fato de resolutamente viver suas idéias que concretizou seu destino. Sua filosofia é a respos-ta para entender sua vida e sua morte44. E isto significa não apenas as idéias, mas os atos. Pois poderíamos perguntar, por exemplo: se o racionalismo teológico, concepções políticas diversas ou a habili-dade retórica, antes e então, foram professados por outros, por que Sócrates é executado? Porque era um professor45, e de uma espécie muito rara. Como ele mesmo deixa entrever no Eutífron, uma coisa é ter determinadas opiniões, outra coisa é ensiná-las. Mas pior ainda, podemos acrescentar, é fazê-lo com o exemplo da própria vida.

16. Talvez o trecho mais importante do Críton seja o seu final: lem-brando os acordos e contratos que as ligam a Sócrates (54c3-4)46, as leis vão se referir a uma espécie de legalidade universal que vincula as leis da cidade às leis do Hades. É preciso perceber como esta noção de

44 Como bem viu Orígenes (Gianantoni 1990: v. 1, 318 – 1G28, 6-7), Sócrates preferiu morrer como filósofo que viver de maneira não-filosófica. É preciso perceber que uma coisa é a maneira como este pensava ou agia, outra, o que o povo de Atenas achava disto (cf. Vlastos 1994: 87). Se só chegamos a Sócrates através do que outros dele pensaram, isto não nos autoriza a tomá-lo pelos outros – para nós, antes de tudo devem falar seus atos. Os que o tem na conta de adversário da democracia, costumam lembrar que Ânito lutou pela democracia durante a tirania dos Trinta (Constituição de Atenas XXXIV, 3). Esquecem, contudo, que, ainda segundo Aristóteles (ibid. XXVII, 5), foi ele também o primeiro a corromper os juízes atenienses; e há quem acredite ter sido Meleto, o acusador de Sócrates, um dos homens enviados pelos Trinta para prender Leon de Salamina (Brickhouse e Smith 1985: 19). Mas possivelmente grassava no período subseqüente à restauração da democracia um certo rancor ideológico e o temor de uma nova queda do qual se aproveitam os acusadores. Para uma visão paradigmática de Sócrates como um pensador autoritário, veja-se Stone 1993. 45 Consulte-se, por exemplo: Todd 1995: 311; Parker 1996: 43; Brickhouse e Smith 2002: 204-207. É importante ter em mente que Sócrates não estava devotado a ensinar apenas seus alunos, mas a cidade como um todo. 46 Louis Gernet (2001: 461) marca o sentido religioso dos termos jurídicos da família de tithè-mi significando ‘contrato’, como o utilizado no texto: synthèkas (54c4).

Page 57: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga56

uma justiça natural e divina, está todo o tempo presente de forma la-tente nos discursos socráticos: não como um saber acabado – um alvo mais que um ponto de partida. Esta é a origem do extremo respeito às leis anacronicamente assemelhado por alguns intérpretes ao positivis-mo jurídico moderno. A última fala de Sócrates, comparando-se aos iniciados dos mistérios dos Coribantes47, revela a inspiração divina que, se não é tomada simplesmente como verdade dada, constitui algo de essencial a seu pensamento48.

A diferença entre Sócrates e a multidão é a consciência do não-saber: este abre a porta para a experiência do saber e para o aperfeiçoamen-to pessoal. O que de maneira nenhuma o isola de sua comunidade na procura monástica de alguma iluminação hermética. A história de Querefonte e o oráculo na Apologia o confirma: para saber por que era dito sábio, Sócrates parte para tentar enxergar a si mesmo

47 Os Coribantes são os sacerdotes frígios da Grande Mãe anatólia Cibele. A etimologia do termo é incerta, mas Junito Brandão (1991: 237-238) registra uma possibilidade interessante pela qual ‘[...], Coribantes significariam os que executavam danças circulares como as kýrbeis, “as placas giratórias de Atenas”, isto é, placas triangulares em forma de pirâmides de três faces, que giravam em torno de um eixo: nelas se gravavam as leis, particularmente as de Sólon’. Ora, o texto da condenação de Sócrates foi conservado precisamente no templo de Cibele onde se mantinham os arquivos do Estado ateniense (Diógenes Laércio II, 40; Brickhouse & Smith 1985: 15; White 2000: 154). Se a deusa em questão figura a energia latente no seio da terra (Brandão 1991: vol. 1, 207), é interessante observar que Delfos foi antes um santuário da Terra-Mãe (Eliade 1983: tomo I, vol. 2, 104), e que a conhecida relação fundamental do próprio deus délfico com as idéias de ordem e lei, é relativa principalmente àquelas leis ligadas à religião e à pátria (República 427b; Memorabilia I, 3; Eliade 1983: tomo I, vol. 2, 103). E a constituição mesma da cidadania está ligada a Apolo (Burnyeat 1997: 136). ‘[...]: il faut se rappeler ici la notion fondamentale de la Terre-Mère et la Divinité. Le groupe et le sol sont impregnés d’une vertu religieuse qu’ils se communiquent l’un à l’autre’ (Gernet 2001: 75): tanto a acusação de impiedade, como as palavras e os atos de Sócrates, devem ser entendidos sobre o pano de fundo deste enquadramento ideológico político-religioso-jurídico (cf. República 470d e seq.). 48 Parece a Sócrates que o lógos do deus nele ressoa inspirando o discurso que o orienta (54d3-e). Lembremos a famosa alusão aos Coribantes no Ion (533e8). Em outro texto bastante interes-sante, de um dos discursos socráticos remanescentes, da autoria de Esquines (Giannantoni 1990: vol. II, 605-610), o protagonista afirma mais uma vez sua ignorância e atribui ao favor divino sua habilidade de beneficiar Alcibíades – atuando como bacante, veículo do poder de eros. Note-se, porém, que no pensamento socrático esta intuição passa pela elaboração racional (Vlastos 1991: 171); o que não significa que o deus não possa também, embora muito rara-mente, interferir diretamente e diretamente ser obedecido (Reeve 2000: 34-37).

Page 58: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 57

através da busca do saber no outro49. Não se vê aí obscurantismo, fi-deísmo, solipsismo ou quietismo. Descobrir que a sabedoria humana vale pouco (23a7-c1) significa pôr-se a serviço do deus procurando a sabedoria em si e nos outros50.

Trata-se de estimular cada um dos cidadãos a encontrar o melhor para todos através do diálogo. A crença subjacente é que a alma, se di-rigida para o bem através do exame racional da vida, mostra-se capaz de naturalmente se aperfeiçoar. O caminho para a verdade, a justiça e a felicidade começa em cada um de nós. E é trilhado na tentativa cotidiana de resolução dos problemas concretos a partir da perspec-tiva do bem comum. Só o debate e o acordo democráticos conferem validade, o selo momentâneo de justiça e verdade, à determinada decisão, visto que só a busca do acordo racional através do diálogo pode preservar tal possibilidade. Nesta esperança de aperfeiçoamento reside o fundamento místico da democracia.

A noção de uma ordem universal, de uma justiça divina ou natural, é inerente à própria constituição de sentido do ordenamento jurídi-co grego (bem como à física, à ética, à política etc.). Tal se mostra de maneira francamente evidente, seja no espírito mesmo da legis-lação grega, seja na própria operacionalização cotidiana do direito. Religião e direito continuam a ser então forças paralelas e, se não são mais coincidentes – e é isto que permite sua discussão –, perma-necem concorrentes em um culto do Estado o qual, na democracia, principalmente se realiza como um culto da lei que torna sagrados o espaço e o momento do discurso político, bem com a palavra aí

49 Apologia 20e-23c. Vale assinalar, como outros já fizeram, a importância da associação com Querefonte, notório democrata, no reconhecimento da posição política de seu mestre (Vlastos 1994: 108; Brickhouse & Smith 2002: 203). Sobre o autoconhecimento socrático, o Primeiro Alcibiades, seja ou não produto autêntico da lavra platônica, parece consistente com a Apologia ao mostrar como o conhecimento de si está ligado ao conhecimento dos outros homens e do deus (133b-d). 50 A explicação de C. C. W. Taylor (1982: 113) sobre por que o deus precisa de Sócrates, já se tornou clássica: ‘[...] there is one good product which [the gods] can’t produce whithout human assistance, namely, good human souls’. For a good human soul is a self directed soul. Cf. Vlastos 1991: 173-177; Nehamas 1992: 303.

Page 59: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga58

empenhada51. Logo no início da assembléia ateniense, depois que um sacerdote pedia silêncio religioso aos cidadãos para nomear os deuses da cidade e pedir sucesso na reunião, vinha – em nome do povo – a resposta: “Invoquemos os deuses para que protejam a cidade. Possa o conselho do mais prudente prevalecer! Maldito seja todo aquele que nos der maus conselhos, pretender modificar os decretos e as leis, ou revelar nossos segredos ao inimigo”. Cito aqui Fustel de Coulanges (1971: 405) que narra, em seu estudo clássico sobre a cidade antiga52, como se realizam cerimônias religiosas propiciatórias na Assembléia dos cidadãos – cujo recinto ele mesmo é sagrado e cujos procedimen-tos são organizados segundo uma disposição quase litúrgica –, em um ritual que, se era marcado pela discussão e ponderação racional das decisões, também possuía, acompanhando o debate, todo um aparato teológico de fórmulas sacras e distribuição de cargos e atri-buições cuja função era a iluminação e proteção da palavra prudente e verdadeira, voltada para a felicidade da cidade.

É neste contexto de solicitação e presença de uma sustentação meta-física implícita do conhecimento necessário para agir corretamente que devemos situar as palavras e a atitude de Sócrates, como também as razões de sua execução. Se este é acusado de não reconhecer pro-priamente – isto é, da maneira adequada ou segundo prescrevem os costumes e as leis – os deuses da cidade (Snell 1992: 50-51; Vlastos 1991: 174; Reeve 2000: 27-28), isto parece demonstrar que o diag-nóstico de Platão no Eutífron (3b) foi bastante certeiro: é fácil caluniar sobre isto junto aos ‘muitos’. O problema está em que Sócrates repre-senta, com relação ao direito, à filosofia, à política ou à religião, algo novo, mas também algo muito antigo. Por isto, a religiosidade socrá-tica, ainda que profunda, pode, por isso mesmo, facilmente ter sido lida como irreligiosidade – e de fato até hoje. E o mesmo se pode dizer do caráter democrático de seu pensamento: a partir de uma tentativa

51 O caráter sagrado do Estado e da comunidade, de origem indo-européia, sobrevive latente nas configurações democráticas do poder (Heiler 1959: 479). O crime ainda é comumente considerado uma loucura resultante de uma falta religiosa (Gernet 2001: 306 e seq.). 52 Coulanges 1971: 200, 403-405.

Page 60: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 59

de reconstituição do próprio sentido ancestral do novmo” – noção a um tempo religiosa, política e jurídica –, que perfaz os movimentos iniciais de uma autêntica filosofia do direito, trata-se de fortalecer a cidadania (Villey 2003: 59-64). Logo, discutir se a condenação de Sócrates aconteceu por conta de questões religiosas ou políticas não parece fazer muito sentido, uma vez que se tratam apenas de dois as-pectos que se completam. A ironia está em que Sócrates, vivendo em meio a uma crise ao mesmo tempo religiosa, ética, jurídica e política, seja acusado de uma corrupção moral que ele mesmo combatia.

17. Em resumo: a crença metafísica na eficiência do diálogo – e, por extensão, na democracia – é justificada pelo próprio diálogo (ou seja, pela argumentação racional), assim como este justifica aquela. Pois uma vez que se acordou que a maioria nada sabe, não há porque considerar justas as leis da cidade, salvo se estas se constituem como possibilidade e/ou tentativa de aperfeiçoamento da comunidade e, portanto, de si mesmas – o que só pode ser justificado pela crença em um princípio cósmico de justiça presente em potência na razão humana. É este princípio que o exame filosófico de si próprio, dos homens e da vida, parece a Sócrates poder trazer à tona. A voz do povo não pode chegar a refletir a voz do deus se não se garante um amplo debate conduzido por um método de exame racional do bem e das questões vitais.

18. Por fim, é interessante notar como a relação entre moral e saber foi quase sempre lida pela tradição em apenas um dos seus sentidos: o verdadeiro conhecimento leva à virtude. Nisto se vê como para o Ocidente a virtude foi principalmente um fim: da filosofia mo-ral antiga, passando pela resoluta identificação de saber e poder na Renascença, até hoje, o conhecimento foi antes de tudo um meio para se alcançar aquela capacidade de realização e êxito que confu-samente costumamos mesmo identificar à ‘felicidade’. O Críton de Platão parece querer mostrar a igual importância do outro sentido, já que só assim a equação socrática recebe sua significação completa: a virtude leva ao verdadeiro conhecimento.

Page 61: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga60

Resumo

O conceito de lei socrático foi desde sempre objeto de contro-vérsias, principalmente em função das tentativas de explicar sua atitude quando de seu julgamento, encarceramento e exe-cução. Toda a dificuldade de conciliar entre si os diferentes textos sobre a filosofia e a vida de Sócrates, naturalmente se realça diante das circunstâncias de sua condenação e morte. Se soluções definitivas não parecem ser possíveis no atual es-tado de nossa documentação, contudo, uma possibilidade de ao menos atenuar as contradições reside no exame do funcio-namento do método socrático a partir de seus fundamentos: o diálogo como meio de um acordo, não apenas entre os cida-dãos de Atenas, mas destes com a própria ordem universal, a qual se vislumbra na busca humana da justiça e o bem comum.

Résumé

Le concept de loi socratique a depuis toujours été l´objet de controverses, principalement en raison des tentatives pour ex-pliquer son attitude lors de son jugement, son emprisonne-ment et son exécution. Toute la difficulté de concilier entre eux les différents textes sur la philosophie et la vie de Socrate, naturellement ressort à propos des circonstances de sa condam-nation et de sa mort. Si, dans l´état actuel de notre documen-tation, il paraît impossible d´apporter une solution définitive, néanmoins une possibilité d´en atténuer les contradictions ré-side dans l´examen du fonctionnement de la méthode socra-tique à partir de ses fondements: le dialogue comme moyen d´un accord, non seulement entre les citoyens d´Athènes, mais entre ceux-ci et le propre ordre universel, lequel se dessi-ne da la recherche humaine de la justice et du bien commun.

Page 62: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 61

Referências

ARISTÓFANES. Oeuvres Complètes. Paris: Les Belles Lettres, v. 1, 1987.

ARISTÓTELES. Constituição de Atenas (ed. bilíngue) Trad. e coment. de F. M. Pires. São Paulo: Hucitec, 1995.

______. Oeuvres Complètes. Paris: Les Belles Lettres, 1922 (1. ed.).

ARNAOUTOGLOU, I. (2003) Trad. O. T. Serra e R. P. Carnelós. Leis da Grécia Antiga. São Paulo: Odysseus.

BAILLY (1995) Dictionnaire grec-français. Paris: Hachette.

BENSON, H. H., ed. (1992) Essays on the philosophy of Socrates. Oxford: Oxford U. P.

BRANDÃO, J. (1991) Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes.

BRICKHOUSE, T. C. e SMITH, N. D. (1985) “The formal charges against Socrates”, In H. H. Benson, ed. (1992), 14-34.

