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Revista de Filosofia Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Filosofia ISSN 0104-8694 Natal, v.15, n. 24, jul./dez. 2008

Princípios, Volume 25, Número 24, 2008

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Revista Princípios (Natal), UFRN

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Revista de Filosofia

Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

ISSN 0104-8694

Natal, v.15, n. 24, jul./dez. 2008

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Princípios – Revista de Filosofia ISSN 0104-8694

Editor responsável Jaimir Conte

Editor de resenhas Glenn Walter Erickson

Conselho editorial Cinara Maria Leite Nahra (UFRN) Cláudio Ferreira Costa (UFRN) Juan Adolfo Bonaccini (UFRN) Maria da Paz Nunes de Medeiros (UFRN) Markus Figueira da Silva (UFRN) Oscar Federico Bauchwitz (UFRN)

Conselho científico André Leclerc (UFPB) Colin B. Grant (UFRJ) Daniel Vanderveken (Québec/Canadá) Elena Morais Garcia (EERJ) Enrique Dussell (UNAM – México) Franklin Trein (UFRJ) Gottfried Gabriel (Friedrich Schiller Universität, Jean/Alemanha) Guilherme Castelo Branco (UFRJ) Jesús Vázquez Torres (UFPB) João Carlos Salles Pires da Silva (UFBA) João José Miranda Vila-Chã (Universidade Católica Portuguesa, Braga/Portugal) José Mª Zamora Calvo (Universidad Autónoma de Madrid) Marcelo Pimenta Marques (UFMG) Marco Zingano (USP) Maria Cecília M. de Carvalho (PUC – Campinas) Maria das Graças Moraes Augusto (UFRJ) Mario P. M. Caimi (UBA/Argentina) Matthias Schirn (Universität München/Alemanha) Roberto Machado (UFRJ)

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Revista Princípios: Departamento de Filosofia Campus Universitário, UFRN CEP: 59078-970 – Natal – RN Tel: (84) 3215-3643 / Fax: (84) 3215-3641 E-mail: princí[email protected] Home page: www.principios.cchla.ufrn.br

Princípios, UFRN, CCHLA v. 15, n. 24, jul./dez. 2008, Natal (RN) EDUFRN – Editora da UFRN, 2008.

Revista semestral 1. Filosofia. – Periódicos ISSN 0104-8694 (impresso) ISSN 1983-2109 (on-line)

RN/UF/BCZM CDU 1 (06)

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Revista de Filosofia v.15 n.24 jul./dez. 2008 Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008

SUMÁRIO ARTIGOS Dificuldades da concepção de John Searle sobre a redução da consciência: o problema das capacidades causais Tárik de Athayde Prata

05

Olhar e memória na percepção cinematográfica Susana Isabel Rainho Viegas

31

A abordagem da natureza da mente por Descartes e a crítica de Damásio João Luis da Silva Santos

45

A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau Renato Moscateli

59

Egoísmo contra identidades: a avaliação da moral como estética da existência e ética como amor-próprio Jason de Lima e Silva

81

Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo Heraldo Aparecido Silva

99

Apercepção versus percepção: os espíritos na cosmologia leibniziana Celi Hirata

135

Eckhart’s Bilder Luís M. Augusto

167

Preservação da dignidade humana e aperfeiçoamento moral: a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” Letícia Machado Pinheiro

187

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Cuidado, educação e singularidade: idéias para uma filosofia da educação em bases Heideggerianas Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

209

Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre Luciano Donizetti da Silva

225

TRADUÇÕES God is dreaming you”: Narrative as Imitatio Dei in Miguel de Unamuno Costica Bradatan

249

O tema do “pecado original” na teoria do conhecimento de Nicolau de Cusa Gianluca Cuozzo

267

RESENHAS Ceticismo e Naturalismo: algumas variedades, de P. F. Strawson Itamar Luís Gelain

297

Shakespeare’s Philosophy: Discovering the meaning Behind the Plays, de McGinn, Colin Sandra S. F. Erickson

301

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 5-29

Dificuldades da concepção de John Searle sobre a redução da consciência: o problema das capacidades causais

Tárik de Athayde Prata* 1 Resumo: O artigo investiga a concepção de redução de Searle no que se refere à compatibilidade entre redutibilidade causal e simultânea irredutibilidade ontológica da consciência à atividade cerebral. A redução causal da consciência – a explanabilidade causal de suas características por processos cerebrais e a identidade de suas capacidades causais (seção 2) – é incompatível com a irredutibilidade ontológica (seção 3), porque a diferença ontológica entre características subjetivas e objetivas torna a identidade das capacidades causais incompreensível (seção 4). O principal problema é que a teoria de Searle afirma e nega simultaneamente a identidade entre consciência e processos cerebrais (seção 5). Palavras-chave: Epifenomenalismo, Irredutibilidade ontológica, Redução, Supra-determinação causal Abstract: This paper investigates Searle’s account of reduction concerning the compatibility between causal reduction and simultaneous ontological irreducibility of consciousness to brain activity. The causal reduction of consciousness – the causal explicability of its features by brain processes and the identity of its causal powers (section 2) – is incompatible with ontological irreducibility (section 3), because the ontological difference between subjective and objective features make the identity of causal powers incomprehensible (section 4). The main problem is that Searle’s theory states and simultaneously denies the identity between consciousness and brain processes (section 5). Keywords: Causal overdetermination, Epiphenomenalism, Ontological irreducibility, Reduction

* Professor da Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail: [email protected].

Artigo recebido em 16.07.2008, aprovado em 30.10.2008. 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da bolsa de Desenvolvimento Científico

Regional (CNPq/ FUNCAP) no departamento de Filosofia da Universidade Federal do Ceará – UFC. Gostaria de agradecer ao Professor Andreas Kemmerling (Universidade de Heidelberg – Alemanha) pela discussão detalhada de versões anteriores do presente trabalho. Gostaria de agradecer também às críticas e sugestões dos membros do Laboratório de Estudos de Filosofia Analítica da UFC, em especial aos Professores Guido Imaguire, Cícero Barroso e Valdetônio Alencar, bem como aos alunos André Pontes e Maxwell Morais.

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1 Introdução Quando Searle menciona pela primeira vez a oposição entre dualismo e materialismo no seu livro A Redescoberta da mente, ele recorre exatamente ao conceito de redução. No campo da filosofia da mente das últimas décadas seria possível encontrar dois grupos: uma pequena minoria que insiste na irredutibilidade dos fenômenos mentais e o gigantesco grupo do mainstream, os materialistas, que concordam que haveria um difícil problema mente- corpo caso o mental fosse, de fato, irredutível ao físico (cf. Searle, 1992, p. 2). Mas o típico do materialismo seria justamente reduzir os fenômenos mentais (com a sua intentionalidade e consciência)2 a fenômenos físicos. O reducionismo emerge assim como uma característica central do materialismo, pois todas as concepções materialistas tentariam reduzir os fenômenos mentais (cf. Searle, 1998, p. 47). Searle tenta superar a oposição entre dualismo e materialismo mantendo a verdade parcial de ambos (cf. Searle, 2002b, p. 62-3 e 2004, p. 126). O ponto mais importante nessa estratégia de Searle é, no meu modo de entender, sua concepção própria de redução. Searle procura mostrar que as duas posições de um certo modo estão corretas, ou seja, que os fenômenos mentais são de um certo modo redutíveis e de outro modo irredutíveis. Para fundamentar essa tese ele distingue entre diferentes conceitos de redução (cf. Searle, 1992, p. 113-4), sendo os mais importantes para sua teoria da consciência os conceitos de redução causal e redução ontológica. Ele afirma que a consciência é causalmente redutível e ontologicamente irredutível. Mas, quando se considera atentamente suas reflexões sobre o reducionismo, parece questionável que a posição de Searle seja coerente, pois determinadas teses implicadas pela redutibilidade e pela irredutibilidade defendidas por ele são incompatíveis. Em linhas gerais,

2 Intencionalidade e consciência estão entre as mais importantes características dos

fenômenos mentais segundo Searle (cf. Searle, 1984: 17). Mas enquanto ele designa o problema da intencionalidade como “a mirror image of the problem of consciousness” (Searle, 2004: 159) ele considera a consciência como a mais importante característica mental: “there is no way to study the phenomena of the mind without implicitly or explicitly studying consciousness. The basic reason for this is that we really have no notion of the mental apart from our notion of consciousness” (Searle, 1992: 18).

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o problema pode ser exposto através da comparação das teses básicas da teoria em questão. A redução causal da consciência significa para Searle que (cf. seção 2):

(a) as características da consciência são explicáveis através de processos cerebrais;

(b) as capacidades causais da consciência são exatamente as capacidades causais dos processos cerebrais.

Tais asserções são incompatíveis com a tese da irredutibilidade ontológica em dois aspectos, na medida em que a irredutibilidade ontológica implica as duas teses seguintes (cf. seção 3):

(a’) as cacterísticas da consciência – por serem subjetivas – são indescritíveis em vocabulário objetivo;

(b’) A consciência subjetiva e os processos cerebrais objetivos são entidades ontologicamente diferentes.

A comparação dessas teses constitutivas da redutibilidade causal e

da irredutibilidade ontológica faz surgir as seguintes perguntas:

(a’’) se as características subjetivas da consciência não podem ser descritas em vocabulário objetivo, como é possível uma explicação da consciência através de processos cerebrais?

(b’’) se a consciência e os processos cerebrais são entidades diferentes, por que que eles têm as mesmas capacidades causais?

No que se segue será discutido em que medida é possível responder a pergunta (b’’) e conciliar as teses (b) e (b’) acima, pois o caso da pergunta (a’’) não é tão problemático. Penso que no caso da explanabilidade das características pode-se ter uma idéia de como Searle poderia considerar (a) e (a’) como compatíveis, a saber, ao defender uma concepção própria de explicação. Na concepção de Searle o ponto decisivo é que o fenômeno que explica seja causalmente suficiente e necessário para o fenômeno que é explicado, e se a explicação é entendida assim, então as teses (a) e (a’) são compatíveis. O problema é que essa concepção de explicação parece problemática para muitos, sobretudo aqueles que defendem a tese de uma lacuna explanatória entre o exame de fenômenos objetivos (p. ex. processos cerebrais) e o

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aspecto qualitativo dos estados de consciência (cf. Nida-Rümelin, 2002ª, p. 216; Levine, 1983). Mas aprofundar o tema da lacuna explanatória não é o objetivo do presente trabalho, pois no que diz respeito a esse tema a situação não é tão grave, uma vez que Searle já desenvolveu (contra os defensores da lacuna explanatória) as linhas básicas de uma concepção alternativa de explicação (cf. seção 2.1), o que torna sua posição a esse respeito minimamente inteligível. Mas no que diz respeito à identidade das capacidades causais mal se pode ter uma idéia de como Searle concebe a compatibilidade de (b) e (b’), pois sua teoria acerca dessas capacidades parece ser inconsistente. É um fato bem conhecido que a pretensão de Searle de conciliar dualismo e materialismo levou diversos comentadores a avaliarem sua filosofia da mente como incoerente (cf. p. ex. Snowdon, 1994, p. 259; Olafson, 1994, p. 255). Uma tentativa muito interessante de mostrar incoerências na filosofia da mente de Searle se encontra em Corcoran (2001), que reconstitui as teses básicas do naturalismo biológico (nome dado por Searle à sua solução do problema mente-corpo) da seguinte maneira (cf. Corcoran, 2001, p. 309):

(1) Consciousness is a real, irreducible mental feature of the world. (2) Consciousness is a biological, i. e. physical feature of the brain. (3) Consciousness is entirely caused by and so is wholly explainable in terms

of the behavior of lower-level biological phenomena (4) Mental states are causally eficacious, i. e. mental states cause other

mental states as well as causing physiological events Assim, Corcoran leva em consideração a irredutibilidade ontológica – tese (1) – e a redutibilidade causal – teses (2) e (3) – assim como a eficácia causal do mental – tese (4). O propósito do comentador é mostrar que (1) e (2), de um lado, e (3) e (4), por outro lado, estão em contradição. A estratégia usada no presente trabalho é ressaltar a concepção de Searle acerca das capacidades causais da consciência. Essa concepção das capacidades causais é reconstituída aqui de um modo bem mais detalhado do que fez Corcoran, e é em seguida contraposta à tese da eficácia causal dos processos cerebrais e à tese da diferença ontológica entre a consciência e estes processos (cf. seção 4). A consideração de todas essas teses defendidas por Searle

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mostra que é possível deduzir, a partir delas, conclusões contraditórias com algumas de tais premissas, dependendo de como se interprete a tese da irredutibilidade ontológica (cf. seção 5). 2 A redutibilidade causal da consciência De acordo com Searle estados de consciência precisam de entidades com um certo grau de complexidade para poderem ser instanciados, pois eles são propriedades sistêmicas. Parece de fato implausível dizer que um dos meus neurônios tem dor, quando eu sinto uma dor. É altamente plausível que apenas sistemas suficientemente complexos de neurônios possam instanciar a minha dor, e não neurônios isolados. Certas propriedades sistêmicas poderiam ser explicadas apenas com recurso às interações causais das partes do sistema. Ele chama essas propriedades de propriedades sistêmicas causalmente emergentes e a consciência seria uma delas (cf. Searle, 1992, p. 112). Do fato de que a consciência seria uma propriedade emergente, Searle conclui que a consciência seria causalmente redutível aos processos no nível microscópico (cf. Searle, 1992, p. 116) A redução causal é caracterizada por ele da seguinte maneira:

Consciousness is causally reducible to brain processes, because all features of consciousness are accounted for causally by neurobiological processes going on in the brain, and consciousness has no causal powers of its own in addition to the causal powers of the underlying neurobiology. (Searle, 2002b, p. 60, grifos meus)

Esses dois aspectos da redução causal serão tratados nas próximas seções (2.1 e 2.2). Mas um ponto tem de ser ressaltado: embora o próprio Searle reconheça que as reduções causais normalmente levam a reduções ontológicas (Searle, 1992, p. 115), ele tenta provar que a consciência é uma exceção a essa regra, na medida em que sua redução ontológica não seria possível. Justamente essa irredutibilidade ontológica defendida por ele (cf. seção 3) parece ser incompatível com a redutibilidade causal (cf. seção 4). 2.1 A explanabilidade das características da consciência Searle não explicita o que ele entende por explanação causal nos textos onde ele postula a redutibilidade causal da consciência. Mas tal

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concepção de explanação é apresentada em outras passagens de sua obra. Trata-se da constatação de relações causais entre o cérebro e a mente. Nesse sentido ele pensa que essa constatação pode ser alcançada pelos mesmos meios que no caso de outros fenômenos naturais (cf. Searle, 1992, p. 103), e na medida em que nós constatássemos essas relações causais, nós poderíamos construir uma teoria geral das relações causais entre mente e cérebro. Searle descreve o procedimento da seguinte maneira:

First we find correlations between brute empirical phenomena. Then we test the correlations for causality by manipulating one variable and seeing how it affects the others. Then we develop a theory of the mechanisms involved and test the theory by further experiment. (Searle, 2002a, p. 49)

Esse procedimento pode ser exemplificado pela teoria das doenças baseada na idéia de germes:

Think, for example, of the development of the germ theory of disease. (…) Semmelweis in Vienna in the 1840s found that women obstetric patients in hospitals died more often from puerperal fever than did those who stayed at home. So he looked more closely and found that women examined by medical students who had just come from the autopsy room without washing their hands had an exceptionally high rate of puerperal fever. Here was an empirical correlation. When he made these young doctors wash their hands in chlorinated lime, the mortality rate went way down. He did not yet have the germ theory of disease, but he was moving in that direction. (Searle, 2002a, p. 49)

No presente as neurociências estariam em um estado ainda mais rudimentar do que a situação descrita acima. Mas esse modelo deveria ser aplicado à investigação da consciência. Searle descreve os três passos a serem seguidos da seguinte maneira:

First, one finds the neurobiological events that are correlated with consciousness (the NCC). Second, one tests to see that the correlation is a genuine causal relation. And third, one tries to develop a theory, ideally in the form of a set of laws, that would formalize the causal relationships. (Searle, 2002a, p. 49; cf. Searle, 2004, p. 146)

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No momento, os neurocientistas ainda estão no primeiro passo, ou seja, eles ainda estão à procura dos NCCs (Neural Correlates of Consciousness), mas Searle acredita que a aplicação desse procedimento pode levar à solução do problema empírico da consciência. Um ponto decisivo é que as relações entre os correlatos neurais e os estados de consciência possam ser consideradas causais: “what we are trying to establish ideally is a proof that the element is not just correlated with consciousness, but that it is both causally necessary and sufficient, others things being equal, for the presence of consciousness” (Searle, 2002a, p. 50, grifo meu). Nesta citação, Searle indica duas características essenciais da relação causal entre processos cerebrais e estados de consciência: necessidade e suficiência. Elas são caracterizadas por ele da seguinte maneira: “To establish necessity, we find out whether a subject who has the putative NCC removed thereby loses consciousness; to establish sufficiency, we find out whether an otherwise unconscious subject can be brought to consciousness by inducing the putative NCC” (Searle, 2002a, p. 50. cf. Searle, 1992, p. 74-5). Searle reconhece que as dificuldades empíricas para esse projeto de pesquisa são gigantescas, mas ele rejeita o pessimismo (cf. Searle, 2004, p. 146) e acha que a necessidade e a suficiência causais são o bastante para uma explanação autêntica. 2.2 A identidade dos poderes causais da consciência e do sistema cerebral Em The Rediscovery of the Mind, Searle caracteriza a redutibilidade causal (em geral) com o conceito da explanabilidade: os poderes causais do fenômeno reduzido (assim como sua existência) seriam explicáveis através dos poderes causais do fenômeno redutor (Searle, 1992, p. 114). Em formulações mais recentes do conceito de redutibilidade causal, ele se expressa de modo diferente, ao considerar as capacidades causais como idênticas. A consciência e sua base neurobiológica teriam as mesmas capacidades causais: “the causal powers of consciousness and the causal powers of its neuronal base are exactly the same” (Searle, 2004, p. 127). Recorrendo à analogia com propriedades sistêmicas comuns, Searle afirma que de um ponto de vista causal só há uma coisa, a saber, a neurobiologia:

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eu)

causally speaking there is nothing there, except the neurobiology, which has a higher level feature of consciousness. In a similar way there is nothing in the car engine except molecules, which have such higher level features as the solidity of the cylinder block, the shape of the piston, the firing of the spark plug, etc. (Searle, 2002b, p. 60)

Exatamente como no caso de propriedades sistêmicas normais, a consciência não seria um fenômeno separado do cérebro, mas sim um estado no qual o sistema cerebral se encontra no nível macroscópico:

‘Consciousness’ does not name a distinct, separate phenomenon, something over and above its neurobiological base, rather it names a state that the neurobiological system can be in. Just as the shape of the piston and the solidity of the cylinder block are not something over and above the molecular phenomena, but are rather states of the system of molecules, so the consciousness of the brain is not something over and above the neuronal phenomena, but rather a state that the neuronal system is in. (Searle, 2002b, p. 60)

Em suma, trata-se de uma entidade (o sistema cerebral), que tem a consciência como uma propriedade entre outras: “There is nothing in your brain except neurons (together with glial cells, blood flow and all the rest of it) and sometimes a big chunk of the thalamocortical system is conscious” (Searle, 2002b, p. 60-1). Ao se fazer referência à consciência, não se faz referência a algo diferente do sistema cerebral, mas sim ao próprio sistema em um nível mais elevado3: “We are not talking about two different entities but about the same system at different levels.” (Searle, 2004, p. 128, grifo m Searle não argumenta explicitamente para a tese que as capacidades causais da consciência e dos processos cerebrais são as mesmas, mas é plausível que ele acredite que esse fato se mostra a partir da estreita conexão entre a consciência e os processos cerebrais. Do fato de que os fenômenos mentais conscientes estão em correlação com

3 A consciência não é necessariamente uma propriedade do sistema cerebral como um

todo, mas sim uma propriedade de partes do sistema cerebral que possuem a complexidade necessária: “sometimes a big chunk of the thalamocortical system is conscious” (Searle, 2002b: 60-1, grifo meu). “Individual neurons are not conscious, but portions of the brain system composed of neurons are conscious” (Searle, 2004: 114, grifo meu).

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processos eletroquímicos no cérebro, e do fato de que estes processos são suficientes para causar nossos movimentos corporais e outros processos fisiológicos, poder-se-ia concluir que os dois tipos de fenômenos (processos cerebrais no nível microscópico e consciência no nível macroscópico) têm as mesmas capacidades causais. Mas, se é assim, parece que ele concebe a identidade das capacidades causais como decorrente da identidade das próprias coisas em questão. 3 O argumento para a irredutibilidade ontológica Searle reconhece que reduções causais normalmente levam a reduções ontológicas, entretanto ele nega que seja assim no caso da mente. A consciência (a característica essencial do mental) seria uma exceção a essa regra. No que se segue, vou oferecer minha interpretação de (a) porque as reduções causais levam a reduções ontológicas e (b) porque a consciência seria uma exceção. Suponhamos o caso de uma sistema material qualquer, como p. ex. um pedaço de ferro. Na concepção de Searle, esse sistema tem propriedades que não pertencem às suas partes constituintes (voltemo-nos para o nível das moléculas de ferro) mas sim ao sistema no nível macroscópico. De tais propriedades sistêmicas, algumas poderiam ser deduzidas ou calculadas a partir das propriedades das partes consituintes, p. ex. a forma ou o peso do pedaço de ferro. Mas algumas delas, ao contrário, poderiam ser explicadas somente através das interações causais das partes constituintes, p. ex. a solidez ou a temperatura do pedaço de ferro. Essas interações causais podem ser descritas do seguinte modo: elas ocorrem por causa das propriedades que as partes constituintes possuem (p. ex. a energia cinética de cada molécula isolada) que influenciam as relações (designadas por predicados poliádicos) das partes constituintes entre si. Tais partes possuem propriedades que influenciam a suas relações recíprocas, p. ex. a energia cinética de cada molécula influencia suas ligações com as outras moléculas. Ao nível das partes componentes do sistema ocorrem diversos eventos e processos, na medida em que propriedades surgem e se modificam.4 Porque as partes componentes (as moléculas) têm

4 Eu penso que essa série de estados, eventos e processos é exatamento que Searle quer

designar com o termo “comportamento”: “We discovered that a surface feature of a phenomenon was caused by the behavior of the elements of an underlying

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determinadas propriedades, p. ex. um determinado nível de energia cinética, suas relações recíprocas são influenciadas de tal modo que o sistema no nível macroscópico (o pedaço de ferro) tem uma determinada propriedade, p. ex. uma determinada temperatura ou um determinado grau de solidez. Essas propriedades sistêmicas, que podem ser explicadas através das interações causais entre as partes componentes, e que não possuem capacidades causais que não possam ser explicadas através dessas interações, são denominadas por Searle de “propriedades sistêmicas causalmente emergentes” (cf. seção 2). E do fato de que essas propriedades sistêmicas são causalmente emergentes segue-se, segundo ele, que elas são causalmente redutíveis aos fenômenos subjacentes (cf. Searle, 1992, p. 116). A redutibilidade causal consiste na explanabilidade das características do fenômeno reduzido através das interações causais no nível do fenômeno redutor (assim as características da solidez são explicáveis através das interações causais das moléculas de ferro) e na identidade das capacidades causais do fenômeno reduzido com as capacidades causais do fenômeno redutor (assim as capacidades causais do pedaço de ferro são idênticas às capacidades causais da totalidade de moléculas de ferro em interação). A pergunta, então, é por que as reduções causais levam a reduções ontológicas? Segundo Searle, a redução causal possibilita uma redefinição do fenômeno reduzido. Se uma redução causal é bem sucedida, pode-se normalmente redefinir a expressão que designa o fenômeno reduzido, de modo que se pode identificar esse fenômeno com as suas causas. Sobre a redução do calor, solidez e som Searle afirma: “In each case, the causal reduction leads naturally to an ontological reduction by way of a redefinition of the expression that names the reduced phenomenon.” (Searle, 1992, p. 115) Ele diz explicitamente que “the reduced phenomena (…) can now be identified with their causes.” (Searle, 1992, p. 115). Mas o que significa dizer que um efeito é idêntico à sua causa? Como se pode entender isso? Parece-me estranho que Searle afirme algo assim. Essa afirmação se

microstructure” (Searle, 1992: 118) “phenomena of the type A are causally reducible to phenomena of the type B, if and only if the behavior of A’s is entirely causally explained by the behavior of B’s” (Searle, 2004: 119).

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deve certamente ao fato de ele defender a concepção incomum de que as propriedades sistêmicas estão em uma relação causal com os fenômenos no nível microscópico do sistema, concepção que é criticada por diversos intérpretes (cf. Thompson, 1986, p. 95; Churchland, 1994, p. 14; Kim, 1995, p. 194). Porém, em lugar de dizer que o efeito é idêntico à causa, parece-me mais razoável dizer que se trata de identidade no sentido de que se descobre algo novo sobre a propriedade sistêmica quando se constata que ela é causada por aqueles processos microscópicos determinados. Trata-se de identidade no sentido de que se descobre que a descrição das características superficiais da propriedade e a descrição da sua causação por aqueles processos microscópicos na realidade se referem à mesma coisa. A propriedade sistêmica é identificada com a propriedade que tem aqueles processos microscópicos como sua causa. Eu interpreto a concepção de Searle acerca da redução ontológica da seguinte maneira: ao se constatar que a existência de uma propriedade sistêmica e suas características superficiais são explicáveis através de processos microscópicos e que as capacidades causais da propriedade sistêmica são idênticas com as capacidades causais de tais processos, obtem-se um novo acesso à propriedade sistêmica, porque agora se pode fazer referência a ela não apenas através de suas características superficiais, mas também através dos processos microscópicos que causam essas características. Nós descobrimos algo novo sobre a propriedade ao descobrirmos que ela tem determinadas causas: “We discovered that a surface feature of a phenomenon was caused by the behavior of the elements of an underlying microstructure.” (Searle, 1992, p. 118, grifo meu). A redução causal possibilita uma redefinição da propriedade sistêmica porque ela produz uma nova descrição dela, através da qual a propriedade pode ser redefinida. Para permanecer com nosso exemplo, acaba se revelando que a temperatura do pedaço de ferro é idêntica com a propriedade complexa que é causada quando numerosos processos ocorrem na sua microestrutura (no que as moléculas se movimentam e interagem de um determinado modo, o sistema tem uma determinada temperatura). Graças ao resultado da redução causal podemos deixar as características

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superficiais da propriedade sistêmica de lado e redefinir esse fenômeno através de suas causas:

the point of the reduction was to carve off the surface features and redefine the original notion in terms of the causes that produce those surface features (…) We then redefine heat and color in terms of the underlying causes of both the subjective experiences and the other surface phenomena. And in the redefinition we eliminate any reference to the subjective appearances and other surface effects of the underlying causes. (Searle, 1992, p. 119)

Diante dessas reflexões, surge a pergunta: por que a redução causal da consciência não leva a uma redução ontológica? Para fundamentar a tese da irredutibilidade ontológica da consciência, Searle recorre a argumentos importantes das últimas décadas que, segundo ele, seriam simplesmente diferentes versões do mesmo argumento. Tanto o argumento modal de Saul Kripke contra a teoria da identidade em Naming and Necessity (1972), quanto as considerações de Thomas Nagel sobre o caráter subjetivo da consciência em What is it like to be a Bat? (1974), e o argumento do conhecimento, originalmente proposto por Frank Jackson em Epiphenomenal Qualia (1982), mostram, de acordo com Searle, que fatos subjetivos não podem ser identificados5 com fatos objetivos. Com o exemplo do pedaço de ferro em mente considere-se os fatos nos quais consiste, na apresentação de Searle, um estado de consciência como a dor:

Naively, there seem to be at least two sorts of facts. First and most important, there is the fact that you are now having certain unpleasant conscious sensations, and you are experiencing these sensations from your subjective, first-person point of view. It is these sensations that are constitutive of your present pain. But the pain is also caused by certain underlying neurophysiological processes consisting in large part of patterns of

5 Searle diz na realidade que eles não podem ser reduzidos à fatos objetivos. Mas eu

considero mais claro falar de “identificação”, pois a redutibilidade ontológica se baseia em uma relação de identidade, de modo que a irredutibilidade ontológica se deve ao fato de que fatos subjetivos não são idênticos a fatos objetivos.

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neuron firing in your thalamus and other regions of your brain. (Searle, 1992, p. 117, grifo meu)6

Isso parece estar em perfeito paralelo com o caso do pedaço de ferro, na medida em que uma propriedade sistêmica está presente (a dor), a qual é causada por processos microscópicos, de modo que suas características superficiais são explicáveis através de tais processos e suas capacidades causais seriam idênticas com as capacidades destes últimos. Apesar disso, a redução ontológica (a constatação de uma identidade de tipos) da consciência aos processos cerebrais (ou seja, ao comportamento do sistema no nível microscópico) não é possível, porque essa redução deixaria de fora as “características essenciais” dos estados de consciência (cf. Searle, 1992, p. 117). Ele escreve a esse respeito: “No description of the third-person, objective, physiological facts would convey the subjective, first-person character of the pain, simply because the first-person features are different from the third-person features” (Searle, 1992, p. 117, grifo meu). Eu interpreto a asserção de Searle, de que as características subjetivas seriam “diferentes” das características objetivas, como uma afirmação de que não há uma relação de identidade. Discutindo em seu livro mais recente a problemática da redução da consciência, Searle descarta a hipótese de que esta seja “nada além” de comportamento neuronal, afirmando que “Consciouness is entirely causally explained by neuronal behavior but it is not thereby shown to be nothing but neuronal behavior” (Searle, 2004, p. 119, grifo meu), o que constitui claramente uma recusa da identidade entre consciência e atividade cerebral. Diferente do caso da solidez ou da temperatura, às quais se pode fazer referência através da descrição dos processos microscópicos, não seria possível fazer referência a estados de consciência (pelo menos não às suas características subjetivas) através da descrição de processos cerebrais, porque tais estados exigem outro tipo de conceitos que os fenômenos objetivos. Os conceitos que fazem referência a fenômenos objetivos não podem expressar as características subjetivas. Mesmo que

6 Em outra passagem ele afirma: “first there is a set of ‘physical’ facts involving my

thalamus and other regions of the brain, and second there is a set of ‘mental’ facts involving my subjective experience of pain” (Searle, 1992: 120).

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se tente redefinir as características superficiais da consciência através de conceitos neurobiológicos objetivos, “you would still need a vocabulary to talk about the surface features” (Searle, 2004, p. 120). Se a consciência é tão diferente dos fenômenos objetivos a ponto de nós precisarmos de outros conceitos para poder fazer referência a ela, então parece que nós estamos diante de uma cisão conceitual muito semelhante ao dualismo conceitual recusado por Searle.7 O motivo pelo qual um vocabulário objetivo é inadequado para descrever estados de consciência (como teria sido provado por Kripke, Nagel e Jackson) é simplesmente que tais estados existem de um modo diferente do que o modo de existência dos fenômenos objetivos. Searle diz que os estados de consciência seriam causados por processos cerebrais objetivos e que eles seriam fenômenos neurofisiológicos subjetivos. Mas, na medida em que eles seriam subjetivos, os estados de consciência se diferenciariam fundamentalmente de quaisquer estados objetivos do cérebro (embora eles sejam supostamente causados por microprocessos no cérebro)8 porque eles teriam um outro modo de existência, e essa diferença ontológica faz com que os estados de consciência não possam ser idênticos a estados neurofisiológicos objetivos, pois eles não têm todas as propriedades em comum. Estados de consciência subjetivos têm, p. ex., um aspecto qualitativo, enquanto estados objetivos do cérebro não têm tal aspecto. Essa diferença entre os dois tipos de fenômenos indica que estados de consciência e estados objetivos do cérebro não são idênticos. E se é assim, a redefinição exigida pela redução ontológica não seria possível. A não-identidade entre propriedades sistêmicas subjetivas e objetivas leva a diversas dificuldades no que diz respeito à

7 Sobre a sua refutação do dualismo conceitual cf. (Searle, 1992: 26) e (Searle, 2004:

116-8). 8 Temos aqui uma assimetria estranha, pois embora os estados de consciência

(exatamente como qualquer propriedade sistêmica objetiva do cérebro – p.ex. a carga elétrica do cérebro como um todo) sejam causados por processos microscópicos objetivos, eles seriam subjetivos. Por que a consciência se diferencia de modo tão fundamental das propriedades sistêmicas objetivas embora ela tenha a mesma origem das propriedades sistêmicas objetivas? Essa assimetria faz com que não pareça muito razoável que a consciência (tal como Searle a concebe) seja um objeto de pesquisa das neurociências.

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compatibilidade entre redutibilidade causal e irredutibilidade ontológica. 4 A identidade das capacidades causais e a diferença ontológica É muito difícil entender como Searle poderia colocar em acordo a identidade das capacidades causais com a diferença ontológica. Para esclarecer a identidade das capacidades causais da consciência e dos processos cerebrais, Searle recorre ao caso de propriedades sistêmicas comuns (p.ex. solidez ou liquidez). No caso dessas propriedades a identidade das capacidades causais da propriedade de nível superior e dos processos no nível inferior não é problemática, porque a redução causal levou à redução ontológica. Nesse caso, a propriedade sistêmica reduzida é idêntica ao comportamento da microestrutura do sistema. A redução causal (a constatação de explanabilidade das características e da identidade das capacidades causais) tem como resultado que a descrição das características superficiais da propriedade sistêmica e a descrição dos microprocessos que a causam se referem à mesma coisa. Mas se se atribui à consciência um modo de existência subjetivo, ela parece não poder ser comparada com tais propriedades comuns. Por um lado, a consciência seria causada por microprocessos no cérebro e por isso seria uma propriedade do cérebro. Apesar disso, a consciência seria uma propriedade que se diferencia fundamentalmente de todas as propriedades objetivas do cérebro, por ela ser subjetiva: “Consciousness is thus an aspect of the brain, the aspect that consists of ontologically subjective experiences.” (Searle, 2004, p. 128). Se a consciência é ontologicamente subjetiva, então ela não pode ser idêntica ao comportamento da microestrutura do cérebro (que é objetiva). A descrição das características superficiais da consciência e a descrição dos processos cerebrais não se referem à mesma coisa e, se não se trata da mesma coisa, então a identidade das capacidades causais é muito estranha, pois o efeito parece ter duas causas – caso ambos (a consciência e o cérebro) sejam causalmente eficazes. É muito esclarecedor comparar os dois tipos de propriedades sistêmicas, a saber, as ontologicamente subjetivas e as ontologicamente objetivas. Considere-se o caso de uma propriedade sistêmica causalmente emergente (e objetiva) do cérebro como a sua consistência

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(trata-se, mais exatamente, de seu grau de solidez). Essa propriedade é causada pelas interações das moléculas que compõem o cérebro. As capacidades causais da consistência do cérebro9 são idênticas às capacidades causais da totalidade das moléculas em interação, e isso é evidente porque a consistência é idêntica com o tipo de interação (ou com o comportamento da microestrutura). Tem-se que ressaltar que, tanto o sistema quanto suas partes constituintes, são fenômenos ontologicamente objetivos, isto é, eles existem independentemente de quaisquer sujeitos (porque o cérebro, suas partes físicas e a consistência não incluem nenhuma vivência em sua existência). No caso de propriedades sistêmicas ontologicamente subjetivas do cérebro (como sensações, crenças ou intenções), existem muitos pontos em comum, mas também uma diferença enorme e fundamental. Essas propriedades são (segundo a teoria de Searle) causadas pelas interações das partes constituintes do sistema nervoso (p.ex. uma percepção visual consciente é causada pela estimulação dos receptores na retina, pela transmissão nervosa através das sinapses até o córtex visual e pelo processamento nessa parte do cérebro) e as capacidades causais de tal propriedade sistêmica subjetiva são aparentemente as mesmas capacidades causais das partes do cérebro em interação. Por exemplo, a eficácia causal de uma percepção consciente – como a percepção de um leão furioso – sobre os movimentos corporais de um organismo parece ser exatamente a eficácia causal dos processos cerebrais que causam a percepção: a percepção, assim como os processos cerebrais subjacentes, levam o organismo a fugir.10 Mas, no que os dois tipos de propriedades se diferenciam ontologicamente, as características subjetivas da percepção não podem ser expressas pela descrição dos processos cerebrais, e isso já é

9 Que tipo de capacidades causais possui o cérebro enquanto objeto comum? Essa

questão exige um esforço de imaginação. Com um cérebro morto nós poderíamos, p. ex., empurrar uma pequena bola sobre uma superfície estável. Isto é, a consistência do cérebro equanto objeto físico pode colocar a bola em movimento. Essa propriedade pode causar um evento físico (o deslocamento da bola).

10 Pode-se acrescentar que a percepção tem esse efeito sobre o comportamento apenas em conexão com outros fenômenos mentais – como a crença de que leões são perigosos e o desejo de evitar o perigo. Mas isso não é um problema, pois as crenças e desejos também seriam causadas por processos cerebrais.

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um bom motivo para se considerar ambos como entidades diferentes. O simples fato de que os processos cerebrais e as percepções seriam ontologicamente diferentes (estas são subjetivas, aqueles são objetivos), implica que eles pertencem a tipos diferentes, de modo que a identidade das capacidades causais é incompreensível. São as capacidades causais da percepção (com suas características subjetivas) ilusórias? Essa seria uma possível leitura da afirmação de que a consciência não possui poderes causais além daqueles da sua base neurobiológica. Se é assim, então estamos diante de um teoria epifenomenalista. Mas Searle não gostaria de defender tal posição. Ele diz repetidamente que a consciência é causalmente eficaz. Se se considera então as capacidades causais da consciência como reais, então parece que o efeito (em nosso exemplo a fuga diante do leão) tem mais de uma causa: tanto a percepção subjetiva quanto os processos cerebrais objetivos. Se é assim, então estamos diante de uma posição que implica uma supradeterminação causal.11 Mas Searle não gostaria de aceitar tal consequência.12 O ponto é que se pode deduzir a partir da concepção de Searle teses contraditórias. Partamos da tese da eficácia causal do mental:

(1) A consciência é causalmente eficaz, de modo que fenômenos mentais conscientes causam o comportamento humano.

(2) As capacidades causais da consciência são as mesmas dos processos cerebrais.

11 Esse problema, que Searle atribui ao dualismo de propriedades, é resumido por ele

conforme se segue: “when I raise my arm, there is a story to be told at the level of neuron firings, neurotransmitters and muscle contractions that is entirely suffcient to account for the movement of my arm. So if we are to suppose that consciousness also functions in the movement of my arm, then it looks like we have two distincts causal stories, neither reducible to the other; and to put the matter very briefly, my bodily movements have too many causes. We have causal overdetermination” (Searle, 2002b: 59).

12 A recusa da supradeterminação por Searle fica clara na seguinte passagem: “Nobody thinks that we are forced to postulate that solidity is epiphenomenal on the grounds that it has no causal powers in addition to the causal powers of the molecular structures, nor they think that if we recognize the causal powers of solidity we are forced to postulate causal overdetermination (...) Why are we inclined to make this mistake for consciousness when we would not think of making it for other causal phenomena? ” (Searle, 2002b: 62, grifos meus).

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(3) Processos cerebrais causam o comportamento humano. (4) Consciência e processos cerebrais não são idênticos. (5) O comportamento humano tem um tipo de causa, isto é, ele não é

supradeterminado. _______________ De (1) & (3) & (4) segue-se:

(C1) O comportamento humano tem dois tipos diferentes de causas, isto é, ele é supradeterminado. de (3) & (4) & (5) segue-se: (C2) A consciência é causalmente ineficaz, de modo que fenômenos mentais conscientes não causam o comportamento humano.

Essas conclusões estão em clara contradição com determinadas teses contidas no argumento acima. A conclusão (C1) contradiz a tese (5). Para resolver essa contradição Searle teria três alternativas, a saber, recusar uma das três teses das quais a conclusão se segue. Mas ele não aceitaria nenhuma dessas alternativas. A solução menos plausível seria negar a tese (3), pois ninguém que esteja familiarizado com os resultados das neurociências poderia levar essa negação a sério, e especialmente John R. Searle, que oferece uma solução do problema mente-corpo baseado nos progressos das neurociências (cf. Searle, 1992, p. 1). No cenário da filosofia contemporânea da mente, a negação da tese (4) seria certamente considerada a forma mais promissora de resolver a contradição, pois essa negação corresponde aos resultados das ciências naturais. Mas Searle jamais seguiria esse caminho, pois a subjetividade ontológica é para ele uma característica essencial do mental. Diante da impossibilidade de se negar a eficácia causal dos processos cerebrais e a subjetividade ontológica, a negação da tese (1) seria a última alternativa, até porque o estatuto ontológico incomum da consciência (tal como Searle a concebe) faz suas capacidades causais parecerem questionáveis. Mas, ainda mais importante, é o fato de que essa solução – a negação da tese (1) – já está contida em suas reflexões sobre a redução – certamente contra a vontade dele. Quando ele formula a redução causal, ele escreve: “phenomena of the type A are causally reducible to phenomena of the

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type B, if and only if (...) A’s have no causal powers in addition to the causal powers of B’s.” (Searle, 2004, p. 119) Essa afirmação pode ser interpretada como se os fenômenos A não possuíssem capacidades causais. No caso de fenômenos objetivos tal interpretação não seria necessária, pois esses fenômenos pertencem à mesma categoria ontológica que o sistema subjacente. Sobre uma propriedade sistêmica objetiva, Searle escreve: “solidity has no causal powers in addition to the causal powers of the molecules.” (Searle, 2004, p. 119) Aqui não seria necessário considerar a propriedade como causalmente ineficaz, pois tanto a solidez quanto as moléculas, e o sistema como um todo, são objetivos, de modo que a solidez é idêntica a uma propriedade das moléculas. A identidade das capacidades causais corresponde à identidade das próprias coisas. Mas quando um fenômeno é considerado ontologicamente diferente do fenômeno que o reduz (neste caso reduz apenas causalmente), então não há uma identidade entre esses fenômenos e a identidade dos poderes causais permanece misteriosa.13 Nesse caso é razoável interpretar uma afirmação como a seguinte enquanto uma negação de eficácia causal: “Consciousness is causally reducible to brain processes, because (...) consciousness has no causal powers of its own in addition to the causal powers of the underlying neurobiology” (Searle, 2002b, p. 60). O que eu estou tentando dizer, em suma, é que é possível defender a interpretação de que a conclusão (C2) já se encontra, em uma versão diferente, entre as teses centrais da filosofia da mente de Searle: a tese (2) – que pertence à concepção da redutibilidade causal da consciência – pode ser entendida como uma afirmação da ineficácia causal da consciência14 (embora ela também possa ser interpretada de outra

13 Por isso a comparação da consciência com propriedades sistêmicas objetivas parece

inválida. Em Why I Am Not a Property Dualist Searle afirma: “causally speaking there is nothing there, except the neurobiology, which has a higher level feature of consciousness. In a similar way there is nothing in the car engine except molecules, which have such higher level features as the solidity of the cylinder block, the shape of the piston, the firing of the spark plug, etc” (Searle, 2002b: 60). Porém, comparar a consciência com a solidez do pistão não é de grande ajuda, diante da diferença ontológica entre ambos.

14 Esse problema é apresentado por Crane da seguinte maneira: “Searle denies that surface properties (including mental properties) are ‘emergent’ in the sense that they have causal powers independently of the causal powers of their physical parts (p.

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maneira – cf. seção 5 abaixo). Apesar disso, Searle se recusa veementemente a negar a eficácia causal da consciência (que é uma das teses básicas do naturalismo biológico). Se tudo se comporta dessa maneira, então há uma incoerência no coração do naturalismo biológico, a saber, na sua concepção de redução, que deveria superar o dualismo e o materialismo e colocar em acordo suas verdades parciais. 5 É possível eliminar a incoerência? A estratégia dos níveis de descrição Considerando as fortes evidências em favor da tese (3) e a grande plausibilidade da tese (5) – cuja negação seria bizarra – parece que os esforços para resolver as contradições apontadas acima devem se concentrar nas teses (1), (2) e (4), cuja veracidade está mais sujeita a questionamentos. Entre elas, a tese (1) é a mais forte, pois, além de ser insistentemente defendida por Searle, é extremamente intuitiva. Como afirmado anteriormente, penso que a tese (4) é a melhor candidata para a rejeição, mas é importante que a tese (2) seja objeto de uma reflexão mais atenta, pois há uma ambiguidade nela cuja eliminação pode ser decisiva para resolver as contradições acima expostas. De acordo com ela:

(2) As capacidades causais da consciência são as mesmas dos processos cerebrais.

112). Rather, he thinks that these properties can be ‘causally reduced’ to their underlying physical properties (p. 114-15). But where does this leave the causal powers of the mental? Suppose my current pain causes me to cry out. If as Searle claims, the causal powers of the pain are ‘entirely explainable’ (p. 114) in terms of the causal powers of my current neural state, then (given Searle’s denial of the Identity Theory) there is a clear sense in which my pain is not the cause of my crying. Searle does not seem to think that the pain and the neural state both cause the crying, as in a case of overdetermination. And since the pain and the neural state are not identical, yet the pain’s causal powers are entirely explainable in terms of the neural state’s, it seems clear that on Searle’s view the neural state is the real cause. The alternative is to say that the causal powers of my pain are not entirely explainable in terms of the causal powers of my neural state. But it is essential to Searle’s view that he denies this.” (Crane, 1993: 319-20)

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Penso que essa asserção pode ser entendida, pelo menos, de duas maneiras: primeiramente, como discutido na seção 4, significando que a consciência não tem capacidades causais – negação da tese (1) – ou, em segundo lugar, significando que as capacidades causais são as mesmas porque a consciência e os processos cerebrais são a mesma coisa, afirmação de identidade que nega a tese (4) – note-se que o próprio Searle diz que, em geral, reduções causais levam a reduções ontológicas. O modo como Searle argumenta contra o epifenomenalismo e a supradeterminação causal fornece um forte indício de qual dessas possibilidades de leitura da tese (2) deveria ser escolhida: a segunda possibilidade, pois tal argumentação parece estar baseada em uma identidade entre a consciência e os processos cerebrais. Discutindo o dualismo de propriedades, Searle afirma:

The fact that the dilemma of either epiphenomenalism or causal overdetermination can even seem to be a problem for property dualism is a symptom that something is radically wrong with the theory. Nobody thinks that we are forced to postulate that solidity is epiphenomenal on the grounds that it has no causal powers in addition to the causal powers of the molecular structures, nor they think that if we recognize the causal powers of solidity we are forced to postulate causal overdetermination, because now the same effect can be explained either in terms of the behavior of the molecules or the solidity of the whole structure. (Searle, 2002b, p. 62)

No caso da solidez, é evidente que os efeitos podem ser explicados tanto em termos do comportamento molecular quanto em termos da solidez do sistema no nível macroscópico, pois (para Searle – cf. 1992, p. 115) a solidez e o comportamento das moléculas são idênticos. Ao falar da consciência nestes termos, ele parece sugerir uma identidade entre a consciência e os processos cerebrais. E em uma passagem como a seguinte, essa identidade não parece estar sendo meramente sugerida, mas sim afirmada:

“the causal powers of consciousness are exactly the same as those of the neuronal substrate. This situation is exactly like the causal powers of solid objects and the causal powers of their molecular constituents. We are not

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talking about two different entities but about the same system at different levels.” (Searle, 2004, p. 127-8, grifo meu)15

Se é assim, a tese (4) deve, de fato, ser rejeitada, mas então surge uma possibilidade de se considerar a teoria de Searle coerente: mostrar que a tese (4), tal como formulada acima, não corresponde ao que o autor quer dizer; ou seja, mostrar que Searle não acha que a consciência e os processos cerebrais são diferentes. A asserção (4) foi formulada com o intuito de reproduzir a tese da irredutibilidade ontológica da consciência aos processos cerebrais. Para se concluir que não há contradição, seria preciso mostrar que a irredutibilidade ontológica, tal como Searle a concebe, é compatível com a identidade da consciência com os processos cerebrais. Seria possível considerar que Searle desenvolveu uma estratégia para isso, ao distinguir entre níveis de descrição dos fenômenos envolvidos numa redução (causal e/ou ontológica). Ele parece recorrer ao fato de que existem características que não podem ser atribuídas às partes componentes de um sistema, mas apenas a ele próprio no nível macroscópico. Assim como a liquidez e a solidez não podem ser encontradas no nível das moléculas isoladas, a consciência e suas características subjetivas, ou seja, seu aspecto qualitativo, não poderiam ser encontradas no nível microscópico dos neurônios individuais. Em outras palavras, apesar de ser formado por partes objetivas (neurônios e demais microestruturas cerebrais), o cérebro realizaria no nível macroscópico uma propriedade ontologicamente subjetiva: a consciência, o que implica que tal propriedade é exatamente o conjunto de processos que ocorrem no nível microscópico, apenas descritos de outra maneira, do mesmo modo que

15 Em um texto anterior, Searle apresenta a relação entre um estado de consciência e

um processo cerebral como uma identidade, na medida em que existe um mesmo fenômeno descrito em diferentes níveis: “I now, let us suppose, have a conscious feeling of pain. This is caused by patterns of neuron firings and is realized in the system of neurons. Suppose the pain causes a desire to take an aspirin. The desire is also caused by patterns of neuron firings and is realized in the system of neurons. These relations are exactly parallel to the case of the ice and the water. I can truly say both that my pain caused my desire and that sequences of neuron firings caused other sequences. These are two different but consistent descriptions of the same system given at different levels.” (Searle, 1995, p. 219)

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a solidez é exatamente o conjunto de movimentos moleculares em estruturas de agregados. Porém, conforme discutido acima (cf. seção 3), existem passagens nas quais Searle defende uma concepção incompatível com essa identidade de tipos entre a consciência e os processos cerebrais. Discutindo diretamente a noção de identidade, Searle afirma: “we can have a notion of neurobiological processes big enough so that every token pain process is a token neurobiological process in the brain, but it does not follow that the first-person painful feeling is the same thing as the third-person neurobiological process” (Searle, 2004, p. 125, grifos meus). Nessa passagem, ele nega explicitamente a identidade entre fenômenos subjetivos e objetivos. Sendo assim, existe base textual para se afirmar que Searle defende a tese (4) tal como formulada acima – consciência e processos cerebrais não são idênticos – de modo que as contradições apontadas na seção 4 permanecem. Mas, além disso, o que a análise de trechos como os dois últimos a serem citados mostra é que o autor incorre em mais uma contradição: a de afirmar e negar a identidade entre consciência e processos cerebrais. O exame da citação de Searle, 2004, p. 127-8 mostra que uma sexta asserção deve ser acrescentada às teses apresentadas na seção anterior:

(1) A consciência é causalmente eficaz, de modo que fenômenos mentais conscientes causam o comportamento humano.

(2) As capacidades causais da consciência são as mesmas dos processos cerebrais. (3) Processos cerebrais causam o comportamento humano. (4) Consciência e processos cerebrais não são idênticos.

(5) O comportamento humano tem um tipo de causa, isto é, ele não é supradeterminado.

(6) Consciência e processos cerebrais são a mesma entidade em diferentes níveis de descrição.

Como foi discutido acima, a tese (4) – em conjunto com as teses (1), (3) e (5) – leva à conclusões que estão em contradição com (1) e (5). Tais contradições desapareceriam se a tese (4) fosse rejeitada. Mas o fato é que a análise dos textos mostra que Searle defende (4) e (6) simultaneamente, o que faz surgir uma evidente contradição. Portanto, concluo que, para sustentar uma teoria coerente, Searle deveria abdicar da tese (4) em favor da tese (6), ou seja, abrir mão da idéia da

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irredutibilidade ontológica da consciência, fonte de tantas dificuldades, e permanecer fiel à sua distinção entre níveis de descrição das propriedades sistêmicas. Referências CHURCHLAND, Paul. (1994) “Betty Crocker’s Theory” [Review on The Rediscovery of The Mind] In: London Review of Books. Vol. XVI, Nummer 9 (12 May), p. 13-4 CORCORAN (2001) “The Trouble with Searle’s Biological Naturalism” In: Erkenntnis 55, p. 307-324. CRANE, T. (1993) Review on The Rediscovery of The Mind. In: International Journal of Philosophical Studies Volume 1. Number 2. September. p. 313-324. JACKSON, F. (1982) “Epiphenomenal Qualia” In: Philosophical Quarterly 32, p. 127-136 KIM, J. (1995) “Mental Causation in Searle’s ‘Biological Naturalism’.” In: Philosophy and phenomenological Research 55(1) p. 189-94. KRIPKE, S. (2001 [orig. 1972]) Naming and Necessity. Cambridge (Mass.): Harvard University Press. LEVINE, J. (1983) “Materialism and Qualia: The Explanatory Gap” In: Pacific Philosophical Quarterly 64, p. 354-361. NAGEL, T. (1974) “What Is It Like To Be a Bat?” In: Philosophical review 83, p. 435-450 NIDA- RÜMELIN, M. (2002a) “Causal Reduction, Ontological Reduction and First-Person Ontology. Notes on Searle`s Views about Consciousness.” In GREWENDORF, G.; MEGGLE, G. (Org.) Speech Acts, Mind and Social Reality: Discussions with John R. Searle. Dordrecht, Boston, London: Kluwer Academic Publishers. p. 205-221 OLAFSON, F. A. (1994) “Brain Dualism“ [Review on The Rediscovery of The Mind] In: Inquiry (37) p. 253-6 SEARLE, J. (1984) Minds, Brains and Science. Cambridge Mass., Harvard University Press. _______ (1992) The Rediscovery of the Mind. Cambridge Mass., London: MIT Press.

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 31-44

Olhar e memória na percepção cinematográfica

Susana Isabel Rainho Viegas* Resumo: O presente artigo tem dois objectivos: por um lado, o de analisar os conceitos de percepção e memória no cinema segundo a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty em “Le Cinéma et la Nouvelle Psychologie” e, por outro lado, o de analisar estes mesmos conceitos no filme de Christopher Nolan, Memento. A nossa principal referência será a fenomenologia da percepção em Merleau-Ponty de modo a melhor compreendermos o interesse fenomenológico do cinema e deste filme em particular. Palavras-chave: Filosofia do Cinema, Memória, Merleau-Ponty Abstract: The present article has two main goals: in first place, to analyse both concepts of perception and memory in cinema on Maurice Merleau-Ponty's text, “Le Cinéma et la Nouvelle Psychologie”, and, in second place, to analyse the same concepts in Christopher Nolan's film, Memento. We will take as reference Merleau-Ponty's phenomenology of perception in order to understand the philosophical interest of this particular film. Keywords: Memory, Merleau-Ponty, Philosophy of Film 1 Filosofia e cinema Em 1945, Maurice Merleau-Ponty proferiu uma conferência, “Le Cinéma et la nouvelle psychologie”1, sobre a arte cinematográfica e as questões suscitadas pela nova psicologia Gestalt relativamente à intervenção do olhar e da memória na percepção. Como é sabido, foi * Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da

Universidade Nova de Lisboa. E-mail: [email protected]. Artigo recebido em 14.02.2008 e aprovado em 04.11.2008.

1 “Le Cinéma et la nouvelle psychologie” in Sens et non-sens, p. 85-106. De notar que, por exemplo, para Gilles Deleuze, “é muito curioso que Sartre, em L'Imaginaire, encare todos os tipos de imagens, excepto a imagem cinematográfica. Merleau-Ponty interessava-se pelo cinema, mas para o confrontar com as condições gerais da percepção e do comportamento. A situação de Bergson, em Matière et Mémoire, é única”(Deleuze, 2003, p.73).

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também em 1945 que o autor publicou a sua obra maior, La Phénoménologie de la perception, uma coincidência temporal que nos revela que o cinema também estaria a ser objecto de reflexão durante a escrita sobre a fenomenologia da percepção. Diz o filósofo que:

O cinema está particularmente apto a manifestar a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e a expressão de um no outro. Eis porque não é surpreendente que a crítica possa evocar a filosofia a propósito de um filme (Merleau-Ponty, 1966, p.105).

Em Merleau-Ponty o cinema é um instrumento exemplar para as investigações filosóficas. No entanto, isso não impede que, passados apenas três anos da referida conferência, nas leituras radiofónicas de 1948 (publicadas posteriormente em Causeries), o filósofo considere o cinema como uma arte inferior à pintura, afirmação sustentada, principalmente, pela sua recente história e pela falta de obras-primas de referência. Para além disso, os resultados para a própria filosofia da percepção são diferentes e, deste modo, Merleau-Ponty contrapõe as “indicações mudas” de um quadro à “gramática do cinema” (Merleau-Ponty, 2002, p.53-61) Como ponto de partida teremos esta conferência, onde o filósofo afirma que o cinema é uma arte fenomenológica, no sentido em que o cinema não é uma soma de imagens fixas, mas a percepção, em primeiro lugar, do Todo. Este Todo percepcionado – “é através da percepção que podemos compreender a significação do cinema: não se pensa o filme, percepciona-se” (Merleau-Ponty, 1966: 104) – é uma forma temporal (Merleau-Ponty, 1966, p.96). O que significa esta percepção do Todo? O Todo parece algo que, à partida, não nos é acessível porque, segundo a psicologia clássica, a percepção é a reunião e reorganização dos fragmentos que constituem o mosaico perceptivo. Mas, segundo a nova teoria Gestalt que Merleau-Ponty segue, a percepção do Todo é uma forma global de abertura do nosso estar-já-no-mundo. No entanto, a análise aqui em causa diz respeito à nossa situação enquanto espectadores de cinema: como percepcionamos as imagens projectadas e de que modo nos surge uma impressão de realidade? A noção de olhar, segundo a fenomenologia, requer uma compreensão mais atenta, uma vez que o olhar, entendido, não só

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como abertura, mas também como interveniente, reúne em si a função de ponto de vista e de interpretação. Se, por um lado, o cinema é entendido como um bom exemplo para a nova psicologia Gestalt, por outro lado, esta também pode contribuir para a compreensão da percepção cinematográfica. Neste sentido, a conferência de Merleau-Ponty faz parte de um conjunto de estudos psicológicos sobre o cinema dos quais Hugo Münsterberg foi pioneiro em 1916. Para o filósofo francês, o cinema é uma forma temporal ou “unidade melódica” de imagem e som. “Um filme não é uma soma de imagens mas uma forma temporal” (1966: 96), ou seja, o cinema é uma unidade temporal visual e sonora. Recordando as conhecidas experiências de Kuleshov, Merleau-Ponty afirma que:

O sentido de uma imagem depende, portanto, daquelas que a precedem no filme e a sua sucessão cria uma nova realidade que não é a simples soma dos elementos empregues (1966, p. 97).

Além da função do olhar, iremos também focar a função da memória no acto perceptivo de um filme. Relativamente ao tema da memória e da sua relevância no acto de percepcionar, recorremos a Memento (2001), um filme de Christopher Nolan e que servirá de exemplo cinematográfico ilustrando o que aqui está em causa. Partimos do dado adquirido de que, unicamente com os dados da percepção, não nos podemos orientar no mundo e, por isso, a memória e a capacidade de reter informações passadas tornam-se vitais no nosso quotidiano. Podemos afirmar que Memento é um filme filosófico na medida em que é um filme que, intencionalmente, coloca algumas questões filosóficas e tenta desenvolver, através do meio cinematográfico, as consequências da memória a curto prazo. Memento permite analisar esta questão (a percepção do mundo na memória a curto prazo) em relação directa com uma das técnicas cinematográficas – a montagem e a manipulação do tempo, mas sempre num registo ambíguo com a verdade tal como esta é observada pelo espectador. Memória a curto prazo significa não reter, nem informações, nem lembranças de situações passadas e, consequentemente, não estar apto a interpretar a situação corrente. Pode-se, no entanto, e neste sentido concorre Memento, controlar o registo do passado através da

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colecção de factos e, deste modo, controlar o seu próprio acto no futuro. Neste aspecto, a colagem do ponto de vista de Leonard (a personagem principal interpretada por Guy Pearce) com o ponto de vista do espectador do filme, é óbvia e intencional. De modo a não perder a continuidade espácio-temporal da sua própria história, Leonard recorre a diversos elementos que “fixam” o presente para o poder recuperar no futuro: notas escritas, fotografias e tatuagens. Assim, Leonard tatua no corpo factos, os acontecimentos tal como ele pretende guardá-los para, no futuro, os poder recuperar; tatua factos como definições de um dicionário a que recorre sempre que tem dificuldade em “ler” a realidade, sempre que precisa de compreender a situação em que se encontra. Os factos são um elemento imprescindível na análise da percepção e da memória uma vez que, de um modo geral, pressupomos que os factos são independentes de qualquer interpretação, um dado bruto ou sense datum (primeiro nível do conceito), mas, como compreendemos com neste filme, não há factos translúcidos; eles são uma interpretação, ou mesmo uma mentira criada por Leonard (segundo nível do conceito). Leonard pode seleccionar e alterar o passado através do que decide vir a recuperar no futuro, pode escolher o que escrever, fotografar ou tatuar pois, como se irá esquecer que foi uma selecção viciada, não terá forma de duvidar do seu registo; tomará por factos verídicos o que lhe é dado a ler no desconhecimento da sua génese. Esta excessiva confiança na veracidade dos factos irá trazer consequências desastrosas para os outros, prejudicando-os (dimensão ética e social do bom funcionamento da memória). Mas, também ele, com a sua doença, é enganado e iludido. Além do engenhoso argumento (escrito em conjunto com Jonathan Nolan), Christopher Nolan faz uso ainda do artifício cinematográfico de uma montagem cronologicamente invertida, começando pelo fim da narrativa, colocando-nos, espectadores, em pé de igualdade com a personagem. Tal como Leonard, também nós não entendemos a situação nem sabemos o seu percurso até ali. No final, teremos a oportunidade de compreender o Todo, de reorganizar a narrativa na direcção correcta, do passado para o futuro, e, só o fazemos porque não sofremos de memória a curto prazo. Leonard não se orienta

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com a memória e, por isso, recorre aos factos. Ainda que a memória possa alterar os factos do passado, o tamanho de um quarto, um diálogo, etc., para Leonard, os factos gravados são suficientes. Esta é uma das funções do espectador, agora partilhada com a personagem: os factos devem bastar para recuperar a sucessão dos acontecimentos havendo uma entrega voluntária aos dados da percepção. Tendo em conta esta ideia, compreende-se melhor de que modo a relação entre percepção e cinema, ou entre o espectador e o filme, interessava a Maurice Merleau-Ponty. Merleau-Ponty pretendia superar o dualismo Eu/Outro, percepção/mundo, dualismo herdado de Descartes, e esta superação é realizada através do corpo, ou melhor, através de uma noção muito particular de corpo que encontramos, por exemplo, na criação da personagem de cinema e do espectador de cinema. O corpo de que nos fala Merleau-Ponty não é o corpo da anatomia ou da fisiologia, o corpo reduzido a músculos e articulações. Na verdade, a fenomenologia como que acrescenta a este corpo um elemento que o pode tornar irreconhecível: o gesto. Através da anatomia, podemos descrever de um modo exaustivo como é que um corpo consegue, por exemplo, dançar, mas não podemos descrever, de modo algum, como nasce daí uma arte, uma expressão humana. O estilo do gesto é inclassificável. Que relação existe entre o corpo, o gesto e o mundo? Para Merleau-Ponty não há uma divisão entre o que olha e o que é olhado, entre o que sente e o que é sentido (Merleau-Ponty, 1997, p. 21) e, o cinema apresenta-se como um exemplo concreto da mudança que ocorre na percepção quando o olhar que vê se compreende como visível: “o cinema está particularmente apto a manifestar a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e a expressão de um no outro”(Merleau-Ponty, 1966, p. 105). “Há uma experiência da coisa visível como preexistente à minha visão mas não é fusão, coincidência: porque os meus olhos que vêm, as minhas mãos que tocam, podem também ser vistos e tocadas, (...) o mundo e eu somos um no outro e não há anterioridade do percipere ao percipi, há simultaneidade” (Merleau-Ponty, 2006, p. 162). O olhar na percepção cinematográfica coincide e coexiste com o próprio filme visto e, através do olhar da personagem, o olhar de quem vê é reenviado a si mesmo como visível.

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Qual é então o corpo da fenomenologia? É o corpo que percepciona, que sente e que essencialmente vê, interage com o exterior marcando e sendo marcado por essa troca. É o corpo do comércio de percepções. Mas, mais do que as percepções do tacto ou da audição, por exemplo, o corpo faz a sua diferença através do órgão da visibilidade. Para Merleau-Ponty, este órgão é altamente corpóreo, ele toca as coisas. O ver não é simplesmente um pairar sobre os objectos, como forma de reconhecimento ou de escrutínio de propriedades, como, por exemplo, as descrições cartesianas de objectos e de pessoas, mas é uma sedução, um envolvimento de ambas as partes com uma mudança nos dois campos. Surpreendentemente, as alterações não ocorrem unicamente no agente de percepção. Por este motivo, as análises relativas ao cinema tornam-se fundamentais na filosofia de Merleau-Ponty porque, no cinema, o olhar do espectador, o olhar que vê, é reenviado para si próprio como visível para outro. Ver é ser visível. 2 A percepção do mundo De um modo não explícito, não fenomenológico, pensamos que, no campo de percepção, os objectos já existem e são independentes do facto de serem ou não percepcionados. Podemos questionar, como Leonard o faz em Memento, se, quando fechamos os olhos, o mundo continua a existir de uma forma autónoma e independente da nossa crença. Mas, de que modo podemos verificar que a coisa percepcionada não coincide connosco? Por exemplo, a dúvida cartesiana e os critérios cartesianos de evidência e clareza do que percepcionamos aqui e agora, sugerem que esta concepção autónoma de realidade seja uma ilusão. Só temos a certeza da existência dos objectos quando nos aparecem, deixando mesmo de ter passado, pelo menos para nós. A clareza e a evidência não nos podem reconfortar com a sensação de continuidade. Na verdade, não nos orientamos segundo este ponto de vista cartesiano do mundo, pelo contrário, mesmo que não os percepcionemos, acreditamos que os objectos já existiam e continuam a existir para lá do momento em que se cruzam com o nosso trajecto. O que temos de compreender é o modo como, de um ponto de vista fenomenológico, fazemos este preenchimento, esta constituição excessiva aos dados da percepção aqui e agora não só do mundo mas também de um filme.

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Do ponto de vista natural, o sujeito e o acto de percepcionar correspondem a uma recepção do que nos chega do mundo através dos sentidos, sendo que, este mundo, é independente e anterior ao acto de percepção tal como Descartes descreve nas Meditações da Filosofia Primeira (segunda meditação) em relação às propriedades reais de um pedaço de cera (Descartes, 1992, p. 127-130). Neste texto, Descartes pretende descrever algo em que não podemos duvidar, não só um objecto hipotético que podemos tocar, cheirar ou pesar, mas uma coisa em particular, um pedaço de cera. Mas, quando este é aproximado do fogo, acontecem alterações físicas que tornam o pedaço de cera irreconhecível. Não parece ser o mesmo. Antes tinha um pedaço de cera com determinado cheiro, um determinado peso, uma determinada dureza, etc., e agora nenhuma dessas características se mantêm. As modificações físicas levam a uma alteração de identidade. Não há relação entre o à-pouco e o agora. O que subsiste, a mesma cera, não é algo que percepcionamos, mas sim um acto de consciência, uma inspecção do espírito, inspectio mentis. A identidade das coisas, a sua permanência, não nos é dada por um acto de percepção. Unicamente pelo acto de percepcionar obtemos fragmentos, o nosso ponto de vista de cada vez. Este é um mundo que somente existe e subsiste enquanto durar com a nossa percepção. Comparando esta experiência de Descartes com o exemplo da percepção de um cubo que Maurice Merleau-Ponty dá na conferência (Merleau-Ponty, 1966, p. 91) compreendemos que, ao observarmos um cubo, não percepcionamos de cada vez todos os lados, não percepcionamos a parte de trás, o interior, cada um dos seus vértices, mas vemos um cubo. Merleau-Ponty diz que, “em vez de as corrigir, nem sequer noto as deformações de perspectiva, pelas quais vejo o cubo ele mesmo na sua evidência” (Merleau-Ponty, 1966, p. 91). No quotidiano das situações quotidianas, compreendemos naturalmente as alterações ou cortes abruptos como a mudança de cenário, a sobreposição dos objectos, a relação forma-fundo, o aparecimento e desaparecimento de objectos, e isto porque não estamos fechados no instante presente da percepção, único instante de certeza e evidência. Temos acesso a um passado e a um futuro, mesmo que não explícitos, que interferem na compreensão. Se o que é dado efectivamente são os aspectos da realidade, tendo uma

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parte não podemos ter o todo, tendo a frente não podemos ter o lado ou a parte de trás, tendo o exterior não podemos ter o interior, e, no entanto, temos. De um ponto de vista fenomenológico, estas análises remetem-nos para dimensões temporais que não existem, o à-pouco e o a-seguir, e não unicamente para o presente agora. Também o cinema, e neste aspecto a arte cinematográfica estabelece-se como potencialmente filosófica, tem a capacidade de fazer ser o que já foi temporalmente, fazer ser novamente conteúdos espácio-temporais passados. 3 A percepção cinematográfica O olhar e a memória intervêm de um modo decisivo no que respeita à arte cinematográfica. Na verdade, como compreender uma arte que só existe na projecção de si mesma, na saída dos seus dispositivos físicos? Os fotogramas, em si, nada têm de cinematográfico. Porém, as imagens projectadas escapam ao aprisionamento da procura do presente. O olhar constrói isso que é visto, numa relação íntima entre as diferentes dimensões temporais. Cria-se, no espectador, a impressão de realidade da projecção cinematográfica. Como primeira tese enunciada sobre esta questão, encontramos um texto escrito em 1916 pelo psicólogo e pioneiro na filosofia do cinema, Hugo Münsterberg, The Film: A Psychological Study (na primeira edição, Photoplay). Um dos aspectos analisados pelo autor é a relação intrínseca entre a mente humana e a câmara: os acontecimentos dramáticos são moldados pelos movimentos internos da mente, ou seja, o espectador não vê a realidade objectiva mas um produto da mente que reúne todas as imagens recebidas. O cinema permite ver e rever, não só o distante espácio-temporalmente (acontecimentos passados de coroações de reis) como o mais pequeno e pormenorizado (o ninho de um pássaro ou o desabrochar de uma flor). A câmara tem um alcance que o olho humano não tem. Ao vermos um filme, o movimento parece ser um movimento verdadeiro mas, na verdade, é criado pela mente do espectador. Há sugestão do movimento. Por exemplo, relativamente à profundidade espacial nas imagens, sabemos que é uma sugestão de profundidade, criada pela criatividade mental. No caso do close-up cinematográfico, há uma objectivação do acto mental de dar atenção a um acontecimento,

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enquanto técnica que imita o funcionamento da mente humana. Ao contrário do que acontece, por exemplo, numa peça de teatro, no caso do cinema é a própria imagem que faz esse trabalho mental. Relativamente à memória, para Münsterberg ela permite presentificar imagens do passado tal como a câmara faz com a montagem que, não só mostra imagens que já aconteceram, como intercala as dimensões temporais do presente e do passado, por exemplo, fazendo um corte para uma lembrança ou um acontecimento passado mostrando imagens anteriores à situação presente. Por outro lado, a imaginação antecipa o futuro ou vai para lá dos limites da vida com o sonho e fantasias; o mesmo faz a câmara de um modo mais perfeito e minucioso do que a imaginação faria. Tal como vimos em Merleau-Ponty, também Münsterberg destaca que a nossa percepção acede ao aqui e agora dos acontecimentos mas a nossa mente consegue pensar outras dimensões espácio-temporais; a câmara consegue chegar a diversos sítios, em tempos simultâneos concretizando o que a nossa mente deseja. Segundo o autor,

O cinema conta-nos a história do homem superando as formas do mundo exterior, a saber, espaço, tempo e causalidade, e ajustando os acontecimentos às formas do mundo interior, a saber, atenção, memória e emoções (Münsterberg 1970, p. 74).