______. (2000) Reason and religion in socratic philosophy. New York: Oxford U. P.

______. (2002) The trial and execution of Socrates (sources and controversies). Oxford: Oxford U. P.

BURNYEAT, M. F. (1997) “The Impiety of Socrates”, In Brickhouse e Smith, eds. (2002), 133-145.

CAREY, C. (2000) Trials from classical Athens. London / New York: Routledge.

COULANGES, F. de (1971) A cidade antiga. Trad. de F. de Aguiar. Lisboa: Livraria Clássica ed.

DIOGENES LAERTIUS. Lives of eminent philosophers. Trad. R. D. Hicks. London / Cambridge: Harvard U. P., 1991.

DÖRING, K. (1992) “Die Philosophie des Sokrates”, Gymnasium 99, 1-16.

ELIADE, M. (1983) História das crenças e das idéias religiosas. Trad. R. C. de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar.

ÉSQUILO. Os Persas. Trad. M. da G. Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

Page 63: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga62

GERNET, L. (2001) Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en Grèce. Paris: Albin Michel.

GIANNANTONI, G. (1990) Socratis et socraticorum reliquiae, 4 vols. Nápoles: C. N. R.

GOCER, A. (2000) “A new assessment of socratic philosophy of religion”, In Smith e Woodruff eds. (2000), 115-129.

GUTHRIE, W. K. C. (1992) Socrates. Cambridge: Cambridge U. P.

HARRISON, A. R. W. (1998) The law of Athens, 2 vols. Indianapolis: Hackett

HEILER, F. (1959) Die Religionem der Menschheit. Stuttgart: Reclam-Verlag

HERÔDOTOS. História. Brasília: UNB, 1988.

INGLESSIS-MARCELLOS, C. (1994) “Socrate et son double”, Revue des Études Grecques CVII., 85-106.

JAEGER, W. (1992) Paideia. Trad. J. Xirau e W. Roces. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica.

KAHN, C. H. . (1998) Plato and the Socratic Dialogue. Cambridge: Cambridge U. P

KRAUT, R. (1984) Socrates and the State. New Jersey / Princeton: Princeton U. P.

MACDOWELL (1986) The law in classical Athens. New York: Cornell U. P.

MAGALHÃES-VILHENA, V. de (1984) O Problema de Sócrates. Lisboa: Calouste Gulbenkian.

MCPHERRAN, M. (2000) “Does piety pay ?”, In Brickhouse e Smith eds. (2000), 89-114.

MOSSÉ, C. (1990) O Processo de Sócrates. Trad. A. Marques. Rio de Janeiro: Zahar.

NEHAMAS, A. (1992) “What did Socrates teach and to whom did he teach it?”, Review of Metaphysics 46: 270-306.

PARKER, R (1996) “The trial of Socrates”, In Smith e Woodruff eds. (2000), 40-54.

PLATONIS OPERA, recognovit brevique adnotatione critica instruxit Ioannes Burnet, Tomes I-V. Oxford: Clarendon Press, 1900-1907

Page 64: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sócrates e as leis: democracia e metafísica 63

PLATON Oeuvres Complètes. Paris: Société d’Édition “Les Belles Lettres”, 1920 (1a ed.).

REEVE, C. D. C. (2000) “Socrates the Apollonian ?”, In Smith e Woodruff eds. (2000), 25-39.

RHODES, P. J. (1993) A commentary on the aristotelian Athenaion Politeia. Oxford U. P.

ROMILLY, J. (2002) La loi dans la pensée grecque. Paris: Les Belles Lettres.

SMITH, N. D. e WOODRUFF P. B., eds. (2000) Reason and religion in socratic philosophy. New York: Oxford U. P.

SNELL, B. (1992) A descoberta do espírito. Trad. A. Morão. Lisboa: Ed. 70.

STONE, I. F. (1993) O julgamento de Sócrates. Trad. de P. H. Britto. São Paulo: Schwarcz.

VERNANT, J. -P. (1990) Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo: Paz e Terra.

VIDAL-NAQUET, P. (1996) La démocratie grecque vue d’ailleurs. Paris: Flammarion

VILLEY, M. (2003) La formation de la pensée juridique moderne. Paris: PUF

VLASTOS, G. (1991) Socrates. Cambridge: Cambridge U. P.

______. (1994) Socratic Studies. Cambridge: Cambridge U. P.

TAYLOR, C. C. W. (1982) “The end of the Euthyphro”, Phronesis 27: 109-118.

TODD, S. C. (1995) The shape of athenian law. Oxford: Oxford U. P.

TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: UNB, 1982.

WHITE, S. A. (2000) “Socrates at Colonus”, In Smith e Woodruff eds. (2000), 151-175.

XENOPHON Memorabilia. Trad. O. J. Todd. LOEB: Harvard U. P., 1992.

______. Helênicas. Trad. C. L. Brownson. LOEB: Harvard U. P., 1986.

Page 65: Princípios, Volume 11, Números 15-16
Page 66: Princípios, Volume 11, Números 15-16

65

Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica1

José Trindade SantosUFPb – João Pessoa, 2005

1. O problema

Apesar de a leitura tradicional continuar maioritária entre os intér-pretes, tem-se recentemente difundido a tendência para negar à teoria das Formas (TF) o lugar de centro de gravidade do platonismo2. Os argumentos apresentados para justificar essa posição invocam difi-culdades na interpretação das noções de eidos e idea, a par da falta de indicações sobre a natureza das Formas, a impossibilidade de atribuir teses a Platão nos diálogos3, e sobretudo a denúncia da gravidade dos problemas postos pela teoria, no Parménides. Sem tomar posição no debate, parece-me oportuno alargá-lo, analisando a filosofia platôni-ca – se é lícito conferir unidade à obra dialógica que a suporta –, a partir da questão do dualismo.

Para o historiador da filosofia, o tópico é importante pelo fato de im-pedir a assimilação da epistemologia platônica à concepção moderna de conhecimento. Enquanto esta supõe pelo menos uma relativa autonomia do sujeito e objecto, naquela o dualismo corpo/alma – es-trito nos planos ético e antropológico –, apoiado na congenitura da alma com as Formas (Ménon 81c-d; Fédon 79c-d, 80a-b), funde um

1 Agradeço a Marcelo Boeri a possibilidade de participar, com uma conferência na Universidad de Los Andes, em Santiago do Chile, no projecto “Apariencia y realidad en el pensamiento antiguo. Investigaciones sobre algunos aspectos epistemológicos, éticos y de teoría de la acción de algunas teorías morales de la antigüedad”. Dessa oportunidade saiu a ideia para este texto, do qual foi lida uma versão resumida no XI Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF, realizado em Salvador, em 2004. 2 Por exemplo, K. M. Sayre, “Why Plato never had a theory of Forms”, in Proceedings of the Boston Area Colloquium in Ancient Philosophy 9, 1995, 167-199; mais recentemente, F. J. Gonzalez, “Perché non esiste una “teoria platonica delle idee””, in Platone e la tradizione plato-nica, M. Bonazzi e F. Trabattoni (a cura di), Milano 2003, 31-68. 3 F. Trabattoni, “Il dialogo come “portavoce” dell’opinione di Platone: il caso del Parmenide”, in Platone..., supra n. 2, 151-178.

Page 67: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga66

no outro4. A rigidez deste dualismo mostra-se, porém, problemática no plano epistemológico.

Ao identificar o saber (epistêmê) com as Formas, a teoria da anamnese recusa estatuto epistémico a qualquer outra forma de cognição – senso-percepção, ou “opinião” (doxa) –, pois não só a crença é incompatível com a posse do “saber e recta razão” pela alma (Féd. 73a), como o saber não pode ser “captado” a partir de sensíveis (Féd. 74b).

Como se explica então que as opiniões que o escravo tira de si mesmo sejam susceptíveis de se transformarem em saber (M. 85b-c)? É claro que nem a posse de opiniões, nem a elaboração a que podem ser submetidas, consentem encarar a doxa como um estado cognitivo, ao contrário do que a República (V 476d sqq) implica, ao considerá-la como dynamis.

A epistemologia platônica acha-se perante duas alternativas inacei-táveis: ou cancela a infalibilidade em que assenta o estado de saber (Gór. 454d, R. V 477e, Teet. 152c), rejeitando o dualismo; ou o torna inacessível, inviabilizando toda a forma de aprendizagem. O dilema não se manifesta no grupo de diálogos em que é apresentada a anam-nese, associada àquilo que, por conveniência pedagógica, refiro como a “versão canónica” da teoria das Formas5. Irrompe no Teeteto, diálo-go no qual quer a ausência de Formas, justificando dúvidas sobre a vigência da teoria metafísica a elas associada, quer a contribuição da senso-percepção para a opinião e o saber, acarretam a reformulação do dualismo epistemológico.

O meu objectivo neste texto é avaliar o alcance desta reformulação, comparando a epistemologia desenvolvida no argumento da anam-

4 Aos loci classici do dualismo – o Fédon, os Livros centrais da República e a descrição da psico-génese, no Timeu – acrescento a sua reafirmação pontual, no Sofista 248a, a par das três versões da anamnese: Ménon 82-86, Fédon 72-76 e a imagem da alma, na palinódia do Fedro 245d-251b (vide ainda a comparação da reminiscência com a recordação, no Filebo 34a–c). Sendo consensual a exegese destes textos, dispenso-me de os abordar extensivamente, optando por referi-los quando se levantarem questões que me pareçam oportunas. 5 Embora não a encare como o núcleo doutrinal da filosofia platônica, além dos textos já men-cionados, considero este programa expresso, ou subjacente, no Crátilo e Simpósio.

Page 68: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 67

nese, no Fédon, com aquela que expõe, analisa e critica as teorias sobre a senso-percepção, atribuídas a Protágoras, no Teeteto.

2. Anamnese no Fédon

O dualismo platónico começa a ser exposto no argumento do Fédon que identifica a sensibilidade com o corpo e a alma com a Razão (65a sqq). A cisão é explorada até às últimas consequências no plano éti-co (66c-69e, 81b-84b), em termos que os compêndios caracterizam como caracteristicamente platónicos. Menos notada, pelo contrário, é a correspondente e capital função desempenhada pela sensibilida-de na cognição. Ao longo do chamado “argumento da anamnese” vemo-la ser constantemente contraposta à Razão, numa posição su-bordinada, porém, sempre funcional.

2. 1 O argumentoDepois de uma comprimida referência implícita ao Ménon (73a-b), é definido o princípio segundo o qual só pode haver reminiscência daquilo que antes se “soubera” (epistêmê, epistasthai: 73c). São depois fornecidos vários exemplos, tendentes a mostrar em que circuns-tâncias uma experiência cognitiva, designada “senso-percepção6”, suscita outra, identificada como saber (73c-74a) e caracterizada como reminiscência.

Começa então o argumento propriamente dito, concentrado nos casos da reminiscência de “semelhantes” (74a sqq: vide 73e). A comparação dos iguais visíveis com o Igual estabelece a prioridade cronológica (74e-75e), psíquica (74c-d) e epistemológica (74d-75d) da experiência inteligível sobre a sensível. Todavia, o argumento não deixa de repetidamente insistir (74c, 75a, b, e, 75e-76a) no facto de ser através da sensibilidade que “recuperamos” (analambanomen: 75e) essa experiência inteligível, designada como saber.

6 O termo tenta reflectir a incapacidade de distinguir a sensação da percepção.

Page 69: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga68

Apesar de os iguais não nos “aparecerem” (phainetai: 74b, d) “como” o Igual, mas por vezes iguais, por vezes desiguais7 (ao contrário do Igual, que nunca aparece – ephanê: 74b; phainetai: 74c – desigual), é a partir deles que “concebemos e captamos” (ennenoêkas te kai eilephas) o saber8 [do Igual] (74c). Mas o argumento não expõe claramente porquê, nem como esta concepção e captação são possibilitadas.

E não pode fazê-lo por se concentrar na caracterização da inferio-ridade dos visíveis (74b-e). Por isso, só adiante e pontualmente é explicada a “referência” (anoisein: 75b; anapheromen: 76d) destes à entidade inteligível que especificamente imitam (entretanto identi-ficada como “o belo”, “o bom”, “o justo”, “o piedoso”, e “todas as outras” ...“que são”: 75c-d).

O mistério da reminiscência (74a) – globalmente, da cognição, à qual serve de modelo –, reside nesta recíproca remissão, que enlaça o visí-vel no inteligível. Este só é concebido (ennenoêkas) “a partir” (ek: 74c, passim; apo: 74c, 76a) daquele, pelo facto de se acharem “próximos9” um do outro (hô touto eplêsiazen”: 76a). Mas esta “proximidade” nun-ca é objecto de justificação adequada.

2. 2 Contornos epistemológicos da anamneseAmplificando o argumento, vemos que a única possibilidade de con-ferir sentido à “insanidade” sensível (vide 89e-90c) decorre do facto de a alma ter necessariamente (Fedr. 249b, e) tido contacto anterior

7 A leitura relativista do passo (“para mim”...“para ti”) é a mais natural, introduzindo o re-gisto doxástico da diferença. A este se acrescenta o físico, relativo à possibilidade de alteração constitutiva. No entanto, não se acha excluída a possibilidade de o ler no registo relacional, da chamada “mudança de Cambridge”, pelo qual as coisas “nos aparecem” de acordo com aquilo com que as comparamos (vide Féd. 96d-e, 102b-104a; Teet. 154a-155e). O interesse desta nota reside no facto de a comparação fornecer o contexto no qual se insere a “aparência”: as coisas parecem-nos diferentes não apenas por se acharem sujeitas à mudança, mas porque cada um a compara com experiências diferentes. 8 Em 74b – concedida por Símias a realidade/existência do Igual inteligível –, a sua experi-ência é identificada como “saber”, caracterizado pela imutabilidade, nos três registos acima assinalados. 9 Esta tradução literal parece preferível à habitual, “associados”, pelo facto de esta induzir a inserção do argumento num contexto psicologístico, de todo anacrónico. Na prática, equivale a interpretar a reminiscência como um caso especial de associação.

Page 70: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 69

com as Formas inteligíveis, pois as duas experiências cognitivas co-existem nela, sem nunca se confundirem uma com a outra (74d-e, 75b, 76d-e, 78e-79a).

Poder-se-á, portanto, concluir que, ao contacto anterior da alma des-carnada com as Formas (Mén. 81c-d; Fedr. 247d-e, 249b-d), se deve a posterior estruturação da experiência sensível: primeiro, através da linguagem (Féd. 78e-79a, 102a-b; vide R. X 596a; Parm. 130e), de-pois pelo pensamento (Teet. 184b-186c, 189e-190a), por fim pela reminiscência (Féd. 79c-d)10, nela residindo toda a possibilidade de atingir o saber.

2. 3 Finalidade e pressupostos do argumentoA finalidade imediata do argumento – enquadrado no contexto do di-álogo – é “demonstrar”11 a imortalidade da alma. Todavia, o seu saldo, no plano epistemológico, é imenso, mostrando, primeiro, que, depois, como, a alma racional possibilita a captação e interpretação do real.

A tese apoia-se no pressuposto plausível de que a “deficiência” da percepção sensível não permite que a unidade e identidade da noção inteligível, fixada pela razão, expressa na linguagem12 e recuperável pela reminiscência, se ache contida nela13. O argumento não conse-gue, porém, explicar a semelhança que associa as senso-percepções às Formas, nem porquê aquelas as “imitam” e a elas “se referem”.

10 Esta secção do texto aproveita, com alterações, a interpretação do Fédon, proposta em “A função da alma na percepção, nos diálogos platónicos”, Hypnos 13, S. Paulo 2004, 27-39. Assinalo, em particular, a associação, antes oposição (29-30), de ek toutôn (74c) a apo toutou (76a). O paralelo com apo tautês tês opseôs (74c) desfaz a ambiguidade do referente do pronome e a leitura causal da preposição, em 76a. 11 Não se tratará propriamente de uma demonstração, mas antes da defesa de uma tese através da argumentação. 12 As diversas dimensões do consenso, ou acordo (homologia, symphônia, synchôrêsis), da alma consigo mesma e com outras, através do diálogo, constituem o único sintoma desta fixação. Pode ser a esta possibilidade de acordo, como condição da investigação, que Sócrates se refere, no início do argumento da anamnese, no Ménon, ao perguntar se o escravo “é Grego e fala Grego” (82b). 13 Aristóteles, ignorando a oposição do sensível ao inteligível, assenta a sua epistemologia na hipótese contrária a esta, de que a mente constrói o universal a partir da experiência dos parti-culares (Met. A1 983, De int. 16a1, Seg. An. B19).

Page 71: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga70

Finalmente, o argumento limita-se a postular a anterioridade do “saber” (73c), concedida pelo interlocutor (74b). Uma vez aceites, as diferenças (vide supra) entre as duas experiências cognitivas bas-tam para que Sócrates considere a de natureza mental como “saber”, opondo-a à perceptiva (74b sqq). Mas é fácil entrever os problemas a que esta cisão vai dar origem.

3. O Teeteto

3. 1 A teoriaTodas estas dificuldades são encaradas no Teeteto, a começar pela úl-tima. Na refutação da primeira resposta de Teeteto à pergunta de Sócrates sobre a natureza do saber – “O saber é senso-percepção” –, é desenvolvida uma complexa teoria onto-epistemológica sobre a cons-tituição e modo de captação do sensível14.

Numa perspectiva ontológica, é-nos apresentada uma realidade reduzida à “deslocação, movimento e mistura”, quantitativa e quali-tativamente indiscernível, na qual “nada é de nenhum modo e tudo devém” (gignetai: 152d).

A possibilidade de captar uma realidade dominada pelo fluxo catas-trófico é desenvolvida no plano epistemológico da teoria, adiante exposto. Os percebidos (aisthêta) são movimentos lentos, aos quais erradamente são atribuídos nomes que os identificam como entes (157b-c). Emitem fluxos rápidos, captados pelos percipientes (ais-thanomenoi: vide 159e), eles também movimentos lentos). Aqueles penetram nestes pelos canais sensíveis (identificados pelos seus no-mes: 156c), produzindo novos movimentos rápidos, designados “senso-percepções”15 (aisthêseis: 156d-157b).

14 A circunstância de as teorias expostas serem, no diálogo, atribuídas a Heraclito e a refinados e anónimos seguidores de Protágoras não deve impedir-nos de responsabilizar Platão pela sua autoria. 15 Ao longo de 156b-e, aqueles a que chamamos “sentidos” aparecem identificados com as suas funções específicas – as “senso-percepções” –, pelo termo aisthêsis. Adiante, quando a referência aos sentidos se torna inevitável, Sócrates chama-lhes organa, ou dynameis (184d-185a).

Page 72: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 71

3. 1. 1 Comparação com o FédonEsta doutrina começa por parecer surpreendente não só a Teeteto (155c), como a todo o leitor do diálogo, pois não se percebe que re-lação tem com a tese de Protágoras, inicialmente apresentada (152a). No entento, a comparação com o passo do Fédon estudado permitirá perceber como a sua exposição contribui para a reformulação da epis-temologia platônica. Começo por notar os pontos de contacto entre os dois diálogos.

Não levando em conta a diferença de contextos, é claro que os dois passos se debruçam sobre a temática da obtenção do saber (epistê-mê), para um leitor actual, do conhecimento. Em comum têm ainda a atenção dedicada ao exercício da sensibilidade. Mas há profundas diferenças a separá-los.

No argumento do Fédon, a senso-percepção desempenha diversas funções. A mais saliente será a de constituir o ponto de partida da actividade cognitiva, pois sem ela, para uma alma encarnada num corpo, não poderá haver nenhuma espécie de conhecimento.

A segunda função é complementar desta, estabelecendo a senso-per-cepção como uma espécie da cognição, com características próprias, caracterizada pela sua inferioridade, em comparação com o inteligí-vel16. A terceira função constitui o cerne do argumento, pelo facto de justificar com essa inferioridade a impossibilidade de extrair o inteli-gível, portanto, o saber, exclusivamente a partir do sensível.

A teoria exposta no Teeteto ignora e até certo ponto nega o inteligível, na medida em que explora a identificação da senso-percepção com o saber17, mas ela própria não tem possibilidade de se comprometer com uma tese dessa amplitude. Veja-se o argumento, a partir de 152a.

16 O argumento do final do Livro V, da República, a partir de 476a, apresenta um enuncia-do completo destas características. Ao tentar descrever a natureza transcendente do Belo, o Simpósio 211a-b nega sucessivamente todas as determinações sensíveis, caracterizando implici-tamente a aparência (vide phantasthêsetai: 211a5). 17 Mas essa identificação, que nega a identidade entre saber e Formas, característica dos diá-logos sobre a TF, é da exclusiva responsabilidade de Teeteto, sendo directamente envolvida no debate da teoria só a partir da referência ao saber, na “defesa de Protágoras” (166d).

Page 73: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga72

3. 1. 2 Justificação da teoriaA possibilidade de o mesmo percebido “aparecer” com qualidades opostas a diferentes percipientes conduz à identificação da “aparên-cia” (phantasia) com a senso-percepção (152a-c). Como disse, daqui resulta a dificuldade criada pela consequente identificação da senso-percepção com o saber (152c). Como podem diferentes percipientes ter diferentes percepções do mesmo percebido, todas infalíveis?

O desenvolvimento do argumento mostra que tal estado de coisas será não apenas explicado, mas exigido, por um real dominado pelo fluxo, em que nada é, qualitativa ou quantitativamente (em termos linguís-ticos e anacrónicos, que nada é sujeito ou objecto de predicação).

A incompreensão da parte de Teeteto obriga Sócrates a uma longa ex-plicação, sintetizada pela enumeração dos princípios reguladores da onto-epistemologia atrás desenvolvida, sucessivamente criticada por uma série de objecções “erísticas” de Sócrates (161c-165e), adiante superadas pela chamada “defesa de Protágoras” (165e-168c).

3. 1. 3 Síntese da teoriaApós a consideração do exemplo da percepção do “mesmo” vinho, por um Sócrates “doente” e outro “saudável”, as leis que comandam a percepção são expressas em cinco princípios:

1. (PU) Cada percepção é única e irrepetível, alterando, pontual mas definitivamente, cada percipiente, na sua relação com o percebido (159e-160a);

2. (PI) Não há percipiente sem percebido e vice-versa (160a-b);

3. (PR) O percipiente é ou devém para o percebido e este para ele; cada um deles acha-se “amarrado” ao outro, nada sendo “em si” (160b-c);

4. (PP) A percepção é privada (160c);

5. (PV) A percepção é sempre verdadeira para o percipien-te, sendo cada um juiz das coisas que são e não são para ele (160c).

Page 74: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 73

Todos estes princípios, em conjunto, definem as regras de funcio-namento do mundo fluxista18. É da sua introdução que decorre a epistemologia a que chamo “sensista”, a qual reformula inteiramente o relativismo inicial de Protágoras. PU institui e descreve a relação percipiente/percebido, caracterizando-a como “senso-percepção”. PI define a senso-percepção como facto atómico, resultante da interac-ção de cada percipiente e percebido. PR estabelece a reciprocidade da acção e paixão que ligam percebido e percipiente. PP resulta das duas anteriores, constituindo o núcleo da argumentação sensista, sendo PV oferecida como conclusão do bloco. É nele que se acha substan-ciada a tese da verdade como correspondência da senso-percepção à relação, única e privada, do percipiente com o percebido.

Da interacção de todos estes resulta implicitamente o princípio forte que caracteriza a epistemologia sensista e a distingue de todas as ou-tras. É o “princípio sensista” (PS), de acordo com o qual nada há além da sensação, constituindo “percipiente”, “percebido” e “percepção” meras referências (154a-b, 156e-157c; vide 182b).

A fundamentá-lo acha-se, no plano ontológico, o “princípio fluxista” (PF), segundo o qual a realidade se reduz ao movimento, sem que seja possível dizer “o que” se move, pois careceria de identidade (152d), restando apenas referi-lo na forma transiente com que pontualmen-te se oferece aos não menos transientes sentintes (152d-e, 157a-b, 182d-183b; vide 202a, 205c; vide Ti. 48e segs.).

Implica a teoria uma relevante mudança de perspectiva na epistemo-logia da percepção, pela qual esta deixa de ser “explicada” pela relação entre percipiente e percebido, inevitavelmente “reais”, para passar a constituir a única e autêntica realidade. Nela, percipiente e percebido não constituirão mais que meras referências passageiras, destituídas

18 Para facilitar a exposição, cada princípio é identificado pela regra que introduz. Ao primeiro, chamaremos “princípio da unicidade” (PU); ao segundo, “princípio da inter-dependência” (PI); ao terceiro, “princípio da reciprocidade” (PR); ao quarto, “princípio da privacidade” (PP); ao quinto, “princípio da verdade” (PV).

Page 75: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga74

de identidade e de sentido19. Rematando o passo, Sócrates mostra ter conseguido fazer valer o ponto de vista, de acordo com o qual há uma ligação profunda entre a resposta de Teeteto, o relativismo de Protágoras, o fluxismo de Heraclito e a resultante onto-epistemologia sensista (160d-e).

3. 1. 4 Dificuldades da teoriaSão, porém, notáveis divergências entre as sucessivas reformulações da teoria, que dificultam a nossa compreensão do problema. A interpreta-ção que Sócrates faz da tese do homo mensura é decisivamente relativista, achando-se condensada na tese: “as coisas são para cada um tais como lhe aparecem” (phainomai), repetida ao longo do argumento (152a, 158a, 166d-e, 170a; justificando a tradução “parecem”, vide, a mesma cláusula com dokein: 158e, 161c, 162c, d1, 168b, 170a, 177c3).

No entanto, a reinterpretação sensista da tese, produzida pela sua associação ao fluxismo (152d-e, 154a, 158a) nega que alguma coisa, percipiente ou percebido seja. É aqui que nasce o problema de saber como o fluxo infrene consente qualquer forma de acordo entre per-cipientes. Veremos que na sua formulação e na solução encontrada se expressam as duas onto-epistemologias que o Teeteto propõe: a sofística e a filosófica.

3. 1. 4. 1 Duas soluções

3. 1. 4. 1. 1 “Protágoras”

O problema da superação da inconsistência provocada pelo fluxo é resolvido por “Protágoras”. Nenhuma contradição resulta da co-existência da verdade infalível das senso-percepções com a infinita variação de percebido e percipiente:

“...cada um de nós é a medida do que é e do que não é, e no entanto cada um difere infinitamente do outro: para um é uma coisa e assim parece, a outro é e parece outra coisa.

19 Esta secção do texto reproduz parcialmente a análise inserida em “Filosofia e Sofística no Teeteto de Platão”, Filosofia e Conhecimento, Samuel Simon (org.), Brasília 2003, 55-56.

Page 76: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 75

E estou longe de negar que exista a sabedoria e o homem sábio. Mas este mesmo a quem chamo sábio é aquele de nós que, quando as coisas são e lhe parecem mal, as muda, de modo a parecerem e serem bem”20 (166d).

E como pode consegui-lo? Mudando as “aparências” (phantasmata: 167b), ou percepções “más” em “boas”, as “piores” em “melhores” (167a-c), através da persuasão21 (168b). Protágoras “ensina” Sócrates, procedendo com ele como com outros. Leva-o a aderir à sua concep-ção pragmática de verdade, que sem dúvida lhe parece melhor22. A solução é simples e elegante.

3. 1. 4. 1. 2 Platão

A de Platão, pelo contrário, não é nem uma coisa, nem outra. Vamos encontrá-la no argumento que remata a refutação da resposta de Teeteto (184b-186e). Contrastando a passividade analítica do sensó-rio com a actividade sintética da alma, Sócrates mostra que qualquer possibilidade de interpretar o sensível, quanto mais de atingir o saber, se acha fora do domínio da senso-percepção.

O argumento refuta Teeteto, atingindo indirectamente Protágoras, ao questionar o pressuposto da continuidade da senso-percepção com a opinião, em que se funda a epistemologia por ele proposta. Examinando os princípios da epistemologia sensista, é claro que a crí-tica de Sócrates não atinge os quatro primeiros (PU, PI, PR, PP), mas apenas o último deles (PV), pelo facto de retirar à senso-percepção a capacidade de captar a verdade.

Numa perspectiva complementar a esta, é isto mesmo que o argu-mento da “auto-refutação de Protágoras” (170a-171c) prova. Ou a opinião de Protágoras é verdadeira, como a de todos os outros ho-

20 Tradução de Adriana Nogueira e Marcelo Boeri, Platão, Teeteto, Prefácio de José Trindade Santos, Lisboa 2005. 21 A referência é pontual, porém, incontestável: “Se te deixares persuadir por mim...” (ean oun emoi peithêi). 22 Muito haverá a dizer sobre este projecto epistemológico, que a filosofia, seguindo Platão, veementemente rejeitou. Mas não é este o momento para o fazer.

Page 77: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga76

mens; ou difere da deles, por constituir uma teoria sobre as opiniões. No primeiro caso, é trivial, por a verdade ser independente do con-teúdo da opinião; no segundo, falaciosa, pelo equívoco de não se achar incluída na classe das opiniões, ou inconsistente, por conceder a verdade aos que discordam dela.

4. Alcance das duas propostas

4. 1 “Protágoras”Interessante é a circunstância de tanto uma, quanto outra epistemo-logias, se apoiarem na linguagem para atingirem as suas conclusões. Para “Protágoras”, é decisivo o facto do acordo. A garantia da concor-dância da senso-percepção com a opinião que a exprime23 estende-se à garantia da verdade dessa opinião, para quem a emite, e daí à impos-sibilidade da produção de opiniões falsas, seja por quem for (167a). A subsequente tese da condensação nas leis do acordo das opiniões dos homens regula o regime de relação das opiniões, no espaço da cidade24 (167c, 172a-b, 177c-d).

O sistema é empírico, mas pode ser aperfeiçoado pela intervenção de sofistas, médicos, oradores (por analogia, também de agricultores), que asseguram a substituição das senso-percepções e opiniões dos do-entes por outras “melhores” (167a-c; beltiô: 167b3). Notemos que, excepto no último caso, é inegável que a acção educativa do “sábio” é levada a cabo pela palavra, ou seja, pela persuasão.