Retomando o exemplo cinematográfico, o Todo de Memento é construído no final, ainda que a percepção se tenha dado no sentido inverso do desenvolvimento horizontal do tempo (passado-presente- futuro). Contrariamente à percepção natural, começamos com a percepção do futuro narrativo mas, mentalmente, refazemos os âmbitos temporais e, do ponto de vista cognitivo, começamos pelo passado. Ainda a propósito do trabalho da mente, reparamos que há, nas imagens projectadas, uma sugestão de profundidade criada pela criatividade mental mas não percepcionada na realidade. Há também, nas imagens cinematográficas, a sugestão do movimento e deslocação reais. O movimento é percepcionado apesar de o olhar não percepcionar verdadeiro movimento. Profundidade e movimento estão presentes nas imagens cinematográficas apesar de não “estarem” nas coisas, são criados por mecanismos mentais, pelas leis psicológicas de

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associação de ideias, de tal modo que, na nossa mente, passado e futuro estão entrelaçados no presente. Com Merleau-Ponty podemos fazer uma aproximação fenomenológica à arte cinematográfica. A intervenção do olhar é fundamental para a compreensão do filme projectado: sendo uma forma temporal, o filme tem de ser entendido na relação existente entre a montagem e a narrativa. Desta relação nasce a diegese, a ficção que nos dá impressão de realidade. E, através do olhar, o espectador tem acesso a uma realidade diferente, nova, que não é cópia de nenhuma situação percepcionada ou vivida e, apesar desta construção elaborada pelo olhar, o cinema não deve ser entendido como soma das diferentes partes. Como Merleau-Ponty salienta, nem a junção de movimento a fotografias, nem a junção de som a imagens já existentes pode criar o todo que é um filme, uma forma temporal inseparável do processo de montagem (Merleau-Ponty, 1966, p. 97-98). De um ponto de vista natural, não fenomenológico, a nossa situação perante a projecção de um filme é compreendida como não diferindo, no essencial, da relação de acesso ao mundo em geral: algo aparece, algo é percepcionado e alguém percepciona. Na conferência proferida por Maurice Merleau-Ponty, o cinema surge com arte fenomenológica, no sentido em que a fenomenologia da percepção muito ajuda a compreender a percepção cinematográfica e toda a construção visual que aí ocorre. Neste sentido se entende a ingenuidade inicial dos primeiros espectadores de cinema. Na percepção, distinguimos o deslocamento real (ilusório no cinema) do movimento percepcionado (sequência de fotogramas projectados). O ecrã é simultaneamente o local vazio, onde nada está e tudo o que aparece, as projecções. Mas, paradoxalmente, se podemos dizer que o que de concreto existe é o ecrã, ele, no entanto, encontra-se ausente no acto perceptivo. Existe um conflito, que habitualmente passa despercebido, entre o entendimento e a percepção. De igual modo, existe um excesso de conteúdos pensados em relação aos conteúdos percepcionados. Segundo os conceitos de evidência cartesiana analisados, as imagens projectadas são irrealidades. As imagens projectadas são imagens de “objectos” sem peso, sem odor, sem sabor. Como compreender a realidade das imagens cinematográficas

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projectadas? Como irrealidades, fantasmas, aparições visuais e sonoras cuja materialidade se resume às diferenças entre luz e sombra que dão vida às imagens. Não percepcionamos o mundo como um conjunto de entes independentes entre si e aos quais acedemos por campos de percepção impermeáveis (porque a visão só vê, etc.). De igual modo, não compreendemos como é que o cinema, entendido como um conjunto de fotogramas, independentes e sucessivos num determinado ritmo, pode resultar na visualização de um Todo, na participação de uma narrativa ou na criação de um mundo novo. O filme, como resultado da intervenção invisível do olhar fenomenológico, é totalmente excessivo à distinção e soma das partes. Os dados principais da montagem, por exemplo, a continuidade temporal e espacial, a relação harmoniosa entre a imagem e o som, são um trabalho do olhar que ultrapassa os dados da percepção. O olhar, do ponto de vista da fenomenologia, é mais do que um órgão de sensações visuais, ele tem um trabalho intelectual. O trabalho deste olhar é tornar irreal o que temos garantidamente como real, a mais banal das percepções mundanas, como ver algo, e tornar real o irreal, a sequência de fotogramas como movimento natural. Com esta análise, Maurice Merleau-Ponty como que nos obriga a pensar o próprio conceito de realidade do mundo real e não só a realidade da arte cinematográfica. Coloca a possibilidade de a realidade ser também irreal, ser um conteúdo pensado e não só conteúdos percepcionados, não ser um dado efectivo do mundo porque a esse conceito apenas acedemos por uma inspecção da mente, por uma descrição do processo de percepcionar. Neste sentido, o cinema é a arte da ausência. O que compreendemos como estando a acontecer perante nós, aquilo a que presenciamos e que tão real nos pode parecer, não é a percepção dos elementos reais do cinema como os fotogramas, a luz, o projector, o ecrã, etc., mas antes o que de irreal ou ausente há no cinema, a saber, os corpos, o movimento e a deslocação, o volume dos corpos, a perspectiva, a tridimensionalidade, o passado e o futuro da diegese, etc. Segundo as observações de Merleau-Ponty, e focando a dimensão temporal, o cinema é a arte da ausência porque a diegese não se situa na dimensão temporal do aqui e agora, mesmo que essa seja a situação da

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visualização, antes pelo contrário, é já a presença do passado que se retém e do futuro que se antecipa que permite a fluidez da narrativa. Deste modo, não acedemos ao mundo presentificado e parado do pensamento cartesiano, dos critérios de clareza e distinção, porque esse mundo é, paradoxalmente, mais artificial do que o ponto de vista da fenomenologia. Mais relevante se torna o olhar quando pensamos no cinema mudo e nas reacções dos primeiros espectadores. O cinema conseguia ser tão “real” como a realidade ainda que mudo e a preto e branco, de tal modo que os espectadores se afastavam aterrorizados quando viam uma locomotiva encaminhar-se no seu sentido. Ganho que passa também pela exploração do próprio olhar e rosto humano dos actores: o olhar só por si torna-se linguagem, as expressões faciais são o suficiente para que haja comunicação e entendimento. Do rosto, transparecem os sentimentos que, segundo Merleau-Ponty, “estão neste rosto e nestes gestos e não escondidos nas suas costas” (Merleau-Ponty, 1966, p. 94). 4 Conclusão: filosofia do cinema Da percepção das imagens de cinema projectadas resulta a compreensão do filme como uma forma temporal e não uma soma de pequenos agoras sucessivos. Resulta daí também a refutação de uma teoria que considera o cinema uma arte ainda dependente da fotografia, uma arte que acrescenta movimento a imagens fotográficas. Mas, um filme não é simplesmente o conjunto de imagens projectadas no sentido em que, para que cada imagem tenha um sentido, precisa de ser compreendida juntamente com as imagens anteriores e com as que imediatamente lhe seguem. Neste sentido, analisámos o filme Memento de Christopher Nolan porque nele é explícita essa necessidade: a personagem principal, ao não se recordar dos momentos imediatamente anteriores, tem dificuldade em reconhecer e compreender o momento presente. Para além disso, o próprio espectador partilha este ponto de vista, não só neste filme mas em todos os filmes: o espectador tem de ter em mente o todo do filme, trazendo à memória as imagens passadas, e não apenas o momento presente percepcionado. Deste modo, e segundo Merleau-Ponty, “o sentido de uma imagem depende, por isso, daquelas que a precedem no filme e a sua sucessão cria uma realidade nova que não é a

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simples soma dos elementos usados” (Merleau-Ponty, 1966, p. 97). De igual modo, a relação entre a imagem e o som não é uma relação exterior mas irredutível: a composição dos dois elementos antecede-os e possibilita o todo final, o todo de cada cena e o todo fílmico. De um modo sintético, podemos resumir a relação entre cinema e fenomenologia em Merleau-Ponty a quatro ideias principais influenciadas sobretudo pela teoria Gestalt: primeiro, há uma ligação inegável entre a percepção e o cinema no sentido em que este é um objecto percepcionado exemplar; segundo, o cinema mostra uma relação única entre visível e invisível, entre tornar visível o invisível; terceiro, o cinema permite pensar a reversibilidade entre ver e ser visível; e, por último, um filme é uma forma temporal que só a si mesmo remete. Assim, partindo da impressão de realidade causada pela projecção das imagens cinematográficas, compreendemos que, no cinema, os dados percepcionados são substancialmente escassos em relação aos conteúdos que pensamos e compreendemos. O agente desta modificação é o olhar. Este, não é apenas um órgão dos sentidos reduzido aos dados da percepção, mas age de um modo cognitivo, organizando os conteúdos da percepção. As imagens cinematográficas são percepcionadas, mas são, principalmente, pensadas seguindo o fio condutor da montagem. Unicamente através da percepção não compreenderíamos as técnicas de montagem fílmica, as técnicas que criam a diegese, a narrativa ficcional, como, por exemplo, a introdução de um close-up. As imagens cinematográficas são, primeiramente, vistas no seu todo, logo, são uma construção, porque o todo não é um conteúdo percepcionado, mas pensado. Vimos também que o cinema permite expor a mudança operada na compreensão da relação Eu-Mundo e Eu-Outro. A relação não se dá entre dois pólos independentes mas a relação é de interferência e união em que o olhar que vê compreende-se como visível. Deste modo, o espírito humano, o mundo e os outros reflectem-se mutuamente, são o um e o múltiplo. Referências DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de Século, 2003. DESCARTES, René. Meditações sobre a Filosofia Primeira.Trad.

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Gustavo de Fraga.Coimbra: Livraria Almedina, 1992. MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et l’invisible, Paris, Éditions Gallimard, 2006. MERLEAU-PONTY, Maurice. Causeries. Paris: Ed. De Seuil, 2002. MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. Trad. Luís Manuel Bernardo.Lisboa: Vega, 1997. MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 2002. MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et Non-sens. Paris: Nagel, 1966. MÜNSTERBERG, Hugo. The Film: A Psychological Study. New York: Dover Publications,1970.

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A abordagem da natureza da mente por Descartes e a crítica de Damásio

João Luis da Silva Santos* 1

Resumo: O estudo da natureza da mente ocupa um lugar de destaque na agenda das investigações da Filosofia da Mente, porque sua abordagem parece fornecer uma explicação da forma pela qual os humanos têm acesso aos dados da realidade. Pretendemos problematizar a teoria cartesiana de natureza da mente a partir de sua concepção de idéias inatas produzida a partir de um instrumental matemático, que segundo Descartes, nasce com o sujeito. Para tanto, faremos uma breve explanação do método cartesiano, assim como de sua concepção de sujeito, para chegar, enfim, à análise do que Descartes entende como idéia. Após o que uma breve análise da noção de idéias inatas será por nós realizada. Indicaremos então, como o pensamento cartesiano dá margem para o questionamento de sua distinção mente/corpo, esta que o neurocientista Damásio não aceita, assim como não aceita a prioridade da razão sobre o sentimento. A natureza da mente não é metafísica como o disse Descartes, para Damásio ela é biológica. Palavras-chave: Idéia, Mente, Metafísica, Neurociência Abstract: The study of mind nature occupies an outstanding place in the agenda of the philosophy investigations, because its approach seems to provide some explanations of the way the human beings can acess the reality data. With the intent of questioning the cartesian mind nature theory from its conception of innate ideas produced ranging from a mathematical instrument which, according to Descartes, is born with the subject. For this, a brief explanation of cartesian method as well as his conception of subject will be show to finally reach the analyses of what Descartes understands as idea. After that, a short analysis of the notion of innate ideas will be performed by us. It will be indicated as the cartesian thought allows supposing questioning of distinction between the body and the mind, the one that the neuroscientist Damasio can´t accept, as well as he doesn´t accept the priority of reason over the sentiment. The mind nature is not metaphysics as it was mentioned by Descartes, while, on the other hand, for Damasio is biological. Keywords: Idea, Metaphysics, Mind, Neuroscience

* Doutorando em Filosofia pela USP. E-mail: [email protected]. Artigo

recebido em 22.04.2008, aprovado em 10.12.2008. 1 Agradeço as indicações bibliográficas e temáticas, bem como a leitura atenta e

exaustiva deste artigo levada a cabo pela Profa. Dra. Mariana Claudia Broens. O financiamento da FAPESP ao projeto do qual este texto é parte resultante também merece agradecimento.

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Pressupostos do representacionalismo: o método cartesiano No esforço de provar sua concepção de conhecimento baseado em metafísica, Descartes cria seu método, segundo ele adequado a todas as ciências, tendo por princípio que o conhecimento tem que ser regulado pela razão. Assim pensando, Descartes tem razões para afirmar a necessidade da reorganização das ciências, ou em suas palavras na segunda parte do Discurso do Método:

nem mesmo ainda que procurasse reformar o corpo das ciências, ou a ordem estabelecida nas escolas, para as ensinar; mas que, a respeito das opiniões que até então eu aceitara, o que melhor teria a fazer era, uma vez por todas, de as recusar, para as substituir em seguida por outras melhores, ou pelas mesmas quando as houvesse ajustado ao nível da razão (Descartes, s.d., p. 77-8).

Então, buscando um conhecimento seguramente racional, Descartes dedica bastante tempo a delinear seu método. Aproveitando-se dos estudos anteriormente realizados de lógica, análise geométrica e álgebra, o filósofo delineia quatro preceitos. Descartes defendia que a escolha desses preceitos deixaria de lado as falhas dessas três ciências. A lógica, por exemplo, teria muitos preceitos supérfluos. A análise e a álgebra, sendo muito abstratas, teriam em sua constituição partes muitas vezes destituídas de uso. Digamos que Descartes teve a idéia de procurar evidências racionais nessas ciências. A análise com dependência das figuras geométricas encontraria sua utilidade no método se deixasse de lado os numerosos exercícios necessários à assimilação de tantas figuras. A álgebra, por sua vez, com todas suas regras e fórmulas, faz com que as pessoas se afastem dela, não por desleixo intelectual, mas, antes, devido à grande obscuridade em que encontra imerso seu discurso, que muitas vezes afasta o elemento intuitivo racional procurado por Descartes. Assim considerando os quatro preceitos cartesianos (um substrato das ciências), eles poderiam direcionar seguramente o conhecimento, se observados sempre e sem nenhuma exceção. São, pois, em suma, os preceitos metodológicos de Descartes:

1. Nunca receber como verdadeiro algo precipitadamente, somente pode-se aceitar uma verdade se não houvesse ocasião de pô-la em dúvida.

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2. Dividir em parcelas, no número máximo, as dificuldades para resolvê-las melhor.

3. Conduzir ordenadamente os pensamentos dos mais simples aos mais compostos, supondo certa ordem mesmo para os quais não precedem uns aos outros naturalmente.

4. Nunca omitir informações, através de enumerações completas e recapitulações gerais, de modo a não perder nenhum elo da corrente argumentativa.

Para Descartes só há uma verdade para cada coisa. Aproveitando-se de tudo o que a análise geométrica e a álgebra têm de melhor, Descartes corrigiria os defeitos de uma pela outra. Obteria através deste método um conhecimento seguro porque: “o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar exatamente todas as circunstâncias do que se procura, contém tudo o que dá certeza às regras da aritmética” (Descartes, s.d., p. 89). Seu método apoiado na análise geométrica e na álgebra, agora depuradas de imperfeições, permitiria a produção de certezas. Para Descartes, o emprego de tal método acostuma o espírito a conceber clara e distintamente os objetos estudados, isto é, a conceber uma idéia apropriada sobre o objeto estudado. Descartes procura estabelecer seu método na filosofia, porque não havia encontrado nenhum que fosse satisfatório nesse ramo do conhecimento. A filosofia, detendo os princípios das ciências, ditando seus fundamentos, encontraria, segundo Descartes, um respaldo totalmente abrangente no seu método. Assim implantado na filosofia (note-se que essa é uma tese que visa todo o universo das ciências), o método se estenderia por toda a malha do conhecimento, abarcando todos os modos de entender a realidade. As idéias inatas são muito importantes na filosofia cartesiana se as entendermos como bases das representações de modo parecido com as regras do método, ou seja, como raízes do conhecimento. Portanto passaremos a seguir para a sua análise. O conceito de idéia Segundo Descartes, as idéias inatas são as entidades mentais (metafisicamente postuladas) que permitem, por exemplo, as demonstrações geométricas. Entende o filósofo que as idéias inatas são,

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por assim dizer, as raízes do conhecimento e justificam-se na razão. Em Descartes, as idéias inatas têm um sentido, que é prova de como o autor das Meditações pretendia se afastar de qualquer experiência sensível ou perceptiva para a constituição das bases do conhecimento, que seria unificado pela razão através da filosofia. Para Gueroult:

o esforço do cartesianismo dirige-se desde o início rumo à constituição de um sistema total de saber certo simultaneamente metafísico e científico. Essa totalidade do sistema não é absolutamente a totalidade de uma enciclopédia dos conhecimentos materiais efetivamente adquiridos, mas a unidade fundamental dos princípios primeiros de onde decorrem todos os conhecimentos certos possíveis (Gueroult, 1968, p. 18).

Por esse viés, Gueroult, explica o porquê da sustentação da física pela metafísica na obra de Descartes: “metafísica, ciência universal ou sistema da ciência constituem, portanto, um só e mesmo bloco... essa tese é a razão formal do infinito” (Gueroult, 1968, p. 17). Provar que Deus existe é para Descartes aceitar metafisicamente que o infinito pode ser conhecido pelo homem (embora não possa ser compreendido): “digo que sei, e não que o conceba ou o compreenda, porque é possível saber que Deus é infinito e todo-poderoso ainda que nossa alma, sendo finita, não possa compreendê-lo ou concebê-lo” (Descartes, Carta a Mersenne de 27 de maio de 1630, citado por Cottingham, 1995, p. 50). Baseando-se na existência de Deus como racionalmente demonstrada, Descartes concebe a noção de idéias inatas e toma como exemplo a noção de triângulo, esta instituída por Deus. Descartes observa:

por exemplo, quando imagino um triângulo, ainda que não haja talvez em nenhum lugar do mundo, fora de meu pensamento, uma tal figura, e que nunca tenha havido alguma, não deixa, entretanto, de haver uma certa natureza ou forma, ou essência determinada, dessa figura, a qual é imutável e eterna, que eu não inventei absolutamente e que não depende, de maneira alguma, de meu espírito; como parece, pelo fato de que se pode demonstrar diversas propriedades desse triângulo, a saber, que os três ângulos são iguais a dois retos, que o maior ângulo é oposto ao maior lado e outras semelhantes, as quais agora, quer queira, quer não, reconheço mui claramente e mui evidentemente estarem nele, ainda que não tenha antes pensado nisto de

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maneira alguma, quando imaginei pela primeira vez um triângulo; e, portanto não se pode dizer que eu as tenha fingido e inventado (Descartes, 1996, p. 310).

A imagem de triângulo concebida pelo intelecto não depende de sua existência na natureza e não pode, tampouco, ser percebida. Descartes se distancia de qualquer empiria, pois tem como pressuposto as idéias matemáticas inatas para representar as coisas do mundo. Com o objetivo de aprofundar a análise do conceito cartesiano de representação mental e seu papel cognitivo, na próxima seção analisaremos o modo como Descartes distingue a alma do corpo e como posteriormente tenta, em vão, explicar a possível união entre ambas. Esta análise é relevante para o esclarecimento do conceito de representação, na medida em que, ao distinguir alma ou mente do corpo, Descartes estabelece que a vida mental dos indivíduos e suas capacidades cognitivas são autônomas em relação à experiência sensível do mundo vivida pelos indivíduos. O problema da relação mente/corpo Desde a filosofia clássica grega, os filósofos empenham-se em investigar a natureza daquele que é o ser produtor de conhecimentos. Deste modo, os homens, tidos tradicionalmente como os sujeitos do conhecimento sistematizado, acabam por dominar o cenário das pesquisas acerca da geração do conhecimento. Isto é, denominam-se a si mesmos “sujeitos do conhecimento”. Como apontamos, a reflexão de René Descartes que, com um fundo metafísico, concebe a razão independentemente da experiência sensível e, conseqüentemente, do meio ambiente em que o indivíduo está inserido e do qual faz parte é fundamental para entendermos as pretensões humanas de conhecimento do eu. Como procuramos mostrar, Descartes propôs um método de pesquisa filosófica que obedece a ordem geométrica das razões e, portanto, não podemos esquecer que, para o estudo das Meditações, temos que considerar que Descartes pretendeu dar a sua obra uma coerência indubitável. O que é prova de um perfeccionismo lógico, por parte do autor, em relação ao encadeamento de sua argumentação.

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Assim, acompanharemos o raciocínio cartesiano expresso nas Meditações. Ao analisarmos as Meditações, constatamos na Meditação primeira que Descartes defende que através do método da dúvida radical (cuja caracterização consiste em considerar o duvidoso como equivalente ao falso) podemos racionalmente abrir mão das experiências sensoriais, devido aos erros a que muitas vezes nos conduzem, e conseguir certezas indubitáveis utilizando para isso elementos apenas racionais. A desvinculação da razão em relação aos sentidos é fonte de toda uma concepção racionalista sobre o sujeito do conhecimento, pois, segundo Descartes, o conhecimento é formado pela reta e metódica condução do raciocínio que procura corrigir os dados equivocados sobre as coisas da natureza que são freqüentemente fornecidos pelos sentidos. Na Segunda meditação, o filósofo explica como pode ser alcançado o eu, que pensa e conhece independentemente da corporeidade, apenas por um processo de introspecção racional. Diz Descartes:

após ter pensado bastante nisto e ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou a concebo em meu espírito (Descartes, 1996, p. 266-7).

Deste modo, o autor garante a existência do sujeito do conhecimento previa e independentemente à experiência perceptiva. Essa concepção permite que se coloque a idéia de alma e tal idéia é concebida como sinônimo de entendimento, razão e espírito. Como aponta o filósofo ainda na Segunda meditação: “... nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão” (Descartes, 1983, p. 94). A coisa pensante, o homem para Descartes, tem sentimentos que são identificados com o pensamento, na passagem:

Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente... Enfim, sou o mesmo que sente, isto é, que recebe e conhece as coisas como que pelos órgãos dos

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sentidos, posto que, com efeito, vejo a luz, ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-me-ão que essas aparências são falsas e que eu durmo. Que assim seja; todavia, ao menos, é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que me aqueço; e é propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto, tomado assim precisamente, nada é senão pensar. (Descartes, 1983, p. 95).

O ser pensante, é um ser que sente, Descartes coloca pensamento e sentimento num único plano. Essa identificação será a fonte de um problema, assim como pensamos: como saber que o quantum abstrato (pensamento) é o mesmo que o quantum perceptivo (sentimento), o que seria o problema mente/corpo colocado no âmbito da percepção. Como resultado da argumentação, a distinção entre a alma e o corpo está justificada metafisicamente. Tendo alcançado a certeza da existência do eu enquanto coisa pensante, Descartes propõe o posteriormente chamado “dualismo substancial”. Como observa Milidoni (1998): “... trata-se de um dualismo em que duas substâncias, alma e corpo, são postuladas, ao nível metafísico, na qualidade de distintas e separadas” (Milidoni, 1998, p. 77). Nas palavras de Descartes:

E, embora talvez (ou antes, certamente, como direi logo mais) eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente conjugado, todavia, já que, de um lado, tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma idéia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele (Descartes, 1996, p. 326).

Contudo, a alma está tão profunda e estreitamente unida ao corpo que, a despeito da distinção substancial, Descartes vê-se obrigado a reconhecer que alma e corpo constituem uma unidade, como o filósofo observa na Sexta meditação:

A natureza me ensina, também, por esses sentimentos de dor, fome, sede etc., que não somente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que além disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um único todo (Descartes, 1996, p. 328-9).

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Embora Lebrun ressalte que: “Descartes não estabeleceu que eu sou um entendimento + um corpo, porém que em mim há, além do mais, uma ‘mistura’ dessas duas substâncias. E esta mistura de fato corrige o dualismo de direito” (Descartes, 1996, p. 329, nota 1), permanece o problema de que Descartes é incapaz de explicar como duas substâncias essencialmente distintas interagem entre si. Claramente as visões que defendem a união da mente e do corpo como formadores do homem uno em Descartes voltam-se para uma tentativa defensora da validação do argumento cartesiano. Contudo, pensamos que o ponto de partida de Descartes é problemático. A tentativa de explicação de Descartes é reforçada no texto As paixões da alma, no qual o filósofo fala sobre a intercomunicação entre o corpo e a alma, talvez, no intento de demonstrar cientificamente o que fora defendido metafisicamente nas Meditações. Ainda que unida ao corpo como um todo, segundo Descartes, a alma tem uma espécie de sede geral na glândula pineal. Como observa Milidoni (1998), esta glândula, encontrada no meio do cérebro, e capaz de mover-se, era considerada por Descartes apropriada para mediar as relações entre a alma e o corpo do indivíduo. Segundo Descartes, o movimento causado pela glândula tem origem graças à ação dos ‘espíritos animais’ (formados por partes do sangue, são corpos pequenos e que se movem muito rapidamente; constituindo os princípios de nossos movimentos, pois penetram no cérebro e saem dele circulando dentre tubos, por entre nossos nervos) e à ação da alma. A intercomunicação entre a alma e o corpo é, portanto, garantida, para Descartes, pela existência da glândula pineal e pelo papel mediador que exerce entre ambas substâncias. Mas permanece o problema de explicar como podem substâncias essencialmente distintas, sendo uma delas imaterial, estar relacionadas e interagir causalmente, mesmo que na glândula pineal. O sujeito do conhecimento na filosofia cartesiana não é subordinado às leis físicas, não é extenso e, no entanto, relaciona-se intimamente com a corporeidade. Desse modo, a noção de sujeito do conhecimento de Descartes não apresenta uma explicação da intercomunicação entre alma e corpo. Porque os processos de interdependência não são explicitados. O que ele faz é uma admirável

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exposição de como somente Deus poderia ser o responsável pela explicação da união e de como os instintos do homem podem contribuir para que paixões sejam efetivadas. A recorrência a Deus para explicar a união é possivelmente uma grande necessidade por parte do autor de evitar um problema filosófico recorrendo a sistemas de crenças ou à tradição metafísica. O dualismo substancial parece assim ser um problema a ser resolvido, pois mesmo que concebamos o homem como um todo de corpo e alma, não podemos explicar a união que formaria este todo acabado sem recorrer a noções metafísicas. Uma vez levantados os vínculos do pensamento cartesiano com a concepção dualista de sujeito cognitivo, e os problemas que suscita, passaremos a analisar a abordagem da noção de estados mentais caracterizada por Damásio. Entendemos que esta análise é relevante porque Damásio comenta alguns limites da concepção cartesiana de natureza da mente. Estados mentais entendidos como estados disposicionais Abordaremos a seguir a crítica ao pensamento cartesiano elaborada por Damásio (1994) em Descartes´ error: emotion, reason and the human brain. Neste livro, o autor critica o dualismo e o inatismo cartesianos e sugere que o conhecimento decorre de representações disposicionais do cérebro. Para iniciar sua argumentação, Damásio apresenta um relato de um famoso caso clínico ocorrido nos Estados Unidos em meados do século XIX, envolvendo um trabalhador chamado Phineas Gage. Gage era um operário que teve seu cérebro ferido gravemente por uma barra de ferro, segundo relata Damásio:

O ferro entra pela face esquerda de Gage, trespassa a base do crânio, atravessa a parte anterior do cérebro e sai a alta velocidade pelo topo da cabeça. Cai a mais de trinta metros de distância, envolto em sangue e cérebro. Phineas Gage foi jogado no chão. Está agora atordoado, silencioso, mas consciente (Damásio, 1994, p. 4).

Damásio observa, citando o relato de John Harlow, médico que atendeu Gage e fez pormenorizado relato clínico do caso, que não houve praticamente nenhuma seqüela de maior porte considerando-se a

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gravidade do acidente, pois Gage manteve suas capacidades perceptivas inalteradas. O acidentado teve perda da visão do olho esquerdo, mas a visão continuou normal no olho direito. Não apresentava dificuldades no andar, nas habilidades da fala e do uso da linguagem, porém, segundo Harlow: “[...] o equilíbrio ou balanço, por assim dizer, entre suas faculdades intelectuais e suas propensões animais fora destruído” (Damásio, 1994, p. 8). Segundo as fontes consultadas por Damásio, antes do acidente Gage era considerado um trabalhador exemplar, com conduta irrepreensível do ponto de vista dos rígidos padrões morais da época. A despeito de ter sobrevivido a um acidente de tal gravidade quase incólume, sua personalidade mudou depois do acidente, quando passou a apresentar padrões de conduta que não apresentara anteriormente: “Mostrava-se agora caprichoso, irreverente, usando por vezes a mais obscena das linguagens, o que não era anteriormente seu costume” (Damásio, 1994, p. 8). A alteração no comportamento de Gage, depois de ser ferido, parece ser um significativo indício de que o cérebro desempenha um relevante papel no que se refere ao comportamento. O erro cartesiano, segundo aponta Damásio, é ter postulado o dualismo substancial, isto é, a distinção mente/corpo. Como já salientamos, para Descartes a mente distinta do corpo não necessitaria dele para continuar a existir. Damásio, por sua vez, defende a tese de que o cérebro é fundamental para a determinação do funcionamento da mente. Há uma oposição entre os dois teóricos, no que diz respeito à natureza da mente. Damásio tem como resultado de sua argumentação que a capacidade cognitiva que identifica o ser humano enquanto espécie não é a mesma que aquela defendida por Descartes, ou seja, uma capacidade regida por princípios de razão (ou alma) ontologicamente distinta do corpo. Tal capacidade envolve, para Damásio, os sentimentos:

os sentimentos parecem depender de um delicado sistema com múltiplos componentes que é indissociável da regulação biológica; e a razão parece, na verdade, depender de sistemas cerebrais específicos, alguns dos quais processam sentimentos. Assim, pode existir um elo de ligação, em termos anatômicos e funcionais, entre razão e sentimentos e entre esses e o corpo. É

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como se estivéssemos possuídos por uma paixão pela razão, um impulso que tem origem no cerne do cérebro, atravessa outros níveis do sistema nervoso e, finalmente, emerge quer como sentimento quer como predisposições não conscientes que orientam a tomada de decisão. A razão, da prática à teórica, baseia-se provavelmente nesse impulso natural por meio de um processo que faz lembrar o domínio de uma técnica ou de uma arte (Damásio, 1994, p. 246).

Note-se igualmente que a idéia defendida por Damásio sobre a natureza dos estados mentais diferencia-se fortemente da cartesiana, porque ainda que situadas no interior da cabeça, as representações não são dependentes de uma mente imaterial; pelo contrário, elas pertencem a regiões específicas do cérebro. Damásio considera que há um tipo de conhecimento inato, descrito na forma de disposições representacionais, não na forma de idéias inatas postas na mente humana por um suposto criador como queria Descartes, mas que se formam no cérebro, dependem da estrutura neurofisiológica e da história evolutiva da espécie humana. O conhecimento inato possibilita o elemento básico para a sobrevivência da pessoa: “Podemos concebê-lo como comandos da regulação biológica necessários para a sobrevivência (isto é, controle de metabolismo, impulsos, e instintos)” (Damásio, 1994, p. 104-5). O conhecimento adquirido, também localizado no cérebro, é responsável pelos: “movimentos, razão, planejamento e criatividade” (Damásio, 1994, p. 105). Como colocado anteriormente, para Descartes a razão constitui a substância pensante imaterial e não está sujeita às leis físicas, ela é condição necessária para o conhecimento. Ao tratar da racionalidade, Damásio, por sua vez, caracteriza-a como uma modificação contínua de cenários mentais: “O conhecimento adquirido baseia-se em representações disposicionais existentes tanto nos córtices de alto nível como ao longo de muitos núcleos de massa cinzenta localizados abaixo do nível do córtex” (Damásio, 1994, p. 105). Para Damásio, uma das tarefas que a racionalidade deve desempenhar é a possibilidade de adequar-se a determinadas situações e agir corretamente. Para tanto, cria cenários mentais prévios à ação, prevendo os possíveis resultados de tal ação: “na nossa consciência, os cenários são constituídos por

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múltiplas cenas imaginárias, não propriamente um filme contínuo, mas instantes pictóricos de imagens-chave nessas cenas, que saltam de umas para as outras em justaposição rápida” (Damásio, 1994, p. 170). A racionalidade opera, para Damásio, representacionalmente, processualmente, a partir de imagens pictóricas dinâmicas, previamente formuladas e estruturantes da ação. Damásio interpreta os resultados experimentais que obtém de modo favorável à manutenção de uma linguagem representacional, sendo as representações possíveis devido à estrutura do cérebro. Ao utilizar o conceito de disposições adquiridas, Damásio problematiza o racionalismo cartesiano e sugere que as representações são padrões destinados a organizar as imagens obtidas de modo a auxiliar o indivíduo na preservação de sua vida. Ao analisar as ações inteligentes através do conceito de representação, Damásio internaliza a mente, mas não a isola do meio circundante. E isto porque há um mapeamento do meio-ambiente realizado pelo agente cognitivo. O mapeamento que o cérebro realiza e a criação de cenários pictóricos é, para Damásio, fonte dos movimentos corporais e das ações inteligentes. Tanto os ‘mapas’ quanto os ‘cenários’ têm um fundo padronizador que possibilitam a alteração das relações corporais (um movimento do braço por exemplo) e levam os indivíduos a realizarem ações. No que diz respeito ao conceito de mapeamento representacional sugerido por Damásio, a palavra ‘mapa’ é utilizada metaforicamente e significa uma ativação de representações disposicionais de qualquer movimento corporal localizadas no córtex motor, sendo esta a base do movimento. Podemos concluir que para Damásio a mente está ‘na cabeça’ mas em constante processo de percepção/ação com o meio ambiente. Pensamos que com este estudo, Damásio lança definitivamente as bases para a Neurociência de relevância filosófica, que talvez seja a “grande onda”, que começou com Popper, da Filosofia de nosso princípio de século XXI. Referências COTTINGHAM, J. Dicionário Descartes. Trad. Helena Martins. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

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DAMÁSIO, A. R. Descarte’s Error: emotion, reason, and the human brain. New York: A Grosset/Putnam Book, 1994. _______ O Erro de Descartes: emoção, razão, e o cérebro humano. Trad. Dora Vicente, Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. DESCARTES, R. Œuvres de Descartes. Edição Ch. Adam e P. Tannery. XI v. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1957. _______ Meditações. Discurso do Método. Meditações. Objeções e respostas. As paixões da alma. Trad.: B. Prado Jr. e J. Guinsburg. Prefácio e notas Gérard Lebrun. São Paulo, Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). _______ Meditações. Discurso do Método. Meditações. Objeções e respostas. As Paixões da alma. Trad.: B. Prado Jr. e J. Guinsburg. Prefácio e notas Gérard Lebrun. São Paulo, Nova Cultural, 1996. (Os Pensadores). _______ Discurso do Método. Trad. João Cruz Costa. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, S. D. GUEROULT, M. Descartes Selon L'Ordre des Raisons. 2 v. Paris,

Aubier, 1968. MILIDONI, C. B. A relação mente-corpo e a natureza do eu cognoscente à luz do dualismo cartesiano. In: Anais do II Simpósio Científico do Campus de Marília. Marilia: Unesp-Marília-Publicações, 1998. RYLE,G. The Concept of Mind. Londres: Penguin Books, 2000.

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 59-79

A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau

Renato Moscateli* Resumo: O objetivo do artigo é analisar o conceito de liberdade presente na obra de Rousseau e fornecer argumentos para questionar a imagem do homem natural como um ser livre, de modo a sustentar a tese de que a liberdade somente se torna possível com a saída do estado de natureza descrito no Discurso sobre as origens da desigualdade. Assim, o autor pretende mostrar que o surgimento da consciência e da racionalidade é indispensável para que o homem consiga desenvolver suas faculdades virtuais e seja capaz de criar para si padrões de comportamento diferentes do instinto natural, um processo que ocorre graças à vida em sociedade. Palavras-chave: Direito, Liberdade, Natureza, Rousseau, Sociedade Abstract: The aim of the article is to analyze the concept of freedom present in the work of Rousseau and to provide arguments to question the image of the natural man as a free being, in order to support the thesis according to which freedom only becomes possible with the exit of the state of nature described in the Discourse on the origins of inequality. Thus, the author intends to show that the appearing of consciousness and rationality is indispensable so that the man develops his virtual faculties and be able to create standards of behavior for himself other than natural instincts, a process that happens thanks to life in society. Keywords: Freedom, Nature, Right, Rousseau, Society

“Pois a liberdade não é um presente que a bondosa natureza deu ao homem desde o berço. Ela só existe na medida em que ele próprio a conquistar, e a

posse dela torna-se inseparável desta conquista constante.” Ernst Cassirer, A questão Jean-Jacques Rousseau

Para os leitores de Rousseau, habituados à constante presença em seus escritos da expressão “liberdade natural”, a relação entre natureza e liberdade pode afigurar-se como possuindo um significado bastante inequívoco, em especial quando se pensa no Discurso sobre as origens da desigualdade, no qual os inícios da história conjetural do homem parecem evocar a imagem de um ser livre por excelência, tanto quanto

* Doutorando em Filosofia pela Unicamp. Bolsista da Fapesp. E-mail:

[email protected]. Artigo recebido em 13.10.2008, aprovado em 17.12.2008.

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os decadentes filhos da civilização jamais serão, e as conseqüências da lamentável perda desta condição ancestral perpassam, de vários modos, as reflexões que motivaram os textos posteriores de Rousseau. Não obstante, é justamente um deles que desafia a clareza dessa relação. No Contrato Social, ao falar sobre os resultados que o pacto de associação civil traz a quem dele participa, o autor diz que entre eles se encontra a liberdade moral, “única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se prescreveu a si mesmo é liberdade.” (Rousseau, 2003, p. 365). Tomando-se isto como uma chave interpretativa para adentrar os sentidos do termo liberdade no pensamento de Rousseau, é possível dizer que eles ramificam-se em duas dimensões que não devem ser sobrepostas indiscriminadamente: uma metafísica, cujas implicações podem ser abstraídas a partir da leitura do Segundo Discurso, e outra jurídica, que é exposta nas páginas do Contrato Social. Uma pista importante para compreendê-las está no fato de que ambas as dimensões são marcadas por oposições conceituais, as quais serão abordadas a seguir. A oposição metafísica: instinto versus liberdade Como passo inicial, deve-se olhar para o quadro do homem vivendo no estado de natureza, como Rousseau o delineou. No Segundo Discurso, lê-se que “O homem selvagem, abandonado pela natureza unicamente ao instinto, (...) começará, pois, pelas funções puramente animais: perceber e sentir será seu primeiro estado, que terá em comum com todos os outros animais.” (Rousseau, 2003, p. 142) Privado de toda espécie de luzes, suas paixões originam-se no simples impulso da natureza, e seus desejos não ultrapassam suas necessidades físicas. Sendo assim, guiando-se unicamente pelos apetites naturais1 nos longínquos primórdios de sua existência, esse homem é escravo. De quê? Da

1 Na carta a M. de Franquières datada de 15 de janeiro de 1769, Rousseau escreveu:

“Neste último caso está o homem selvagem e sem cultura, que não fez ainda nenhum uso de sua razão; que, governado somente por seus apetites, não tem necessidade de outro guia e que, seguindo apenas o instinto da natureza, anda por movimentos sempre corretos.” (Rousseau, 1999, p. 1.137)

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natureza2, o que, para Rousseau, não é algo mau em si mesmo, pois constitui uma condição análoga à dos outros animais, que se dá na imediatez das relações com o mundo. Vagando em solidão pelos bosques, independente do auxílio de seus semelhantes para sobreviver, o selvagem deseja somente o que pode alcançar de acordo com os limites físicos de sua capacidade de agir, não havendo, então, conflito entre querer e poder, pois as necessidades são proporcionais aos meios de satisfazê-las3. O amor-de-si, que é a paixão fundamental, apenas leva o homem a buscar sua autoconservação, de acordo com o impulso natural que orienta a todos os seres vivos. Esse homem está bem adaptado ao ambiente em que vive, e isto em virtude de uma “providência muito sábia” que dosou o desenvolvimento das potencialidades humanas para que elas não se tornassem inúteis por serem extemporâneas. O homem, diz Rousseau, “encontrava unicamente no instinto todo o necessário para viver no estado de natureza; numa razão cultivada só encontra aquilo de que necessita para viver em sociedade.” (Rousseau, 2003, p. 152) (grifos meus)4

2 De acordo com Anne M. Cohler, “Rousseau está (...) em posição de argumentar que

esses homens estavam perfeitamente contentes no estado de natureza. Se provavelmente eles não podiam desenvolver suas possibilidades de mudança e perfectibilidade na linguagem, então eles eram perfeitamente contentes porque não podiam conceber uma vida diferente. (...) como os animais, eles são complemente sujeitos à natureza.” (Cohler, 1970, p. 109)

3 Eis, na verdade, uma escravidão de um tipo bastante singular. No Contrato Social, o autor escreve que “toda ação livre tem duas causas que concorrem para a sua produção: uma moral, que é a vontade que determina o ato, e outra física, que é o poder que a executa.” (Rousseau, 2003, p. 395) O homem selvagem certamente tem em si, como se verá a seguir, o potencial para emancipar-se da escravidão do instinto, mas, se não o faz por um longo período, é porque tanto a sua vontade quanto o seu poder ainda não o levam para longe daquilo que a natureza dispõe.

4 A esse respeito, há um trecho do Segundo Discurso que apresenta algumas dificuldades de compreensão. De acordo com ele, os homens viviam originalmente dispersos nas florestas, onde observavam e imitavam o comportamento dos animais, elevando-se até o instinto deles. Por não possuírem talvez um instinto que lhes pertencesse, esses homens apropriavam-se de todos os instintos dos outros animais, podendo assim nutrir-se da maioria dos vários alimentos que eles dividiam entre si (Rousseau, 2003, p. 135). Ora, como se pode entender essas palavras? Segundo Anne M. Cohler, “Rousseau torna claro nesta passagem que os homens são animais no estado de natureza porque eles imitam os animais ao seu redor, não porque eles

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Esta oposição entre natureza/instinto de um lado, e sociedade/razão de outro, conduz ao segundo ponto da discussão. A liberdade, que consiste em dar uma lei a si mesmo, ou, em outras palavras, na criação de padrões de comportamento para si (Cohler, 1970), exige uma certa capacidade de reflexão ao se fazer escolhas. No estado de natureza, como o homem realiza escolhas? No que concerne aos animais, pode-se conceber que suas escolhas ocorrem por meio do “aparelhamento” que lhe é dado pela natureza. Um leão diante de uma manada de antílopes é capaz de optar por uma presa, em meio a dezenas ou até centenas de outras possíveis, de acordo com seus instintos de caçador, e não por algum tipo de raciocínio. Semelhante é o caso do homem selvagem, cujas decisões são configuradas dentro dos horizontes de seus instintos5, os quais, de acordo com Rousseau, levam-no a sobreviver nutrindo-se das abundantes produções da terra. Se não fosse assim, se ele usasse alguma reflexão para agir, ainda se poderia referir a ele como “homem natural”, uma vez que o Segundo Discurso

são impelidos a procurar por um tipo particular de alimento por instinto. Portanto, pode ser dito dos homens que eles têm uma organização superior porque possuem menos instintos do que os outros animais, e, por conseguinte, uma capacidade de mudar para se ajustar a novos ambientes.” (Cohler, 1970, p. 97) Ter menos instintos, porém, não é a mesma coisa que não ter nenhum, e Rousseau também deixa claro, repetidas vezes ao longo do Segundo Discurso e em outros escritos, que o instinto servia de guia para os homens selvagens. No tocante aos hábitos alimentares, por exemplo, o autor fornece evidências – nas notas V, VIII e XII anexadas ao texto – de que o homem se classifica entre as espécies frugívoras dentro do sistema geral da natureza, o que também é declarado na segunda parte do Discurso, na qual se lê: “as produções da terra forneciam-lhe [ao homem] todos os socorros necessários, o instinto levou-o a utilizar-se deles” (Rousseau, 2003, p. 164). Logo, os homens possuíam instintos próprios que os orientavam na busca da subsistência.

5 Mesmo a piedade presente no espírito do homem natural, esse sentimento despertado pela contemplação da dor alheia, é descrita por Rousseau como um “movimento puro da natureza, anterior a qualquer reflexão”, e “tão natural que as próprias bestas às vezes dão dela alguns sinais perceptíveis”. (Rousseau, 2003, p. 154-155)

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descreve a atividade da reflexão como um elemento não inerente ao homem no estado de natureza?6 No entanto, não se pode negar que Rousseau diferencia o homem dos outros animais pela qualidade de agente livre que este adquire. Somente ele é capaz de se afastar da regra que o instinto lhe prescreve, mesmo para seu próprio prejuízo:

A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica. (Rousseau, 2003, p. 141-142) (grifos meus)

Ora, a causa dessa distinção essencial ao homem, ainda segundo Rousseau, é o dom da perfectibilidade, que permite o desenvolvimento das capacidades intelectuais humanas para muito além de sua condição original. Gradativamente, confrontando-se com os obstáculos colocados pelas mais diversas circunstâncias diante da satisfação de suas necessidades, o homem aprende a contorná-los de muitas formas diferentes, e esse é o caminho que, “fazendo com que através dos séculos desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza.” (Rousseau, 2003, p. 142) Nesse sentido, quando diz que o homem se reconhece livre para aceitar ou negar os comandos da natureza, ou seja, que ele tem consciência dessa liberdade, Rousseau não está falando de um ser que já se distanciou muito do homem natural7 e que alcançou um estágio em pode realizar atos puramente espirituais? Na Carta a Christophe de Beaumont, ao retomar suas idéias sobre o homem selvagem, Rousseau declara que

6 “Se ela [a natureza] nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar que o estado de

reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado”. (Rousseau, 2003, p. 138)

7 Como o Segundo Discurso afirma claramente, apenas o estado primitivo do homem é o verdadeiro estado de natureza (Rousseau, 2003, p. 219).

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a consciência só se desenvolve e age em conjunto com as luzes do homem. É só graças a essas luzes que ele atinge um conhecimento da ordem, e é só quando a conhece que sua consciência leva-o a amá-la. A consciência, portanto, é nula no homem que ainda nada comparou e que não viu suas relações. Nesse estágio, o homem conhece apenas a si mesmo; não vê seu bem-estar como estando em oposição ou em conformidade ao de mais ninguém; ele não odeia nem ama nada; limitado unicamente ao instinto físico, ele é nulo, é estúpido – é isso o que eu fiz ver em meu Discurso sobre a desigualdade. (Rousseau, 1999, p. 936)8

Dada essa explicação do próprio autor, é difícil concordar com Robert Wokler (1996) quando ele afirma que a consciência da liberdade teria sido atribuída por Rousseau já ao homem selvagem. Se a consciência anda lado a lado com a capacidade de reflexão (“as luzes”), que no Emílio é definida como o poder de julgar, de comparar e de estabelecer relações entre os objetos percebidos pelos sentidos (Rousseau, 1999, p. 571), como se pode dizer que o selvagem, “que ainda nada comparou e que não viu suas relações”, seria dotado de qualquer consciência de sua liberdade? Wokler também diz que, de acordo com Rousseau, “nossos ancestrais” não eram limitados pelos instintos, os quais controlavam apenas as outras criaturas, visto que os homens sempre teriam sido capazes de satisfazer suas necessidades naturais de vários modos. Todavia, se o comportamento humano nunca esteve limitado ao instinto, como se deve entender o argumento seguinte de Wokler, segundo o qual Rousseau pensava que os humanos em seu estado natural eram capazes de tornar-se distintos dos outros animais, ao invés de serem dotados com quaisquer atributos específicos ou distintivos desde o início? Dizer que esses homens modificaram-se, afastando-se do tipo de ação meramente instintiva, não é reconhecer, de maneira implícita, que eles foram outrora caracterizados exatamente por essa forma de agir?9 A resposta é dada indiretamente pelo próprio

8 Note-se que o termo francês usado por Rousseau para falar do homem selvagem é

bête (traduzido acima como “estúpido”), o mesmo utilizado no Segundo Discurso como sinônimo de animal.

9 Ver o Segundo Discurso: “Os únicos bens que [o homem selvagem] conhece no universo são a alimentação, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme, a dor e a forme. Digo a dor e não a morte, pois jamais o animal saberá o que é morrer, sendo o conhecimento da morte e de seus terrores uma das primeiras aquisições

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Wokler, pois ele admite afinal que a conclusão de Rousseau sobre a liberdade e a perfectibilidade era a de que elas constituíam, no homem selvagem, atributos “rudimentares” e “latentes”10 por meio dos quais, com o passar do tempo, fez-se possível a evolução histórica da raça humana. Esta é, também, a opinião de Jean Starobinski, para quem o homem natural é “um ser quase puramente sensitivo que se distingue do autômato e do animal por suas faculdades virtuais e por uma liberdade ainda sem uso” (Starobinski, 1991, p. 297); em outras palavras, que não se distingue de fato – embora não para sempre –, pois o que o singulariza consiste justamente no modo como ele agirá, e não no modo como age11. Sem dúvida, os passos com os quais os homens percorreram o caminho rumo à racionalidade foram muitos e nem sempre se deram em linha reta. Como Rousseau faz questão de ressaltar, coube a uma série de circunstâncias acidentais fazer com que a humanidade se afastasse das limitações da natureza12. Sem elas, talvez jamais surgissem

feitas pelo homem ao distanciar-se da condição animal.” (Rousseau, 2003, p. 143) (grifos meus)

10 Ver o Segundo Discurso, onde Rousseau considera ter mostrado que a perfectibilidade, as virtudes sociais e as outras faculdades que o homem natural recebera em potencial jamais poderiam desenvolver-se por si próprias (Rousseau, 2003, p. 162), e também onde, ao cogitar a hipótese de que certos animais descritos pelos viajantes fossem verdadeiros homens selvagens, o autor diz que tais homens não haviam encontrado “ocasião de desenvolver qualquer de suas faculdades virtuais, não adquirindo nenhum grau de perfeição e encontrando-se ainda no estado primitivo de natureza.” (Rousseau, 2003, p. 208) (grifos meus)

11 Como Luca Alici enfatiza, o surgimento da consciência e da razão é um fato fundamental na plena realização das potencialidades especificamente humanas: “O dualismo antropológico (‘razão’ e ‘consciência’ como expressão do componente ‘metafísico e moral’ e das ‘paixões’ como manifestações do componente físico-material) faz com que a saída do estado de natureza se configure prioritariamente como um cômputo moral. Afirma-se, portanto, um tipo de círculo virtuoso pelo qual a ‘razão e a ‘consciência’ permitem e fundam a passagem ao ‘homem moral’ e a um estado político bem ordenado; a sociedade bem ordenada, por sua vez, faz com que ‘o indivíduo seja posto em condições institucionais tais que favorecem o desenvolvimento e a expressão de sua propriedade distintiva’.” (Alici, 2003)

12 Essas circunstâncias incluem, por exemplo, inundações, terremotos, incêndios e eventos semelhantes que forçaram os homens a desenvolverem novas habilidades e a se aproximarem uns dos outros.

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famílias, nações, sociedades ou Estados. Igualmente, sem elas talvez os homens nunca teriam começado a exercer as faculdades virtuais que lhes permitiram estabelecer as primeiras comparações e os primeiros juízos13. Antes de ter uma consciência plena de que agiam sem se guiar mais pelo puro instinto, os indivíduos já tomavam assim suas primeiras decisões usando de capacidades intelectuais que se expandiam na medida mesma em que se faziam necessárias para vencer os novos desafios colocados à sobrevivência, capacidades nascidas daquela elementar “prudência maquinal”14 das eras antigas relatadas por Rousseau. Quanto a isso, a discussão de Andrzej Rapaczynski acrescenta novos elementos. Para o autor, a concepção rousseauniana de natureza derivava-se de uma visão de mundo implicada no sistema da ciência moderna mecanicista. Coerente com ela, Rousseau retratou os animais como “máquinas” dotadas com os sentidos necessários para interagir com o ambiente, e polemizou com Hobbes, Locke e os demais teóricos do jusnaturalismo a respeito do verdadeiro significado da condição humana no estado de natureza. Assim, no Segundo Discurso, Rousseau teria deixado claro que não se poderia falar de um homem natural a não ser que se fizesse uma separação realista entre os aspectos animalísticos

13 “Rousseau (...) descreve a causa primária da mudança, as paixões. As paixões são

criadas pelas necessidades e não podem crescer a menos que os homens criem necessidades para além daquelas supridas pela natureza para os homens como eles são no estado de natureza. A menos que alguma força externa crie necessidades para além das necessidades corporais facilmente satisfeitas dos homens no estado de natureza, a história do homem não pode começar.” (Cohler, 1970, p. 106)

14 A respeito dessa “prudência maquinal”, que é o primeiro “tipo de reflexão” de que o homem foi capaz, Cohler diz que ela é mais do que a habilidade de se ajustar às regularidades da natureza, tal como o selvagem fazia anteriormente, pois ela requer que ele desenvolva uma consciência rudimentar de seu meio-ambiente e de suas possibilidades. Na medida em que essa prudência aumenta, o homem passa a comparar a si mesmo com os animais, vendo-se então como diferente deles. Assim, “o primeiro ato de um homem que não era um animal produziu a consciência de que ele não era um animal.” (Cohler, 1970, p. 116) A partir de um argumento semelhante, Andrzej Rapaczynski chegou a afirmar que “a característica crucial do homem pós-natural, que realmente o retira do estado de natureza e explica todos os aspectos de sua constituição que escapam ao alcance de uma descrição mecanicista, é sua capacidade de reflexão.” (Rapaczynski, 1989, p. 231)

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da vida humana, por um lado, e a capacidade para a liberdade que pertence especificamente ao homem, por outro, consistindo esta última, como foi afirmado acima, numa qualidade espiritual que seria irredutível a qualquer explicação pelas leis da mecânica. A partir disto, Rapaczynski propõe que Rousseau acreditava na viabilidade de se contemplar certas características da constituição do homem como indistinguíveis daquelas de uma máquina viva15. Dentro da história hipotética traçada por Rousseau para expor as origens da desigualdade, cria-se então a possibilidade de

vislumbrar um homem que (...) faz pouco ou nenhum uso de sua liberdade. Nós podemos considerar a liberdade como meramente virtual e não real no selvagem; como meramente “a perfectibilidade”, que ainda não se desenvolveu em qualquer grau significante. (...) As ações do homem no estado de natureza serão vistas como respostas passivas ao estímulo externo, e o “amor-de-si”, ou o desejo de autopreservação, será a qualidade dominante da motivação humana. (Rapaczynski, 1989, p. 225)16

15 Ver Goldschmidt (1983, p. 293 e ss.), cuja leitura do Segundo Discurso leva à

mesma conclusão. 16 Para Cohler, “Tanto a liberdade quanto a perfectibilidade implicam a capacidade

dos homens de criar padrões para si mesmos diferentemente da autopreservação animal, em suma, de considerar a si mesmos ao invés de simplesmente preservar a si mesmos. (...) O problema reside em estabelecer que esta capacidade não funcionava no estado de natureza. Muito embora os homens tenham sido mostrados capazes de sobreviver com base em suas características físicas no estado de natureza, Rousseau precisa mostrar então que as circunstâncias do estado de natureza não levam ao uso da característica peculiarmente humana. A demonstração tem duas partes. Na primeira parte, Rousseau tenta mostrar que circunstâncias externas são exigidas para colocar essa capacidade em operação e que nenhuma delas existia no estado de natureza. Circunstâncias externas são exigidas para produzir a capacidade dos homens de criar, e agir com base em seus próprios padrões. Se os homens naturais pudessem gerar a capacidade a partir de si mesmos, então o estado de natureza não existiria; os homens seriam sempre homens tais como eles são agora. (...) Na segunda parte, Rousseau tenta mostrar que as outras características sociais dos homens não são aptas a se desenvolver sem que os homens usem essa capacidade. Tanto a linguagem quanto a família, as mais elementares instituições sociais, exigem que os homens usem sua capacidade de criar e agir com base em padrões, e elas não existem no estado de natureza.” (Cohler, 1970, p. 105)

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Tal homem vive num estágio que Rapaczynski chama de “pré-histórico”, na medida em que ele é moldado pelo curso natural dos eventos e não tem nenhuma responsabilidade por seu próprio destino17. Porém, quando as circunstâncias naturais colocam em risco sua sobrevivência, graças ao aumento populacional e a modificações no ambiente, o ser humano, diferentemente dos outros animais, possui na perfectibilidade um recurso extra a seu favor; ela, que estava adormecida, é despertada e assume as funções outrora preenchidas pelo instinto. Os novos princípios que passam a guiar o comportamento dos homens devem-se, então, não mais à natureza, mas a uma faculdade puramente espiritual e não-natural de reflexão. É a partir desse momento que a “máquina humana” incorpora aquilo que a distingue da “máquina animal”, ou seja, a qualidade de agente livre. Assim, conclui Rapaczynski,

para dar uma descrição adicional da ação humana, incluindo uma descrição das relações interpessoais e dos fenômenos sociais e políticos, nós devemos encontrar outro método de análise, uma nova ciência, diferente da ciência natural mecanicista e capaz de fazer justiça ao assunto em questão. A transição entre o estado de natureza e o estado civilizado não é meramente

17 De acordo com Wokler, a diferenciação entre natureza e cultura é uma marca

essencial do Segundo Discurso, fazendo dele um texto importantíssimo no interior da reflexão antropológica do século XVIII. Para Rousseau, “por natureza, nós somos na verdade muito semelhantes aos animais – mais flexíveis, mais maleáveis, sem dúvida, e singularmente capazes de mudança – mas, no fundo, movidos pelos mesmos impulsos de amour de soi e pitié. Segue-se, portanto, que o grande abismo entre nós e o resto da criação animal (...) simplesmente não existe. Não havia, para Rousseau, nenhuma ruptura na scala naturae, nenhum degrau faltando escala da natureza. A partir dessas afirmações, que efetivamente animalizam a natureza humana (ou ao menos fazem a ponte sobre o abismo entre nossa espécie e a dos grandes primatas), ele concluiu que a criatura comumente chamada de orangotango, que significa ‘homem das florestas’ em malaio, poderia na verdade ser um progenitor da humanidade.” (Wokler, 1995, p. 43) Rousseau teria sido tão bem sucedido em seu esforço para abstrair aquilo que é natural no homem das características que surgem da existência social, diz Wokler, que sua história conjetural da raça humana tornou-se – ainda que inadvertidamente – uma excelente obra de “primatologia empírica”, pois seu retrato do homem natural como um ser solitário, frutívoro, indolente e itinerante concorda muito bem com a descrição dos orangotangos existentes no sudeste da Ásia.

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uma ruptura entre o indivíduo e a sociedade, ou entre o homem pré-social e o social; ela é, na verdade, uma ruptura entre dois tipos heterogêneos de entidades e dois tipos correspondentemente heterogêneos de análise. (Rapaczynski, 1989, p. 234-235)

Conseqüentemente, há uma diferença de suma importância a ser considerada: os outros animais não têm como ultrapassar suas limitações, mas o homem sim, graças à perfectibilidade. Caso ele pudesse permanecer selvagem para sempre, sua sujeição ao instinto lhe bastaria18. Ele persistiria sem entendimento, razão ou liberdade; seria, por tanto tempo quanto andasse sobre a terra, uma criatura “subumana” (Strauss, 1986, p. 234)19. Entretanto, ele é impulsionado por fatores externos e por sua particularidade essencial a abandonar esse estado, deixando sua solidão para conviver com seus semelhantes20. Logo, ele pode elevar-se até a liberdade, que incorpora a razão e a moralidade, e é o ponto mais alto de seu progresso espiritual,

18 “A perfectibilidade, no estado de natureza, não encontra, portanto, nenhuma causa

natural que possa colocá-la em marcha e levá-la a substituir o instinto. – Vê-se, enfim, o quanto a perfectibilidade se opõe à sociabilidade. Ela só se desenvolve ‘com a ajuda das circunstâncias’ (ao invés de agir à maneira de uma causa interna); ela mantém o isolamento (ao invés de trabalhar para uma aproximação); ela deixa os homens no nível do instinto” (Goldschmidt, 1983, p. 306).

19 Descrevendo as condições praticamente imutáveis nas quais, durante eras sucessivas, o homem selvagem viveu, Rousseau sintetiza dessa forma suas características: “Então não havia nem educação, nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a espécie já era velha e o homem continuava sempre criança.” (Rousseau, 2003, p. 160) Compare-se esta descrição com aquela referente ao animal, que, “ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares.” (Rousseau, 2003, p. 142)

20 Ver o fragmento intitulado A influência dos climas sobre a civilização: “Se toda a terra fosse igualmente fértil, talvez os homens jamais tivessem se aproximado. Mas a necessidade, mãe da indústria, forçou-os a se tornar úteis uns aos outros, para sê-lo a si mesmos. É por estas comunicações, de início forçadas, depois voluntárias, que seus espíritos desenvolveram-se, que eles adquiriram talentos, paixões, vícios, virtudes, luzes, que se tornaram tudo o que podem ser no bem e no mal. O homem isolado permanece sempre o mesmo; ele só faz progresso em sociedade.” (Rousseau, 2003, p. 533)

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confirmando o potencial que lhe foi dado pelo Criador21. Na medida em que chega a tomar suas próprias decisões, “tudo o que faz livremente não entra no sistema ordenado da Providência e a esta não pode ser imputado” (Rousseau, 1999, p. 587), visto que é um desvio deliberado quanto ao que prescreve a ordem natural. Tal desvio possibilita que os homens construam sua própria história, cujos desdobramentos são de sua inteira responsabilidade. A moralidade, é evidente, resulta de um longo processo de aprimoramento a fim de que as pessoas compreendam que a voz divina chamou todo o gênero humano às luzes e à felicidade das inteligências celestes, como diz o Segundo Discurso. Portanto, o homem só assume verdadeiramente a condição de senhor de si mesmo afastando-se de sua natureza puramente animal22, quando realiza a completude de suas faculdades específicas e adquire uma (auto)consciência mais ampla de seu lugar no universo. É esse o significado da exortação que o preceptor de Emílio faz-lhe com tanta veemência:

O que é, portanto, o homem virtuoso? É aquele que sabe vencer suas afeições; pois então ele segue sua razão, sua consciência; ele cumpre seu dever, ele se mantém em ordem, e nada pode afastá-lo dela. Até aqui tu só eras livre em aparência; tu só possuías a liberdade precária de um escravo a quem não se ordenou nada. Agora, sejas livre de fato; aprende a tornar-te teu próprio mestre; comanda a teu coração, ó Emílio, e tu serás virtuoso. (Rousseau, 1999, p. 818)

21 Em sua Carta sobre a virtude, o indivíduo e a sociedade, Rousseau escreve que “uma

vantagem infinitamente superior a todos os bens físicos, e uma das quais nós inegavelmente compartilhamos devido à harmonia da raça humana, é a de atingir, por meio da comunicação de idéias e do progresso da razão, as regiões intelectuais, de adquirir as sublimes noções de ordem, sabedoria e bondade moral, de nutrir nossos sentimentos com os frutos de nosso conhecimento, de elevarmos a nós mesmos, por meio da grandeza de nossas almas, acima da fraqueza de nossa natureza, e de igualar, em certos aspectos, por meio da arte do raciocínio, as inteligências celestes; até finalmente, combatendo e vencendo nossas paixões, ganharmos o poder de dominar o homem e imitar a própria Divindade.” (Rousseau, 2003a, p. 32)

22 Ver o Emílio: “Então, para impedir o homem de ser mau fora preciso limitá-lo ao instinto e fazê-lo estúpido? Não, Deus de minha alma, nunca te censurarei tê-la feito à tua imagem, a fim de que eu possa ser livre, bom e feliz como tu.” (Rousseau, 1999, p. 587)

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A oposição jurídica: liberdade natural versus liberdade civil Considerando tudo isso, não seria mais correto afirmar que no estado de natureza vê-se somente independência, enquanto que apenas no estado social manifesta-se – ou pode manifestar-se – a liberdade?23 É o que o próprio Rousseau parece sugerir no Contrato Social (livro II, capítulo IV), ao defender que a realização do pacto fundador da sociedade leva a uma troca vantajosa da “independência natural pela liberdade”. Esse argumento em prol dos benefícios da associação civil retoma, com novos termos, o primeiro “balanço” feito pelo autor (livro I, capítulo VIII) da “notável mudança” que se opera no homem quando da passagem para o estado social. Rousseau diz que tal mudança conduziria à aquisição de uma nova existência, não mais puramente natural, mas civil e moral. Graças a ela, a justiça substituiria o instinto, a voz do dever tomaria o lugar do impulso físico, e o direito, o lugar do apetite. Ocorreria uma verdadeira transformação intelectual e ética, na qual a razão e os sentimentos se desenvolveriam de maneira considerável, fazendo de um animal estúpido e limitado um ser inteligente e um homem. Nesse novo modo de vida, em que a conquista da liberdade moral torna o homem “verdadeiramente senhor de si mesmo” e o autor da regra que guia suas ações, é de crucial importância impedir a subordinação de um – ou de muitos – ao arbítrio de uma vontade particular no tocante a um ponto básico, isto é, a autoconservação24. Quando Rousseau assevera que o contrato social deve gerar uma forma de associação que permita a seus membros permanecer tão livres quanto antes de entrar nela25, isto significa que

23 Sobre essa diferenciação, ver também Derathé (1948, p. 112 e seguintes). 24 Ver o Contrato Social, livro I, capítulo II: “Essa liberdade comum é uma

conseqüência da natureza do homem. Sua primeira lei consiste em zelar pela própria conservação, seus primeiros cuidados são aqueles que deve a si mesmo, e, assim que alcança a idade da razão, sendo o único juiz dos meios adequados para conservar-se, torna-se, por isso, senhor de si.” (Rousseau, 2003, p. 352)

25 Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VI. Isto faz lembrar o princípio do Contrato Social, onde se afirma que “o homem nasce livre”. O que significa tal declaração? Como esclarece Christopher Bertram, Rousseau expressa dessa forma uma idéia já presente tanto em Hobbes quanto em Locke, a de que a condição natural do homem é de não-subordinação: “Nós nascemos livres e iguais no sentido de que nenhuma pessoa tem por natureza o direito de comandar qualquer outra pessoa nem

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eles se manterão protegidos de toda dependência pessoal enquanto obedecerem à vontade geral, que é a vontade deles mesmos26. É assim, conclui Robert Derathé, que o homem “encontrará, sob a forma da liberdade civil, o equivalente de sua independência natural” (Derathé, 1979, p. 151). Não obstante todos esses argumentos serem válidos e convincentes, o quadro permaneceria incompleto se fosse deixado de lado o fato de que Rousseau realmente se refere a uma liberdade natural no contexto do balanço mencionado acima, como sendo algo que os homens perdem ao se associarem politicamente. Porém, o uso do termo liberdade remetendo a situações diversas – antes e depois do pacto social –, não refuta a tese desenvolvida até aqui, nem constitui uma contradição no pensamento do autor. É indispensável perceber que a expressão “liberdade natural” não é um simples sinônimo de “liberdade do homem natural”, por mais que se pareça estar frente a coisas iguais. Para distingui-las corretamente, tem de se levar em consideração certas diferenças entre o Discurso sobre a origem da desigualdade e o Contrato Social. No primeiro, o objetivo é reconstruir a história hipotética da gênese da sociedade tendo o homem selvagem como ponto de partida, e ao desempenhar essa tarefa Rousseau acaba narrando também as origens da liberdade como algo oposto ao impulso do instinto natural, como uma qualidade metafísica. No segundo, a intenção é analisar os princípios do direito político, e nessa discussão inclui-se o conceito de uma liberdade chamada de natural porque tem “por limites apenas as forças do indivíduo” (Rousseau, 2003, p. 365)27. Esta liberdade é oposta a qualquer liberdade “artificial” criada pelos homens, uma vez que, para Rousseau, o que há naturalmente é o indivíduo dotado de uma “existência física e independente”, “que por si mesmo é um todo perfeito e solitário” (Rousseau, 2003, p. 381)28. Por outro lado, a sociedade civil, na qual cada pessoa é “parte de um todo maior”, só se

o dever de submeter-se aos comandos de outra. Não há nenhuma hierarquia natural na espécie humana, nenhum macho-alfa que o restante de nós tem de suportar como o único encarregado.” (Bertram, 2004, p. 43)

26 Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VII. 27 Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VIII. 28 Ver o Contrato Social, livro II, capítulo VII.

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estabelece por meio de uma convenção e deve levar à desnaturação do homem para ser bem sucedida29. Deste modo, juridicamente falando, a liberdade natural é aquela de que os indivíduos desfrutam ao viverem fora de qualquer associação política. Mantendo isto em mente, compreende-se por que Rousseau afirma que os membros do corpo político têm o direito de retomar sua liberdade natural caso o pacto social seja violado30, embora isto não signifique, de forma alguma, que eles estariam retornando ao estado de natureza original descrito no Segundo Discurso: aqueles que já fizeram parte de uma sociedade não podem mais voltar a viver como os homens selvagens31. A liberdade natural encontra-se onde o pacto social ainda não existe ou já deixou de existir. Conseqüentemente, o homem natural só é livre se encarado de uma perspectiva jurídica – e não metafísica –, como caso hipotético extremo de um ser aquém de qualquer laço social. Nas duas únicas vezes que a expressão liberdade natural aparece no Segundo Discurso32, ela é usada na esfera de problemas concernentes ao direito, demonstrando que faz sentido apenas depois que a instituição do Estado é posta em cena, quando pode ser pensada em oposição à liberdade civil. De um ponto de vista metafísico, a liberdade só pode

29 Ver o Contrato Social, livro II, capítulo VII: “É preciso, em uma palavra, que ele [o

legislador] destitua o homem de suas forças próprias para lhe dar outras que lhe sejam estranhas e das quais ele não possa fazer uso sem o auxílio de outrem. Quanto mais essas forças naturais são mortas e aniquiladas, mais as adquiridas são grandes e duráveis, mais, também, a instituição é sólida e perfeita” (Rousseau, 2003, p. 381-382)

30 Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VI: “o pacto social sendo violado, cada um retorna, então, a seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual renunciara àquela” (Rousseau, 2003, p. 360); e também o livro III, capítulo X: “De modo que no instante em que o governo usurpa a soberania, o pacto social é rompido, e todos os simples cidadãos, repostos de direito em sua liberdade natural, são forçados, mas não obrigados, a obedecer.” (Rousseau, 2003, p. 422-423)

31 No final do Segundo Discurso, Rousseau fala de um novo estado de natureza que surge quando a desigualdade atinge o seu extremo e o despotismo se eleva sobre as ruínas da república. Todavia, esse novo estado é diferente do primeiro, porque é “o fruto de um excesso de corrupção” (Rousseau, 2003, p. 191)

32 Ver Rousseau (2003, p. 178 e 185).

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existir com o abandono do estágio primitivo da existência humana, e isto não é imediatamente seguido pela realização do pacto instituidor do corpo político. Entre um e o outro, existe uma fase de transição, vale lembrar, na qual aparecem muitos elementos sem os quais a transformação dos indivíduos em cidadãos seria impossível: as primeiras relações sociais (famílias, nações), a linguagem, os diferentes modos de subsistência e a propriedade são os principais. Tudo isto não surge instantaneamente; cada coisa demanda um considerável lapso de tempo, tal como Rousseau relata no Segundo Discurso33. Configura-se um período intermediário, portanto, em que não se está mais submetido unicamente às leis da natureza (instintos), mas ainda não se obedece às leis civis. Nele, os homens guiam-se de acordo com suas vontades particulares; usufruem de uma liberdade precária, que “tem por limites apenas as forças do indivíduo”, e que, dessa maneira, é sustentada somente por essas mesmas forças, o que deixa cada pessoa sempre sob o risco de ser subjugada pela força maior de outrem. No Contrato Social esse processo é apenas presumido, pois não se trata de descrever todos os seus passos novamente, mas de refletir sobre quais seriam os princípios jurídicos e os resultados políticos de um tipo específico de pacto social. Conforme Rousseau, chega um ponto em que os homens são obrigados a unir forças para garantir sua conservação34, e nesse momento a liberdade natural – a dos indivíduos fora do corpo político, vivendo cada um por si – não pode mais ser mantida. No contexto do Segundo Discurso, ela foi substituída pela escravidão oculta no pacto proposto pelos ricos35; no modelo do

33 “Descobrindo e seguindo assim as rotas esquecidas e perdidas que do estado natural

devem levar o homem ao estado civil, restabelecendo, com as posições intermediárias que eu acabo de assinalar, as que o tempo que me apressa me fez suprimir, ou que a imaginação não me sugeriu; todo leitor atento só poderá ser impressionado pelo espaço imenso que separa esses dois estados. É nessa lenta sucessão das coisas que ele verá a solução de uma infinidade de problemas de moral e de política que os filósofos não podem resolver.” (Rousseau, 2003, 191-192)

34 Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VI. 35 “Tal foi, ou deveu ser, a origem da sociedade e das leis, que deram novos obstáculos

ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma sagaz usurpação um direito irrevogável, e para o benefício de alguns ambiciosos sujeitaram

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s sob uma rspec

Contrato Social, ela é trocada pela liberdade civil, alicerce de toda república justa. Considerações finais Enfim, o fato de ser independente da vontade de outrem, como no estado de natureza, não basta para caracterizar toda a amplitude de sentido que a palavra liberdade carrega no pensamento rousseauniano36. Se bastasse, até mesmo o leão do exemplo citado acima seria livre, pois ele pode assegurar sua sobrevivência sem se submeter à vontade de outro indivíduo de sua espécie, exercendo assim, com independência, o objetivo natural da autoconservação. Qualquer animal não gregário teria de ser considerado como dotado de liberdade, e este atributo deixaria de ser uma exclusividade humana. É por esse motivo que, para definir plenamente a liberdade, é preciso que se inclua igualmente a escolha moral. Em sua crítica à escravidão, Rousseau usa o argumento de que “renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem”, de que “destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ações.” (Rousseau, 2003, p. 356)37 Logo, ser escravo não consiste tão só em se tornar extremamente dependente de outra pessoa, mas também, e sobretudo, em perder o estatuto de agente responsável por suas açõepe tiva ética.

daí por diante todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria.” (Rousseau, 2003, p. 178)

36 Por esse motivo, deve-se ver com cuidado as ocasiões em que Rousseau usa a palavra liberdade para se referir ao homem selvagem. Um exemplo encontra-se nas últimas páginas do Segundo Discurso, onde se lê que o homem selvagem “só almeja o repouso e a liberdade” (Rousseau, 2003, p. 192). De modo semelhante ao que ocorre em outros momentos, Rousseau está utilizando uma palavra também em seu sentido mais amplo e corriqueiro – livre como sinônimo de independente e auto-suficiente –, ao invés de empregá-la somente na acepção particular de seu sistema conceitual – o agente livre é o que obedece à lei que estatui para si mesmo. É preciso, pois, seguir o conselho dado por Rousseau no Contrato Social, e saber distinguir quando um termo é empregado com inteira precisão, e quando ele é confundido com outro com o qual possui alguma proximidade em um nível mais usual de significação.

37 Contrato Social, livro I, capítulo IV.

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onsciência da superioridade que a liberdade possui em relação à mera

indepen

acima das leis: no próprio estado de natureza, o homem

do simples direito natural à conservação, que decorre de um instinto que o homem partilha com os brutos38. Para uma correta compreensão

Se Rousseau chega a dizer, no Emílio, que se é mais livre no pacto social do que no estado de natureza, é porque ele tinha plenac

dência. Na oitava das Cartas escritas da montanha, ele escreveu:

É inútil querer confundir a independência e a liberdade. Essas duas coisas são tão diferentes que elas próprias se excluem mutuamente. Quando cada um faz o que bem quer, faz-se freqüentemente o que desagrada aos outros; e isto não se chama um Estado livre. (...) Assim, a liberdade sem a justiça é uma verdadeira contradição (...). Não há, portanto, liberdade sem leis, nem onde alguém esteja só é livre de acordo com a lei natural que comanda a todos. (Rousseau, 2003, p. 841-842)

Vivendo em sociedade, os indivíduos têm a dificílima tarefa de harmonizar suas existências outrora independentes em uma ordem política legítima, a fim de que a justiça prevaleça sobre o arbítrio individual e instaure a liberdade civil garantida pelas leis que eles elaboram para si mesmos, em um processo no qual cada um tem o direito e o dever de participar. Em contrapartida, a despeito da afirmação final de Rousseau, no estado de natureza os homens não podem ser considerados livres da mesma forma como o são na qualidade de cidadãos de uma república, pois a lei natural não lhes foi prescrita por eles próprios, é uma imposição que se dá pela força das coisas e que eles seguem inconscientemente. Leo Strauss salienta bem o fato de que o estado de natureza rousseauniano é o “reino dos apetites cegos” e, portanto, da “escravidão no sentido moral do termo”. Desse ponto de vista, Rousseau não podia acreditar que a liberdade derivasse

No estado de natureza, o homem compartilha com os animais um tipo de pensamento básico, oriundo da combinação dos dados obtidos pelos sentidos, cuja única finalidade é a manutenção da existência física, ou autopreservação: “Uma vez que a liberdade, para Rousseau, é algo diferente desta autopreservação animal, ela implica que os homens podem criar finalidades para si mesmos; os homens, em contraste com os animais, podem escolher o padrão sobre o qual seu pensamento e sua ação serão baseados. Inevitavelmente, então, os homens não mais serão capazes de preservar sua existência física como eles faziam quando eram animais. Eles se

38

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da moralidade e da humanidade, ele tinha de relacioná-las “a um direito ou a uma liberdade radical e especificamente humana”, a “um ato criador”, isto é, à “auto-legislação” (Strauss, 1986, p. 242-243). Por todas essas razões, o paralelo feito por Rousseau entre os dois diferentes momentos nos quais todos estariam sujeitos às leis, seja da natureza, seja da sociedade, não deve levar à idéia de que são igualmente livres em ambos, pelo menos não à luz do que se está discutindo aqui. Sendo a passagem do estado de natureza à convivência social o percurso que leva de uma condição pré-humana à possibilidade da plena realização do indivíduo por meio da descoberta de sua identidade e de sua educação moral, Rousseau demonstra que a aquisição da qualidade de homem, sem a qual a liberdade não existe, requer a vida em comunidade, e não o isolamento e a auto-suficiência dos selvagens: “Aí está a originalidade da concepção rousseauniana da natureza humana (...); o homem depende da sociedade para ser o que ele é, no sentido que somente na sociedade as suas potencialidades podem ser realizadas ou violadas” (Chapman, citado por Alici, 2003). Para Rousseau, em suma, a sociedade é essencial à existência do homem em sua completude, dado que ele é verdadeiramente humano apenas em um ambiente social. Verdadeiramente humano e, deve-se acrescentar, somente então verdadeiramente apto a conquistar a liberdade. Seria correto, então, considerar simplesmente que Rousseau acreditava em uma “teleologia da libertação”? Que ele via como uma necessidade inerente ao devir o afastamento da vida selvagem em direção às manifestações sublimes da virtude cívica? Que esse processo fosse inequivocamente positivo? Lidar com essas questões é reconhecer, mais uma vez, a complexidade da reflexão rousseauniana. Antes de tudo, vale a pena lembrar que, no Segundo Discurso, o autor afirma ter demonstrado que a perfectibilidade e as outras faculdades que o homem selvagem dispunha em potência nunca poderiam ter se desenvolvido por si mesmas, e que sem a ação de um conjunto de

tornam animais depravados, de menor estatura física do que eles poderiam ter e uma vez tiveram. Quando os homens criaram tais padrões, a linguagem, por exemplo, seu pensamento seria diferente do pensamento que eles compartilhavam com os animais no estado de natureza.” (Cohler, 1970, p. 103)

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b o risco de que se perca algo de fundamental em ossa humanidade.