4. 2 PlatãoQuanto a Platão, o argumento corre de modo totalmente distinto. É a possibilidade de usar, na linguagem, termos que nenhuma percep-

23 Dada pelo texto platónico. É impossível avaliar se é com correcção que Sócrates liga PV, que assegura a verdade da senso-percepção, para quem a sente (158e, 160c), à verdade da opinião que a exprime (vide 161e7-9), sendo evidente que Sócrates está a sobre-interpretar a tese do homo mensura. Mas esse não é o problema!O meu objectivo é avaliar o argumento com que Sócrates refuta a tese que atribui a Protágoras, não a legitimidade da atribuição. 24 O único relevante, para “Protágoras”. Embora o Teeteto mantenha silêncio sobre a possi-bilidade da relação, é perfeita a coincidência desta cidade com a Caverna platônica. De resto, abundam na digressão (172c-177c) sinais do paralelismo entre os dois passos.

Page 78: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 77

ção sensível pode justificar que remete para as actividades perceptual, conceptual e reflexiva da mente25. O primeiro uso é detectável no simples exercício da sensibilidade, o segundo na prática de compara-ção das percepções, o terceiro nos termos que condensam o poder de sintetizar a experiência do real: semelhante/dissemelhante, mesmo/outro, unidade/pluralidade e acima de tudo “ser” (185c-d, 186a-c). Não será excessivo agregar a estes o bem e o mal e os outros valores, a verdade e o saber (186c-d).

5. Coerência interna da proposta platônica

O argumento chega para afastar “Protágoras” e “Heraclito” – e com eles o o relativismo e o sensismo – do mundo do saber. Mas será a proposta de Platão consistente? Em que pressupostos se funda o re-curso à análise da linguagem para definir uma epistemologia?

Claramente no de que nomes e verbos constituem expressão da acti-vidade superior da mente; da racionalidade, diríamos hoje. No Fédon, este pressuposto acha-se associado à hipótese da realidade das Formas e ao argumento da anamnese. No Teeteto, nenhuma destas concep-ções é explicitamente afirmada, embora não se achem excluídas. A ligação directa da linguagem à Razão suporta mal a contaminação pelo exercício da sensibilidade. A tese de que o sensível imita o inte-ligível – exposta no Fédon, República e Timeu, implícita em muitos dos passos em que o dualismo platónico noutras obras se manifesta – resolve a dificuldade. Mas, se o Teeteto não faz qualquer referência à imitação, como poderá explicar essa “semelhança”, estruturante de toda a experiência sensível, resultante da associação desta a um prévio contacto com o seu “referente” inteligível?É aqui que a contribuição do Teeteto para a tradição filosófica se mos-tra fecunda. No lugar da imitação, Platão serve-se de dois verbos para indicar como as senso-percepções se formam nos percipientes e são por eles expressas: dokein e phainomai.

25 Pelas quais a alma recebe uma percepção (184e-185a), a compara com outras (185a-b), podendo reflectir em conjunto sobre a totalidade da sua experiência, visando o saber (185c-186d). Esta actividade conceptual e perceptiva da mente esclarece o modo como a anamnese “estrutura” a experiência sensível, integrando-a na anterior experiência epistémica da alma.

Page 79: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga78

Ambos desempenham uma função capital, no diálogo e na versão críti-ca da epistemologia platônica. Dokein e doxa dominam a segunda parte da obra, caracterizando a actividade reflexiva da mente e abrindo a úni-ca via conducente ao saber26. Phainomai dá origem a uma família de termos (phainomenon, phantasia, phantasma), usada na primeira parte, para caracterizar as versões relativista e sensista de Protágoras, na tese de que “as coisas são para cada um como lhe aparecem”. Ao todo, conta-se mais de uma vintena de aparições qualificadas des-tes termos, concentradas em três blocos:

152a-154a (7: 152a7, b9, 11, d5, 153e7, 154a3, 6);

157d-158a (5: 157d10, 158a2, 3, 6, 7);

166c-e (5: c6, d4, 7, e3, 4);

mais 4 isoladas (159c11, d5, 161e8, 167b3)27. Haverá algum sentido em isolar esta leitura técnica de phainomai e correlatos, essencial para compreender a articulação do Teeteto com o Fédon? O passo 264a, do Sofista confirma esta possibilidade, apresen-tando, inserida na investigação sobre a natureza do sofista (240e)28, a definição de phantasia, entendida como a manifestação da opinião na mente “através da senso-percepção”.

6. Consequências da inovaçãoOnde nos leva esta conclusão? A supor que, afastada a tese da verdade necessária das opiniões, Platão pode fazer concessões ao relativismo de Protágoras, sobre a refutação do qual exprimirá reservas (179c). É que, apesar de o argumento final da primeira resposta eliminar o pressu-

26 Na realidade, do meu ponto de vista, contribuindo para o abandono da concepção eleática de saber, da qual decorre a estrita dualidade dos estados opostos do saber e da ignorância, ca-racterizada pela irrefutabilidade. 27 Repita-se que Platão não se coíbe de recorrer a dokein para se referir à tese relativista (158e6, 161c2, 162c8, d1, 168b5, 170a3, 177c3). 28 Já antes, na avaliação da natureza da relação entre a mente e o ser, fora afirmado o paralelis-mo da participação do corpo na geração, através da senso-percepção, com a da alma/mente no ser, através do pensamento (248a). Esta posição é coerente com idêntica distinção, estabelecida no Timeu (27d-28a, 51e).

Page 80: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 79

posto da continuidade entre a senso-percepção e a opinião, o poder da aparência é bastante para exigir, em contraponto com o sujeito episté-mico, a criação de um sujeito psíquico, coordenador das actividades perceptual, conceptual e reflexiva da mente. Que quer isto dizer?

6. 1 O problema revisitadoComecei, apresentando uma tese, que a seguir justifiquei. Os para-digmas das epistemologias platônica e moderna são incomensuráveis, pois, enquanto Platão busca o saber, que identifica com as Formas, pelo menos a partir de Descartes, o problema da epistemologia é o do conhecimento (do real). A incomensurabilidade justifica-se pela asso-ciação do projecto anamnésico à TF, que concede à senso-percepção uma função meramente instrumental.

Esta associação, porém, traz consigo um novo problema. Estará a epistemologia platônica condenada a circular eternamente na TF? A interpretação do Teeteto serviu para apresentar respostas diferentes a esta pergunta. Para F. M. Cornford29, o Teeteto constitui uma reductio de qualquer tentativa de alcançar o conhecimento (knowledge), que dispense a TF. Para G. Ryle, pelo contrário, representa o abandono do projecto da TF por Platão30.

A interpretação aqui apresentada não aceita nenhuma destas, defen-dendo que nem o Teeteto constitui uma reductio, nem o abandono da TF. O argumento do diálogo mostra apenas que a concepção eleática de saber, na qual se apoia a versão canónica da TF, só produz aporias, quando a cognição abarca o exercício da sensibilidade numa série de operações mentais, distintas e integradas na actividade da mente.

29 Plato’s Theory of Knowledge, London 19351; vide a tentative de reabilitar Cornford, critican-do M. Burnyeat, em G. Adalier, “The Case of Theatetus”, Phronesis XLVI, Leiden 2001, 1-37. 30 Os principais simpatizantes da tese de Ryle (expressa em “Plato’s Parmenides” Mind 48, 1939, 129-151; e “Logical Atomism in Plato’s Theaetetus”, Phronesis 35, 1990, 2-16) con-cordam na rejeição da interpretação de Cornford, mas não se comprometem com a tese do abandono; vide R. Robinson, “Forms and error in Plato’s Theaetetus”, Philosophical Review 59, 1950, 3-30; John M. Cooper, “Plato on Sense-Perception and Knowledge (Theaetetus 184-186)”, Phronesis 15, 1970, Assen, 123-146; M. F. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (translation by M. J. Levett), Indianapolis/Cambridge 1990.

Page 81: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga80

O Sofista complementa o projecto, propondo uma versão da TF, da qual se acha ausente a tese eleática de que ser e não ser são idênticos a si próprios e contrários um ao outro. Constitui novidade desta pro-posta o recurso à TF para estudar a aparência sensível.

Significa esta afirmação que a TF passou a visar o conhecimento, dei-xando de se achar limitada à tentativa de atingir o saber das Formas imutáveis? É para esta possibilidade que a análise de phainomai re-mete. A intervenção da aparência acaba com a especificidade das competências cognitivas (Rep. V 477a-478d), caracterizadas por de-signações, conteúdos e produtos distintos e opostos31.

No Teeteto, a doxa não remete exclusivamente para a doxa, tal como a epistêmê para o ser, sendo suspenso o princípio da congenitura da alma com a Formas (Mén. 81c-d). Pelo contrário, a finalidade do diálogo é explorar a única possibilidade com que a investigação se confronta: a do recurso à doxa constituir a única via para atingir o saber.

Paralelamente, o exercício da sensibilidade deixou de constituir um impedimento para o acesso ao inteligível, uma vez que se presta a ser trabalhado pela alma. Por fim, o erro, de que a razão se achava livre, tornou-se possível quer pela intromissão da sensibilidade e da memória, quer pelo exercício da actividade que lhe é própria (vide o símile do aviário).

7. Sujeito epistémico e sujeito psíquico

Sustentei acima a incompatibilidade da versão canónica da TF com as noções de sujeito e objecto do conhecimento. Há, contudo, nos diálogos dois sinais da emergência de um sujeito e de um objecto específicos do saber. Na República VI 508e-509b e no Crátilo 440b, Sócrates refere-se a “cognoscentes” e “cognoscíves”, a “visíveis”32, num contexto em que as Formas se acham bem presentes, na posição

31 Desinteressando-se das consequências éticas, morais e religiosas da subversão da alma pelo cor-po (Féd. 65d sqq), bem como do estudo dos conflitos entre as “partes da alma” (República IV). 32 Respectivamente, nos dativos plural passivo (Rep. VI 508e1-2, 509b6) e singular activo (e2) do particípio, e no nominativo e acusativo neutros do particípio, activo e passivo (Crá. 440b5).

Page 82: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 81

de objecto. Manifesta-se aqui um sujeito epistémico a comandar a cognição. Todavia, como ambos os contextos deixam bem claro que essa função é atribuída à alma, trata-se de um sujeito transcenden-talmente entendido, ao qual cabe a função arquetípica de contactar com o inteligível.

Pelo contrário, a manifestação da phantasia, que, no Teeteto, tem o sentido de “aparência”, e, no Sofista, acumula com este o sentido operacional, de “imaginação”, apresenta um cunho marcadamente subjectivo, designando estados de alma como desejos, temores, dores, emoções, além de uma infinidade de outros, inominados (Teet. 156b; Féd. 69a-b), coexistindo no percipiente com as senso-percepções pro-priamente ditas, atribuídas ou não a um órgão específico (Teet. 156b).

Mais adiante, Sócrates acrescentará que este percipiente não só sen-te, como pensa, pergunta e responde, define, recorda-se e esquece, calcula, acerta e erra, nas suas muitas tentativas para chegar ao sa-ber. Portanto, o diálogo já não deixa o leitor perante uma hipóstase, designada para representar uma função cognitiva, mas um indiví-duo concreto, protagonista de um experimento em cognição: sejam Sócrates, Teeteto, ou Teodoro.

Este sujeito do conhecimento confronta-se com objectos interiores e ex-teriores a ele, recorrendo não apenas ao corpo, mas sobretudo àquela figura da alma, a que a modernidade se virá a referir, com designações como “espírito”, “mente”, “entendimento” ou “razão”, consoante o perfil ideológico que tiver adoptado.

A ser assim, haverá boas razões para pensar que a epistemologia pla-tônica dispensou a anamnese? Não forçosamente, embora não seja possível considerar aqui os argumentos positivos para defender a sua presença na obra platônica. Noto apenas que, confrontada com o fluxo, esta nova função da psychê dissipou o mistério da “semelhança”, estabelecendo a continuidade do sensível com o inteligível.

Page 83: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga82

“S. – Espera aí: ela [a alma] não aperceberá a dureza do que é duro através do tacto e, da mesma maneira, a moleza do que é mole?

TEET. – Sim.

S. – Então a própria alma, recapitulando e comparando umas com as outras [sc. a dureza e a moleza], tenta es-clarecer-nos, acerca da entidade, que ambas são, que es-tão em oposição uma à outra e ainda sobre a realidade da oposição.

TEET. – Certamente.

S. – Portanto, há coisas de que tanto homens, como ani-mais, mal nascem, por natureza se apercebem, como aque-las paixões do corpo que se dirigem à alma; mas o resultados dos cálculos, no que respeita à entidade e à utilidade, é difi-cilmente e com tempo que chegam àqueles a que chegam, através de muito trabalho e pela educação” (Teet. 186b-c).

Trata-se então de uma invenção do conhecimento, renovadora da con-cepção platônica de educação? Olhando para trás, para Parménides, sem dúvida. Mas o estudo da tradição posterior revelará o muito que ainda há para descobrir e pôr em prática, para que se tenha chegado à relação dual de que falei no início. Mesmo assim, poderá dizer-se que, num único diálogo, a epistemologia se assumiu como disciplina autónoma, abrindo caminho a problemas que a actualidade ainda não conseguiu resolver.

Page 84: Princípios, Volume 11, Números 15-16

83

O erro moral na tragédia e na epopéia*

Mario A. L. Guerreiro Depto. de Filosofia – UFRJ

As etimologias tanto podem ser esclarecedoras como produtoras de equívocos, tanto podem conter esclarecimentos abrangentes como parciais. Este parece ser o caso específico da palavra “tragédia”, pro-veniente de tragódia, literalmente: “grito do bode”. À primeira vista, é difícil imaginar qual a relação entre uma determinada forma de es-petáculo teatral e o ruído produzido pelo referido animal. Contudo, essa etimologia aponta para uma origem ritualística da referida forma de expressão dramática.

Trata-se do grito do bode expiatório emitido no momento em que este era imola-do aos deuses imortais, para apaziguar sua ira em rela-ção aos míseros mortais. O chamado sacrifício de sangue – tal como costumava ocorrer nos cultos dionisíacos – não é uma peculiaridade da cultura grega arcaica, tampouco as fórmulas mágicas que costu-mavam acompanhá-lo, pois podemos encontrar ambos nas mais diferentes culturas. Porém é uma característica marcante da cultura grega o longo percurso em que um ritual primevo passou por muitas transformações e culminou em uma refinada forma de expressão ar-tística entre os séculos V a. C e IV a. C.

A tragédia ática foi a primeira manifestação daquilo que Richard Wagner, no século XIX, denominou de Gesamtkunstwerk (obra de arte total), porque era uma admirável síntese de diversas formas parti-culares de expressão artística. No Renascimento Italiano, um erro de interpretação a respeito do desempenho da tragédia acabou gerando outra forma de obra de arte total: a ópera. E o autor de O Anel dos Nibelungos – desejando ir além da ópera tradicional – criou uma nova

________________* Texto composto a partir de duas comunicações apresentadas nos Centros de História Antiga da UFRJ e da UERJ em1999.

Page 85: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga84

forma de arte total: o drama musical (Wort-Ton Drama). Finalmente, neste nosso século que hoje se aproxima do fim, o cinema parece ter ido além das formas precedentes, no sentido de realizar uma síntese mais rica das diversas formas de expressão artística. Este é ao menos o ponto de vista de A. Hauser (1972, v. II, p. 1115-1151), que elegeu a arte cinematográfica como a forma típica de expressão do século XX.