.philosophica.org/bfp/art/alici.html> Acesso em: 04 jul.

to Rousseau and The Social Contract. Nova Iorque: Routledge, 2004.

causas exteriores ao estado de natureza, o homem “teria permanecido eternamente em sua condição primitiva” (Rousseau, 2003, p. 162). Além disso, a perfectibilidade, como foi visto, é fonte de luzes mas também de erros, de virtudes mas também de vícios. Se é na sociedade que o homem adquire uma existência ética, é igualmente nela que ele se encontra suscetível à corrupção moral. Quando descreveu a “notável mudança” mencionada acima, Rousseau acrescentou uma nota final a essa ode ao enobrecimento humano que ecoa como um nítido sinal de alerta: cada indivíduo que ultrapassa a estreiteza da vida no estado de natureza “deveria sem cessar bendizer esse instante feliz que o arrancou dela para sempre e que, de um animal estúpido e limitado, fez um ser inteligente e um homem”, isto “se os abusos dessa nova condição não o degradassem freqüentemente abaixo daquela de onde ele saiu.” (Rousseau, 2003, p. 364)39 (grifos meus) Esta curta ressalva, que nem todos os leitores fazem questão de enfatizar, foi posta justamente aí, em meio à exposição das vantagens que se pode obter pela participação na sociedade, como um aviso de que a realização da liberdade moral não é o termo inexorável da história, e sim um empreendimento custoso e sem garantias de sucesso, mas cujo anseio não deve ser afastado de nossos horizontes son Referências ALICI, Luca. Rousseau e il repubblicanesimo. Pisa, Bollettino telematico di filosofia politica, 2003. Disponível em: <http://www2005. BERTRAM, C. Routledge philosophy guidebook

39 Contrato Social, livro I, capítulo VIII. Na leitura de Peter Gay, “embora a descrição

de Rousseau do caráter essencial do homem varie, ela permanece sempre fiel à idéia de que o homem é originalmente sem pecado, de que ele vem ao mundo como um ser livre, e de que ele é equipado com a capacidade para a decência, o espírito público, a sinceridade, a racionalidade autêntica. A história, então, é para Rousseau um comentário desanimador sobre a falha do homem em realizar suas potencialidades.” (Gay, 1996, p. 536)

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 81-98

Egoísmo contra identidades: a avaliação da moral como estética da existência e ética como amor-próprio

Jason de Lima e Silva*

Resumo: Este ensaio pretende levantar as seguintes questões: 1. de que modo é possível reconstituir o sentido de moral segundo um amor-próprio cujo conteúdo é dado menos por um isolamento ou negação do outro do que por um trabalho pessoal sobre si mesmo, em vista de um êthos, de uma ética? 2. em que medida o valor da moral hoje em dia pode ser deslocado da lei universal para uma atitude de diferença, da normalidade do comportamento para o cultivo de si e, por fim, da verdade sobre o sujeito para uma subjetivação ascética que não exige a prerrogativa de uma identidade, mas a transformação de si na relação consigo e com os outros? Tais questões são levantadas a partir de Friedrich Nietzsche, Michel Foucault e Fernando Savater. Palavras-chave: Amor-próprio, Estética da existência, Ética, Identidade Abstract: This paper intends to rise the following questions: 1. how is it possible to reconstruct the moral sense according to self-esteem whose content is given less by negation or isolation from the other than by personal work about oneself, with an eye to an êthos, of an ethics? 2. nowadays, can the value of morals be dislocated from the universal law to an attitude of difference, from the normality of behavior to oneself’s improvement and, at last, from truth about the individual to an ascetical subjectivation that does not require the prerogative of an identity, but the transformation of the self in relation to itself and to others? Such questions are raised from Friedrich Nietzsche’s, Michel Foucault’s and Fernando Savater’s. Key-words: Aesthetics of existence, Ethics, Identity, Self-esteem Se partirmos da hipótese que nosso tempo herdou uma certa suspeita em relação ao cuidado de si,1 não menos perturbador parece a defesa do egoísmo e do amor-próprio,2 sobretudo com pretensão a valores

* Doutor em Filosofia pela PUC-RS. E-mail: [email protected]. Artigo

recebido em 30.10.2008, aprovado em 10.12.2008. 1 Foucault, M. A hermenêutica do sujeito, 2004, p. 16. 2 O conceito de amor-próprio é mais antigo, da palavra philautia dos gregos (aqui é

usado com apoio na obra de Fernando Savater Ética como amor-próprio, na qual reflete sobre a duplicidade, positiva e negativa, tanto no caso do amor-próprio como

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morais. Em Plutarco, a desmedida do amor-próprio, o qual por si mesmo não seria reprovado, pode gerar um inimigo (da virtude e dos deuses) sob a aparência de amigo: o lisonjeador.3 Na história moral do cristianismo, o imperativo do “ama ao próximo como a ti mesmo” enfatizou de tal modo o próximo (no limite da renúncia: Deus) que se ocultou a primeira dificuldade de quem ama: amar a si mesmo, sem que o si mesmo esteja prontamente dado à representação de seu amante, porque é necessário fazê-lo no próprio amar o que se faz e escolhe fazer. Mas, como amar a si mesmo sem egocentrismo, amar e reconhecer a condição na qual como mortal se está no mundo, cujo sentido é sempre precário, dado que boa parte do mundo, como ensinavam os antigos, não nos pertence, não nos serve inteiramente de propriedade e de comando: a começar pelo corpo, fadado às vicissitudes de sua natureza e suas paixões? Non est tuum, fortuna quod fecit tuum.4 O imperativo de amar ao próximo, em todo caso, inflacionou de tal modo o amor que seu valor foi rebaixado, sem se livrar da dificuldade que é cultivar aquilo que é de seu próprio interesse e que, como tudo na terra, não está livre de sua contradição e angústia, de seu fracasso e de sua vitória, cujo juízo pertence unicamente a quem vive, e não sobre quem morre (como juízo final). Afinal, como bem disse Freud: “Enquanto a virtude

do egoísmo. A noção de egoísmo é mais recente, de Wolf, em seus Pensamentos racionais sobre Deus, o mundo e a alma do homem, livro no qual menciona uma “raríssima seita dos egoístas” surgida fazia pouco tempo em Paris e que professava, segundo Savater, “uma espécie de ultraberkelianismo solipsista, sustentando que só eu existo e tudo o mais faz parte de meu sonho” (Savater, F. Ética como amor-próprio, 2000, p. 40). Kant, na sua Antropologia (livro I, §2), distingue três tipos de egoístas: o lógico (para o qual sua opinião basta), o estético (que se contenta com seu gosto) e, por fim, o egoísta moral (que refere todos os fins práticos a si mesmo). Cf. Idem, ibidem. Procurarei recuperar o sentido de egoísmo na sua dimensão estética, como interpretado a partir de Nietzsche, aliado ao sentido de amor-próprio, reinterpretado na ética de Savater e próximo do sentido de moral como ética e estética da existência em Foucault.

3 Plutarco. Como distinguir o bajulador do amigo, 1997. 4 Publílio Siro: “Não é teu o que a fortuna fez teu”. Cf. Sêneca, L.A. Cartas a Lucílio,

2004. Vale também lembrar um aforismo de Nietzsche sobre o perigo da felicidade: “Agora tudo está saindo bem para mim, agora amo qualquer destino. Quem quer ser meu destino?”. Nietzsche, F. Além do bem e do mal, 103, 1992, p. 73.

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não for recompensada aqui na Terra, a ética, imagino eu, pregará em vão”.5 No fundamento da moral moderna se encontra o altruísmo como o valor da ação e a obediência ao outro (Deus, comunidade, lei...) se torna o critério para o “instinto gregário do indivíduo”, tal como genealogicamente Nietzsche revelou.6 (A oposição entre “egoísmo” e “altruísmo” já é sintoma de uma decadência dos valores aristocráticos, através dos quais o bom é afirmado e mantido de si para si e não esperado do juízo alheio, conforme a utilidade da ação). Mas antes de se deixar levar por qualquer preconceito a propósito do egoísmo ou do amor-próprio como valores morais para uma ética, é aconselhável recorrer ao velho Aristóteles, que, na sua Ética a Nicômacos,7 já distingue a philautia (amor-próprio) em duas modalidades: aquela que busca interesses egoístas como a honra, os prazeres e o dinheiro, e aquela que busca os verdadeiros bens, os bens pelos quais se realiza mais perfeitamente o humano do animal homem, a exemplo da amizade na sua promessa de plenitude.8 Para Voltaire, o amor-próprio é o instrumento de nossa conservação no mundo: “Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos. E cumpre sempre ocultá-lo”.9 E para La Rochefoucauld, mesmo quando nós preferimos nossos

5 Diz Freud: “(...) a mais recente das ordens culturais do superego, o mandamento de

amar ao próximo como a si mesmo (...) O mandamento ‘Ama teu próximo como a ti mesmo’ constitui um dos procedimentos não psicológicos do superego cultural. É impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade. A civilização não presta atenção a tudo isso: ela meramente nos adverte que quanto mais difícil é obedecer ao preceito, mais meritório é proceder assim (...) Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade! (...) Enquanto a virtude não for recompensada aqui na Terra, a ética, imagino eu, pregará em vão (...)”. Freud, S. O mal-estar da civilização, 1978, p. 192.

6 Sobre a questão do não-egoísmo como valor moral: cf. Nietzsche, F. Genealogia da moral, 26, 1998.

7 Cf. Aristóteles. Ética a Nicômacos, IX, 8, 2001. 8 Tal ambigüidade é própria do amor-próprio, como observa Savater (Savater, F. Ética

como amor-próprio, op.cit., p. 34). Santo Agostinho separou o probus amor sui do improbus amor sui. Ibidem.

9 Voltaire. Dicionário filosófico, 1975.

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amigos a nós mesmos, nada fazemos senão aderir a nosso gosto e prazer, e é justamente por essa preferência que a amizade pode ser verdadeira e perfeita.10 A exigência do gosto e os critérios para o prazer são, contudo, tão particulares que a dependência de uma opinião para reprová-los ou sustentá-los aparenta sempre a incapacidade de decidi-los e assumi-los ao longo de uma vida. É na reunião das experiências e na abertura das diferentes circunstâncias que o egoísmo, como vontade estética, hierarquiza e desenvolve o gosto no ímpeto originário de suas várias impressões e vivências, enquanto o amor-próprio avalia eticamente, na relação consigo, a direção e o proveito de seus prazeres. O filósofo espanhol Fernando Savater defende a Ética como amor-próprio, amor, em cujo princípio se encontra um instinto e um projeto:

O amor-próprio não é o amor a nossas propriedades, mas o amor ao que nos é próprio. Claro, apropriar-se de certas coisas e de certa maneira é próprio dos humanos, pelo que um determinado tipo afinado e estilizado de propriedade é parte inconsútil do propriamente humano. Ou seja, sem apropriação não há humanidade, mas a apropriação não esgota a humanidade. Quanto ao que propriamente nos é próprio, não se trata de algo dado de uma vez por todas e fechado para sempre, que só caberia descobrir e acatar, mas de algo que vai chegando interminavelmente a ser a partir do que é, algo que é necessário propor e debater. No amor-próprio se encerra um instinto e um projeto: a moral não consiste em sacrificar o primeiro ao segundo, nem em submeter o segundo ao primeiro, mas sim em transcrever em termos cada vez mais abertos e intensos o exigido pelo primeiro e o escolhido pelo segundo.11

Como em Nietzsche, não se trata de um eu egocêntrico, que pressupõe o que se é antecipadamente ou o conhecimento de si como finalidade, mas de um eu que pratica a arte do amor de si, a exemplo de

10 La Rochefoucauld, Maximes e réflexions diverses. Aforismo 81. In: El Murr, Dimitri.

L’amitié, 2001, p. 125. La Rochefoucald defende que o interesse produz a amizade (aforismo 85, p. 126) e o mérito dos amigos é julgado pela medida de nosso amor-próprio, conforme a maneira que nossos amigos vive conosco (aforismo 88, ibidem).

11 Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 87.

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Ecce homo12, logo, que se cultiva no estar-em-obra e que cultiva o seu obrar: assim, cuida do que realiza como instinto e projeto, necessidade de fazer o que faz para si e liberdade para criar o que sabe não ter prontamente dado consigo. Se por um lado o pensamento de Nietzsche luta contra a moral tal como imperativo sobre as ações humanas, por outro lado, a valorização da nobreza de caráter e da singularidade estética da vida abre uma dimensão à moral que o imoralismo da moral vigente não reconhece: aliás, é um atentado contra o gosto a pretensão da moral não-egoísta fazer uma ação valer para todos da mesma maneira, diz Nietzsche.13 Com o retorno de Foucault aos antigos, nos anos 1980, fica mais claro pensar que conteúdo (ético e estético) pode ser dado à moral quando o Deus que a sustentava e o código que a legitimava entraram em crise, a ponto de exigir não apenas o altruísmo e a abnegação de si, como insiste Nietzsche, mas de se ter convertido em vontade de conhecimento sobre o corpo e sobre a alma (um governo sobre o êthos dos vivos), à custa da normalização das condutas e da intimidade do homem moderno. A política como a arte de governar a si mesmo, se converte na estratégia de governo dos outros, sem que esses outros que somos nós saibam como, nem por quem ou de que lugar, são governados na microfísica de seu cotidiano: a vontade de obediência se dissolve na vontade de polícia que é de todos e de ninguém (se em Vigiar e punir a punição é substituída pela vigilância e a vigilância se sustenta num corpo útil e dócil, a utilidade depende cada vez mais de como se mostra o corpo, na sua saúde e nos seus segredos). Quanto mais o tempo de vida se torna tempo de trabalho, e o tempo de trabalho, tempo de produção, mais nos julgamos livres para, sobretudo, gozarmos do que se produziu, no passatempo de nossos

12 Nietzsche, F. Ecce Homo, “Por que sou tão inteligente?”, 9, 1995, p. 48. Nesse

aforismo de Ecce Homo a questão para Nietzsche é como alguém se torna o que é (wie man wird, was man ist). Fala de uma arte de preservação de si, do amor de si (Selbstsucht). “Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é”. Em alguns casos, na psicologia de Nietzsche, até mesmo o amor ao próximo, os impulsos “desinteressados”, poderiam trabalhar para o amor de si. Daí não ser tão simples compreender Nietzsche: um pensamento que se demora na sutileza do fenômeno humano no mundo.

13 Nietzsche, F. Além do bem e do mal, 221, p. 127.

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lazeres: no tédio comum de tal ciclo e na ocupação de todos que viram nossas, mesmo no descanso, se movimenta a vida do homem contemporâneo. “A atividade maquinal e o que dela é próprio”, já dizia Nietzsche, “a absoluta regularidade, a obediência pontual e impensada, o modo de vida fixado uma vez por todas, o preenchimento do tempo, uma certa permissão, mesmo educação para ‘impessoalidade’, para o esquecimento de si, para a ‘incuria sui’”, 14 tudo isso soa como o eco da abnegação sacerdotal na genealogia da alma moderna. Assim, do cuidado de si como atividade moral voltada ao governo de si e dos outros passa-se ao cura sui como imperativo ético,15 do imperativo pessoal latino passa-se à condução do outro pelo exame do pastor e do pastor à abdicação de si mesmo para avaliar o que é bom ou mau, melhor ou pior, na relação consigo: incuria sui. Entre a moral antiga e a moral cristã há continuidades, sem dúvida:16 técnicas como o exame de consciência e restrições ao sexo fora

14 Nietzsche, F. Genealogia da moral, “Terceira Dissertação”, 18, p. 124. 15 “Em Alcebíades de Platão, isto fica muito claro: você tem que cuidar de si porque

você tem que governar a cidade. Mas cuidar de si por causa própria, começa com os epicuristas – torna-se algo muito geral com Sêneca, Plínio etc.: todos têm que cuidar de si”. “Sobre a genealogia da ética”. In: Dreyfeus, H.; Rabinow, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica, 1995, p. 260. O imperativo ético do cuidado de si não se equilave, contudo, a uma lei universal: “(...) na cultura grega e romana, o cuidado de si jamais foi efetivamente percebido, colocado, afirmado, como uma lei universal válida para todo indivíduo, qualquer que fosse o modo de vida adequado. O cuidado de si implica sempre uma escolha de vida, isto é, uma separação entre aqueles que escolheram este modo de vida e os outros”. Foucault, M. Hermenêutica do sujeito, p. 139.

16 Foucault fala em “morais cristãs” e não em “moral cristã” (Foucault, M. História da sexualidade. vol. 2. O uso dos prazeres, 1988, p. 29), mesmo porque o cristianismo foi uma religião e não uma moral (Foucault, M. Hermenêutica do sujeito, 313). No curso de 1982, Foucault enumera três modelos de práticas de si: 1. platônico (reminiscência); 2. helenístico (auto-finalização em relação a si); 3. cristão (exegese e renúncia de si). O modelo do meio, o helenístico, é sobreposto pelos outros dois na história da relação moral consigo ao longo do Ocidente. (Ibidem, p. 314). Peter Brown (The making of Late Antiquity) faz uma história da ascensão do cristianismo pelo aparecimento de novas formas de vida, novas estilizações de si: A “simplicidade do coração” (singleness of heart) dos hebreus é retomada em vista de uma abstinência e uma conjugalização das relações sexuais (elementos já presentes na ética estóica dos primeiros séculos, como mostra Foucault em O cuidado de si), por conta de se ver no

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do casamento integram a história do cristianismo, contudo, não mais sob o princípio do cuidado de si e da estilização da existência, mas sob o dogma da renúncia do eu em vida pela promessa de um post mortem: Deus, além, eternidade... Mesmo os exercícios de abstinência estão ligados, a exemplo do epicurismo, a uma estética do prazer, anota Foucault.17 Francisco Ortega faz uma boa síntese acerca de tal inversão na história da moral, com base na quádrupla perspectiva que Foucault elabora para a compreensão da moralidade enquanto modo de se conduzir: substância ética, forma de sujeição, elaboração do trabalho ético e teleologia do sujeito moral. Não mais os aphrodisia (atos, desejos e prazeres), a chresis aphrodision (o uso dos prazeres), a enkrateia (o domínio de si) e a beleza (kalos) como finalidade do êthos, porém: “substância ética: a carne, os desejos, etc.; forma de sujeição: a lei divina; ascese: autodecifração, hermenêutica do desejo; telos: pureza, auto-renúncia”.18 O conceito de moral, sob os quatro domínios do ser moral (para uma analogia aristotélica), se modifica de tal modo que o agir

sexo o signo da queda. Surge uma “estética da virgindade” no século III como símbolo da pureza da alma. A anacoresis é praticada pelo “homem do deserto”, o anacoreta, que se isola não apenas para se livrar das tentações, mas para investigar as regiões privadas de sua alma pelo auto-exame. A “carne” será o meio para a introspecção do “homem de desejo” em Agostinho, em vista de uma hermenêutica dos desejos, dos pensamentos, segredos... Cf. Ortega, F. Amizade e estética da existência em Michel Foucault, 1999. Cf. também Foucault, M. “Les techniques de soi”. In: Dits et écrits, IV: sobre as noções de examologesis, exagoreusis, técnicas de auto-exame, purificação e decifração de si já apropriadas do pensamento pagão, porém em vista da salvação da alma e de uma renúncia de si, segundo a ética cristã da carne: “Quanto mais descobrimos a verdade sobre nós mesmos, tanto mais devemos renunciar a nós mesmos; e quanto mais queremos renunciar a nós mesmos, tanto mais devemos trazer à luz a verdade sobre nós mesmos”. (Foucault, M. “Sexualité et solitude”. In: Dits et écrits, IV, 1994, p. 172. Cf. também Foucault, M. “Le retour de la morale”. In: Dits et écrits, p. 706). Segundo Michael Mahon, o código de restrição ou proibição morais, não foi inventado no cristianismo. O exemplo do problema do sexo restrito à procriação no estoicismo: “the notion associated with the Christianity that sexual expression should be restricted to procreation originated with the Stoics. In order to integrate itself into the Roman Empire Christianity opted to subscribe to this principle”. Mahon, M. Foucault’s Nietzschean genealogy,1992, p. 170.

17 Cf. nota de rodapé em Foucault, M. Hermenêutica do sujeito, p. 521. 18 Ortega, F. Amizade e estética da existência em Foucault, p. 95.

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moralmente, ao longo da história, tende a se voltar mais à adequação da lei, entre o proibido e o permitido, sob a forma de uma obediência recompensadora que nega o corpo pela salvação da alma, do que propriamente à memória da ação sob o mandamento reflexivo de si mesmo, através do qual as paixões são avaliadas e comedidas, nos atos e nas palavras. Aquilo que Savater chama de a “ambigüidade do amor-próprio”,19 Foucault denomina de o “paradoxo do cuidado de si”,20 no sentido de que tanto o amor-próprio como o cuidado de si são ainda julgados negativamente como egoísmo, reclusão em si mesmo ou exclusão do outro, pela herança de uma história moral que os perdeu de vista enquanto critério para o valor da ação. Logo, diz Foucault, todo o rigor moral da cultura de si, na qual a obrigação de se ocupar consigo mesmo era vista como algo positivo, de Sócrates a Gregório de Nissa, veio ser assentado pelo cristianismo e pelo mundo moderno em uma moral do não-egoísmo.21 Nietzsche falou em uma moral do désintéressement, mas pode realmente o agir moral, agir evidentemente humano, ser desinteressado? (Não há, diz Savater, “uma ética altruísta, na conotação forte do termo, o que imporia ao sujeito agir por um motivo distinto do melhor para si mesmo: só seria altruísta, nesse sentido, agir por algum móvel contrário ou simplesmente distinto a meu necessário querer ser humano”).22 Mesmo o desinteresse pregado no cristianismo como valor moral não seria o mais interessado, quando

19 Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 34. 20 Cf. Foucault, M. Hermenêutica do sujeito, p. 17. 21 Cf. Ibidem, p. 17. ”Estas regras austeras, cuja estrutura de código permaneceu

idêntica, foram por nós reaclimatadas, transportadas, transferidas para o interior de um contexto que é o de uma ética geral do não-egoísmo, seja sob uma forma cristã de uma obrigação de renunciar a si, seja sob a forma ‘moderna’ de uma obrigação para com os outros – quer o outro, quer a coletividade, quer a classe, quer a pátria, etc. (...) Portanto, todos estes temas, todos estes códigos do rigor moral, nascidos que foram no interior daquela paisagem tão fortemente marcada pela obrigação de ocupar-se consigo mesmo, vieram a ser assentados pelo cristianismo e pelo mundo moderno numa moral do não-egoísmo. É este conjunto de paradoxos, creio, que constitui uma das razões pelas quais o tema do cuidado de si veio sendo um tanto desconsiderado, acabando por desaparecer da preocupação dos historiadores”. Ibidem, p. 17-18.

22 Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 30-31.

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no princípio de sua renúncia se move uma vita ad aeternum? Entre os antigos, a moral não estava diretamente associada nem a uma religião, nem ao corpus de uma lei, ensina Foucault, de tal maneira que o problema do que acontece depois da morte, por exemplo, ou se existe Deus, não tinha importância ao valor da ação de quem escolhia viver moralmente,23 já que se contava com uma arte do viver (tekhne tou biou), para a qual mesmo a morte, antes de ser um meio para outra existência, revertia simbolicamente na forma de juízo prático a respeito do quanto dada ação ou ocupação é desejada para si mesmo e por si mesma, a exemplo de Sêneca e Epicteto.24 Talvez nosso problema na atualidade seja semelhante, continua Foucault, uma vez que a maior parte das pessoas não acredita em uma ética que se apóie na religião, nem deseja que a lei interfira na vida privada, nas escolhas pessoais de cada um.25 Contudo, em que medida ainda se necessita não exatamente

23 Foucault, M. “Sobre a genealogia da ética”. In: Michel Foucault..., p. 255. 24 Carta 26 a Lucílio de Sêneca usa o imperativo Medita na morte! de Epicuro e

escreve: “Eu, pelo menos, como se já estivesse próximo o momento decisivo, esse dia supremo que há-de pronunciar o juízo definitivo, sobre toda a minha vida, vou-me observando e dizendo para mim mesmo estas palavras: (..) Não interessa a apreciação dos outros: é sempre incerta, há sempre divisão de opiniões. Não interessa os estudos realizados durante a vida: somente a morte pronunciará sobre nós o juízo definitivo (...)”. Sêneca, L.A. Cartas a Lucílio, 2004, p. 99. E, a despeito de conceber a a alma do mundo (ratio mundi) como imortal, enquanto estóico, Sêneca é cético quando ao que cabe ao humano: “A morte, ou nos consome totalmente, ou nos despoja de alguma coisa. Na segunda hipótese, privados do peso do corpo, resta-nos a melhor parte de nós mesmos. Se somos totalmente consumidos, então não resta mais nada, tanto a parte boa quanto a parte má são-nos retiradas igualmente”. Ibidem, Carta 24, p. 93. E dizia Epicteto: “Em que ocupação desejas que te surpreenda a morte? Pelo que a mim toca gostaria que me surpreendesse ocupado em algum labor grande, generoso e útil aos demais (...)”. Epicteto. Máximas, diálogos, pensamientos, exhortaciones y consejos, 1922, 119, p. 79.

25 “Bem, eu me pergunto se nosso problema hoje em dia não é, de certo modo, semelhante, já que a maior parte das pessoas não acredita mais que a ética esteja fundada na religião, nem deseja um sistema legal para intervir em nossa vida moral, pessoal e privada. Os recentes movimentos de liberação sofrem com o fato de não poderem encontrar nenhum princípio que sirva de base à elaboração de uma nova ética. Eles necessitam de uma ética, porém não conseguem encontrar outra senão aquela fundada no dito conhecimento científico do que é o eu, do que é o desejo, do

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da religião ou da lei, mas da ciência, do discurso verdadeiro sobre o que se é, para poder saber o que faz ou não faz da vida, ou para justificar o que fez ou não fez, ou o que sente e deseja, ou que deseja mas não realiza? A quantos orientadores vocacionais ou terapeutas de casais não apelamos antes de se decidir sobre qualquer coisa cuja escolha seria intransferível se não se supusesse presa do que o outro, como especialista da alma, oferece para a si mesmo descobrir?26 Por um lado, a moral se separa da condição de acesso à verdade, ou seja, basta a evidência cartesiana das Meditações para conhecer a verdade, sem que para isso seja preciso ser e agir eticamente.27 Por outro lado, a ascensão da ciência moderna como discurso verdadeiro sobre o sujeito invadiu de tal maneira as escolhas e a vida íntima de cada pessoa que os problemas éticos, as escolhas pessoais, são relacionados ao saber

que é o inconsciente etc. Eu estou surpreso com a similaridade dos problemas”. Foucault, M. “Sobre a genealogia da ética”. In: Michel Foucault..., p. 255.

26 Para os antigos, a preocupação da filosofia girava “em torno de si, o conhecimento do mundo vem depois e, a maior parte do tempo, em apoio a este cuidado de si”. (Foucault, M. “Le souci de soi comme pratique de la liberté”. In: Dits et écrits, IV, p. 722-723). A tradição filosófica valorizou o segundo princípio e esqueceu o primeiro. (Foucault, M. “Les techniques de soi”. In: Dits et écrits p.786). Não é necessário pensar em um psiquiatra para se constatar o quanto de “ciência” e de “conhecimento” atravessa o cuidado que hoje se dedica à vida: há fichas, testes e questionários para sabermos se somos inseguros ou sisudos, há remédios para impotência e drogas para o equilíbrio emocional. Estamos afoitos para resolver todos os problemas mesmo quando o que está em questão não é precisamente um problema, mas nós mesmos, no devir de nossas mais solitárias e perigosas sensações, em cuja vida a morte está humanamente em questão. Sem saber quem somos, porque não se cultiva o tornar-se (com toda a angústia e receio que implica tal tarefa), transferimos a dúvida para quem nos conhece ou é pago para nos conhecer.

27 Descartes, segundo Foucault, funda o sujeito de conhecimento por um sujeito constituído pelas práticas de si, as Meditações. Mas para Descartes não se precisa asceticamente se preparar para permanecer com a verdade, é suficiente a evidência. “Basta que a relação com o si nos revele a verdade óbvia do que vemos para que possamos apreender definitivamente aquela verdade. Assim, posso ser imoral e conhecer a verdade. Acredito que esta é uma idéia mais ou menos explicitamente rejeitada pela cultura anterior. Antes de Descartes, não poderíamos ser impuros, imorais e conhecer a verdade. Depois de Descartes, temos um sujeito não ascético de saber. Esta mudança possibilita a institucionalização da ciência moderna”. Foucault, M. “Sobre a genealogia da ética”. In: Michel Foucault..., p. 277.

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científico, conforme as soluções que os próprios especialistas oferecem. É uma idéia que Foucault recusa e para a qual pode ser útil a genealogia da ética antiga como diferença em relação ao que acontece hoje em dia,28 ao modo como somos e nos relacionamos. A gênese da moral moderna passa, portanto, primeiro por uma codificação da experiência moral (sobre as técnicas do cuidado de si) e, depois, por uma normalização do êthos: o modo de cada um se conduzir em relação a si mesmo e ao outro. “A partir do momento em que a cultura de si foi tomada pelo cristianismo, ela foi, de certo modo, operacionalizada para o exercício de um poder pastoral, na medida em que a epimeleia heautou se transformou essencialmente em epimeleia tonallon – o cuidado dos outros – que era função do pastor”.29 Do governo de si ao governo das almas e ao governo dos vivos: os comportamentos individuais e os fenômenos de uma dada população. O pastor, obviamente, exercita um poder menos religioso do que científico sobre a vida dos homens vivos: sobre o modo de ser, pensar e se relacionar, nascer e morrer, mas também sobre o modo de produzir e consumir, morar ou comer, sentir prazer, reproduzir, etc. A intimidade de cada um é o princípio da ação política que o saber administra sobre a totalidade dos viventes, muitas vezes, pela escolha de quem deixa se governar (supondo-se livre para consultar quem possa orientá-lo: um médico ou um psicólogo ou um terapeuta ou mesmo os remédios disponíveis pelo mercado dos laboratórios). É nesse sentido que o mundo é um grande hospício para Foucault: “os governantes são os psicólogos, o povo, os pacientes”: o poder encontra no saber terapêutico a estratégia para regular os efeitos perversos de seu próprio investimento.30 Quanto mais o poder oferece (curas, tratamentos,

28 “A minha idéia é que não é absolutamente necessário relacionar os problemas éticos

ao saber científico. Dentre as invenções culturais da humanidade, há um tesouro de dispositivos, técnicas, idéias, procedimentos, etc., que não pode ser exatamente reativado, mas que, pelo menos, constitui, ou ajuda a constituir, um certo ponto de vista que pode ser bastante útil como uma ferramenta para a análise do que ocorre hoje em dia – e para mudá-lo”. Ibidem.

29 Ibidem, p. 276. 30 O poder, após a queda do absolutismo monárquico no século XIX, apoiou-se

primeiro no saber sobre os processos econômicos, políticos, demográficos, através dos quais se garantiria o desenvolvimento econômico. Quando, no decorrer dos

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soluções), mais ele retira dos governados o que precisa para se exercer enquanto poder. E quanto mais os governados expõem a vida que vivem ao poder que distribui suas aptidões e controla suas forças, mais se os conhece para saber como aproveitá-los e o que desejam e, satisfeitos os seus desejos, garante-se em parte a expectativa de suas ações. Eis a dinâmica do poder, porque, como diz Hannah Arendt, antecipando Foucault: o poder é sempre “um potencial de poder, não é uma entidade imutável, mensurável e confiável como a força”. Poder é potentia de poder.31 (E não há necessariamente equilíbrio nas relações de poder: não se pode negar os males que as sociedades atuais continuam a produzir, decorrentes das próprias ofertas que o poder promete sem ser a todos possíveis, contra o que uma violência difusa reage, a exemplo das pequenas às grandes cidades brasileiras, violência que o poder anuncia e desvia a atenção, separando o fenômeno, muitas vezes, como um caso à parte, individual, para, justamente, não problematizá-lo). Se Deus não se justifica mais como o poder e a verdade absolutos, o poder dos pastores, ao contrário de diminuir, se difundiu proporcionalmente às identidades que administra em termos políticos: depressivos, maníacos, hetero, homo, bi ou metrossexuais, compulsivos, paranóicos, viciados, bipolares, esquizofrênicos, e segue assim adiante o rol da tipologia sobre os fenômenos da psykhe humana, que a norma

anos, se constatou que tal desenvolvimento produziu efeitos negativos sobre a vida dos indivíduos, a sabedoria do poder se voltou à correção de quem a ele não se adequava, segundo uma “ortopedia social”, diz Foucault: “O mundo é um grande hospício, onde os governantes são os psicólogos, e o povo, os pacientes (...) o poder político está em vias de adquirir uma nova função, que é a terapêutica”. Cf. Foucault, M. “Le monde est un grand asile”. In: Dits et écrits, II, 126, p. 433-434.

31 Continua Hannah Arendt a distinção entre poder e força (no caso de Foucault, ambos os conceitos muitas vezes são usados indistintamente): “Enquanto a força é a qualidade natural de um indivíduo isolado, o poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos, e desaparece no instante em que eles se dispersam”. H. Arendt recorre ao equivalente da palavra em grego, dynamis, e o latino, potentia, com seus derivados modernos (no alemão Macht vem de mögen e möglich, e não machen), para indicar o caráter de potencialidade do poder (Arendt, H. A condição humana, 2004, p. 212). Cf. também relação entre poder e palavra: “O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais (...)”. Ibidem.

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precisa admitir para dar conta do que produz e, ao mesmo tempo, para manter visível o território, em termos de comportamento, entre o que é permitido na sua diferença, embora se lucre quando possível e se trate quando necessário, e o que deve ser separado para um acompanhamento mais exaustivo, pelo perigo que a si mesmo ou aos outros pode trazer. A difusão de tal espécie de poder é o sintoma de uma relação fragilmente precária consigo mesmo, na nossa sociedade. O limite nunca é bem sabido quando todas as soluções são possíveis e todas as diferenças passíveis de tratamento. A máxima do poeta Fernando Pessoa espanta pela verdade: “Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicômio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação”.32 O comprometimento com a norma para as decisões a propósito de si mesmo corresponde às identidades com as quais se quer identificar e pelas quais, no limite, chega-se a matar o outro ou a morrer simbolicamente em vida (a “morte psíquica”, que pode ocorrer dentro ou fora de uma instituição33). Incapacidade de pensar, amoralidade e hiperexcitação: o mundo é um grande hospício. Por mais diversas que sejam as identidades, o poder da norma não apenas as sustenta como diversidade, por um discurso hermenêutica e empiricamente verdadeiro, como, para manter seu domínio, acrescenta novos comportamentos como anormais ou normaliza antigas patologias, sem que se obrigue a internação do indivíduo (convive-se, por exemplo, cada vez mais “normalmente” com “doenças” como a síndrome do pânico e a depressão, que se

32 Pessoa, F. Livro do desassossego, 1999, p. 188. 33 O psicanalista Eugène Enriquez fala sobre os indivíduos tão normais, frente às leis e

à moral, que estão à mercê de uma ruptura que não saberiam enfrentar (estão “mortos”): “Indivíduos socialmente instituídos, que vivem no espaço social e que criaram um impasse no seu espaço psíquico ou que o alimentaram exclusivamente com as proibições e as injunções dos valores societais e parentais, estão mortos para si mesmos; porque são tão incapazes de se questionar e de duvidar quanto de questionar, de transformar o mundo no qual devem viver. São incapazes de criação”. Enriquez, E. “O trabalho da morte nas instituições”. In: A instituição e as instituições, 1991, p. 61.