Embora Wagner tenha cunhado a expressão “obra de arte total” para caracterizar o novo gênero criado por ele, a percepção de que a tragé-dia ática era uma forma de integração de diversas formas particulares não escapou do olhar aguçado de Aristóteles (1974). Na Poética, ele estudou cada forma de expressão separadamente e, posterior-mente, procurou mostrar como elas se entrosavam admiravelmente bem nos grandes espetáculos produzidos por Ésquilo, Eurípedes, Sófocles e outros. De todos os conceitos gerados por Aristóteles, tendo em vista uma compreensão ampla da tragédia, nosso interesse converge para os de trama e tema (mythos). A trama diz respeito basicamente a uma história que vai sendo contada através das falas dos atores e do resu-mo feito pelo coro, porém o tema engloba não só o assunto como também a visão expressa pelo autor a respeito do mesmo. No fundo, o que está em jogo são dois aspectos típicos de todas as formas de expressão ficcional: a fabulação e a visão de mundo.

Como procuramos mostrar em um livro recentemente publicado (Guerreiro, 1999 a), os mencionados aspectos são constituintes de todos os tipos de ficção, quer estejam em jogo narrativas – como é o caso do poema épico e do romance – quer estejam dramatizações – como é o caso da tragédia e do drama moderno. Há autores que expressam deliberadamente uma visão de mundo, há os que simples-mente se servem da trama e das personagens para expressar tal coisa – como é o caso do chamado “romance de tese” – e há ainda os que não têm nenhuma intenção de expressar sua visão de mundo, po-rém a expressam involuntariamente mediante a caracterização de suas personagens e a construção de sua narrativa ou dramatização.

Page 86: Princípios, Volume 11, Números 15-16

O erro moral na tragédia e na epopéia 85

Costuma-se dizer que assim o fazem inconscientemente, mas pensa-mos que há uma boa alternativa para as explicações do tipo freudiano baseadas no obscuro conceito de o inconsciente (das Unbewusst, lite-ralmente: “o Desconhecido”) e esta alternativa consiste no conceito de “conseqüências não-pretendidas” (unintended consequences) criado por F. Hayek (1960). Desse modo, supondo que um autor não tenha a intenção deliberada de expressar uma visão de mundo, esta desponta como uma conseqüência não-pretendida da sua intenção manifes-ta de contar uma história, e pode ser facilmente surpreendida pelos pontos de vista tácitos embutidos na sua narração ou dramatização.

No que diz respeito especificamente à tragédia clássica, a posição ge-ralmente sustentada pelos críticos é que os poetas trágicos, tendo a intenção explícita ou não, expressaram efetivamente uma particular visão de mundo, e esta era uma concepção fatalista, de acordo com a qual ninguém podia modificar sua moira (destino). Para citar apenas um exemplo: encontramos no texto de Édipo-Rei de Sófocles uma fala bastante expressiva da referida concepção fatalista:

Os homens são joguetes dos deuses. São como moscas nas mãos de meninos malvados que as matam por pura diversão (citado por Mondolfo, 1969, p. 347, o grifo é nosso).

Dificilmente encontraremos uma imagem tão forte e contundente da impotência e da passividade dos indivíduos humanos. Diante disto, a idéia de que os indivíduos são dotados de autotelia e capazes de traçar os rumos das suas vidas através das suas escolhas não passa de uma pia ilusão. Será mesmo? Na sua História da Cultura Grega, J. Burckhardt concordou inteiramente com a idéia bastante disseminada de que o que estava em jogo na tragédia era a força do destino [nome aliás de uma famosa ópera de Verdi], porém fez a ressalva de que esta mesma se apresentava de ao menos três maneiras distintas:

(1) Como necessidade cega, como absoluto eimármenon ou – o que pouca diferença faz – a vontade dos deuses terrivelmente invejosos e vingativos.

Page 87: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga86

(2) Como necessidade absoluta, tal como na Edipódia, em que uma coisa não teria acontecido, se não tivesse acontecido outra e assim por diante.

(3) Como culpa dos pais, tal como em Álastor, em que de vingança em vingança a maldição torna-se algo cada vez mais terrível. (Burckhardt, 1953, v. III, p. 298-299).

Cabe assinalar que o fatalismo não é uma peculiaridade da cultura gre-ga porém uma simples tendência proveniente dos oráculos e dos cultos órfico-dionisíacos. É verdade que Aristóteles manifestou profunda ad-miração pela poesia trágica, porém esta se restringia ao aspecto estético e não se estendia ao ideológico, ou seja: ele admirava a fabulação, mas repudiava a visão de mundo dos poetas trágicos. Sua admiração foi cla-ramente expressa na Poética, mas seu repúdio – apesar de não expresso explicitamen-te na Ética a Nicômaco (Aristóteles, 1958), nem na Ética a Eudemo (Aristóteles, 1963) – pode ser facilmente deduzido de alguns princípios básicos expostos nestas mesmas obras.

Como já vimos (Guerreiro, 1999b), para Aristóteles nenhum animal além do homem – que é animal racional e animal político – pode agir no sentido rigoroso deste termo, pois, de todos os seres vivos, o homem é o único que é “a verdadeira fonte de uma atividade prática (praxis tinon arché) (Aristóteles, 1958, II, 5, 122b19), e isto porque a causa eficiente de toda atividade prática é uma escolha (proáiresis). Em outras palavras: a fonte de uma ação voluntária é uma decisão da vontade. E como a vontade de um indivíduo humano pode fazer es-colhas, ela tem de ser considerada uma vontade livre visando sempre a uma finalidade. (Aristóteles, 1963, VII, I, 1139a32).

No que diz respeito à ação humana, no contexto da cultura grega encontramos uma contraposição de duas visões fortemente antagô-nicas e dificilmente conciliáveis: de um lado, uma visão determinista sustentada por Demócrito, os megáricos, os estóicos e outros; de ou-tro uma visão libertarista sustentada por Aristóteles e Epicuro. Essa contraposição gerou uma longa polêmica histórica que chegou aos nossos dias. No domínio da teologia, ela ficou conhecida como a polêmica entre os defensores da predestinação e os do livre arbítrio.

Page 88: Princípios, Volume 11, Números 15-16

O erro moral na tragédia e na epopéia 87

Nos domínios da ética e da teoria da ação humana, a polêmica entre os necessitaristas e libertaristas.

Pensamos que, independentemente das particularidades dos referi-dos domínios do saber, a questão fundamental em jogo consiste em oferecer uma resposta para uma indagação básica: A vontade de um indivíduo humano é a causa das suas ações voluntárias ou não? Para o determinismo dos atomistas, dos megáricos e dos estóicos, assim como para o fatalismo dos poetas trágicos, a resposta é “Não”. Mas, para as visões libertaristas de Aristóteles e de Epicuro, a resposta é “Sim”.

Uma das mais graves objeções podendo ser feitas aos partidários do determinismo e do fatalismo [Não fazemos a menor diferença entre ambos neste contexto] pode ser formulada assim: Admitindo que não gozamos de liberdade de escolha, como podemos ser consi-derados os verdadeiros autores das nossas ações, para que possamos ser considerados responsáveis por nossos erros morais? A atribuição de responsabilidade não faz o menor sentido quando se pode mos-trar que um indivíduo não praticou uma ação livremente escolhida por ele. [a respeito do determinismo vide Guerreiro 2002, cap. I “Indeterminação e liberdade”].

Vejamos o caso de Édipo na tragédia Edipo-Rei de Sófocles. Como sabemos, quando ele nasceu foi afastado de seus verdadeiros pais e criado por outros. Quando já era adulto e voltava para sua terra sem saber disso, entrou em uma luta com um homem que ele não sabia ser seu pai e acabou matando-o. Tendo chegado à sua terra, que igno-rava ser a sua, casou-se com uma mulher não sabendo ser ela sua mãe. Devemos considerar que ele tinha as intenções de cometer um parri-cídio e um incesto? Não há dúvida de que ele efetivamente cometeu ambos, mas como se pode alegar que ele tinha a intenção de fazer o que fez, se ele não sabia que aquele homem desconhecido era Laio, seu pai, e aquela mulher, que ele nunca havia visto antes, era Jocasta, sua mãe? E como se pode alegar que ele cometeu erros morais? Se já estava decretado pelo inexorável destino que ele faria necessariamente tais coisas, como podemos dizer que suas ações foram produtos da sua livre e espontânea vontade?

Page 89: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga88

Ao tomar conhecimento do que tinha efetivamente feito, Édipo foi tomado por um sentimento de culpa, foi levado ao desespero e furou seus próprios olhos. Porém se ele se sentiu culpado foi pelo mal que fez objetivamente aos outros, independentemente de ter desejado fazê-lo. Devemos considerar que há ao menos três distintas maneiras de nos sentirmos culpados por um mal feito aos outros:

(1) Por termos desejado praticar um mal que praticamos de fato (2) Por termos desejado praticar um mal, ainda que não o tenha-

mos efetivamente praticado(3) Por não termos desejado praticar um mal que praticamos de fato

De um ponto de vista ético, não podemos desconsiderar nenhum desses três casos. Em (1) a culpa assume a forma do remorso(ou ar-rependimento), pois este sentimento moral só pode ter lugar quando um indivíduo pratica de fato um mal e posteriormente entra em con-flito com sua consciência íntima que o reprova pelo ato praticado. Evidentemente o sentimento de culpa de Édipo não pode ter sido deste tipo.

Em (2) não pode ser o caso do remorso, uma vez que este pressupõe a prática efetiva de um mal. Porém pode ser o caso da auto-recrimina-ção em que primeiramente um indivíduo se imagina desempenhando um ato malévolo e posteriormente renuncia a praticá-lo e se auto-recrimina por reconhecer que por um momento ele poderia ter feito aquilo que meramente imaginou. Evidentemente o sentimento de culpa de Édipo não pode ter sido desse tipo.

Em (3) está caracterizada a auto-recriminação, porém sua natureza é distinta da que se configurou em (1) [onde há lugar para o remorso] e em (2) [onde não há lugar para tal coisa], pois embora o mal prati-cado não tenha sido um efeito decorrente de uma intenção de fazê-lo, foi decorrente de uma ação praticada pelo agente. Trata-se de um caso típico de conseqüência não-pretendida. Este é justamente o caso de Édipo que não pretendia matar seu pai, nem casar com sua mãe, porém acabou praticando um parricídio e um incesto.

Page 90: Princípios, Volume 11, Números 15-16

O erro moral na tragédia e na epopéia 89

Mas se Édipo não teve a intenção de fazer tais coisas, por que se sentiu terrivelmente culpado chegando mesmo a se autopunir gra-vemente furando seus olhos?! Simplesmente porque o sentimento de culpa tanto pode decorrer de (1) uma intenção que se materializou, de (2) uma intenção que não se materializou, ou (3) de uma ação sem a correspondente intenção de praticá-la. Assim sendo, é perfeitamen-te compreensível que um indivíduo se sinta culpado, mesmo por um mal involuntariamente praticado por ele; se o referido mal não pode ser considerado decorrente da sua intenção, tem de ser considerado decorrente da sua ação, como é o caso do homicídio culposo em que – diferentemente do doloso – não está caracterizada a intenção de praticar o ato praticado.

Desse modo, torna-se bastante compreensível dizer que a auto-recri-minação e a autopunição de Édipo não decorreram de ele ter tido as intenções de praticar os males que praticou, porém dos males produ-zidos nos outros em decorrência das suas ações efetivas. Não devemos esquecer que Édipo não é caracterizado por Sófocles como um indi-víduo dotado de autodeterminação e de capacidade de escolha, mas sim um mero fantoche movido pelo destino inexorável ou pelo desejo dos deuses. Um indivíduo nestas condições não pode ser considerado responsável por nenhum mal, porém isto não o impede de se sentir culpado diante do mal feito aos outros. Neste sentido, concordamos inteiramente com J. S. Lasso de La Vega quando ele afirma:

El dolor humano es el terrazgo donde nace la tragedia. El sufri-miento de un alma, que puede sufrir con grandeza, eso y sólo eso es la tragedia. (Lasso de La Vega, 1970, p. 15, o grifo é nosso).

Realmente, se há uma virtude moral no herói trágico, é sua capa-cidade de suportar grande sofrimento com dignidade e resignação, coisa aliás reconhecida por Aristóteles (1958, 1099b e 1100 a-b). Repetimos aqui o que já dissemos (Guerreiro, 2001): Entretanto, para ser coerente com o que já havia proposto na Ética a Nicômaco (1099b), Aristóteles não concorda com a idéia de que o infortúnio traz necessariamente a infelicidade. Não há dúvida de que ele concor-

Page 91: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga90

re fortemente para a produção da infelicidade, mas não há dúvida também que temos a capacidade de enfrentar qualquer vicissitude com coragem e determinação [a não ser – Aristóteles admite – uma vicissitude como a de Príamo na Ilíada: algo além do limite humano de suportação]. Ora, o mesmo poderia ser dito de uma vicissitude como a de Édipo. Comentando a visão do herói trágico na Poética de Aristóteles, diz S. H. Butcher:

Édipo, embora possuidor de um temperamento açodado e impulsivo, bem como de certo orgulho e arrogância, não pode ser tido como alguém que en-controu a ruína em vir-tude de um grave defeito moral. Seu caráter não foi o fator determinante de seu infortúnio. Como um homem qualquer, ele foi uma vítima das circunstâncias no sentido próprio desta expressão. Ao matar Laio, ele podia provavelmente ser consi-derado, em certo grau, moralmente culpável. Mas o ato foi certamente praticado em virtude de uma provocação e pos-sivelmente em legítima defesa (vide Édipo em Colona, 992). Sua vida foi uma cadeia de erros, o mais terrível dos quais o casamento com sua mãe. [...] Contudo, esta foi uma ofensa puramente inconsciente, a qual nenhuma culpa pode ser associada. (Butcher, 1951, p. 320, o grifo é nosso).

[obs. nossa: onde Butcher escreve “puramente inconscien-te” escreveríamos: “de modo nitidamente não-pretendi-do”, para evitar qualquer alusão ao obscuro conceito freu-diano de o Inconsciente].

Mas se os que produzem efeitos maléficos, como Édipo e Álastor, não são considerados autores destes mesmos, porém meros veículos de um mal cujos verdadeiros autores são o inexorável destino ou os deuses, o erro moral envolvido não pode ser considerado humano, porém cós-mico ou divino. A imoralidade em questão não pode ser humana, mas sim olímpica. O fado pode ser até tomado como um fato, mas a tragé-dia ática não pode ser considerada uma tragédia ética.

Nessa engenhosa “prosopopéia”, as personagens não podem ser consi-deradas representações de indivíduos concebidos como agentes morais no sentido rigoroso do termo – como poderíamos considerar Hamlet

Page 92: Princípios, Volume 11, Números 15-16

O erro moral na tragédia e na epopéia 91

ou Othello nos respectivos dramas shakespearianos – porque, para todos os efeitos, as personagens da tragédia se encontram na mesma condição de crianças, débeis mentais ou selvícolas não-aculturados, ou seja: na condição daqueles que têm de ser considerados moral-mente inocentes e juridicamente inimputáveis, justamente por serem considerados irresponsáveis – não no sentido de terem negligenciado decorrências previsíveis dos seus atos, porém no sentido de não pode-rem ser considerados capazes de assumir a autoria destes mesmos.

A conseqüência que se segue é bastante contundente. Se aceitarmos qualquer forma de fatalismo ou de determinismo da ação humana, te-remos de considerar que somos incapazes de assumir a autoria do bem ou do mal que praticamos. E se não somos considerados capazes disso, estamos na mesma condição dos moralmente inocentes e juridicamente inimputáveis. Porém, se não nos agrada sermos tomados como infantes tutelados, bugres de tanga ou oligofrênicos balbuciantes, então temos de assumir que somos os verdadeiros autores tanto do bem como do mal que praticamos e, por isto mesmo, responsáveis por ambos.

O bônus da liberdade gera inevitavelmente o ônus da responsabilida-de, que são duas faces de uma mesma moeda.

É realmente uma pena que Sófocles não fosse filósofo e não avalias-se as conseqüências lógicas e éticas de Édipo-Rei. O mesmo se pode dizer de Freud, que se inspirou na referida tragédia para elaborar seu espantoso conceito de complexo de Édipo, que, bem examinado, nada mais é do que uma versão laica do pecado original, assim como o divã do psicanalista nada mais é do que a versão “modernizante” do vetusto confessionário. Se a religião era o ópio do povo, Marx e Freud eram viciados irrecuperáveis e não sabiam (vide Guerreiro, 2000 e Webster, 1999).

Procuramos mostrar que, na tragédia grega, os indivíduos não eram considerados responsáveis por suas ações e, por isto mesmo, não poderiam ser considerados culpados pela prática de qualquer mal. Embora seja difícil contestar esse modo de ver as coisas nas tragédias de Sófocles, ele pode ser passível de ressalvas no tocante a Eurípedes e

Page 93: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga92

Ésquilo. Considerando que, entre as fontes da tragédia, estão o mito e a poesia épica, decidimos fazer uma breve investigação dos poemas homéricos, e isto nos permitiu levantar a hipótese de que, nesse outro contexto, há uma ambigüidade em relação às noções de responsabi-lidade e culpa.

Talvez, “ambigüidade” não seja a expressão correta, porém con-tradição, porque o que está em jogo não é o uso de um termo em diferentes acepções, porém dois tipos de opinião conflitantes sobre o mesmo assunto. Ora a autoria das ações individuais é atribuída aos deuses ou ao destino – e as personagens ficam isentas de qualquer res-ponsabilidade – ora é atribuída aos próprios homens – e neste caso, elas não podem se eximir de responsabilidade e culpa. Parece difícil dizer se Homero, enquanto narrador, assume um ou outro desses pontos de vista ou se limita simplesmente a apresentá-los sem tomar qualquer partido; porém o simples fato de o autor da Ilíada e da Odisséia – seja ele Homero ou qualquer outro – apresentar essas duas opiniões conflitantes é um claro indício de que, na sua época, já se apresentava o germe da longa polêmica histórica entre os necessita-ristas e libertaristas.

Não é difícil encontrar nos poemas homéricos personagens culpáveis que procuram se defender das imputações de culpa e das reprovações alheias, mediante alegação da sua não-responsabilidade na prática dessa ou daquela ação considerada condenável aos olhos da sua comu-nidade, e até mesmo personagens complacentes que se compadecem de atos praticados por outras e as eximem de qualquer culpa. Páris se desculpa das reprimendas feitas por Héctor (Homero, 1952, III, 60). Príamo, por sua vez, procura atenuantes para o comportamento de Helena, considerado pelos velhos troianos como causa de muitos transtornos (Homero, 1952, III, 164). Agaménon tenta se eximir de responsabilidade pela ofensa feita a Aquiles, da qual se originaram tantos males para os gregos (Homero, 1952, XX, 85). Ulisses, no Hades, tenta se desculpar com Ajax atribuindo a Zeus a responsabi-lidade pela ofensa feita por ele, Ulisses (Homero, 1949, XIX, 528). Esses são alguns casos em que as personagens procuram se apresentar

Page 94: Princípios, Volume 11, Números 15-16

O erro moral na tragédia e na epopéia 93

como instrumentos involuntários, simples vítimas do terrível Destino (moira) ou dos deuses, poderes sobre-humanos cujas forças não pu-deram resistir.

Mondolfo (1955, p. 339) assevera que essas tentativas de se eximir de culpa têm suas raízes em antigas crenças em que estavam em jogo não só a idéia de um destino superior aos homens e até mesmo aos deu-ses (Homero, 1952, XVI, 341), mas também crenças primitivas de caráter mágico ou demoníaco relacionadas com o culto dos mortos e reforçadas pela experiência do irresistível poder das paixões humanas (amor, ciúme, medo, cólera etc.), que, segundo se acreditava, tinham a capacidade de transformar um indivíduo em um possesso, não po-dendo em virtude disto ser considerado responsável por suas ações.

[Versão brasileira: Em um dos grotões desse país enorme, o homicida de um crime doloso alega que, no momento em que tinha enfiado a faca na barriga de outro – fato testemunhado por mais de três pessoas – estava possuído por Exu; e o delegado, por não poder prender uma suposta entidade sobrenatural, prende mesmo o suposto possuído por ela].

De acordo ainda com Mondolfo (1955, p. 339), essa idéia de “pos-sessão demoníaca” teria sido expressa posteriormente pelos poetas trágicos mediante o emprego do verbo dáimonian, quer dizer: “ser possuído por um dáimon” – uma entidade sobrenatural não neces-sariamente maligna, como é o caso do “demônio socrático” – mas, no contexto visado pelo referido autor, necessariamente maligna. Mondolfo chamou ainda a atenção para o aspecto de que as crenças relativas à possessão demoníaca não constituem de nenhum modo uma peculiaridade da cultura grega; ao contrário: são bastante co-muns em uma grande diversidade de culturas, assim como fazem parte do imaginário popular da nossa própria cultura.

Na Grécia antiga, essas crenças acabaram produzindo uma estranha noção batizada por um pesquisador moderno com o estranho nome de “crime objetivo”, juntamente com a alegação de que a referida noção antecedeu as de sujeito criminal e responsabilidade jurídica. Justamente com base na referida noção – coisa bastante esdrúxula aos

Page 95: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga94

nossos olhos modernos – que o culpado era considerado um demen-te (demens), mera vítima de um delírio ou loucura provocados pela cólera ou vingança de algum deus. Desse modo, seu suposto crime era visto como amartía ou amártema, ou seja: um erro de caráter involuntário pelo qual não lhe cabia a atribuição de qualquer respon-sabilidade. O problema, como já insinuamos, é que havia de fato uma escandalosa ambigüidade nos usos dos mencionados termos, pois seu significado deslizava facilmente da noção de erro involuntário à de erro voluntário, e isto produzia uma importante diferença.

Comentando a visão aristotélica do herói trágico na Poética, S. H. Butcher diz que ele costuma cair de uma posição de grande eminên-cia em terrível desgraça, mas o infortúnio que acaba arruinando a sua vida não pode ser creditado a uma maldade deliberada, mas sim a um grande erro ou fraqueza moral (frailty). [Como diria, muitos séculos mais tarde, Hamlet, generalizando abusivamente à natureza feminina o caráter de Gertrudes, sua mãe: Frailty, thy name is woman! [Fraqueza moral, teu nome é mulher!], Butcher desenvolve seu ponto de vista dizendo:

A palavra amartía, no seu sentido coloquial, comporta di-versas acepções. Como sinônimo de amártema, e aplicada a uma ação determinada, significa um erro devido a um conhecimento inadequado de circunstâncias determina-das. De acordo ainda com este mesmo uso, poderíamos acrescentar o adendo de que as circunstâncias são tais que podiam ser conhecidas. Assim sendo, está incluído qual-quer erro de juízo decorrente de açodamento e de análise descuidada do caso em questão – um erro que até certo ponto é moralmente condenável, uma vez que podia ter sido evitado. [Quem comete] um erro dessa natureza pode reivindicar perdão ou compreensão. Ocorre que amartía é mais frouxamente aplicada a um erro decorrente de ine-vitável ignorância, para o qual o nome mais apropriado é atychema (desventura). Em ambos os casos, no entanto, o erro é não-intencional; surge da falta de conhecimento e sua qualificação moral e depende de se o indivíduo é ou não responsável por sua ignorância. Uma acepção distinta

Page 96: Princípios, Volume 11, Números 15-16

O erro moral na tragédia e na epopéia 95

– limitada ainda à referência a uma ação determinada – é a amartía de caráter propriamente moral: um erro ou uma falta em que a ação é consciente e intencional, mas não deliberada. Tais ações são realizadas sob [fortes comoções de] a paixão ou o ódio. (Butcher, 1951, p. 318-9).

De modo geral, essa passagem de Butcher é bastante esclarecedora, embora não tenhamos compreendido o que ele quis dizer com “a ação consciente e intencional, mas não deliberada”. Como podemos conceber uma ação intencional que não seja consciente e não envolva deliberação?

Ainda que entendêssemos que Butcher estava querendo fazer referên-cia a uma ação típica em que o agente agiu sob as fortes comoções do amor ou do ódio e, por isto mesmo, coubesse a alegação de que estava mentalmente transtornado, devemos lembrar que – de um ponto de vista jurídico – isto serviria como atenuante do crime praticado, não como isenção de culpa [como é o caso da ação em legítima defesa]. Temos razões para sustentar que, neste e em outros casos, a Ética não deve sustentar um ponto de vista diferente do sustentado pelo Direito. Desse modo, estando em jogo o caráter do herói trágico, pensamos ser preferível a interpretação de Mondolfo quando, em re-ferência a amartía, falou em “um erro de caráter involuntário pelo qual não lhe cabia qualquer responsabilidade”.

Charles Greene (1944, p. 40-1) afirmou que nos poemas homéricos há vestígios das já mencionadas crenças primitivas, porém consi-dera que estas aparecem em uma nova configuração, uma vez que são incorporadas por determinadas personagens, justamente para se defenderem de reprimendas feitas por outras, que atribuem a elas responsabilidade por certos atos praticados por elas. Para Greene, isto é uma clara indicação de que, na época de Homero, já podia ser en-contrada uma maneira de pensar contrária à visão de erros morais e crimes como decorrentes de “possessão demoníaca”.

Como temos procurado mostrar, em diversos trabalhos voltados para o pensamento grego e para o da nossa época, noções tais como as

Page 97: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga96

de “possessão demoníaca”, “determinismo da ação humana”, “fatalis-mo”, “predestinação” e coisas semelhantes se prestaram e continuam se prestando muito bem a determinadas alegações infundadas em que indivíduos humanos procuram a todo custo se eximir de responsa-bilidade e culpa. E por incrível que possa parecer à primeira vista, a afirmação de que somos livres para fazer nossas escolhas e escolher nossos caminhos nem sempre é recebida com satisfação, principal-mente por vir acompanhada da sua inevitável contrapartida: a de que somos inteiramente responsáveis pelas escolhas que fazemos.

O franco antagonismo das visões necessitarista e libertarista já estava bem configurado na época de Péricles, como observou oportuna-mente L. Rohden:

No período histórico que precedeu Péricles, vemos os gregos envoltos por uma visão eminentemente mítica do mundo e de si próprios. A moira suspensa sobre a cabeça dos homens, estava a dirigir seus caminhos, castigando uns e salvando outros. Os males que cometiam eram atri-buídos à inspiração divina. Veja-se o exemplo clássico na tragédia Ajax de Sófocles. Aos poucos a visão de culpabili-dade foi sendo considerada como responsabilidade humana. Nos tempos de Péricles os homens deviam responder por suas ações diante da comunidade. (Ésquilo, Eumênides, 900 e segs.) (Rohden, 1977, p. 23).

Nos tempos homéricos e na tragédia de Sófocles, o bode expiatório dos erros voluntários dos indivíduos era o inexorável Destino ou os poderosos deuses, mas no nosso Admirável Mundo Novo, foram des-cobertos novos subterfúgios: o misterioso Inconsciente de Freud ou a visão neomarxista pós-moderna – esta mesma que tem grande difi-culdade em ver criminosos, mas extrema facilidade em ver vítimas da sociedade capitalista. Diante disto, nada mais urgente do que exigir que os indivíduos assumam suas decisões e parem de ficar procuran-do falsas causas para suas verdadeiras mazelas. E isto é válido tanto no domínio da moralidade privada como no da moralidade pública.

Page 98: Princípios, Volume 11, Números 15-16

O erro moral na tragédia e na epopéia 97

Referências

ARISTÓTELES, (1974) La Poetica [introduzione, traduzione, commento di F. Albegianni] . Florença. La Nuova Italia.

NICOMACHEAN ETHICS [tradução de D. Ross]. Oxford University Press.

BURCKHARDT, J. (1953) Historia de La Cultura Griega. Barcelona. Editorial Iberia.

BUTCHER, S. H. (1951) Aristotle’s Theory of Poetry and Fine Art. Nova Iorque. Dover Publication.

GREENE, C. (1944) Moira. Harvard University Press.

GUERREIRO, M. A . L. (1999a) O Problema da Ficção na Filosofia Analítica. Londrina. Editora UEL.

______. (1999b) Theoria e práxis em Aristóteles. Comunicação apresentada no Primeiro Colóquio Luso-Brasileiro de Pesquisa Filosófica, Depto. de Filosofia da UFRJ, 24/8/99.

______. (2000) “As Alegações do Materialismo e do Ateísmo” In: Guerreiro: Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. Londrina. Editora UEL.

______. (2001) “O conceito de Eudaimonia em Aristóteles: Seu Significado Para Nós”, Revista Brasileira de Filosofia, vol. LI, fasc. 204, 2001

______. (2002) Igualdade ou Liberdade? Porto Alegre. EDIPUCRS.

HAUSER, A. (1972) História Social da Literatura e da Arte. São Paulo. Mestre Jou.

HAYEK, F. (1960) The Constitution of Liberty. The University of Chicago Press.

HOMERO (1952) Ilíada (texto grego e tradução em francês). Paris. Belles Lettres.

______. (1949) Odisséia (texto grego e tradução em francês). Paris. Belles Lettres.

LASSO DE LA VEGA, J. S. L. (1970) De Sófocles a Brecht. Barcelona. Planeta.

MONDOLFO, R. (1969) La Comprensión del Sujeto Humano en La Cultura Antigua. Buenos Aires. Edicciones Imán.

Page 99: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga98

ROHDEN, L. (1997) O Poder da Linguagem: A Arte Retórica de Aristóteles. Porto Alegre. EDIPUCRS.

WEBSTER, R. (1999) Por Que Freud Errou: Pecado, Ciência e Psicanálise. Rio de Janeiro / São Paulo. Record.

Page 100: Princípios, Volume 11, Números 15-16

99

Algumas considerações sobre a leitura procleana do Parmênides de Platão

Cícero Cunha BezerraDoutor em Filosofia pela Universidad de Salamanca – España

Professor Depto. de Filosofia da UFS

“Em efeito: se as coisas que existem desejam seu bem, é evidente que o primeiro Bem está além das coisas que existem”.

Elem., theol., 8

Existe um consenso entre os historiadores da Filosofia de que a lei-tura procleana do Parmênides é a mais sistemática e original que nos chegou do texto platônico. Proclo não só analisa as hipóteses, mas ao criticar as interpretações dos seus predecessores, estabelece, como bem observou H. D. Saffrey1, elementos suficientes para uma “histó-ria das exegeses” do diálogo. Ao expor a “sabedoria secreta” de Platão, Proclo tem dois objetivos concretos: a) salvaguardar o platonismo (organizando um sistema de ensino para a Academia); b) preparar, a partir da sua obra, o futuro do platonismo mediante um programa que resgataria a vitalidade do paganismo2. Mas, em que consiste de fato este programa e qual é a concepção de filosofia platônica para Proclo?