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normalizam nas convenções morais e sociais entre as pessoas). Contudo, se a identidade é um jogo, pode ela favorecer relações de prazer e de amizade, diz Foucault. Mas se o que se faz é pensado contra ou a favor de uma identidade, pode haver o perigo de se converter em regra ética universal, em lei. “Se devemos nos colocar em relação à questão da identidade, deve ser enquanto somos seres únicos. Mas as relações que devemos ter com nós mesmos não são relações de identidade; devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de inovação. É muito enfadonho ser sempre o mesmo”.34 (Nesse ponto, Foucault lembra a máxima de La Rochefoucauld: “Não agrada por muito tempo quem tem sempre o mesmo espírito”).35 A identidade, como estratégia lúdica de prazer ou tática de luta (e resistência),36 tem sua utilidade, mas como modelo permanente para outros, ou mesmo para si, não serve, apenas limita a experiência do que se pode ser. Porque, embora o eu busque se identificar com aquilo mesmo que projeta, como desejo de ser, jamais é possível reduzi-lo a uma identidade, e é esse estar em aberto do humano que pode ser dignamente reconhecido nos humanos como princípio ético. Savater define, em A tarefa do herói, o egoísmo como o querer-se do querer, o amor do eu pelo possível37 e na obra Ética como amor-próprio faz uma

34 Foucault, M. “Michel Foucault, une interview: sexe, pouvoir et la politique de

l’identité”. In: Dits et écrits, IV, p. 739. 35 La Rochefoucauld. Maximes... In: L’amitié, 413, p. 77. 36 “A resistência toma sempre apoio, na realidade, sobre a situação que ela combate.

No movimento homossexual, por exemplo, a definição médica da homossexualidade constituiu um instrumento muito importante para combater a opressão da qual era vítima a homossexualidade no fim do século XIX e início do século XX. Essa medicalização, que era um meio de opressão, foi também um instrumento de resistência, já que as pessoas podiam dizer: ‘Se nós somos doentes, então por que nos condenam, por que nos menosprezam?’, etc. Claro, este discurso nos parece hoje bastante ingênuo, mas na época era muito importante”. Foucault, M. “Michel Foucault, une interview...”, p. 741.

37 Cf. Savater, F. La tarea del heroe, 1992, p. 106. Mais adiante, coincidindo com a questão colocada por Foucault no fim de seu curso Hermenêutica do sujeito quanto a Hegel, diz Savater: “El egoísmo nunca puede ser considerado desde fuera, siempre es sujeto, subjetividad, expresándose por medio de la negación de la identidad, su recreación y el inevitable distanciamiento de lo idéntico: no hay ciencia del yo, sólo

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relação entre a invenção de si e a dignidade humana: “Os limites do querer (ser) humano poderiam ser formulados assim: o homem não pode se inventar totalmente, mas tampouco pode deixar totalmente de se inventar. O que chamamos de dignidade humana não é precisamente nada do que o homem já tem, mas o que ainda lhe falta; e o que lhe falta é sem dúvida a única coisa que lhe resta, a saber, o que lhe falta fazer. A dignidade do homem, que é outra denominação para sua capacidade, estriba-se em seu querer (ser) (...)”.38 O trabalho de inventar esteticamente a si mesmo leva ao reconhecimento do que ao outro falta fazer, como sua dignidade. A questão é se perguntar como é possível inventar-se, ao menos parcialmente, quando o mundo atual normaliza a pluralidade das ações humanas e administra todas as identidades possíveis, em outras palavras, identifica-nos para sujeitar, não apenas coercitivamente, mas pelo incentivo dado a cada um para se conhecer e ser o que julga ser. Se o princípio do cuidado de si foi marginalizado pelo predomínio do conhecimento de si, não é difícil se convencer que este momento histórico reclama o desafio de se repensar ética e politicamente o lugar da relação consigo, quando a exacerbação de um individualismo egocêntrico perde a realização da própria liberdade na irreflexão do que julga poder fazer, sem limites para as suas ações e palavras, nem o reconhecimento do que efetivamente deixou como obra, na história de sua vida. O eu é a nova possibilidade estratégica, para lembrar Paul Veyne a propósito da genealogia ética de Foucault39, pela qual, embora não tenha pretendido reinstalar a moral antiga no mundo contemporâneo, restabelece o sentido de moral como relação consigo, como um trabalho do eu sobre si mesmo, como ética, para a atualidade. E o sentido da relação consigo pode ser preenchido não pela verdade que em si é necessário descobrir, mas por um egoísmo cujo ponto de partida estético, o desejo de fazer da vida uma obra arte, encontra sua direção no amor-próprio, no amor do que lhe falta fazer, como algo humanamente digno de sua diferença. O que falta fazer pertence ao

puede haber leyendas acerca de él. Así lo entendió el Hegel de la Fenomenología del espíritu y tal es el fundamento de toda filosofía narrativa (...)”. Ibidem.

38 Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 22. 39 Veyne, P. “Le dernier Foucault et sa morale”. In: Critique, 471/472, Paris, 1986.

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caminho de cada um que é o caminho de todos e a compreensão de uma verdade tão universalmente humana só é possível se se dispõe a fazer uma experiência singular da própria vida. A ética, penso, não se funda no racionalmente dado a priori como imperativo para todas as ações, mas antes, começa na virtude de se fazer causa da própria diferença, o outro de si mesmo, no jogo das escolhas e das ações, em torno do qual o outro, enquanto os outros, é a abertura e o limite do que não se fecha, nem pertence, a si mesmo. Aliás, se a experiência se produz no desprendimento de si como ficção,40 a verdade, penso, se faz asceticamente no reconhecimento de tal diferença na relação consigo, de tal modo que o sujeito, como diz Agamben, se torna o sujeito da própria dessubjetivação.41 “Seu eu conheço a verdade me transformarei. Talvez me salve ou morra”,42 complementa Foucault. O valor do que se cultiva como seu por jamais tê-lo prontamente dado é o princípio para se admitir o mundo na sua completa diferença, e mesmo adversidade, no proveito da qual se torna possível realizar quem se deseja ser, porque o quem é justamente a tensão entre o querer fazer e o que é feito, entre o desejo e a realização, a ficção e a verdade, da própria vida (logo, não depende de uma vontade que simplesmente escolhe tais meios para tais

40 Uma experiência não é nem verdadeira nem falsa, diz Foucault: é sempre uma

ficção, é algo que se fabrica a si mesmo, que não existe antes e que existirá depois. Foucault cita Nietzsche, Blanchot, Bataille contra a tradição fenomenológica no que corresponde a relação do sujeito consigo e com o mundo através da experiência. Cf. Foucault, M. “Entretien avec Michel Foucault”. Dits et écrits, IV, p. 45.

41 “Voilà, il me semble que la question de l’art de vivre: comment être en rapport avec cette puissance impersonnelle? Comment le sujet saura être en rapport avec sa puissance, qui ne lui appartient pas, qui le dépasse? C’est un problème poétique, pour ainsi dire. Les Romains appelaient cela le génie, principe impersonnel fécond, qui permet d’engendrer une vie. Là aussi, c’est un modèle possible. Le sujet ne serait ni le sujet conscient, ni la puissance impersonelle, mais ce qui se tient entre les deux. La désubjectivation n’a pas seulement un aspect sombre, obscur. Elle n’est pas simplement la destruction de toute subjectivité. Il y aussi cet autre pôle, plus fécond et poétique, où le sujet n’est que le sujet de sa propre désubjectivation”. Agamben, G. Une biopolitique mineure. Par Stany Grelet and Mathie Potte-Bonneville. Publié dans Vacarme 10 hiver 2000. Disponível em: http://vacarme.eu.org/article255.html. Acessado em janeiro de 2007.

42 Foucault, M. “Une interview de Michel Foucault par Stephen Riggins”. Dits et écrits, IV, p. 535.

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Egoísmo contra identidades

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fins, já que a vida se realiza no mundo entre outros, ou seja, o mundo das ações e das decisões pressupõe a casualidade das relações humanas). Penso que a genealogia de Nietzsche contribui para a destruição de um sentido único à moral e a genealogia de Foucault não apenas diagnostica historicamente o domínio da vontade de verdade sobre a ação e o pensamento do sujeito moderno, pela repartição e armadilha de suas várias identidades, como também recupera dos antigos o valor da moral como ética, cujo princípio estético pode servir de resistência aos mecanismos de controle sobre a vida, pela direção irrepetivelmente única, e histórica, de uma existência. Referências ARENDT, H. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, IX, 8. Trad. Mário da Gama Kury. 4ª ed. Brasília: UnB, 2001. DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Trad. Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. EL MURR, Dimitri. L’amitié, Paris : Flammarion, 2001. ENRIQUEZ, E. “O trabalho da morte nas instituições”. In: A instituição e as instituições. Trad. Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991. EPICTETO. Máximas, diálogos, pensamientos, exhortaciones y consejos. Trad. Frederico Climent Terrer. Barcelona: Editorial Teosófica, 1922. FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio A. da Fonseca; Salma Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004. _______. Dits et écrits (4 vols.). Paris: Gallimard, 1994. _______. O uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FREUD, S. O mal-estar da civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. MAHON, M. Foucault’s Nietzschean genealogy. New York: State University of New York Press, 1992. NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal, 103. Trad. Paulo César de Souza. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008 p. 99-133

Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo

Heraldo Aparecido Silva*

Resumo: Neste trabalho, refletimos sobre as relações entre o pragmatismo e o neopragmatismo. Primeiro, apresentamos alguns aspectos históricos do pragmatismo americano clássico: Charles S. Peirce, William James e John Dewey. Em seguida, apresentamos dois tópicos interdependentes: a controversa leitura da tradição pragmatista por Richard Rorty e a concepção de seu neopragmatismo. Para finalizar, discutimos a interpretação alternativa de Richard Bernstein. Ele argumenta que a noção de conflito é um elemento revigorante para a pluralista tradição pragmatista que concilia o pragmatismo clássico com o pragmatismo contemporâneo sob o propósito comum de tentar sanar feridas filosóficas. Palavras-chave: Conflito, Narrativas, Neopragmatismo, Pluralismo, Pragmatismo Abstract: In the present paper we reflect on the relationships between pragmatism and neopragmatism. First, we present some historical aspects of Classical American pragmatism: Charles S. Peirce, William James and John Dewey. In the following we present two interdependent topics: the controversial reading about pragmatist tradition by Richard Rorty and the conception of his neopragmatism. Finally we discuss the alternative interpretation of Richard Bernstein. He claims that the notion of conflict is an invigorating element for the pluralistic pragmatist tradition which conciliates the classical pragmatism with contemporary pragmatism under common purpose of try healing of philosophical wounds. Keywords: Conflict, Narratives, Neopragmatism, Pluralism, Pragmatism Pragmatismo Clássico: Peirce, James e Dewey As versões e caracterizações do pragmatismo convergem num ponto: Charles Sanders Peirce (1839-1914) é considerado o seu fundador. Após assumir a descrição feita por Alexander Bain (1818-1903) de crenças como hábitos de ação e publicar os ensaios The Fixation of Belief [A Fixação da Crença] (1877) e How to Make Our Ideas Clear [Como Tornar Claras as Nossas Idéias] (1878), Peirce configura as

* Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e Coordenador do

Núcleo de Estudos em Filosofia da Educação e Pragmatismo da UFPI. E-mail: [email protected]. Artigo recebido em 24.04.2008 e aprovado em 30.09.2008.

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linhas gerais de sua doutrina, com o propósito de expressar a sua teoria de que para determinar o significado de uma concepção, conceito ou palavra, é necessário considerar quais os efeitos práticos que poderiam advir das mesmas sobre a conduta da vida humana. Apesar de a palavra pragmatismo ter sido empregada por Peirce como um termo operatório em suas discussões filosóficas no Clube Metafísico, em Cambridge, nos anos 70, a sua utilização sob a forma impressa não consta em seus textos deste período. No entanto, as bases do pragmatismo foram lançadas nos ensaios supracitados – ainda que o referido termo não tenha sido mencionado. Em 1898, William James, na conferência Philosophical Conceptions and Pratical Results [Concepções Filosóficas e Resultados Práticos], introduziu o termo na comunidade filosófica norte-americana da época e, devidamente, atribuiu a autoria a Peirce. Este, posteriormente, rejeita o termo pragmatismo e passa a utilizar pragmaticismo. Tal termo alternativo servia, em parte, para diferenciar a sua teoria da de W. James que emprega a antiga nomenclatura a partir de 1898 – vinte anos após a publicação dos ensaios de Peirce que deram origem ao pragmatismo. Neste momento, a história da filosofia registra interpretações divergentes quanto ao rumo tomado pelo pragmatismo. Tanto a idéia de ruptura quanto a de continuidade na tradição possuem defensores. Susan Haack, por exemplo, vê estilos diferentes e até opostos de pragmatismo que teriam em comum apenas a aspiração de livrar a filosofia dos excessos metafísicos. Ela diagnostica uma degenerescência da tradição pragmática, resultado de uma sucessão de interpretações equivocadas. Para ela, o falibilismo de Peirce foi dissolvido na leitura nominalista de James e na leitura hegeliana de Dewey; a concepção de verdade jamesiana foi relativizada por Schiller e a reconstrução da filosofia idealizada por Dewey foi lida por Rorty como um apelo à destruição da filosofia, resultando no que ela denomina de “pragmatismo vulgar”1. Em contrapartida, como será visto posteriormente, Rorty e Bernstein preferem destacar elementos comuns entre os pragmatistas originais e os hodiernos; além de definirem as divergências teóricas pragmáticas como uma força criativa

1 Haack, 1995, p. 126-147.

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e depuradora de seu ethos. Esta disputa concernente à ruptura ou continuidade na tradição pragmática está longe de seu término, como atestam as acirradas divergências entre os pragmatistas contemporâneos. No momento, não me deterei nesta questão. Passarei agora, à exposição do pragmatismo na perspectiva de seu fundador, C. S. Peirce. No ensaio What Pragmatism Is [O que é o Pragmatismo] (1905) Peirce abandona o termo pragmatismo e designa pragmaticismo2 para se referir a sua doutrina3. Em parte, esta opção por uma nova nomenclatura parece dever-se ao fato de Peirce ter desejado diferenciar o seu pragmatismo das demais versões da época – como, por exemplo, o pragmatismo de William James e o humanismo de F. C. S. Schiller –, já que via na generalização do termo primordial uma alteração ampla e comprometedora de seu sentido estrito. Entretanto, como sugere Susan Haack4, a razão principal para a substituição de pragmatismo por pragmaticismo pode ter sido aquilo que Peirce denomina de “ética da terminologia” – já que no mesmo ensaio e precedentemente ao trecho supracitado, ele aborda o problema da caótica nomenclatura filosófica e discorre sobre as vantagens provenientes da precisa nomenclatura científica5. Para ele, a filosofia – assim como todo estudo que aspire a condição de científico – deveria seguir o exemplo das ciências naturais e adotar previamente uma terminologia técnica, com significados exclusivos e universalmente aceita por seus estudiosos. Nesse sentido, algo que poderia ser acordado entre os filósofos, poderia ser a designação de “significados fixos para certos prefixos e sufixos”6. Assim, a inserção do termo pragmaticismo teria ocorrido para suprir a necessidade de expressar a restrita definição original da doutrina de Peirce – algo que o termo precursor pragmatismo já não conseguia, em virtude da profusão de interpretações que acompanhava a sua difusão. De maneira geral, é nesse sentido adstrito que reside o pragmatismo na sua concepção.

2 Peirce, 1990b, p. 286-287. 3 Para um estudo detalhado do pensamento de Peirce, examinar Ibri (1992). 4 Haack, 1998, p. 50. 5 Cf. Peirce, 1990a, p. 39-43. 6 Peirce, 1990b, p. 286.

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Segundo Peirce, a imprecisão dos conceitos envolvidos nas discussões filosóficas e a vaguidade semântica das palavras empregadas constituem um obstáculo considerável à solução dos problemas filosóficos. A fim de viabilizar a solução de tais problemas, ele acreditava ser necessário a aplicação de um método que permitisse examinar os conceitos utilizados e determinar os seus respectivos significados em termos experimentais, isto é, considerar as possíveis conseqüências práticas que poderiam resultar da aplicação desses conceitos na conduta humana para atribuir-lhes significado. Peirce concebia o pragmatismo como um método capaz de elucidar o significado de conceitos obscuros a partir do exame de seus efeitos na conduta humana. Desta forma, o objetivo do pragmatismo seria o de “estabelecer um método de determinação dos significados”7 para acabar com as controvérsias filosóficas, nas quais os contendores sustentam suas idéias através do uso de palavras idênticas com sentidos distintos ou indefinidos.

O que se procura, portanto, é um método que determine o significado real de qualquer conceito, doutrina, proposição, palavra ou outro signo. [...] Mas o pragmatismo não se propõe a dizer no que consiste os significados de todos os signos, mas, simplesmente, a estabelecer um método de determinação dos significados dos conceitos intelectuais, isto é, daqueles, a partir dos quais podem resultar raciocínios. [...] Ora, esta espécie de consideração, a saber, a de que certas linhas de conduta acarretarão certas espécies de experiências inevitáveis, é aquilo que se chama consideração prática (Peirce, 1990b, p. 193-195).

Esta relação entre o pensamento e a ação é formulada, de modo exemplar na máxima pragmática, segundo a qual, para se “determinar o significado de uma concepção intelectual” é preciso “considerar quais conseqüências práticas poderiam concebivelmente resultar, necessariamente, da verdade dessa concepção”, de modo que “a soma destas conseqüências constituirá todo o significado da concepção”8. Como salientei anteriormente, a definição de crença como hábito de ação desempenha fundamental importância no pragmatismo

7 Peirce, 1990b, p. 194. 8 Peirce, 1990b, p. 195.

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de Peirce9. Nos ensaios The Fixation of Belief e How to Make Our Ideas Clear, Peirce distingue a dúvida da crença. Para ele, a ação é norteada pela crença. Esta é antecedida pela dúvida, que não fornece qualquer indício, base ou orientação para nossas ações, mas, pelo contrário, é um estado de preocupação, insatisfação e desorientação. O processo através do qual o estado de dúvida é convertido em estado de crença é chamado de inquérito. O único propósito do pensamento, concebido como inquérito, é o estabelecimento da opinião e, conseqüentemente, a cessação da dúvida. A alternância entre o estado de dúvida e o estado de crença é constante. Isto porque uma vez estabelecido um hábito de ação, ao agirmos, estaremos sujeitos ao confronto com uma nova dúvida. A irritação da dúvida, por sua vez, deve estimular o pensamento a desempenhar a sua única função: a produção de crença – reiniciando todo o processo10. Enquanto Peirce concebe a sua doutrina exclusivamente como um método de determinação do significado, William James (1842-1910), nas oito conferências reunidas sob o título Pragmatism [Pragmatismo] (1907), designa o pragmatismo como um método e, também, como uma teoria da verdade11. Entretanto, essa caracterização é precedida e complementada pela idéia que existe na assunção de uma determinada posição filosófica, em detrimento de outras, a influência do temperamento humano. Dessa maneira, tanto a escolha ou recusa de uma doutrina filosófica quanto às divergências que acompanham as diferentes opções, seriam passíveis de explicação por intermédio do contraste entre temperamentos distintos. Para James, esses temperamentos estão divididos em duas áreas antagônicas, representadas pelo racionalista, “que segue princípios” e pelo empírico, “que segue fatos”12. A importância desta classificação reside na

9 A expressão “pragmatismo de Peirce” se refere às idéias do próprio autor sobre sua

doutrina. Já a expressão pragmatismo peirceano designa interpretações de outros autores acerca do “pragmatismo de Peirce” (Cf. Haack, 1998, p. 55). Utilizo o mesmo critério no estudo dos demais pragmatistas.

10 Cf. Murphy, 1993, p. 33-46. 11 James, 1979, p. 25. 12 James lista atributos contrastantes para o racionalista (à esquerda) e o empírico (à

direita), tais como: intelectualista x sensualista, idealista x materialista, otimista x

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possibilidade de introduzir o pragmatismo como alternativa ao dilema racionalismo versus empirismo numa época em que havia a reivindicação por uma filosofia que fosse capaz de harmonizar aspectos contrastantes como, por exemplo, o pendor científico e a devoção religiosa13. Assim, após apresentar a filosofia pragmática como via intermédia entre as vias opostas do racionalismo e do empirismo, numa tentativa de conciliar posições divergentes, James passa à exposição do pragmatismo como método e como teoria da verdade. O método pragmático, na acepção jamesiana, é descrito como:

um método de assentar disputas metafísicas que, de outro modo, se estenderiam interminavelmente. (...) O método pragmático nesses casos é tentar interpretar cada noção traçando as suas conseqüências práticas respectivas. Que diferença prática haveria para alguém se essa noção, de preferência àquela outra, fosse verdadeira? Se não pode ser traçada nenhuma diferença prática qualquer, então as alternativas significam praticamente a mesma coisa, e toda disputa é vã (James, 1979, p. 18).

No que se refere às origens do método pragmático, James afirma que antes de seu contemporâneo Peirce, alguns “precursores do pragmatismo” como os filósofos gregos antigos Sócrates e Aristóteles, assim como os empiristas britânicos modernos Locke, Berkeley e Hume teriam usado de “maneira fragmentária” o referido método em suas investigações acerca de problemas e noções metafísicas14. Para James, foi a predominância do temperamento empírico no início do século XX que permitiu ao pragmatismo a generalização e o reconhecimento que não obteve em épocas precedentes. O estabelecimento de vínculos entre o pragmatismo e longevas doutrinas filosóficas ou, ao menos, determinados aspectos das mesmas, concerne ao método pragmático, pois, através dele, as teorias “tornam-se instrumentos, e não respostas aos enigmas, sobre as quais podemos descansar”15.

pessimista, religioso x irreligioso, livre-arbitrista x fatalista, monista x pluralista e dogmático x cético (James, 1979, p. 4-6).

13 Cf. James, 1979, p. 13. 14 James, 1979, p. 19. 15 James, 1979, p. 20.

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Assim, a aplicação do referido método em diversas teorias e noções filosóficas, permite ao pragmatismo jamesiano efetuar um tipo de triagem na qual alguns elementos são mantidos e outros excluídos. Por exemplo: o valor prático que princípios metafísicos como ‘Essência’, ‘Verdade’, ‘Espírito’, ‘Deus’, ‘Matéria’, ‘Razão’, ‘Absoluto’ e ‘Energia’16 possuem é lingüístico e histórico, diz respeito ao seu emprego pelo senso comum – e a sua manutenção deve-se a isto. Em contrapartida, o intento de desvendar a realidade através destes mesmos princípios metafísicos, supondo-os fixos e determinados, deve ser abandonado porque o seu desempenho enquanto crença contrasta com o de outras crenças mais eficazes – como algumas proporcionadas, por exemplo, pelo naturalismo e pelo historicismo – que se adaptam melhor à realidade, no sentido de modificá-la, a fim de atender aos propósitos humanos17. James ainda atribui um sentido mais abrangente ao seu método pragmático, ao descrevê-lo não apenas como “um método de assentar disputas metafísicas”, mas também, como uma “atitude de orientação” para “olhar além das primeiras coisas, dos princípios, das ‘categorias’, das supostas necessidades; e de procurar pelas últimas coisas, frutos, conseqüências, fatos”18. A similaridade entre o pragmaticismo peirciano e o método pragmático jamesiano parece residir no fato de ambos objetivarem cessar determinadas contendas filosóficas cuja extensão e esterilidade são proporcionais à indefinição dos conceitos envolvidos: quanto mais obscuros os significados, mais duradoura e lacunar é a controvérsia. Entretanto, ambos se distinguem à medida que o princípio de Peirce parte da consideração das possíveis conseqüências práticas na conduta humana para determinar o “sentido de um termo abstrato”; enquanto que o método pragmático de James visa “determinar que credibilidade tem uma proposição filosófica”, para saber que tipo de conduta ela estaria apta a produzir19. Além disso, a própria idéia de orientação, presente tanto nos escritos de Peirce quanto nos de James, pode ser apontada como um elemento disjuntivo: em Peirce, a orientação é um

16 James, 1979, p. 20. 17 James, 1979, p. 69. 18 James, 1979, p. 21. 19 Murphy, 1993, p. 67.

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resultado ao qual se chega após a cessação da dúvida, com o estabelecimento da crença que fornece uma base ou orientação para a ação humana; em James, o método é a própria orientação. Logo, trata-se de um caso no qual o emprego do mesmo termo não implica equivalência de sentido. Como visto anteriormente, Peirce repudiou certas interpretações de suas idéias e estabeleceu o vocábulo pragmaticismo para designar e diferenciar a sua doutrina das de outros autores, entre os quais James, que haviam se apropriado da palavra pragmatismo. Entre os dois pragmatistas, a principal divergência refere-se ao fato de James ter ampliado o sentido e a aplicação do pragmatismo ao presumir que havia de forma latente nas idéias originais de Peirce, uma teoria da verdade. Na acepção jamesiana, uma idéia torna-se verdadeira instrumentalmente a partir do momento que o seu desempenho se revela mais satisfatório do que o de outras idéias na tarefa de relacionar as partes de nossa experiência. Assim, numa crise que envolva a manutenção de velhas crenças e a admissão de novas crenças, deve ser considerada verdadeira a idéia que melhor intermediar o confronto entre tais crenças – no sentido de preservar o máximo de “benefícios vitais” concedidos pela convicção em verdades prévias e adquirir outros, provenientes de verdades até então inéditas20. Nessa perspectiva, a verdade de uma idéia está relacionada à sua utilidade para os propósitos humanos; e, mesmo o critério de verdade, aquilo que serve para definir algo como verdadeiro ou não, reside na aplicação prática, ou seja, a verificação de uma crença ocorre em termos experimentais. Portanto, antes de agregar uma nova idéia ao conjunto de verdades previamente assumidas, deve-se perguntar pela “diferença prática” que a adoção da mesma possa vir a acarretar na vida humana. Se esta idéia puder, ainda que parcialmente, ser verificada, isto é, se for passível de confirmação no âmbito prático e, se a sua adoção significar a posse de um valioso instrumento de ação (e o mesmo não ocorrer com as demais idéias adversárias), então, esta idéia será verdadeira21. Isto

20 James, 1979, p. 29. 21 James adverte: “Indiretamente ou somente potencialmente, os processos de

verificação podem, pois, ser verdadeiros tanto quanto os processos de verificação integrais” (James, 1979, p. 75).

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significa que a verdade não é concebida como uma propriedade imanente a certas idéias, mas sim, como um processo: uma idéia, segundo James, “torna-se verdadeira, é feita verdadeira pelos acontecimentos”22. E, também, que a obtenção da verdade não pode ser considerada um fim em si mesmo, mas tão-somente um meio para se atingir outros objetivos. James sustenta ainda, que se denomina verdadeira “qualquer idéia que inicie o processo de verificação” e que útil designa “a sua função completada na experiência”23. A concepção de verdade no pragmatismo jamesiano é pluralista e cambiante. A experiência, base dos processos de verificação comporta diversos elementos simples e complexos; estes, por sua vez, ocorrem de maneira regular, constante e ordenada ou irregular, inconstante e caótica. Isto contribui para dificultar a verificação direta e integral da maioria das idéias consideradas verdadeiras. Então, se não houver a possibilidade (se não dispomos de meios para fazê-lo ou se não estamos no lugar e época apropriados) e nem a necessidade (se outros fatores pendem para a validação de tal idéia, tais como a sua corroboração por parte de outros indivíduos) de executar uma verificação completa, pode-se assumir a idéia como verdadeira24. O legado de James para a tradição pragmatista é constituído, em grande parte, pela discussão sobre a verdade. Contudo, o significado de tal contribuição é ainda bastante controverso, dado o teor das idéias expressas em frases como: “O verdadeiro [...] é somente o expediente no processo de nosso pensamento”, da mesma forma que “o direito é somente o expediente no processo de nosso comportamento”. Isto porque, segundo ele, a experiência possui meios de “fazer-nos corrigir nossas fórmulas presentes”25. Inclusive, aqui, pode-se considerar a atividade filosófica como um empreendimento que envolve também a correção (e o aprimoramento) de noções, fórmulas e métodos passados. Para finalizar, juntamente com a polêmica acerca da interpretação de James do pragmatismo peirciano,

22 James, 1979, p. 72. 23 James, 1979, p. 73. 24Em tais casos, a sintética observação de James é exemplar: “Comerciamos um com a

verdade do outro” (James, 1979, p. 75). 25 James, 1979, p. 80.

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também a questão da suposta ambigüidade nas declarações jamesianas tornou-se um tema importante nos debates, críticas e estudos sobre o pragmatismo original26. Ao contrário de Peirce e James, que pereceram em 1914 e 1910, respectivamente, John Dewey (1859-1952) esteve ativo durante quase toda a primeira metade do século XX e pôde presenciar alguns dos diversos eventos que constituíram boa parte da cultura deste período. Em certo sentido, pode-se dizer que o conhecimento da conturbada época27 de Dewey é requisito necessário para a compreensão de suas idéias e, também, da repercussão obtida pelas mesmas. Isto porque nos seus trabalhos, a ênfase reside nos aspectos político e social da experiência humana. Assim, ao submeter os escritos deweyanos ao contexto histórico e cultural específico do período compreendido entre as duas guerras mundiais, os mesmos são considerados como uma filosofia social e política, à medida que, entrementes, constituem menos uma análise de outras concepções filosóficas do que uma reação contra determinadas práticas políticas e sociais de seu tempo – particularmente, nos Estados Unidos da América28. Afinal, como nos adverte o próprio Dewey: “a função primordial da filosofia é a de explorar racionalmente as possibilidades da experiência; especialmente as da experiência humana coletiva”29. Assim, não deixa de ser razoável a possibilidade de considerar e, de certo modo credenciar, o impacto causado pela morte de milhões de pessoas como um dos fatores determinantes na elaboração, em 1948, de uma introdução crítica e atualizada para Reconstruction in Philosophy

26 Consultar Thayer (1973), Murphy (1993), Saatkamp (1995) e Menand (1997). 27 Algumas menções são inevitáveis para caracterizar os problemas morais, políticos e

sociais visados por Dewey que defendia a “mudança da natureza do conhecimento e da filosofia, de contemplativa para operativa” (Dewey, 1959, p. 129). Assim, no âmbito internacional, destacam-se: a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), a Revolução Russa (1917); a consolidação de regimes políticos totalitários na Europa: o fascismo na Itália (1922) e o nazismo na Alemanha (1933); a Guerra Civil Espanhola (1933-1939); a 2ª Guerra Mundial (1939-1945); a criação da Organização das Nações Unidas – ONU (1945); a oficialização da política de segregação racial na África do Sul (1948); e a fundação do Estado de Israel (1948).

28 Dewey, 1959, p. 17-43. 29 Dewey, 1959, p. 130.

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[Reconstrução em Filosofia]30, obra originalmente publicada em 1920, na qual Dewey contrapõe “os velhos e os novos tipos de problemas filosóficos”31. Ele escreve:

a missão primacial da filosofia, seus problemas e campo de estudo brotam das pressões e solicitações que se manifestam na vida de comunidades, em cujo seio surge determinada forma de filosofia, e que, conseqüentemente, seus problemas específicos variam com as transformações que a vida humana constantemente atravessa, e que por vezes constituem uma crise e uma mudança de direção na história da humanidade (Dewey, 1959, p. 17).

Mais adiante Dewey alega que os sistemas filosóficos antigos “refletem as concepções pré-científicas do mundo natural, a situação pré-tecnológica do mundo da indústria e a situação pré-democrática do mundo político em que suas doutrinas tomaram forma”32. Em linhas gerais, tais passagens evidenciam a perspectiva de Dewey sobre a filosofia e denotam, na sua reivindicação por um novo exame dos sistemas e problemas filosóficos, a combinação entre o pendor democrático, o historicismo hegeliano e o evolucionismo darwiniano33. Ele insiste, por exemplo, na importância de coadunar o estudo da história da filosofia com o conhecimento de outras áreas, tais como das instituições sociais, da cultura, da religião e da literatura34; visto que “tanto a organização biológica quanto a social concorrem para a formação da experiência humana”. Todavia, ele não pensa que a “experiência significa escravização ao passado, à tradição, ao costume”35. Desse modo, ele aponta para o progresso moral, científico e político como resultados atingidos – e a serem aprimorados –

30 Escrita sob o impacto da 1ª Guerra, Dewey acrescentou a essa obra uma introdução

na qual constata que, após a 2ª Guerra, “o choque é muito mais violento” e a “atitude predominante é a de inquieta e pessimista incerteza”. E ele completa: “Incerteza quanto às surpresas que o porvir encerra, incerteza que projeta sua pesada e negra sombra sobre todos os aspectos do presente” (Dewey, 1959, p. 17-18).

31 Dewey, 1959, p. 15. 32 Dewey, 1959, p. 20. 33 Cf. Borradori, 1994, p. 105-106; Saatkamp, 1995, p. 1-15, 197-205. 34 Dewey, 1959, p. 61. 35 Dewey, 1959, p. 108-109.

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wey, não devemos “apelar eternamente para

imer. Como a análise de tais críticas não pertence ao escopo róximo item, referente ao neopragmatismo de

Rorty.

mediante a substituição da atitude meramente contemplativa pela interventora. Dewey defende a idéia que se a filosofia abdicasse da sobrecarga na sua tarefa, representada pela “metafísica balofa” e pela “inútil epistemologia”36, poderia se dedicar com mais propriedade às disciplinas sociais, morais e educacionais37. Entretanto, no que tange ao processo decisório em tais questões, também existe a necessidade de aplicação da regra pragmática: a atribuição de significado a uma idéia deve ser antecedida pela análise das conseqüências da mesma38. Isto porque, sustenta Dedecisões pretéritas nem para velhos princípios, no intuito de justificar um curso de ação”39. Finalmente, sobre o pragmatismo na versão de Dewey, é preciso considerar que “no centro de sua visão e interesses filosóficos estão as questões sociais e políticas na comunidade democrática”40. Bernstein afirma ainda que Dewey, no artigo Development of American Pragmatism [O desenvolvimento do pragmatismo americano] (1920), reage contra a acusação popular que identifica o pragmatismo como uma mera “expressão ideológica do mais vulgar e objetável aspecto do ‘materialismo’ americano”. Além disso, é preciso mencionar que Dewey não usou com freqüência o nome pragmatismo para caracterizar a sua orientação filosófica. Ele preferiu recorrer ao termo “instrumentalismo”, tendo também utilizado “experimentalismo” ou “experimentalismo instrumental”41. A propósito da defesa deweyana da filosofia pragmatista convém notar que, dentre as investidas contra o pragmatismo, ou aspectos dele, destacam-se as críticas de contendores proeminentes como Bertrand Russell, Émile Durkheim e Max Horkhedesse artigo, passo ao p

36 Dewey, 1959, p. 131. 37 Dewey, 1959, p. 174-176. 38 Dewey, 1959, p. 159. 39 Dewey, 1959, p. 168. 40 Bernstein, 1995, p. 58. 41 Bernstein, 1995, p. 59.

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o de pragmatismo na versão de orty42 é suficientemente expressivo:

as cartesiano/kantianas de crença e conhecimento (Rorty, 1991b, p. 265).

Retornarei a esses dois últimos tópicos após discorrer, a respeito do

Neopragmatismo: Rorty Anteriormente, descrevi, grosso modo, o pragmatismo nas versões dos pragmatistas clássicos Peirce, James e Dewey. Agora, abordarei dois aspectos: o legado filosófico e a continuidade dessa tradição na obra do pragmatista contemporâneo Richard Rorty (1931-2007). Todavia, antes de discorrer particularmente a respeito destes aspectos, tentarei evidenciar a inter-relação entre os mesmos. Para esta finalidade, o breve histórico que acompanha a definiçãR

O pragmatismo americano começou, no seu período clássico, com a adoção por C. S. Peirce da descrição de Alexander Bain de uma crença como um hábito de ação. A importância dessa descrição é que ela evita pensar numa crença como uma representação, e por conseguinte evita a questão de se ela representa o mundo como ele realmente é ou meramente como nos aparece. William James e John Dewey prosseguiram esta tentativa para substituir questões sobre o que uma crença representa por questões sobre a utilidade da crença (a utilidade das ações em que se empenham em várias situações aqueles que sustentam a crença). Os neopragmatistas contemporâneos tais como Hilary Putnam e Donald Davidson, que adotaram a chamada virada lingüística, continuam este esforço para evitar as tradicionais noções representacionist

Nesta periodização, o vínculo entre o legado filosófico e a continuidade do pragmatismo aparece sob a forma de uma característica atribuída tanto aos pragmatistas clássicos quanto aos contemporâneos: o anti-representacionismo. Em outras palavras, a relação entre os dois aspectos mencionados é aludida a partir da idéia de representação. Esta, por sua vez, nos remete ao tema da verdade. Neste ponto, a contribuição pragmática se processa em duas vertentes: a clássica – com Peirce, James e Dewey – que parte da noção de experiência; e a contemporânea – com Quine, Davidson e Putnam – que parte da noção de linguagem. A leitura original de Rorty sobre ambas resulta na elaboração de uma concepção neopragmatista de investigação da verdade e na reconfiguração histórica do pragmatismo.