Sabemos que Plotino é, provavelmente, o primeiro filósofo a esta-belecer de modo consistente a divisão do texto platônico em três hipóstases hierarquicamente ordenadas, no entanto, se damos cré-dito ao testemunho de Proclo, veremos que, entre Plotino e Siriano (mestre de Proclo), existiram diversos pensadores que de uma ma-neira ou outra, interpretaram a filosofia de Platão como revelação de

1 SAFFREY, H. D., Proclus, diadoque de Platon in Recherches sur le néoplatonisme après Plotin, Paris:J. Vrin, 1990, p. 141-158. 2 Ibidem., p. 157.

Page 101: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga100

uma verdade divina estruturada a partir do Uno superior a todo ser e pensamento(epékeina tes ousias)3.

De modo que, para nossa exposição, nos limitaremos a relacionar, de maneira geral, as fontes de algumas idéias presentes no texto de Proclo, precisamente, no que diz respeito a relação entre Plotino e Siriano, buscando demonstrar o papel decisivo que Proclo assume, na tradição de comentadores do Parmênides, como o pensador que afirma, de maneira impar, a filiação de Platão com a linhagem de te-ólogos gregos. Platão é o único, segundo Proclo, que estabeleceu, de maneira correta e ordenada, as processões de todas as classes divinas.

Vejamos os quatro modo que, para Proclo, representam a transmissão dos ensinamentos teológicos (theologikés didaskalías) 4:

1. Orfismo – que pretende revelar os princípios divinos por meios de símbolos.

2. Pitagorismo – que por meio da matemática ascende, por reminiscência, aos princípios divinos.

3. Os mistérios ou a revelação divinamente inspirada da verdade em si mesma por meio da iniciação.

4. O modo científico – que seria o mesmo que a Filosofia de Platão.

A filosofia é revelação e Platão descendente direto da tradição teoló-gica grega que tem sua origem nos mistérios órficos. Esta filiação do pensamento platônico ao orfismo é uma das características do pensa-mento neoplatônico ateniense. Plotino não faz nenhuma referência a Orfeo. Neste sentido, a teologia convertida em “ciência”, é algo que nasce da admiração de Proclo pela a linguagem do Timeu e dos

3 H. D. Saffrey, baseando-se no livro VI do Comentário ao Parmênides, ressalta três grandes eta-pas na história das exegeses do Parmênides: a) de Plotino a Theodoro d’Asiné; b) de Theodoro a Siriano; d) de Siriano até o fim da Academia neoplatônica de Atenas. Cf. SAFFREY, H. D., La théologie Platonicienne... Op. cit., p. 175.4 Cf. PROCLO, Theol., plat., I4, 5-25.

Page 102: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Algumas considerações sobre a leitura procleana do Parmênides de Platão 101

oráculos5. J. Trouillard nos mostrou, com seus amplos estudos, que os neoplatônicos, em particular Proclo, são pensadores que, depois de Plotino, atribuem ao Parmênides o “segredo” do platonismo. De modo que o Parmênides é, para os neoplatônicos, um diálogo que tem como finalidade uma <iniciação> nos mistérios divinos, isto é, purificar a alma por meio da dialética em direção à verdade. Toda a trama do texto conduz o leitor a uma busca em que os personagens desempenham papéis reveladores. Isso fica claro no princípio do livro I do Comentário ao Parmênides. Ali vemos Proclo pedir aos deuses que lhe permitam possuir uma disposição perfeita para, deste modo, participar da profundidade religiosa e mística de Platão 6. Esta profun-didade religiosa se revela, segundo o ateniense, em todos os passos do diálogo. Por essa razão seu comentário está repleto de imagens que nos desafiam a compreender o diálogo de uma maneira especial e original, a saber, por meio de símbolos e analogias.

A investigação procleana abarca desde da disposição dramática dos personagens, a natureza do diálogo (lógico, dialético, teológico) até mesmo o significado do encontro. O fato de que, por exemplo, os eleátas estejam em Atenas, tem um sentido muito particular: consiste em oferecer aos atenienses a ciência das coisas divinas (característica maior dos pensadores de Eléia descendentes da escola pitagórica7). Parmênides, Zenão e o jovem Sócrates participam de uma conferên-cia em que cada gesto ou palavra faz parte de um jogo cênico.

Nosso filósofo afirma que, no Parmênides, temos quatro conferências num mesmo texto8. A primeira consiste no fato concreto, ou seja, o

5 Cf. SAFFREY, H., D., Accorder entre les traditions théologiques: une caractéristique du neopla-tonismo athénien in On proclus and his influence in medieval philosophy, Ed. E. P. Bos and P. A. Meijer. New York: E. J. Brill. 1992, p. 35-48.6 PROCLO, Parmênides (citaremos no formato Com. Parm), edição bilingüe de A-ED. CHAIGNET, Tomo Primer, Paris: Minerva, 1968, p. 46.7 Segundo Proclo no livro II do Comentário ao Parmênides, os jônicos são o símbolo da natu-reza, os itálicos da substância intelectual, enquanto que os atenienses representam a substância mediana pela qual as almas estimuladas retornam da natureza à razão. Cf. Op. cit., p. 95.8 Cf. Com. Parm. Op. cit., p. 54.

Page 103: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga102

encontro entre Parmênides, Zenão e Sócrates. A segunda é a que tem como testemunho Pitodoro (que sabia de memória). Diz Platão:

Estes aqui, disse eu, são concidadãos meus muito interessados em questões de sabedoria, e ouviram dizer que esse Antifonte teve muitos encontros com um certo Pitodoro, companheiro de Zenão, e que, por ter ouvido muitas vezes de Pitodoro as conversações que entretiveram uma vez Sócrates, Zenão e Parmênides, as guarda na memória (126b)9.

A terceira consiste no encontro “narrado” por Pitodoro na ocasião da chegada de Céfalo à Atenas; diz o texto:“E, então, disse Antifonte ter Pitodoro contado que uma vez vieram para as Grandes Panatenéias Zenão e Parmênides” (127b)10. Por último, o relato atual de Céfalo. Mas, que importância tem esta divisão? Segundo Proclo, a primeira conferência, ou encontro, faz alusão aos seres verdadeiramente seres. É a primeira tetrada (tetraktýs), ou seja, as razões primeiras das quais precedem as segundas, isto é, a memória e a imaginação que se conver-tem em recordação e, por último, em imagens posto que é recordação de recordação. A segunda representa a imagem da diversidade e das espécies que derivam das alturas pela criação demiúrgica na alma.

O discurso dirigido a Antifonte, irmão de Platão e que cuida dos cavalos, é interpretado por Proclo como as razões primeiras sendo absorvidas pela alma humana“pois nas almas estão psiquicamente as razões” 11.

A terceira conferência, representada pela narração de Antifonte, tem em Céfalo o sentido da sua mensagem. Céfalo é cidadão de Clazomenas e, como Anaxágoras, representante das substâncias físi-cas. A quarta e última, narrada por Céfalo sem dirigir-se a ninguém em particular, é a matéria indeterminada e sem forma; diz Proclo:

9 Para citação do texto platônico do Parmênides utilizaremos a edição estabelecida por John Burnet traduzida por Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. Cf. PLATAO, Parmênides, Rio: Loyola, 2003. O grifo na citação é nosso. 10 Ibidem. pg. 23. Grifo nosso. 11 Com. Parm. Op. Cit. p. 59.

Page 104: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Algumas considerações sobre a leitura procleana do Parmênides de Platão 103

“Céfalo não dirige sua palavra a nenhuma pessoa determinada porque o elemento sensível é indeterminado, incognoscível e sem forma” 12.

De modo que temos uma seqüência de discursos que revela, em úl-tima instância, a compreensão procleana do Parmênides como uma obra em que os personagens expressam a própria estrutura da filosofia platônica, ou seja, a processão do Uno superior a todo ser em direção a matéria informe. Poderíamos exemplificar a estrutura do diálogo do seguinte modo:

a) Personagens:

Parmênides → a razão não participada13 = serZenão → a razão participada pela alma divina14= vidaSócrates → a razão particular ( participada e não participada)15 = razão

b) Personagens que expõem o Diálogo:

Pitodoro → a alma divina = natureza indivisível dos seres16

Antifonte → a alma demoníaca17

Céfalo → as almas particulares18

Esses são, portanto, alguns dos papéis que desempenham os persona-gens ao longo do texto e que revelam o aspecto extremamente original da leitura procleana. Quanto à “natureza” do diálogo, isto é, se é um exercício de lógica, de dialética ou um mero jogo de palavras, Proclo a

12 Prm 626. 10.13 Segundo Proclo Parmênides representa a junção entre a razão e o ser. Com. Parm. p. 57.14 A razão participada recebe do contato com a razão divina, os seres intelectuais. Parmênides é o modelo que o discípulo imita em busca da perfeição. 15 Com. Parm. p. 57.16 A imagem de Pitodoro que participa da primeira conferência silenciosamente, Proclo a asso-cia com a ordem angélica responsável pela transmissão dos conhecimentos divinos. 17 Antifonte é o personagem que mantem contato com a natureza e que revela o elemento irracional (os cavalos). É portanto, símbolo de uma alma intermediária entre as coisas divinas (os conhecimentos recebidos de Pitodoro) e a natureza empírica (os filósofos de Clazômenas). 18 Céfalo e os filósofos de Clazômenas são imagens das almas particulares. Segundo Proclo do mesmo modo que as coisas físicas participam das inteligíveis por intermédio das psíquicas, os jônicos participam da filosofia contemplativa dos itálicos por intermédio dos atenienses. Cf. Com. Parm. p. 61.

Page 105: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga104

define como uma ginástica do olho da alma19. Ginástica no sentido de um exercício, através do qual, a alma realiza uma verdadeira purificação que, como nos diz H. D. Saffrey, permitirá compreender a revelação divina de Platão. Revelação que será entendida por Proclo como uma teogonia que segue um método científico em sua exposição20.

De modo que a filosofía do Parmênides está associada diretamente, para os neoplatônicos, com a leitura do Timeu. Assim como no Timeu todos os seres da natureza dependem diretamente do Demiurgo, no Parmênides, os seres dependem do Uno. Este fato faz com que J. Trouillard afirme a completa interação entre estes dois Diálogos pla-tônicos21. Neste sentido, a discussão do Parmênides tem como base a necessidade de um raciocínio purificador, ou seja, de uma preparação do espírito para compreender o Uno primeiro. O diálogo, mais que uma crítica à teoria eleática, é, antes de tudo, uma exposição comple-ta de toda a geração cósmica por meio das processões e as henadas. Para Proclo o diálogo tem na sua forma (simples e natural) a harmo-nia perfeita do Uno. Dito isto, como passamos dos personagens ao Uno em si?

Para Proclo, a reunião entre Adimanto e Glauco é a imagem concreta da Díada na pluralidade unificada. Na figura de Glauco, admirado e

19 Cf. Com. Parm. p. 86 . Segundo Proclo existem três atividades (energueiai) dialéticas, são elas: a que convem a juventude e que serve para desenvolver a razão por meio da busca em si mesma; segundo, o repouso da razão dentro das coisas mesmas, dito de outro modo, o contemplar a verdade em si mesma (Fedro 252b); por último, realizar uma espécie de parast th, que serve para purificar a alma da sua dupla ignorância (Sofista 231 a). Cf. Com. Parm. p. 88. Deste modo, a dialética tem o papel de condução da alma em direção a unidade originária. Sobre a função da dialética, J. Trouillard nos recorda que a dialética platônica se caracteriza como um diálogo da alma consigo mesma. Todo o projeto platônico consistiria numa reflexão total da alma. No Parmênides esta reflexão é um reencontro, uma tomada de consciência do pensamento consigo mesmo. Cf. TROUILLARD, L’un et l’âme selon Proclos, p. 22.20 Cf. SAFFREY, La théologie platonicienne de Proclus, fruti de l’exégèse du Parménide en Recherches sur le Néoplatonisme après Plotin. Paris: J. Vrin, 1990, p. 181.21 Para Proclo do mesmo modo que no Timeu Platão ensina como as coisas são produzidas pelo Demiurgo, no Parmênides, temos exposta a maneira pela qual os seres retiram seu ser do Uno. Cf. Livro I;15, p. 74. Sobre a relação entre o Demiurgo e o Uno, Trouillard observa que quando os neoplatônicos liam o Timeu, o faziam sempre sob a perspectiva do Parmênides. Nos diz ele: quand ils voient le Démiurge former les âmes dans le cratère, ils entendent Parménide dérouler les hypothèses du jeu final. Cf. L’ame du “Parménide et l’un du “Timée”, p. 111.

Page 106: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Algumas considerações sobre a leitura procleana do Parmênides de Platão 105

exaltado por Sócrates na República, e Adimanto, subjaz uma relação que tem como princípio o confronto entre a perfeição e a imper-feição. Não é por casualidade que Adimanto é aquele que estende a mão, enquanto que Glauco permanece em silêncio22. De acordo com Proclo, esse ato de Adimanto representa a força e, ao mesmo tempo, a hospitalidade. O estender as mãos simboliza um convite ao aperfeiçoamento. Este convite se completa na passagem 126b quan-do Adimanto se dirige à Céfalo: “diz-nos, então, o que desejas” ; O fato de que Céfalo tenha um desejo, um pedido é suficiente para que Proclo interprete este simbolismo como expressão de uma necessidade de abandono da alma da sua morada habitual que consiste nas ocu-pações comuns.

Outro detalhe importante é que Céfalo se apresenta por um mo-vimento espontâneo que é compreendido, por Proclo, como uma disposição em participar do que é superior. E o que deseja precisa-mente Céfalo? Atentemos para a seguinte passagem, diz Platão:

“Vosso irmão por parte de mãe, qual era mesmo o seu nome, que não estou lembrando? Era, penso, um garoto, quando, de uma vez anterior, vim de Clazômenas para cá; mas já faz muito tempo desde então. O nome de seu pai era, parece-me, Pirilampo” (126b).

Que importância tem esta passagem? Observemos os seguintes pon-tos: a) Céfalo não pergunta diretamente por Antifonte, mas fala dele; b) Céfalo não se lembra de Adimanto pois o mesmo era um garoto; por último, c) Céfalo sabe o nome do pai. Estes três pontos são inter-pretados, por Proclo, por um lado, como dissemos antes, como um desejo de conhecimento e, por outro, como símbolo da apreensão imperfeita da alma; esta imperfeição se apresenta como um esquecer-se que implica um longo esforço e preparação para o conhecimento. Além disso, a lembrança de Céfalo do nome do pai representa a ca-racterística natural de uma alma que se move por si mesma, ou seja, por uma visão confusa e mutável da realidade.

22 Parm. 126a.

Page 107: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga106

Um ponto extremamente importante e que ilustra bem este aspecto dramático e místico do diálogo encontramos no passo 127 a:

“Tendo dito isso, fomos andando, e alcançamos Antifonte em casa, entregando a um ferreiro um freio para consertar. Quando se desvencilhou dele e seus irmãos que lhe disseram por que ali estávamos, reconheceu-me da visita anterior e cumprimentou-me, pedindo-lhe nós que relatasse as conversa-ções, a princípio relutou – pois era muito trabalho, disse – em seguida entretanto expô-las por completo”.