42 Rorty, 1991b, p. 265-277.

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período que separa a versão clássica do pragmatismo de sua versão contemporânea. Murphy, na obra O Pragmatismo: de Peirce a Davidson (1993), divide a história do pragmatismo em três períodos. A primeira fase, de meados do século XIX até as duas primeiras décadas do século XX, com C. S. Peirce, W. James e J. Dewey – os pragmatistas clássicos, pioneiros ou fundadores. A segunda fase, a partir dos anos 1930, marcada pela aliança entre o pragmatismo americano e a filosofia analítica européia (representada por R. Carnap, H. Reichenbach, C. Hempel, O. Neurath e H. Feigl, os positivistas lógicos do Círculo de Viena, que dominaram boa parte dos departamentos de filosofia nos EUA)43. Nessa época e através desta combinação de influências teóricas, formaram-se Willard Quine (1908-2000) e Donald Davidson (1917-2003), os dois filósofos de maior influência nos EUA na segunda metade do século XX. E, finalmente, na terceira fase, entre os anos de 1980 e 1990, o pragmatismo contemporâneo com Quine, Davidson, Putnam e Rorty44. Em conformidade com a interpretação de Murphy, a manutenção da tradição pragmatista na contemporaneidade deve ser atribuída, em grande parte, à influência que Dewey exerceu sobre Quine, Davidson e Rorty45. A constatação dessa influência advém do fato de que tais filósofos assumem em suas teorias, as três seguintes teses deweyanas: (1) o “significado é [...] primariamente uma propriedade do comportamento”; (2) o “significado é intenção”; e (3) a “linguagem é [...] um modo de interação entre pelo menos dois seres [e] pressupõe um grupo organizado ao qual estas criaturas pertencem, e do qual adquiriram hábitos discursivos”46. A assunção destas teses por parte de Quine, Davidson e Rorty ocorre através de maneiras distintas, visto que, enquanto Quine enfatiza a primeira delas, Davidson e Rorty

43 Para obter informações complementares sobre a periodização do pragmatismo, a

influência da vertente analítica da filosofia nos EUA e o neopragmatismo de Rorty; consultar Borradori (1994, p. 1-25), Saatkam (1995), Brandom (2000) e Rorty (2006).

44 Murphy, 1993, p. 15-158. 45 Murphy, 1993, p. 112. 46 Extraídas de Experiência e Natureza (Cf. Dewey, 1980, p. 37 e 40).

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privilegiam as demais47. Desta forma, para se compreender a continuidade da tradição pragmatista na vertente rortyana, é necessário considerar a acolhida que essa fração do legado filosófico deweyano recebe nos escritos destes autores. Por conseguinte, torna-se necessário abordar grosso modo, algumas idéias quineanas e davidsonianas que são relevantes no pragmatismo e, em particular, no neopragmatismo rortyano. A contribuição dada por Quine revigorou o pragmatismo “que esteve praticamente moribundo” durante as décadas de trinta e quarenta e, modificou substancialmente o cenário filosófico americano nos subseqüentes anos cinqüenta e sessenta porque situou o lugar do pragmatismo no empirismo moderno à medida que afasta este do positivismo lógico. Ao atacar os dois dogmas que condicionaram o empirismo moderno – a “divisão entre verdades analíticas e verdades sintéticas” e o “reducionismo” – e propor o abandono dos mesmos, Quine aponta para duas conseqüências: o desaparecimento gradual da “suposta fronteira entre a metafísica especulativa e a ciência natural” e “a reorientação rumo ao pragmatismo” 48. Para Murphy, o naturalismo tardio que “dominou as últimas três décadas de Dewey”, serviu para aproximá-lo filosoficamente de Quine. A idéia de tal vinculação é reforçada pelo fato da análise lingüística de Quine apontar Dewey como precursor na crítica à noção de linguagem privada, expressa no procedimento de atribuir às palavras e frases significados específicos e previamente determinados49. Ele reforça a sua negação de que cada termo tenha necessariamente um significado único e inalterável ao sustentar que tanto o significado quanto a referência “devem ser explicados em termos de comportamento [lingüístico]” 50. Tal holismo do significado desempenha um papel relevante no neopragmatismo rortyano, à medida que rompe com a distinção entre “significado e significação” – o intrínseco e o extrínseco – e, também, porque permite a manutenção da postura contextualista e antiessencialista no pragmatismo. Por

47 Murphy, 1993, p. 112. 48 Quine, 1980, p. 231. 49 Murphy, 1993, p. 110-111. 50 Murphy, 1993, p. 122.

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conseguinte, Rorty sustenta que os “pragmatistas gostariam de destruir a distinção entre conhecer e usar as coisas”, justamente porque a “pretensão de conhecer X é uma pretensão de estar apto a fazer algo com ou a X, pôr X em relação com outra coisa”51. Em relação a Davidson, a sua contribuição para o pragmatismo pode ser descrita como uma seqüência da crítica quineana aos dogmas do empirismo. Isto porque, de acordo com a sua argumentação no ensaio On the Very Idea of a Conceptual Scheme (1973), além dos dogmas da crença no reducionismo e da crença no dualismo analítico-sintético, temos ainda um terceiro dogma no empirismo para ser refutado: a crença no dualismo esquema-contéudo – a pressuposição de um esquema geral de conceitos ou de um sistema de categorias a priori que, de forma necessária, constitui e condiciona a-historicamente o conteúdo da experiência52. Para assumir a concepção de Rorty – para quem o eu [self] não é algo que tem crenças e desejos, e sim é a própria rede de crenças e desejos –, é necessário concordar com a posição de Davidson que sugere que ao abandonar o dualismo esquema-conteúdo, “abdicamos da suposição de que podemos distinguir mudanças de sentido de mudanças de crenças”, pois para ele, a “crença e o sentido são interdependentes”53. Esta interdependência entre as crenças (e também os desejos e outros estados intencionais) e a realidade (as coisas sensíveis, os fatos e os demais elementos da experiência) inviabiliza a idéia de vincular ambas a partir de uma relação onde as crenças são verdadeiras devido a sua adequação ao mundo; ou, onde o significado e o conhecimento da realidade é possibilitado pela evidência ou justificação fornecida, em última instância, por uma essência – o eu, a mente ou a linguagem54. Em virtude da referida interdependência entre crenças e realidade, Rorty defende uma abordagem holística e contextualista da noção de verdade, onde não há relações representacionais, mas apenas relações causais e lingüísticas. Assim, suas considerações ocorrem no

51 Rorty, 1991b, p. 266. 52 Davidson, 2001, p. 183-198; Murphy, 1993, p. 131-132. 53 Murphy, 1993, p. 133. 54 Murphy, 1993, p. 134-135.

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interior das teorias sobre a verdade. De modo geral, as teorias sobre a verdade estão divididas em dois grupos: o campo das teorias tradicionais ou substantivas e o campo das teorias semânticas – também denominadas minimalistas ou deflacionistas. No lado das teorias tradicionais, que substantivam a verdade, temos a teoria correspondentista, a teoria coerentista e a teoria pragmatista – na versão verificacionista de Peirce e na versão de James-Dewey55. No lado das teorias semânticas, que deflacionam a verdade, temos a tipologia neopragmatista de Rorty. Em relação ao contexto histórico-filosófico que permeia os dois grupos de teorias sobre a verdade, é preciso registrar, ainda que de modo bastante genérico, o evento denominado virada lingüística [linguistic turn], principal fator de mudanças na concepção filosófica contemporânea56. Isto porque a transição da filosofia do paradigma da consciência para o paradigma da linguagem encerra, sobretudo para a investigação sobre a verdade, uma transposição relevante de campo de estudo, ou seja, a filosofia parte da área da metafísica e da epistemologia em direção à área da lógica e da filosofia da linguagem – grosso modo, tal deslocamento consiste numa relativa diminuição do interesse filosófico na busca pela fundamentação e legitimidade teórica do conhecimento e, em contrapartida, numa ampliação gradual de pesquisas voltadas para a análise do sentido, da referência e do significado. Desta maneira, ocorre também uma mudança decisiva no próprio caráter da investigação à medida que, após a virada lingüística, a pergunta sobre a

55 Na terminologia lógica, essas teorias podem ser formuladas, tal como segue: Teoria

da Correspondência: x é verdadeiro sse [se e somente se] x corresponde a um fato; Teoria da Coerência: x é verdadeiro sse [se e somente se] x é um membro de um conjunto de crenças coerente; Teoria Pragmatista: x é verdadeiro sse [se e somente se] x é útil de se acreditar; Teoria Verificacionista: x é verdadeiro sse [se e somente se] x é provável, ou verificável em condições ideais.

56 A definição para esta “revolução filosófica” ocorre em uma obra anterior de Rorty, a saber, The Linguistic Turn: Recent Essays on Philosophical Method, publicada originalmente em 1967: “Entenderei por filosofia lingüística o ponto de vista segundo o qual os problemas filosóficos podem ser resolvidos (ou dissolvidos) reformando a linguagem ou compreendendo melhor a que usamos no presente” (Rorty, 1997, p. 3).

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verdade cede lugar a perguntas sobre os usos da linguagem e, por conseguinte, sobre os usos dos termos verdade e verdadeiro57. Para Rorty, porém, nos dois paradigmas anteriores há insuficiências concernentes ao essencialismo e ao representacionismo, visto que em ambos existem questões ou situações nas quais tanto a mente quanto a linguagem são consideradas um meio de expressão do eu – o sujeito cognoscente – ou de representação do mundo – o objeto a ser conhecido. A fim de evitar estes pressupostos, Rorty defende a necessidade de um terceiro paradigma, o paradigma neopragmático da linguagem, no qual defende uma concepção em que os diversos vocabulários alternativos existentes são considerados não peças de um quebra-cabeça universal, mas sim instrumentos alternativos: não expressam e não representam coisa alguma, apenas servem para diferentes – e às vezes inéditos – propósitos humanos. Dada a complexidade e a extensão do tema da verdade, tanto na filosofia em geral quanto no pragmatismo em particular, encerro esta exposição ciente de que cada tópico abordado – nas teorias clássicas ou nas teorias semânticas – encerra polêmicas maiores e elucidações mais precisas do que as apresentadas aqui58. Na obra Consequences of Pragmatism (1982), especificamente num dos ensaios componentes, intitulado Pragmatism, Relativism, and Irracionalism (1980), Rorty destaca três caracterizações59 para o

57No que se refere às teorias semânticas ou deflacionistas – numa acepção genérica,

teorias que alijam a verdade de um sentido metafísico e substantivo para, em contrapartida, imbuir na mesma um sentido transitório e predicativo –, restringiremos a menção aos três diferentes usos do termo verdadeiro (ou verdade), dados por Rorty a partir de sua leitura de Quine e Davidson: o uso endossador, o uso acautelador e o uso descitacional (Cf. Rorty, 1991a, p. 128).

58 Na obra Truth and Progress (1998) Rorty polemiza contra os filósofos John Searle, Hilary Putnam e Charles Taylor. O filósofo Jürgen Habermas, por sua vez, no texto Coping with contingencies – the return of historicism (1996) critica a provisória lista tríplice de Rorty para os usos do termo verdadeiro.

59 Uma descrição alternativa do pragmatismo rortyano, na qual esta tríade caracterizante aparece no texto “We Pragmatists ...”: Peirce and Rorty in Conversation, de Susan Haack. Nele, há um significativo e exaltado diálogo imaginário entre o pragmaticista Peirce e o neopragmatista Rorty, construído a partir de fragmentos textuais de ambos. Assim como em outras ocasiões, Haack contrapõe o pragmaticismo peirciano ao “pragmatismo vulgar” rortyano, a fim de evidenciar,

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pragmatismo. A primeira caracterização do pragmatismo é a de que “ele é simplesmente anti-essencialismo aplicado a noções como ‘verdade’, ‘conhecimento’, ‘linguagem’, ‘moralidade’ e objetos similares da teorização filosófica”. A segunda caracterização do pragmatismo é a de que “não existe nenhuma diferença epistemológica entre a verdade acerca do que deveria ser e a verdade acerca do que é, tal como não existe nenhuma diferença metafísica entre moralidade e ciência”. E, finalmente, a terceira caracterização, é a de que pragmatismo é “a doutrina segundo a qual não há limitações ao inquérito, salvo as de ordem conversacional” isto é, “não há limitações estabelecidas” que sejam “derivadas da natureza dos objetos, ou da natureza da mente, ou da linguagem, mas apenas limitações avulsas fornecidas pelas observações dos nossos companheiros de inquérito”60. Já no texto Relativism: finding and making [Relativismo: encontrar e fabricar], Rorty caracteriza em linhas gerais a sua versão de pragmatismo. Ele afirma que os adversários do pragmatismo consideram relativistas os filósofos que abandonam a busca platônica por fundamentos e renunciam à idéia kantiana da existência de obrigações morais universais. Os pragmatistas, embora desistam de encontrar um critério de avaliação permanente para as transitórias práticas sociais e, também, desistam de basear a ética em princípios legitimadores universais “incondicionais e transculturais” que estariam fixados numa “natureza humana imutável e a-histórica”61, repudiam o relativismo e o irracionalismo, alegando que apenas criticam um conjunto de termos que perdeu historicamente a sua relevância semântica original, dualismos inadequados à realização dos propósitos humanos. Ao questionarem a eficácia do vocabulário herdado da tradição platônico-aristotélica, os pragmatistas repudiam a concepção de investigação dualista por considerarem que muitas das verdades sustentadas não são encontradas, mas sim, fabricadas e difundidas ao senso comum por esse ultrapassado vocabulário filosófico. Todavia, a formulação dessa acusação nestes termos seria apenas uma variação para

prioritariamente, as diferenças de concepção do significado de pragmatismo nas versões dos dois filósofos (Cf. Haack, 1997, p. 91-107).

60 Rorty, 1982, p. 160-166; Murphy, 1993, p. 141-145. 61 Rorty, 1996, p. 31.

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outro dualismo, a saber, entre o absoluto e o relativo, um vocabulário desqualificado pelos antidualistas porque a sua utilização implica na continuidade das distinções por eles rejeitadas62. Em contrapartida, os adversários dos pragmatistas replicam que “abandonar esse vocabulário é abandonar a racionalidade”63. Assim, a argumentação dos pragmatistas para refutar a acusação de relativismo e irracionalismo, centra-se na idéia de que afirmar a relatividade e a irracionalidade a respeito de qualquer coisa baseia-se na suposição de suas respectivas contrapartes – o absoluto e o racional –; ou seja, existe a crença num conjunto de dualismos servindo de contraponto. Por conseguinte, para os pragmatistas, estas “definições pressupõem justamente as distinções” que eles rejeitam. Entretanto, há a ressalva de que “dividir o mundo em coisas boas e coisas ruins sempre será uma indispensável ferramenta de investigação”64. Na perspectiva neopragmatista, a “investigação humana” (seja ela de caráter filosófico, científico ou político) deve ser “uma tentativa de servir a propósitos transitórios e de resolver problemas transitórios”. Assim, tal como os animais desenvolvem ferramentas (garras, presas, trombas etc.) para melhor se adaptarem ao seu meio ambiente, os seres humanos se valem também do aprimoramento de ferramentas (principalmente a linguagem) para interagir com sua espécie e meio social65. No entanto, nenhuma ferramenta é capaz de romper nosso contato com a realidade, isto independentemente de quem usa a

62Rorty adverte que mesmo se a distinção realidade/aparência fosse substituída por

encontrar/fabricar, não evitaríamos a questão: “teremos nós descoberto ou inventado o surpreendente fato que aquilo que se pensava ser objetivo é, na verdade, subjetivo?”. Se dissermos que descobrimos/encontramos “o fato objetivo de que a verdade é subjetiva”, caímos em contradição; se dissermos que inventamos/fabricamos tal verdade, não haveria porquê acreditarem em nós. Assim, se os pragmatistas tivessem que optar, diriam que muitas verdades científicas e morais são fabricadas e podem ser desfeitas e refeitas. Porém, este dualismo também é incômodo, já que os pragmatistas também não podem formular suas posições “em termos de uma distinção entre o que está fora e o que está dentro de nós” (Rorty, 1996, p. 33).

63 Rorty, 1996, p. 34. 64 Rorty, 1996, p. 34. 65 Rorty, 1996, p. 37-38.

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ferramenta, do lugar e época onde ocorre a ação, dos objetivos pretendidos pelo usuário da referida ferramenta e, também, sem importar a forma assumida pela mesma que pode ser um instrumento material como um martelo, um alicate ou uma foice, ou um instrumento imaterial como uma idéia, uma crença ou, ainda, uma declaração lingüística. Isto porque, na concepção de Rorty, os usos das ferramentas concebidas também fazem parte da interação do organismo com o seu meio ambiente. Este modelo de relação causal, em oposição ao modelo de relação representacional, sustenta que nenhum organismo (humano ou não) em comparação com qualquer outro organismo pode ser considerado, sob quaisquer condições, como possuidor de um maior ou menor contato com a realidade. A noção de linguagem como ferramenta e a noção de crença como hábito de ação desempenham fundamental importância no modelo investigativo neopragmatista à medida que reforçam consideravelmente a atividade de redescrição e o anti-representacionismo. Do ponto de vista pragmático, ambas as noções desqualificam a questão se determinadas crenças representam melhor a realidade do que outras, já que as mesmas são consideradas meios para se atingir determinados objetivos – por exemplo, a realização de desejos – sem a pretensão de saber se ao final nos defrontaremos com a verdade por si mesma. Entendidas como hábitos de ação, as crenças são utilizadas para descrever as coisas conforme os propósitos dos seres humanos; neste contexto, algumas ferramentas servem melhor do que outras em situações e épocas diferentes66. Nessa perspectiva as descrições são concebidas para servir aos propósitos humanos e não para representar a natureza intrínseca da realidade. Assim, a substituição de uma descrição por outra ocorre a partir do critério da eficácia ou utilidade, ou seja, durante a competição entre as mesmas, verifica-se a obsolescência de uma delas à medida que a outra se revela mais eficaz para a consecução de alguns de nossos objetivos. Para Rorty, a grande variedade de descrições candidatas e a diversidade de seus conteúdos fortalecem a posição pragmatista. A miríade de argumentos, descrições e contextos à disposição dos pragmatistas também pode ser verificada na área da

66 Cf. Rorty, 1996, p. 40.

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ética, uma vez que não existe nenhum “limite nítido que separe o injusto do imprudente, o mau do ineficiente”. Para Rorty, aquilo que os opositores do pragmatismo chamam de “firmes princípios morais” são compreendidos como “abreviações de práticas passadas”67, um modo de resumir os hábitos mais admirados em nossos ancestrais. Assim, os princípios morais são considerados também hábitos de ação, os quais vêm sendo reproduzidos durante anos, propiciando práticas virtuosas e igualitárias, mas que, não obstante, se confundem com outras práticas violentas e discriminatórias, igualmente provocadas pelos referidos princípios morais e que constituem a razão do tormento e sofrimento de inúmeras pessoas vitimadas por vinganças, preconceitos e outros tipos de perseguições. Do mesmo modo, apelar para algum princípio legitimador universal, subjacente a toda ação humana, constitui um recurso disponível para qualquer uma das partes envolvidas. Se para defender uma ação controversa fosse necessário justificá-la a partir de um “princípio racional universal”, seria possível imaginar e criar um que se adequasse à situação. No entanto, seria preferível enumerar e circunscrever as justificativas ao contexto de forma a convencer os seus interlocutores que o ato praticado era “a melhor coisa a fazer no momento”68, visto que não há como mensurar ou demonstrar o maior ou menor grau de racionalidade de qualquer defesa. Afinal, os “dilemas morais”, como genocídios, crimes de guerra, controle populacional, fome, racionamento de água e de assistência médica não podem esperar a formulação de princípios morais universais para serem resolvidos. Tais problemas requerem medidas imediatas, ainda que sujeitas a modificações e reformas69. Para Rorty é um erro acreditar que a humanidade compartilha, de forma imanente em cada um de seus membros, uma “aspiração” comum – seja ela denominada “razão”, “natureza humana” ou qualquer outro termo que sugira essencialismo ou determinismo. Deste modo, se as ações humanas atuais provocarem mudanças catastróficas no mundo

67 Rorty, 1996, p. 44. 68 Rorty, 1996, p. 45. 69 É nesse sentido que, no texto Solidarity or objectivity?, Rorty descreve o

pragmatismo antes como uma filosofia da solidariedade do que uma filosofia do desespero (Rorty, 1991a, p.33).

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futuro, transformando-o numa distopia; a humanidade não terá “falhado em corresponder às suas obrigações morais”, ela “terá simplesmente perdido uma oportunidade de ser feliz”. A conclusão de Rorty, sobre as possibilidades de êxito para cada uma das partes no gládio dialógico travado entre os pragmatistas e seus adversários, assume a forma de uma suspeita: que a única providência a ser tomada é “redeclarar incessantemente seus casos num contexto após outro”70.

A tradição pragmatista: conflito de narrativas e pluralismo A trajetória do pragmatismo descrita por Richard Bernstein caracteriza-se pelo uso filosófico da narrativa, isto é, a sua argumentação não só baseia-se em narrativas, mas, também, desenvolve-se através de uma metanarrativa. Bernstein enfoca a tradição pragmática em dois textos71, Pragmatism, Pluralism and Healing of Wounds72 [Pragmatismo, pluralismo e a cura de feridas] (1988) e American Pragmatism: The Conflict of Narratives73 [Pragmatismo americano: o conflito das narrativas] (1995). Em ambos, e de modo bastante similar, ele desenvolve a idéia de que o pragmatismo é constituído por uma pluralidade de tradições, perspectivas e orientações filosóficas heterogêneas e conflitantes entre si. Destaca ainda, a descrição de tradição dada por Alaisdair MacIntyre, empregado-as em ambos os textos referidos como uma espécie de preceito norteador: “Uma tradição não apenas incorpora a narrativa de um argumento, mas só é

70 Rorty, 1996, p. 47. 71 Bernstein realiza, paralelamente à elaboração de uma narrativa argumentativa do

ethos pragmático, uma leitura crítica da filosofia americana e, particularmente, do neopragmatismo – este representado, na maioria das vezes, por Rorty e Hilary Putnam. Embora os dois textos bernsteinianos sejam, sob muitos aspectos, bastante similares, a crítica ocorre predominantemente no primeiro texto (Pragmatism, Pluralism and Healing of Wounds), enquanto que a metanarrativa se desenvolve mais no segundo (American Pragmatism: The Conflict of Narratives). Assim, considerei mais apropriado apresentá-los seqüencialmente, para evidenciar a variação da ênfase que recai nos temas pragmáticos, nos representantes mais expressivos do movimento, no momento histórico inicial da formulação da tradição e, ainda, na recepção, interpretação e difusão de determinadas idéias filosóficas.

72 Menand, 1997, p. 382-401. 73 Saatkamp, 1995. p. 54-67.

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recuperada a partir de um recontar argumentativo desta narrativa, que estará em conflito com outras recontagens argumentativas74. Em Pragmatism, Pluralism and Healing of Wounds, Bernstein analisa a condição da filosofia americana contemporânea a partir de elementos extraídos de um passado filosófico recente e, também, aproveita para discorrer sobre a heterogeneidade e pluralismo que constituem a tradição pragmática. No título desse artigo, as feridas são as conseqüências resultantes do gládio indiretamente travado entre a filosofia nativa – o pragmatismo – e a filosofia estrangeira – o positivismo lógico. Sucintamente, tais feridas podem ser identificadas como o relativo ostracismo no qual caiu o pragmatismo, após a ascensão da filosofia analítica nos departamentos de filosofia americanos; e, também, o preconceito difundido contra a filosofia analítica, compreendida como uma atividade estritamente profissional, voltada somente para a análise conceitual e para o estudo da linguagem e, por conseguinte, apartada das preocupações éticas, políticas e sociais. A cura ou cicatrização destas feridas reside na compreensão de um elemento importante e muitas vezes negligenciado no pragmatismo: o pluralismo. Isto porque, no pragmatismo, a tradição – o “nós” – é “moldado a partir de tradições rivais e conflitantes”. Aqui a idéia de Bernstein é mostrar que geralmente os “temas pragmáticos” predominam na produção intelectual de muitos filósofos de orientações diversas que, todavia, não se consideram pragmatistas. Segundo ele, o pragmatismo não deve ser considerado “um conjunto de doutrinas” ou mesmo “um método”, pois a vitalidade e a diversidade dessa tradição está no fato de ser uma “conversação engajada contínua que consiste em distintas – às vezes competidoras – vozes”75. Sobre a formação, a pluralidade de temas analisados, os procedimentos e respectivas orientações filosóficas dos pragmatistas clássicos, Bernstein recorda: Peirce era um “cientista experimental praticante” que se considerava “um lógico”; alguém que estudara detidamente as “categorias kantianas” e também se identificava com o “realismo escolástico” de Duns Scotus. James, por sua vez, fora

74 Bernstein, 1997, p. 382-383; 1995, p. 54. 75 Bernstein, 1997, p. 382-383.

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“treinado como um médico, e as suas especulações filosóficas desenvolveram-se a partir de suas investigações psicológicas”; possuía “afinidades filosóficas profundas com a tradição do empirismo britânico”, embora criticasse a sua “noção de experiência”. A respeito de Dewey, consta que ele foi um dos “primeiros a receber um Ph.D em filosofia” e, enquanto estudante, fora bastante influenciado pelo “hegelianismo”76. Outro dado importante referente ao período de formação do pragmatismo, é que naquela época não havia, como se pretende hoje, demarcações rígidas entre as diversas áreas do conhecimento. Uma fluidez maior existente entre as disciplinas e os seus modelos de investigação, contribuíam para que os pragmatistas se deslocassem livremente entre as mesmas e tivessem uma liberdade de ação mais abrangente. Para Bernstein, cinco temas interdependentes caracterizam o ethos pragmático77: 1) o anti-fundacionismo; 2) o falibilismo; 3) o caráter social do eu e a necessidade de criação de uma comunidade crítica de investigadores; 4) a contingência; e 5) a pluralidade78. Assim, é possível encontrar tais temas presentes nas obras dos pragmatistas clássicos e variações nas obras de pragmatistas posteriores como Quine, uma vez que a continuidade desta tradição, na perspectiva bernsteiniana, se processa também através do refinamento temático. Embora o termo anti-fundacionismo não tenha sido empregado pelos pragmatistas originais, é inegável que haja no arsenal anti-fundacionista argumentos pragmáticos. Em Some Consequences of Four Incapacities, Peirce ataca a idéia cartesiana de que o conhecimento em geral pode ser estabelecido a partir de fundações fixas e que, ainda, pode-se ter ciência de tais fundações a partir da faculdade denominada introspecção79. E, contra a idéia de que, após a recusa do fundacionismo, as únicas alternativas restantes são o ceticismo e o relativismo, Peirce argumenta

76 Bernstein, 1997, p. 384. 77 A expressão ethos pragmático, no contexto em que Bernstein a emprega, designa os

temas, pressupostos e compromissos compartilhados – em maior ou menor grau, inclusive com ênfases diferenciadas e procedimentos divergentes – pelo pragmatismo americano.

78 Bernstein, 1997, p. 385-389. 79 Bernstein, 1997, p. 385.

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em prol da posição falibilista. Na perspectiva do falibilismo, é inconcebível a idéia de que haja qualquer coisa, inclusive uma filosofia, imune a interpretações adicionais ou correções posteriores80. Dado que todos os seres humanos são sujeitos a falhas e erros, as alterações necessárias a toda idéia e teoria devem provir de algo – igualmente falho e sujeito a erros – que possa contar com maiores possibilidades de sucesso, ou seja, as intervenções que passarem pelo crivo de especialistas. Assim, é importante notar que, enquanto Peirce condicionou a sua teoria verificacionista de verdade ao ideal regulativo de uma comunidade crítica de investigadores especialistas, Dewey, por sua vez, concentrou-se na idéia de comunidade para entender a idéia moral de democracia. Neste aspecto, a ressalva concerne precisamente ao fato de que, embora haja dúvidas sobre a idéia de uma “convergência ideal” na investigação, isto, necessariamente, não deve “arruinar a necessidade de sempre recorrer a uma comunidade crítica”. Isto porque, através do confronto com outras idéias e críticas podemos “determinar o que é idiossincrático, limitado e parcial”81. Antes de abordar a pluralidade, o último dos temas componentes e relacionados ao ethos pragmático, Bernstein retorna ao tema das feridas filosóficas. Ele afirma que é preciso separar os avanços conquistados pela filosofia analítica de sua “ideologia arrogante” que, freqüentemente, proclamava o método analítico como o “único modo sério de se fazer filosofia”. Esta crença, conseqüentemente, era seguida de uma atitude hostil e desdenhosa para com outras orientações filosóficas82. Na atualidade, Bernstein afirma que “esta ideologia, ainda é uma fonte de violência intelectual e de feridas em nossa profissão”83. Todavia, o pessimismo é substituído pela constatação otimista de que esta concepção está se tornando arcaica e superada. E o colapso desta ideologia ocorreu devido tanto a fatores externos quanto a fatores internos. Dentre os fatores externos, o principal foi a resistência de

80 Bernstein, 1997, p. 387. 81 Bernstein, 1997, p. 388. 82 Sobre esse tema, Rorty recorda que os filósofos analíticos, que viam a si próprios

como “filósofos profissionais”, classificavam os filósofos que faziam história da filosofia como, meramente, “mercadores de opinião” (Rorty, 2006, p. 60).

83 Bernstein, 1997, p. 393.

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outras orientações filosóficas (não-analíticas), tais como “a fenomenologia, a hermenêutica, a teoria crítica e a variedade de estruturalismo e pós-estruturalismo”. Dentre os fatores internos, o principal foi o fato de que autores consagrados na área da filosofia analítica, tais como Rorty, MacIntyre e Putnam criticaram, de modos diferentes, “os preconceitos excludentes da ideologia analítica”, a “tendência de fixar limites”, e, por conseguinte, contribuíram para o diálogo entre as vertentes filosóficas – “conversação filosófica”, no jargão rortyano84. Assim, para Bernstein, é tolice pensar numa divisão filosófica dual: anglo-americana analítica ou continental européia85. Bernstein afirma que as “batalhas ideológicas” de sua geração “estão começando a parecer remotas e irrelevantes”; e também que “as cicatrizes das feridas dessas batalhas ainda permanecem, mas há sinais encorajadores do aparecimento de um novo ethos que sustenta fortes afinidades com o ethos característico das fases formadoras do movimento pragmático”. Dentre estes sinais – como veremos posteriormente nos textos de Rorty –, podemos notar o crescente diálogo da filosofia com áreas como a literatura, a história, a medicina, o direito, a sociologia, a antropologia, a política etc. A respeito disso, Bernstein escreve que “alguns de nós estamos começando a descobrir que compartilhamos mais intelectualmente com colegas treinados em disciplinas diferentes do que com nossos próprios colegas dos departamentos de filosofia”86. De volta ao tema do pluralismo, Bernstein toma a precaução de distinguir o pluralismo pragmático de outras pluralizações extremas, tais como: o pluralismo fragmentar (“fragmenting pluralism”), no qual a comunicação ocorre apenas entre as pessoas de um “pequeno grupo”, visto que a linguagem excessivamente diferente e os preconceitos muito idiossincráticos restringem a extensão da conversação para pessoas que não compartilhem de tais elementos; o pluralismo flácido (“flabby pluralism”), no qual os “empréstimos de orientações diferentes” são um mero “furto superficial e lisonjeiro”; o pluralismo polêmico (“polemical pluralism”), no qual a atenção voltada para o pluralismo não significa

84 Bernstein, 1997, p. 393-394. 85 Ver também Prado Jr., 2003, p. 17; 23-24. 86 Bernstein, 1997, p. 395-396.

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uma vontade genuína de escutar e aprender com outros, mas antes uma “arma ideológica” para avançar a sua própria orientação sobre as demais; o pluralismo defensivo (“defensive pluralism”), situação na qual dialoga-se com outros, mas com uma predisposição para a idéia de que não há nada de importante para ser apreendido deles. Para diferenciar o pluralismo componente do ethos pragmático dos demais tipos de pluralismos, Bernstein denomina o representante da tradição pragmatista de pluralismo falibilista engajado (“engajed fallibilistic pluralism”), algo que na sua concepção, “põe novas responsabilidades em cada um de nós”87. O pluralismo falibilista engajado, característico da tradição pragmática, age como um dos fatores de cura para as feridas ideológicas e filosóficas. A partir da balsâmica posição pluralista, a torpe divisão entre filosofia nativa e filosofia estrangeira torna-se insustentável. Nesta condição, uma boa conseqüência extraída do relativo predomínio analítico exercido no cenário filosófico americano de outrora está no fato do mesmo ter “encorajado o estilo adversário ou confronte de argumentação”. Assim, temos a idéia de que a formação de uma tradição é “uma realização frágil e temporária que sempre pode ser rompida por contingências inesperadas”88. Logo, na história do pragmatismo, o que existe desde sempre é uma tradição na qual a conversação, necessária para a realização do “nós” (da tradição), não exclui atitudes conflitantes e discordantes. Em suma, Bernstein exige que os filósofos reajam ao pluralismo com “respostas e responsabilidades” 89, tanto para os seus colegas de profissão quanto para a sociedade; algo que, na ausência de um paliativo mais eficaz, parece ser o principal fator de cura das feridas filosóficas. Em American Pragmatism: The Conflict of Narratives, Bernstein retoma a temática do pluralismo na tradição do pragmatismo. Entretanto, neste texto, a ênfase fica na questão da narrativa. Segundo ele, quando nos referimos ao “nós” de uma tradição, esta idéia é inevitavelmente acompanhada pela questão de como especificar a significação de “nós” – já que, no pragmatismo, o “nós” refere-se a um

87 Bernstein, 1997, p. 397. 88 Bernstein, 1997, p. 398. 89 Bernstein, 1997, p. 401.

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grupo cuja heterogeneidade é ainda mais forte no presente do que no passado. Desse modo, a descrição de MacIntyre para tradição, dada anteriormente, torna-se necessária para evitar que o legado temático pragmatista seja interpretado de tal maneira que o mesmo acabe fixado num período específico e considerado exclusividade de um grupo somente – e não de diversos e conflitantes grupos situados em épocas distintas. A maioria das conseqüências exploradas por Bernstein decorre da constatação que o pragmatismo é, em primeiro lugar, “constituído pelas narrativas que contamos sobre o pragmatismo”. Essa afirmação descarta a idéia de primazia entre as narrativas: quaisquer relatos, tanto dos pragmatistas fundadores quanto dos demais integrantes desta tradição, são passíveis de periodização, mas não de hierarquização, uma vez que, em última instância, não seriam excludentes. Em segundo lugar, ele afirma, a história do pragmatismo tem sido, desde os seus primórdios até os dias atuais, “um conflito de narrativas”. Em terceiro lugar, a história do pragmatismo também tem sido “um conflito de metanarrativas” e que “há piores e melhores narrativas e metanarrativas”, dentre as quais podemos escolher e argumentar pela melhor. E, em quarto lugar, devemos compreender que a história futura do pragmatismo, tenderá ao reconhecimento da “continuidade de sua temática”, ou seja, ela será “uma contínua série de explicações e controvérsias sobre persistentes temas pragmáticos”90. Essas quatro proposições e não só a última, são perpassadas pelos temas pragmáticos: o anti-fundacionismo, o falibilismo, o caráter social do eu e a necessidade de criação de uma comunidade crítica de investigadores, a contingência e a pluralidade. A pluralidade de narrativas conflitantes, constituintes da tradição pragmatista é exemplificada por Bernstein, em diversos episódios – alguns dos quais mencionados nos itens anteriores, em virtude da breve exposição sobre os pragmatistas clássicos. Ele cita a conferência de James pronunciada à comunidade filosófica americana em 1898, na qual introduz o termo pragmatismo, ampliando o sentido original “do princípio de Peirce, o princípio do pragmatismo”; e cita

90 Bernstein, 1995, p. 55.

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entes”93.

também a célebre e mordaz passagem no artigo What Pragmatism Is de Peirce, em 1905, no qual execra os “raptores” do pragmatismo – James e Schiller – e substitui o termo que lhe fora arrebatado pelo termo alternativo pragmaticismo. Do mesmo modo, a situação pluralista pragmática é ilustrada pela versão de Dewey sobre a tradição pragmatista, no início dos anos 1920, no artigo O desenvolvimento do pragmatismo americano. Todavia, Bernstein menciona ainda a relutância de Dewey em usar a palavra pragmatismo para “caracterizar a sua própria orientação” – a sua preferência recaiu sobre o termo “instrumentalismo”91. A essas narrativas conflitantes clássicas, juntam-se as narrativas contemporâneas realizadas por Putnam, Haack, Rorty e pelo próprio Bernstein que, ao polemizarem com seus pares filosóficos, priorizam a contribuição de um ou outro pragmatista pioneiro. Todavia, isto não significa que Bernstein, por exemplo, ignore a expressiva participação de outros personagens na história do pragmatismo. Ao contrário, em conformidade com o preceito de pluralismo pragmático, ele sustenta que não existe “qualquer essência do pragmatismo” ou ainda um “conjunto bem definido de compromissos ou preposições que todos os assim chamados pragmatistas compartilham”92. Ao contrário, a “riqueza e a difusão da tradição pragmatista” reside justamente na “variedade de vozes e narrativas que contam a história do pragmatismo, ainda que estas sejam “fortemente dissid Essa idéia de compreender o pragmatismo como sendo constituído no transcorrer de várias épocas por narrativas e metanarrativas diversas e conflitantes, também não significa esquivar-se da questão referente à escolha entre a multiplicidade de narrativas e metanarrativas existentes. Trata-se, porém, de defrontar-se com as mesmas e eleger uma ou mais narrativas e metanarrativas em detrimento de outras. Para isso, Bernstein afirma haver melhores e piores narrativas e metanarrativas, dentre as quais é possível escolher pragmaticamente. E exemplifica:

91 Bernstein, 1995, p. 57-59. 92 Bernstein, 1995, p. 61. 93 Bernstein, 1995, p. 61.

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Mas quero chegar ao que muitos outros podem considerar a parte mais controversa de minha metanarrativa. Pois quero criticar o que ainda é amplamente acreditado sobre a emergência e o declínio do pragmatismo. Para ser deliberadamente provocativo, chamarei isto de história ‘nostálgica’ e ‘sentimental’ do pragmatismo. Ela é algo semelhante a isto: Outrora havia uma idade de ouro da filosofia americana e do pragmatismo americano. Este foi o tempo de gigantes intelectuais tais como Peirce, James, Royce, Santayana, Dewey e Mead. A despeito de suas diferenças – e mesmo de seus agudos antagonismos – eles todos compartilhavam um campo enorme de interesses e audácia especulativa. Porém, houve um significativo declínio no impulso criativo da filosofia americana e no pragmatismo americano. A América foi invadida por influências estrangeiras – positivismo, empirismo lógico, análise da linguagem ordinária, que eventualmente ficaram coaguladas no convencimento ideológico do establishment analítico. No fim da Segunda Guerra Mundial, os departamentos de filosofia – com poucas exceções – foram transformados de modo que os assim chamados filósofos americanos clássicos foram marginalizados. Aqueles que ainda levavam os pensadores pragmatistas a sério encontraram-se na defensiva. [...] Assim, mesmo quando filósofos que foram formados pelo ethos analítico usam o termo pragmatismo favoravelmente, eles o esvaziam – certamente, o estripam – do significado rico que ele tinha (Bernstein, 1995, p. 61-62).