Esta passagem guarda algo de extrema beleza e profundidade. Proclo a compreende em dois sentidos: formal e moral. Do ponto de vista formal, a claridade e a pureza de estilo com que é narrada a chegada à casa de Antifonte é o símbolo mais claro, segundo Proclo, da subor-dinação das partes ao todo posto que a figura está em perfeito acordo com a simplicidade e a simplicidade em perfeito acordo como o tipo de narrativa do Diálogo23.

Do ponto de vista moral temos expressos os princípios pitagóricos que conduzem as almas em direção à perfeição como: a amizade e a comunhão. Quando Antifonte abandona sua tarefa diária e se dispõe a narrar a conversa entre Parmênides e Sócrates, ainda que reconhe-cendo o esforço que exige tal tarefa, demonstra, de forma rigorosa a virtude do verdadeiro amante da sabedoria frente às dificuldades. É o abandono das almas das ocupações diárias e a entrega inteira ao pensamento contemplativo.

Por fim, Proclo compreende a trama do diálogo como expressão da magistral arte de Platão. É o mestre que faz uso da palavra para expressar sua sabedoria mais profunda. Sabedoria esta que faz com que todos os discursos presentes no texto se dirijam a um só ponto: Parmênides. Por tudo isto, o Parmênides, como dirá Saffrey, é, para os neoplatônicos um diálogo místico por excelência24.

23 Com. Parm. Libro II; 28, p. 114.24 Cf. Saffrey , Le Neoplatonisme après Plotin, op. cit., p. 207.

Page 108: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Algumas considerações sobre a leitura procleana do Parmênides de Platão 107

Os cabelos inteiramente brancos25 de Parmênides são o testemunho da sua sabedoria e da imagem da razão. A brancura é própria, dirá Proclo, das almas que participam da luz intelectual. Parmênides é a personificação do ideal de beleza e nobreza e Sócrates, ainda jo-vem, simboliza a juventude típica dos deuses conforme o orfismo26. Segundo Proclo, Platão se posiciona, pese suas inovações e divergên-cias, como legítimo herdeiro do pensamento pitagórico.

Referências

PLATAO, Parmênides, edição estabelecida por John Burnet traduzida por Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. Rio: Loyola, 2003.

PROCLO, Commentaire sur le Parménides, edição bilingüe de A-ED. CHAIGNET, Tomo Primer, Paris: Minerva, 1968.

SAFFREY, H. D., Proclus, diadoque de Platon in Recherches sur le néoplato-nisme après Plotin, Paris: J. Vrin, 1990.

SAFFREY, H. D., Accorder entre les traditions théologiques: une caractéristique du neoplatonismo athénien in On proclus and his influence in medieval philosophy, Ed. E. P. Bos and P. A. Meijer. New York: E. J. Brill. 1992.

SAFFREY, La théologie platonicienne de Proclus, fruti de l’exégèse du Parménide en Recherches sur le Néoplatonisme après Plotin. Paris: J. Vrin, 1990.

TROUILLARD, J. L’ um et l’âme selon Proclos, Paris: Les Belles Lettres, 1972.

TROUILLARD, J. La mystagogie de Proclos, Paris: Les Belles Lettres, 1982.

25 Parm. 126b.26 Com. Parm. II; 34, p. 126.

Page 109: Princípios, Volume 11, Números 15-16
Page 110: Princípios, Volume 11, Números 15-16

109

Morte

Giovanni Casertano

O livro Morte do professor de História da Filosofia Antiga na Università degli studi di Napoli “Federico II”, Giovanni Casertano, é um estudo introdutório e bastante esclarecedor do sentido funda-mental de pensar a morte enquanto finitude no âmbito da filosofia pré-socrática e no pensamento de Platão. Nele, o autor prima por percorrer e reconstruir um conjunto de reflexões que se estende de Tales a Platão e visa apresentar os problemas de uma questão comple-xa e esfacelada nos textos fragmentários dos primeiros pensadores e o patamar que tal reflexão alcança na obra platônica.

A arquitetura do livro revela questões que vão desde a definição de filosofia no sentido originário grego, passando pela prospectiva par-menídea, pelas dimensões emotiva, dramática e serena da morte, pela relação entre discurso e mito, pela articulação entre amor, morte, vida e imortalidade, até a ascese ao belo e o horizonte da liberdade. Traz também uma excelente bibliografia e um glossário que ajuda muito a compreender os termos técnicos gregos. Neste sentido, descobrimos na leitura deste livro o sem número de questões que ainda estão por serem esclarecidas e a riqueza presente nas análises conceituais.

A morte é um tema primordial nos questionamentos que os homens de todos os tempos fazem acerca de si próprios, da natureza humana e do sentido da existência humana. Mas a maneira como os primei-ros pensadores encaminharam suas especulações foge ao domínio antropológico e espraia-se na physiología e na ontologia. Antes foram levados a pensar no sentido de ser da realidade enquanto todo, to-talidade existente: o vir a ser e o deixar de ser. No horizonte destas especulações se mostrava o interesse em pensar o insondável e costu-rar algum sentido para a compreensão do homem acerca dele mesmo

Page 111: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga110

e do sentido dele existir e ainda o valor dessa existência. O binô-mio vida/morte é investigado sob o ponto de vista da contrariedade e também sob o ponto de vista da complementaridade, sendo um mesmo processo aquele que vai da morte para a vida e aquele que vai da vida para a morte. Em Heráclito encontra-se uma interpretação fenomênica da morte, enquanto nos pitagóricos emerge um visão mítica da imortalidade.

A história da noção de alma está diretamente ligada ao desenvolvi-mento das investigações em torno da morte e da imortalidade. Os discursos se multiplicaram mas o mistério permanecia. E saber-se mortal não basta quando se desconhece a morte. A filosofia segue o seu curso entre os gregos tecendo analogias entre o visível e o invisível atendo-se aos limites da linguagem, as vezes tecendo mitos, outras vezes mostrando que são inconsistentes.

Em Platão, a questão da imortalidade da alma recebe um tratamento singular no diálogo Fédon, onde aparecem argumentos que trazem `a tona aspectos da discussão pré-socrática e ridiculariza certas crenças infundadas. Neste diálogo, Platão habilmente articula os argumentos dos contrários e das idéias para dar profundidade à difícil compre-ensão da alma e da sua imortalidade. Em todo caso, a morte está presente também nas reflexões sobre o amor e sobre o sentido de filo-sofar. Entrelaçam-se assim noções que para a maioria das pessoas são divinas e por isso insondáveis, mas que aos olhos desejantes daqueles que filosofaram e ainda hoje se ocupam da filosofia são divinas e por isso precisam ser pensadas.

Mais que tudo, dar uma atenção especial ao tema da morte na filoso-fia antiga e apontar as conseqüências deste pensamento para todas as épocas e a sua indiscutível atualidade, pareceu-nos ter sido o propósi-to do autor e, sem sombra de dúvida, o seu maior alcance.

Page 112: Princípios, Volume 11, Números 15-16

O Ofício do Filósofo Estóico, o duplo registro do discurso da Stoa 111

O Ofício do Filósofo Estóico, o duplo registro do discurso da Stoa

Rachel Gazolla

O livro de Rachel Gazolla, que faz parte da coleção “Leituras Filosóficas”, promovida pelas Edições Loyola, antes de qualquer tese específica da filosofia estóica, defende uma nova leitura do es-toicismo antigo. A partir das fontes doxográficas, Gazolla tece uma interpretação dos principais conceitos estóicos que os isola de todos os maus-olhos da tradição ocidental, a qual mais se tem preocupado com apontar incoerências no estoicismo grego do que em reconhecer o quanto desse pensamento ainda carregamos em nossas caracterís-ticas, sejam elas filosóficas ou práticas. Não obstante, o livro não está preocupado com as idéias estóicas em relação à modernidade, mas é exatamente esse o seu mérito: a obra consiste numa leitura centrada tão somente nas informações mais antigas sobre a doutrina em questão. Diógenes Laércio é uma das referências mais freqüentes no texto de Gazolla, mas estão presentes também todos os autores que Johannes Von Arnim reuniu naquela que é considerada a obra primordial para qualquer pesquisa minimamente séria sobre o es-toicismo grego: o Stoicorum Veterum Fragmenta – sem tradução em língua portuguesa, vale salientar.

Além de trazer à tona os fragmentos para o leitor brasileiro, O Ofício do Filósofo Estóico, ao reconhecer os limites das interpretações sobre suas fontes, traça um esclarecimento pioneiro em língua portuguesa sobre fundamentais conceitos gregos da Stoa que influenciaram a filo-sofia pós-helenística, tais como lógos e phýsis – que, na falta de termos mais apropriados, podemos momentaneamente traduzir, respectiva-mente, por “lei” e “natureza”. E isso é mais do que reunir fragmentos

Page 113: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga112

de textos arcaicos. É, enfim, reestruturar os fragmentos estóicos numa unidade que recompõe um autêntico sistema filosófico.

A partir da articulação e da relação entre os textos originais, o livro explora a noção do lógos no seu aspecto humano: é dada bastante atenção ao problema da ação moral e das paixões dentro do âmbito dos ensinamentos éticos estóicos.

Há no livro uma perspectiva histórica que situa a Stoa no mundo grego em que os valores haviam se dissolvido – na época em que escolas fechadas de filosofia se consolidaram, isoladas do cotidiano das praças públicas. Nessa situação, o estoicismo legitima não mais os valores de uma sociedade, mas a autarquia como princípio de ação humana e como vínculo do homem com o cosmo. Assim, uma re-lação originária é pensada entre o homem e a phýsis, relação esta em que o homem se nota dentro do sentido (lógos) da realidade cósmica. É aí que o lógos exerce o seu papel: os estóicos pensam então numa lei natural expressa nos homens como manifestação imediata da phýsis. Em contrapartida, o nómos seria a elaboração “artificial” (feita com o labor humano) de normas.

Com isso, outra dificuldade surge e é tratada pela autora: a cisão entre o campo humano e o campo cósmico. Gazolla detêm-se então nesse dualismo entre “totalidade cósmica” – onde entram as questões da física, da ética e da lógica –, e a “totalidade histórica” – elaborada pelas particularidades humanas e suas ações no mundo –, procuran-do provar que tais dualidades não são incoerências dentro do sistema estóico, e sim dois patamares de uma mesma temática ontológica.

Frente a essa dificuldade, Gazolla declara que o discurso estóico pos-sui um duplo registro – e assim se esclarece o subtítulo do livro. O discurso da Stoa é totalmente perpassado pelo registro do caráter di-vino e humano do mundo, pelo lógos totalizante e pela ação moral enquanto constituinte dessa totalidade, pela phýsis abarcadora e pela sua expressão peculiar enquanto racionalidade (lógos).

O cosmos tem inúmeras maneiras de se manifestar em nós. Participamos de sua lógica por via de nossas necessidades tanto quan-

Page 114: Princípios, Volume 11, Números 15-16

O Ofício do Filósofo Estóico, o duplo registro do discurso da Stoa 113

to de nossas ações. O humano e o divino é um só o tempo todo. Contudo, pode-se ou não viver de acordo com esse todo, na aceitação ou não de suas maneiras e de suas lutas naturais. Uma vida em de-sacordo com a phýsis se debate contra o irrecuperável, contra aquilo que o cosmos conspira a favor tal qual uma necessidade lógica do universo. Tudo participa desse jogo, mas há, sem dúvida, uma vida mais sábia do que outras (um tipo de sabedoria por excelência, já que essa vida se identifica com o todo em harmonia). O sábio é o que é porque, como diria Heráclito, ouve o lógos e aceita sua ordem.

É nesse trabalho sobre o caráter cósmico e ético das ações, sobre o di-vino no homem, que os estóicos fundaram um novo ponto de partida para avaliar a ação humana – e Rachel Gazolla reconhece esse pon-to –, dando-lhe atenção central ao longo do livro. É uma análise não apenas do caráter físico-histórico das decisões humanas, mas também do seu caráter ontológico. Fundem-se, com isso, o campo do sensível com o do representativo.

Ora, se o sensível é tido como instância da física e da lógica (já que os estóicos vêem o mundo como um todo cheio de corpos em cons-tante contato), tem-se que a ordem do fazer estará intrinsecamente ligada à do conhecer: a ação se liga à representação, o movimento dos corpóreos se conecta ao juízo moral. A partir das sensações, surgem as representações e, com isso, a racionalidade encontra sua hylé: a reflexão e a valoração dadas na representação chegam à matéria mes-ma dos corpos através das ações que esses processos representativos engendram, porque as ações humanas geralmente se dão a partir de um processo intelectivo de decisão e, portanto, de racionalidade. É ao reflexir e discernir sobre suas representações que a vida do sábio se dá de acordo com a racionalidade, instância humana do lógos.

Outro ponto relevante para desmistificar o modelo estóico de vida é o fato de que esse modelo consiste num modo de exercício de exis-tência, e não num ideal que devesse ser alcançado mais à frente. O modo de vida estóico se faz no exercício constante do lógos manifesto no homem. Dito de outro modo, a vida sábia, segundo o estoicis-mo, é aquela que, ao aceitar o lógos, assume seus laços com a phýsis

Page 115: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Filosofia Antiga114

e afirma-se em cada ato através de sua capacidade representativa e racionalizante.

É por toda essa elucidação dos problemas da doutrina estóica grega e por despir tais aporias de qualquer descriminação e mesmo de toda a interpretação tardia que tende a esquecer suas bases fisiológicas, que O Ofício do Filósofo Estóico constitui leitura relevante tanto no estudo da filosofia antiga quanto no esclarecimento de uma filosofia arcaica que inaugura pensamentos em vigor até nas reflexões filosóficas mais modernas.

Page 116: Princípios, Volume 11, Números 15-16

115

Normas para redação e apresentação de trabalhos

• Ostrabalhosdeverãoserinéditos,emáreafilosófica,apresen-tando resultados de natureza crítica ou informativa.

• Serãobem-vindasresenhasdetextosfilosóficosetraduções.

• Osartigospoderãoserescritosemportuguês,espanhol,inglês,francês, alemão ou italiano.

• Osoriginaisdeverãoserapresentadosemdisquete,digitadosno editor de textos Word for Windows 98 e acompanhados de duas cópias impressas sem o nome do autor.

• Osartigosdeverãovirprecedidosderesumodenãomaisde250 palavras, em português e em inglês ou, eventual-mente, em português e francês.

• Asnotasdeverãoaparecernorodapédapáginaeasreferênciasbibliográficas no final do artigo.

Outras informações

Não serão devolvidos os originais, a não ser tendo em vista a sua possível reapresentação, com as devidas modificações propostas pelos consultores científicos. As colaborações deverão ser enviadas para o mesmo endereço publicado no verso da folha de rosto da revista. A Comissão Editorial não se responsabilizará pelas correções gramatical e ortográfica dos artigos.

Solicita-se permuta.

We ask for exchange.

Page 117: Princípios, Volume 11, Números 15-16

Impressão e AcAbAmentooficinas Gráficas da eDUFrneditora da UFrn, em junho de 2006.