Assim, escolher pragmaticamente significa ponderar sobre as prováveis conseqüências que a assunção de determinadas narrativas possa acarretar para a tradição pragmatista. Ao recordar a menção de Bernstein aos ferimentos causados pelas batalhas ideológico-filosóficas e sua crítica aos preconceitos que muitos de seus colegas nutrem contra o uso filosófico da narrativa compreendemos o motivo que o faz sustentar a divisão entre piores e melhores narrativas e metanarrativas. Em relação ao episódio citado acima, Bernstein acredita se tratar de uma “metanarrativa de ascensão e queda do pragmatismo” que “distorce e obscurece os acontecimentos”. Algo que, “nos cega para apreciar a continuidade dos interesses pragmáticos”; e, pior ainda, “tende a reforçar um provincianismo despragmatizado e desliza para a tentação de demonizar a filosofia analítica”94. Em suma, tais atitudes são incompatíveis com o pluralismo que a tradição pragmatista advoga. Ele conclui:

94 Bernstein, 1995, p. 62.

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Não estou sugerindo que é inapropriado tentar especificar – como James, Peirce, Dewey, Rorty, Putnam e mesmo eu fizemos – o que se deve tomar como as características primárias de orientação pragmatista. Isto é essencial para nosso “recontar argumentativo”. [...] Deveríamos precaver-nos de quem exige que haja critérios fixos pelos quais possamos decidir quem é e quem não é pragmatista. Tal fixação de fronteira não é somente não pragmatista, freqüentemente é usada como um jogo de poder para legitimar pré-julgamentos não examinados. E aqueles de nós que identificam a nós mesmos com a tradição pragmatista devem estar alerta diante do abuso de tal fixação de fronteira – pois isto tem servido para marginalizar o pragmatismo. Parodiando ligeiramente as observações concluintes de Rorty em Philosophy and the Mirror of Nature, eu diria: o único ponto sobre o qual nós devemos insistir é que o interesse do pragmatista deve ser com a continuidade da argumentação – continuar nosso recontar argumentativo do legado pragmático que estará em conflito com outros recontar argumentativos. Este é o modo pelo qual honramos o imperativo: Não bloquear o caminho da investigação! (Bernstein, 1995, p. 67).

Em sua Resposta a Richard Bernstein, Rorty concorda com a atitude bernsteiniana na qual “sempre há espaço para expandir tais narrativas, alcançando mais alguém, incorporando figuras adicionais”. Ele também afirma que, quando usa a recorrente – e bastante objetada – frase “nós, pragmatistas” na construção de suas narrativas está, entre outras coisas, “implicitamente dizendo: tentarei, nesta oportunidade, ignorar as diferenças entre Putnam e Peirce, Nietzsche e James, Davidson e Dewey, Sellars e Wittgenstein”95. Assim, a narrativa rortyana privilegia as similaridades em detrimento das diferenças na esperança de que surjam novos e importantes elementos em comum entre os autores visados. Considerações finais A posição sustentada por Bernstein em relação ao pragmatismo não encerra as polêmicas em torno das leituras controversas, das posturas idiossincráticas e das aproximações intrigantes entre autores e áreas que, através dos tempos, tematizam o pragmatismo e seus representantes. Nessa perspectiva, os termos pragmatismo e neopragmatismo foram usados para situar historicamente a tradição filosófica norte-americana e para diferenciar o pragmatismo clássico da reconfiguração traçada por

95 Rorty, 1995, p. 68-69.

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Richard Rorty. Ainda que ele use ambos os termos, a primeira forma é a mais recorrente em seus escritos, pois ele prefere acentuar os pontos de convergência e minimizar os pontos de divergência entre os pragmatistas originais e os contemporâneos, reforçando textualmente a defesa de sua posição com a expressão “nós, pragmatistas...”. Assim, embora a relutância de Rorty em se defrontar com a tradição pareça encerrar tacitamente uma solução simplista que consistiria em considerar as diferenças teóricas no pragmatismo apenas como uma questão de mudança de época (a transição do século XIX para o XX) e de objeto de estudo (a noção de experiência nos pragmatistas clássicos para a noção de linguagem nos contemporâneos), tal revisão do pragmatismo também pode ser lida, na transição do século XX para o XXI, à luz de sua tentativa de redefinir a atividade filosófica96. Portanto, essa reconfiguração histórica ou redescrição do pragmatismo também pode ser vista como parte de um projeto maior que envolve a redescrição da própria Filosofia. No entanto, visto que estamos longe de encerrar a polêmica entre pragmatistas e neopragmatistas acerca dos usos e abusos cometidos na tradição, faz-se necessário recorrer à perspectiva bernsteiniana, que não se arroga definitiva, mas é eficaz na tarefa de auxiliar a compreender a abrangente filosofia pragmatista, acentuando-lhe o aspecto pluralista e atribuindo-lhe um compromisso comum: a manutenção e expansão do diálogo, ainda que seja através de vozes dissonantes, mas igualmente responsáveis pela continuidade da tradição. Referências BERNSTEIN, R. American Pragmatism: The Conflict of Narratives. In: SAATKAMP Jr., H. J. (ed.). Rorty & Pragmatism: The Philosopher Responds to his Critics. Nashville/London: Vanderbilt University Press, 1995. p. 54-67. _______. Pragmatism, Pluralism, and the Healing of Wounds. In: MENAND, L. (ed.). Pragmatism. New York: Vintage, 1997. p. 382-401.

96 Cf. Silva, 2008.

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 135-166

Apercepção versus percepção: os espíritos na cosmologia leibniziana

Celi Hirata*

Resumo: Leibniz afirma que toda mônada expressa o universo inteiro de uma determinada perspectiva. A partir daí, todas os seres criados harmonizam-se entre si, já que todos representam o mesmo mundo, ao mesmo tempo em que cada um se individualiza por meio de seu ponto de vista próprio que • afirma o autor em alguns textos-chave • é determinado pelo lugar que o seu corpo correspondente ocupa. Entretanto, se a limitação dos graus de distinção das representações se dá meramente por uma analogia com o espaço e o tempo, como explicar a capacidade dos espíritos de atingir as verdades necessárias e eternas e de constituir uma ciência? A fim de elucidar esta sobrelevação e destacamento dos espíritos em relação aos demais seres criados, introduziremos a atividade da apercepção e sua diferença em relação à percepção, atividade comum a todas as mônadas. Palavras-chave: Apercepção, Espíritos, Expressão, Percepção, Perspectiva Abstract: Leibniz states that every monad expresses the hole universe from a determined perspective. Therefore, all created beeings harmonize with each other, once that all of them represent the same world, as well each one individuates itself by means of its own point of view, which is determined by the place that its correspondent body occupies. However, if the capacity of representation is merely limited by space and time, how could one explain the capacity of spirits to grasp necessary and eternal truths and to establish science? In order to make this point clear I will introduce the aperception activity and distinguish it from the perception, that is common to all monads. Keywords: Aperception, Espirits, Expression, Perception, Perspective 1 A mônada e a sua perspectiva: integração e alteridade Na Monadologia, obra de maturidade, Leibniz inicia o seu discurso acerca da estrutura da realidade com a introdução dos elementos que compõem e respondem pela consistência ontológica do mundo criado: “a Mônada de que aqui falaremos não é outra coisa senão uma substância simples, que entra nos compostos; simples quer dizer sem

* Doutoranda pela USP. E-mail: [email protected]. Artigo recebido em

31.10.2008, aprovado em 18.12.2008.

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partes”1 Ou seja, o que caracteriza as substâncias na Monadologia é, em primeiro lugar, a simplicidade ou ausência de partes, em contraposição com a caracterização inicial dos Princípios da Natureza e da Graça, na qual a substância é definida como ser capaz de ação ou no Discurso de Metafísica, onde a substância individual é classicamente descrita como sujeito de seus predicados. Ora, uma vez que as mônadas constituem os últimos elementos da realidade criada, cabe a estes seres simples responderem por toda a riqueza e variedade observáveis no mundo, pois a realidade dos compostos só pode provir de suas partes. Daí não ser contraditório, mas muito pelo contrário, ser uma conseqüência da simplicidade da mônada a sua complexidade enquanto ser inteiramente determinado. Isto por uma dupla razão: em primeiro lugar porque, como apontado por Leibniz no parágrafo sete da Monadologia, sendo as mônadas simples, elas não podem ser alteradas mecanicamente por mudança de proporção entre as partes, o que significa que as mudanças que nelas ocorrem têm de provir delas mesmas. Ora, é justamente esta uma das mais famosas afirmações de nosso autor: “as Mônadas não têm janelas pelas quais algo possa entrar ou sair”2, mas são, ao contrário, seres nos quais tudo brota de sua própria espontaneidade. Em segundo lugar, deve-se recorrer ao critério geral de atribuição lógica, segundo o qual à pluralidade dos predicados corresponde a unidade do sujeito: onde não há um ser, não há um ser3, isto é, somente o que é uno pode ser real e portar qualidades ou atributos. Deste modo, as mônadas, conquanto simples, são seres dotados de uma multiplicidade de produções a elas inerentes que, afirma Leibniz na Monadologia, não podem consistir em nada além de percepções e suas mudanças4, isto é, “o estado passageiro que envolve ou representa uma multiplicidade na unidade” e “a ação do princípio

1 Monadologia, § 1, p. 131, in Discurso de metafísica e outros textos. 2Monadologia, § 7, p. 132. 3 Carta de Leibniz a Arnauld, in Die Philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm

Leibniz (doravante referido pela sigla GP, seguido do volume e do número da página), volume II, p. 97.

4 Monadologia, §17, p. 134.

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interno que faz a mudança ou a passagem de uma percepção a outra”5, que o autor denomina apetição. Assim, se nas obras de dinâmica dos anos de 1694 e 95, como na “Reforma da filosofia primeira e a noção de substância” e no “Novo sistema da natureza e da comunicação das substâncias”, o filósofo de Hannover caracteriza as substâncias primordialmente pela noção de força, intentando com isso mostrar a insuficiência da explicação puramente mecânica com relação às causas dos fenômenos naturais, na Monadologia, ao definir a ação das substâncias criadas como percepção e apetição, ele coloca em relevo o jogo da singularidade com a pluralidade, determinando, deste modo, a relação da unidade com o composto como representação ou expressão. Segue-se disto que a percepção, por ser justamente a multiplicidade na unidade, é o que garante a coerência e a identidade da mônada tanto face à pluralidade de seus estados, quanto às demais substâncias criadas que compõem este mundo: ora, uma vez que nenhum ser real poderia subsistir sem qualidades6, sem agir espontaneamente e continuamente, pois assim como “as ações pertencem a sujeitos”, “a recíproca é verdadeira: os sujeitos agem sem interrupção”7 e posto que essas diferenciações no interior delas consistem nas percepções e nas suas modificações, é preciso que esta atividade representativa seja constante nas mônadas. As percepções, provindo uma da outra por meio das apetições de maneira ininterrupta e gradual, são o que garante a coesão entre os diversos estados da mônada, já que cada uma, ainda que seja passageira, exprime não somente todas as passadas, mas também as futuras8 e, se pensarmos a substância criada e suas qualidades na chave do sujeito e seus predicados, como é dada a conhecer no Discurso de Metafísica, a sucessão seqüenciada das representações dos compostos na unidade é o que propicia, por meio da explicitação contínua da inerência dos predicados a um mesmo sujeito, a afirmação da identidade da mônada no decorrer do tempo.

5 Idem, § 14 e 15, p. 133. 6 Idem, §8, p. 132. 7 “De Ipsa Natura”, § 9, in Escritos Filosoficos, p. 491. 8 Monadologia, §22, p. 135.

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Mas mais ainda, a percepção e a apetição, que fazem com que a mônada represente o que está no seu exterior, garantem também a coerência de cada uma com todas as demais, realizando não só a sucessão temporal dos predicados na substância criada, como também, por assim dizer, a coesão na ordem das coexistências, isto é, no espaço9, já que através da representação as mônadas harmonizam-se entre si. Sendo multiplicidade na unidade, a percepção envolve o universo inteiro com todas as suas relações e o estado interno de cada mônada expressa o estado de todas as demais. Ora, de modo a existir como um conjunto ordenado, isto é, como um mundo (e mais ainda: como o melhor dos mundos possíveis), é preciso que todas as suas partes e elementos reportem-se entre si, mantendo uma correlação regrada. E, se as mônadas não envolvessem a referência a outras, elas não representariam nada e não teriam qualquer função10. Daí ser o pertencimento das criaturas a um mesmo mundo viabilizado pela identidade do referente de percepção de todas as mônadas, sendo o universo inteiro o conteúdo representado em cada estado interno da substância finita, de modo que haja uma harmonia entre todos os seres deste mundo. Constitui, porém, um dos principais princípios da metafísica leibniziana o da identidade dos indiscerníveis, segundo o qual dois seres nunca podem ser absolutamente idênticos – “é preciso mesmo que cada Mônada seja diferente de cada uma das outras. Pois nunca há na natureza dois Seres que sejam perfeitamente iguais um ao outro e nos quais não seja possível encontrar uma diferença interna ou fundada em uma denominação intrínseca”.11 Entretanto, uma vez que só se encontram nas mônadas percepções e suas modificações e uma vez que todas as substâncias criadas representam o mesmo universo, isto é, todas possuem o mesmo conteúdo perceptivo, como é que elas podem diferir entre si? Dito de outra forma, como garantir a alteridade de cada ser face à identidade que impregna os estados internos de cada um,

9 Disto tratarei depois. 10 Carta de Leibniz à princesa Sofia, in GP VII, p. 556. 11 Monadologia, §9, p. 132.

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dado que todas as criaturas representam a mesma coisa, isto é, o mundo? É aí que a consideração do ponto de vista próprio a cada criatura mostra-se fundamental. Se a percepção, multiplicidade na unidade, é o que garante a identidade da mônada face à pluralidade, não só de seus estados internos ou predicados, mas também das infinitas mônadas que compõem este mundo, é porque, com relação às percepções, apesar da identidade do conteúdo representado, a maneira como cada uma o faz é essencialmente diferente das demais: “cada Mônada é um Espelho vivo, ou dotado de ação interna, representativo do universo, segundo seu ponto de vista”.12 Segundo seu ponto de vista quer dizer: de uma maneira que lhe é própria e que a distingue de todas as demais, fazendo com que a representação de cada uma possua uma determinada ordem, uma lei de desenvolvimento distinta de todas as demais. Assim, no plano da consideração da mônada, a qualidade de representar o mundo inteiro de uma determinada perspectiva é o que permite conciliar a sua inclusão no cosmos com a sua inalienável identidade: ao mesmo tempo em que cada substância criada se coaduna com todas as demais por meio da expressão comum, que possui o mesmo referente, visando o mesmo objeto de representação, ela mantém sua alteridade, já que a maneira como ela o faz não se identifica com nenhuma outra, mas faz a sua marca própria. Que a qualidade de representar de uma determinada perspectiva própria o universo inteiro, com todos os seus acontecimentos, seja o que garanta à substância criada, considerada nela mesma, tanto a sua inserção harmônica no mundo, por um lado, quanto a sua identidade ou, o que é o mesmo, alteridade face às demais, por outro, parece no momento parcialmente esclarecido. Permanece ainda, entretanto, a questão de como é que as mônadas chegam a possuir essa propriedade, isto é, como se explica que as criaturas, que são seres finitos, possam exprimir o infinito. E também fica em aberto a pergunta inversa: como é que, envolvendo o infinito, as mônadas permanecem limitadas e não se tornam deuses? Já ficou

12 Princípios da Natureza e da Graça, §3, in Discurso de Metafísica e outros textos, p.

154 (itálicos meus).

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afirmado que apenas um ser uno e indivisível pode ser real e portar determinações, entretanto, não se compreende ainda isto: como sucede às mônadas, seres simples ou, como Leibniz também as denomina, pontos metafísicos, espelhar o mundo inteiro, sendo que a cada estado interno dela corresponde os estados das demais partes do universo, universo que é, por sua vez, infinito? E ainda: como é que a perspectiva de cada substância criada é determinada? É a estas questões que o nosso autor pretende responder no seguinte trecho da Monadologia:

E nisto os compostos simbolizam os simples. Pois como tudo é pleno, e toda a matéria, por conseguinte, ligada, e como no pleno todo movimento produz algum efeito sobre os corpos distantes, segundo a distância, de maneira que cada corpo é afetado não só por aqueles que o tocam, ressentindo-se de algum modo de tudo o que lhes ocorre, como também por meio destes ressente-se ainda dos que tocam os primeiros com os quais está imediatamente em contato. Donde se segue que esta comunicação atinge qualquer distância. E por conseguinte todo corpo ressente-se de tudo o que se faz no universo, de tal modo que aquele que tudo visse poderia ler em cada um o que se faz em toda parte, e mesmo o que ocorreu e o que ocorrerá, observando no presente o que está distante tanto nos tempos como nos lugares (...) Assim, ainda que cada Mônada criada represente todo o universo, ela representa com maior distinção o corpo que lhe é particularmente afetado e cuja enteléquia constitui; e como esse corpo expressa todo o universo pela conexão de toda a matéria no pleno, a Alma representa também todo o universo ao representar este corpo que lhe pertence de maneira particular13

Neste trecho, Leibniz parece inverter a ordem de causação que está exposta nos parágrafos iniciais desta mesma obra – se lá, ele argumenta que a realidade dos divisíveis só pode advir dos que são indivisíveis, isto é, os agregados só podem compor-se de ingredientes simples, discursando, assim, acerca daqueles a partir destes, aqui ele parte do que se dá nos compostos para dar conta do que ocorre no interior das mônadas: neste ponto de sua Monadologia, o filósofo recorre a princípios provenientes da mecânica, a saber, que o movimento se propaga por meio do contato e que, de acordo com a inércia, ele difunde-se com intensidade proporcional aos obstáculos que

13 Monadologia, § 61 e 62, p. 142 e 143, itálico meu.

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se lhe impõem, para explicar tanto por que as mônadas percebem tudo o que lhe é exterior como a razão pela qual elas representam de um modo determinado, que é, notadamente, com maior distinção ao que está próximo ao corpo que lhe pertence de maneira particular, sendo que ela expressa tanto mais confusamente quanto maior é a distância do que está representado. Assim, supondo-se, além dos princípios mecânicos acima mencionados, que toda substância criada exprime particularmente o corpo do qual é enteléquia e que o universo é pleno de corpos, explica-se a propriedade da mônada de envolver em si mesma, através de suas representações ou percepções, o infinito, considerado tanto espacialmente, com relação às distâncias, quanto temporalmente, já que no mundo tudo é inteiramente ligado, sendo o presente carregado do passado e prenhe do futuro. Daí poder a mônada ser pensada “como um centro expressivo ou ponto no qual, por mais simples que seja, existem uma infinidade de ângulos formados pelas linhas que para ele convergem”.14 Mas não se pode esquecer que Leibniz, contrariamente a empiristas como Locke, é um inatista que recusa a influência nas mônadas do que provém do exterior. Com efeito, o nosso autor afirma no já citado sétimo parágrafo da Monadologia, que as mônadas não possuem janelas: qualquer tipo de influência ou comunicação que haja entre elas só pode ser ideal e de modo algum real15. Assim, quando se lê com mais cuidado o trecho supracitado, vê-se que o autor emprega o termo “simbolizam” para caracterizar a relação entre os compostos e os simples, o que quer dizer, que os corpos e o efeito que a propagação do movimento neles causa expressam o que se dá nas substâncias criadas. Com isso, pois, o autor não quer defender que o que ocorre naqueles seja a causa ou o fundamento do que se dá nestas. Dito de outra forma, trata-se de uma analogia que visa pôr em relevo que a maneira como cada corpo é afetado pelos demais corresponde ao modo como cada alma representa o mundo inteiro de uma perspectiva, perspectiva que expressa o lugar onde o corpo está situado. Ainda que, no rigor metafísico, as substâncias sejam perfeitamente espontâneas, consistindo

14 Princípios da Natureza e da Graça, § 2, p. 154. 15 Monadologia, § 51, p. 140.

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toda mudança sua numa conseqüência de seu estado interno anterior, é pertinente referir-se aos corpos e suas modificações na medida em que as percepções na mônada mantêm uma relação constante e regrada – relação que constitui justamente a expressão16 – com as coisas que estão fora dela, isto é: os estados internos da substância simples desenvolvem-se de maneira coerente com os acontecimentos do mundo, dando-se uma simultaneidade entre o representante e o representado. Ora, é justamente isto que Leibniz pretende afirmar com a sua hipótese da harmonia preestabelecida, que visa dar conta do problema da relação entre alma e corpo que fora inaugurado pelo dualismo cartesiano. Com ela, o filósofo de Hannover intenta fornecer uma explicação que escape tanto à via vulgar, segundo a qual há uma real comunicação entre alma e corpo, que ele não pode aceitar já que o que não tem partes e o que é extenso não são comensuráveis entre si, quanto à dos ocasionalistas, seguidores de Malebranche – que Leibniz enquadra sob a denominação de “cartesianos” – , que defendem que o acordo entre ambos se dá mediante uma intervenção divina pontual, o que, para o nosso autor, introduziria no mundo uma irregularidade que é incompatível com a sabedoria divina: tratar-se-ia, nesta hipótese, de um milagre perpétuo, já que as ações ultrapassariam a força das criaturas. Por isso, Leibniz defende que a concordância entre alma e corpo se dá porque Deus regrou, de uma vez por todas, todas as substâncias criadas de modo que elas correspondam entre si, sem que haja qualquer tipo de influência de uma sobre a outra. Assim, enquanto as outras hipóteses supõem a interferência entre causa final e causa eficiente, a de Leibniz dá conta da experiência, que mostra haver uma relação entre ambas, ao mesmo tempo em que salvaguarda a independência de uma em relação a outra, sendo que a seqüência regrada das percepções da alma, na qual uma passa à outra engendrada pelas causas finais da apetição, está em conformidade por um certo paralelismo com a série dos eventos físicos desencadeados pela causalidade eficiente, sem que haja interferência real entre uma e outra, já que este sincronismo se dá porque Deus regulou ambas as seqüências de forma que elas correspondam entre si. Daí a razão da substância

16 Carta de Leibniz a Arnauld de 09 de outubro de 1687,in GP II, p 112.

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criada expressar o universo inteiro de um determinado ponto de vista só poder ser efetivamente encontrada no momento da criação, quando Deus elege a melhor combinação de essências à existência:

Ocorre que é preciso dizer que Deus criou primeiramente a alma ou qualquer outra unidade real de maneira que tudo nasça nela de seu próprio fundo mediante uma perfeita espontaneidade a respeito de si mesma e, não obstante, com uma perfeita conformidade com as coisas externas (...) Portanto, é preciso que essas percepções internas à alma mesma ocorram devido à sua própria constituição original, isto é, à sua natureza representativa (capaz de expressar os seres que são externos a seus órgãos) que lhe foi concedida desde que foi criada e que constitui seu caráter individual.17

Ou seja, este princípio representativo que é constitutivo de cada mônada, dotando-lhe de individualidade, possui a sua origem em Deus. Se é verdadeiro que a natureza de cada substância simples já esteja fundamentada na sua essência, que se encontra no entendimento divino e possui alguma realidade independentemente da gênese do mundo18, o fato das representações das mônadas existentes serem as mais coerentes e harmônicas possíveis entre si se dá porque Deus elegeu à criação o melhor dos mundo possíveis, isto é, o conjunto de essências que contém o máximo de variedade com a maior ordem ou harmonia possível, de tal modo que possa ser observado no universo que um fenômeno causa outro, assim como a ação de uma criatura corresponde à paixão de uma outra. Se tudo, enfim, relaciona-se da maneira a mais regrada, é porque Deus não cria as substâncias isoladamente, mas em cada parte entra a consideração do conjunto e vice-versa.

E por isto as ações e paixões entre as criaturas são mútuas. Pois Deus, ao comparar duas substâncias simples, encontra em cada uma delas razões que o obrigam a acomodá-la a outra; e, por conseguinte, o que é ativo em certos aspectos é passivo de outro ponto de vista (...) Ora, esta ligação ou acomodação de todas as coisas criadas a cada uma e de cada uma a todas as outras faz com que cada substância simples tenha relações que expressem

17 “Novo sistema da natureza e da comunicação das substâncias, assim como da união

que há entre a alma e o corpo”, in Escritos Filosoficos, p. 468. 18 Monadologia, § 43, p. 138 e 139.

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todas as outras, e que seja, por conseguinte, um espelho vivo perpétuo do universo.19

Assim, a propriedade da mônada de espelhar o universo inteiro de uma determinada perspectiva fundamenta-se na vontade divina, na medida em que é uma propriedade que se reporta ao todo do mundo criado. Como tudo que existe, esta qualidade que caracteriza as mônadas pode ser interpretada anagogicamente, isto é, como uma expressão mundana do divino, já que é conseqüência do princípio do melhor. Com efeito, Leibniz afirma no Discurso de Metafísica que se pode descobrir o obreiro pela consideração de suas realizações20 e sustenta, no de sugestivo nome “Essay anagogique dans la recherche des causes”21, que tudo o que ocorre na natureza sempre conduz, em última análise, à consideração de Deus, sendo que a realidade existente consiste no melhor dos mundos possíveis, o que quer dizer – na concepção fortemente impregnada pela matemática do nosso autor, que considera o ótimo na chave do máximo e do mínimo – o mais rico em efeitos com a maior ordem possível: Deus elege o mundo que contém o máximo de essências, isto é, que permite o maior número de seres compossíveis entre si, com a maior harmonia possível no conjunto. Sendo resultado da bondade divina, isto é, da vontade guiada pela suprema sabedoria, o universo existente é inteiramente determinado pelo inteligível, não havendo espaço para o irracional, pois tudo contribui para a perfeição. Por isso, cada elemento da realidade precisa colaborar com os requisitos de copiosidade, por um lado, e de economia, por outro. Ora, é justamente a estes critérios que a substância criada enquanto espelho vivo do universo inteiro de um determinado ponto de vista obedece, pois, deste modo, subsiste o máximo de variedade com a maior harmonia possível, já que a homogeneidade é conciliada com a alteridade – ao mesmo tempo em que todas representam o mesmo mundo, mantendo homogeneidade quanto ao referente, elas produzem a maior copiosidade pelas diferentes perspectivas que estão

19 Monadologia, §52 e 56, p. 140 e 141. 20 Discurso de Metafísica, §2, in Discurso de Metafísica e outros textos, p. 4. 21 In GP VII, p.270.

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regulamentando essas expressões. “Assim, de certo modo, o universo é multiplicado tantas vezes quantas substâncias houver, e a glória de Deus igualmente multiplicadas por todas essas representações de sua obra completamente diferentes”.22 Ou seja, como todas as substâncias criadas representam o mesmo universo, elas contribuem, enquanto elementos constituintes desta totalidade, para o máximo de coesão entre as partes e de unidade da realidade existente. Mas, além disso, ao espelharem o mundo de maneira essencialmente diversa uma da outra, as criaturas fazem com que, simultaneamente, o universo seja multiplicado ao máximo em variedade. Em outras palavras, trata-se do máximo de efeito com a maior ordem possível ou, ainda, o máximo de determinação com a maior economia: em cada átomo espiritual reside o máximo de determinação no mínimo de espaço, por assim dizer. Daí a atividade expressiva das mônadas, ao cumprir os requisitos de existência no melhor dos mundos possíveis, poder satisfazer dois ditados que aparentemente são inconciliáveis: por um lado, c’est ailleurs tout comme ici, ou seja, há uma uniformidade de fundo na natureza, por outro, che per variar natura è bella23 – há tantas visões do universo quanto há diferentes substâncias criadas. 2 A perspectiva da mônada como derivação da onisciência divina O perspectivismo pode ser concebido anagogicamente não somente em relação à vontade divina, isto é, como conseqüência do princípio do melhor, mas também relativamente ao seu entendimento. Assim como na prova ontológica fornecida por Leibniz24 há um movimento de ascensão, sendo que, na ausência de outro meio para pensar as perfeições divinas, elas são concebidas em analogia com as nossas, mas em grau infinito, também o fundamento da natureza representativa de todas as substâncias criadas deve ser procurado naquilo que possui esta mesma perfeição de forma eminente: “a causa pela qual sucede que todas as mentes estejam relacionadas ou expressem o mesmo e existam

22 Discurso de Metafísica, §9, p. 18. 23 Carta de Leibniz à rainha Sofia – Carlota de 08 de maio de 1704, in GP III, p. 348. 24 Monadologia, §30, p. 136.

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de tal maneira, é aquela que expressa perfeitamente, isto é, Deus”.25 É importante notar que a Divindade não é aqui pensada pelo viés da sua vontade, pois não se trata de justificar moralmente a aptidão natural que as substâncias criadas têm de expressar o universo inteiro de um determinado ponto de vista, mas de designar qual o original de onde emanam estas variações. O que Leibniz indica, portanto, no trecho acima citado, é que a faculdade perceptiva das mônadas provém da onisciência divina, que consiste no grau máximo de conhecimento:

Deus produz diversas substâncias conforme as diferentes perspectivas que tem do universo e, por sua intervenção, a natureza própria de cada substância implica que o que acontece a uma corresponda ao que acontece a todas as outras, sem que ajam imediatamente umas sobre as outras (...) Pois Deus, virando, por assim dizer, de todos os lados e maneiras o sistema geral dos fenômenos que considera bom produzir para manifestar a sua glória, e observando todos os aspectos do mundo de todas as formas possíveis (porque não existe nenhuma relação que escape à sua onisciência), faz com que o resultado de cada visão do universo, enquanto contemplado de um certo lugar, seja uma substância expressando o universo conforme a essa perspectiva, desde que Deus ache conveniente realizar o seu pensamento e produzir esta substância. E como a visão de Deus é sempre verdadeira, as nossas percepções igualmente o são, mas nossos juízos, que são apenas nossos, nos enganam.26

Assim, as diferentes expressões que as mônadas possuem consistem em derivações da onisciência divina. Dito de outra forma, cada perspectiva do universo, que realiza, como já se enfatizou, a inserção e a individualidade da substância criada, é uma limitação da visão incondicionada da totalidade. A Des Bosses27, Leibniz afirma que a diferença entre as nossas representações e as divinas é da mesma ordem que há entre a cenografia e a iconografia: enquanto as cenografias são diversas em função da posição do espectador, a iconografia ou representação geométrica é única. Esta comparação é também utilizada em relação a uma cidade que é multiplicada perspectivamente pelas

25 “Sobre o modo de distinguir os fenômenos reais dos imaginários”, in Escritos

Filosoficos, P. 269. 26 Discurso de Metafísica, § 14, p. 29 (itálicos meus). 27 Apêndice à carta de 05 de fevereiro de 1712, in GP II, p. 438.

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diferentes situações daquele que a observa, metáfora que Leibniz repete em diferentes obras.28 Ou seja, enquanto as mônadas possuem uma visão da realidade condicionada pela perspectiva própria, perspectiva que nada mais é do que uma situação no mundo, como é explicitado na analogia que Leibniz faz entre a faculdade perceptiva das substâncias criadas e a propagação do movimento que afeta os corpos, o que dá a razão por que as percepções variam conforme as relações de espaço e de tempo, Deus não possui qualquer ponto de vista, o que significa que vê de modo inteiramente diverso das criaturas: é como um centro em toda parte, mas cuja circunferência não se encontra em parte alguma29. Mas, ao mesmo tempo poderia ser também dito, como indica Leibniz no trecho supracitado, que a divindade possui a soma destes pontos de vista, com os quais cria as diferentes mônadas. Por isso a atividade representativa de cada substância criada implica a de todas as demais, pois consistindo em diferentes perspectivas que Deus possui do universo que decide criar, elas são relances distintos de um invariante comum. Desta maneira, as infinitas perspectivas existentes – pois há, notadamente, infinitas substâncias simples no mundo – ainda que sejam todas diferentes entre si, “são apenas as perspectivas de um só”30, isto é, consistem em variações do mesmo. Daí explica-se a correspondência dos distintos pontos de vista ou a razão pela qual pode haver uma interação, ainda que ideal, entre as diversas substâncias criadas: mesmo que as expressões não se identifiquem, elas são, contudo, proporcionais entre si31. Ainda desta forma, pode-se afirmar que as expressões que as mônadas possuem do universo são sempre verdadeiras, já que, uma vez que consistem em diferentes derivações da visão divina, estas percepções não poderiam envolver falsidade. Ora, uma vez que o fundamento da atividade expressiva das criaturas radica na onisciência

28 Por exemplo, Monadologia, § 57, Discurso de Metafísica, § 9, carta de Leibniz a

Remond de julho de 1714. 29 Princípios da Natureza e da Graça, § 13, p. 161. 30 Monadologia, § 57, p. 141. 31 Discurso de Metafísica, § 14, p. 30. É isto mesmo que caracteriza a expressão: uma

relação constante regrada entre o que se pode dizer de um dos termos da relação e o que se pode dizer do outro, relação que não implica identidade, mas analogia.

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divina, suas produções não lhe poderiam ser contrárias – sendo um determinado aspecto da visão de Deus, as expressões das substâncias criadas devem comportar consigo este caráter de veracidade. Mas, se é assim, como dar conta da origem do erro? Como Leibniz afirma no trecho aqui destacado, o erro e o engano não provêm das percepções, que se derivam da visão de Deus e são sempre verdadeiras, mas sim dos juízos, que são apenas nossos. Ora, tratar-se-ia da mesma posição da de Descartes, que localiza a origem do erro não na percepção considerada nela mesma, mas sim no juízo. Classificando os tipos de pensamentos que estão na mente, o autor das Meditações discerne as idéias, que são como puros quadros, isto é, puras imagens das coisas, que em si mesmas não envolvem qualquer falsidade, dos juízos, que são mais do que puras representações e envolvem a ação do espírito de afirmar ou negar32. Essa distinção, por sua vez, recai na separação entre entendimento e vontade: enquanto aquele é limitado e não pode abarcar o infinito, esta é o que faz os homens serem a imagem e semelhança de Deus, já que não possui limites. Como o juízo envolve ambos, é a operação do pensamento que é suscetível de erro, pois “sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o entendimento, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às coisas que não entendo”.33 Entretanto, se a atribuição do erro ao juízo é comum tanto a Descartes como a Leibniz, o que está por trás de tal atribuição não pode ser o mesmo. Nos Novos Ensaios, diante da afirmação de Locke-Filaleto de que o erro provém na maior partes das vezes do juízo (jugement), que apesar de razões contrárias serem manifestas, dá assentimento a uma proposição ou, ao contrário, suspende-se em relação a algo malgrado haver razões para afirmá-lo34, Leibniz limita-se a dizer que há outras definições para “juízo”, mas aceita tomar os termos de seu debatedor. Porém, em outra parte da mesma obra, o nosso autor define o juízo como o exame das proposições segundo a razão35 – afinal, a arte de julgar consiste justamente na análise das proposições. Trata-se,

32 Descartes, Meditações, terceira meditação, § 9. 33 Idem, quarta meditação, § 10. 34 Novos Ensaios, Livro IV, cap XX, § 7, in Leibniz (II), Coleção Os Pensadores. 35 Idem, Livro II, cap XI, § 2.

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portanto, de um outro sentido do que aquele que Descartes e Locke a ele atribuem, já que, para o filósofo de Hannover, o juízo denomina uma atividade intelectual que se orienta (exclusivamente) segundo a razão. De qualquer forma, no contexto da filosofia leibniziana, não faz qualquer sentido a atribuição de uma extensão maior à vontade em relação ao entendimento, que seria ultrapassado por aquela. Em primeiro lugar, a própria representação que os espíritos, bem como as demais criaturas, possuem consistem num relance da visão divina, isto é, são variações de sua onisciência, envolvendo, de certo modo, o infinito. Em segundo lugar, para Leibniz, a indeterminação e a independência da vontade em relação ao entendimento, que Descartes supõe haver, não pode ter lugar, de forma que a origem do erro não pode ser explicada da mesma maneira, já que a vontade humana escolhe conforme às representações que se possui, sendo que a concepção da liberdade de indiferença é para o filósofo alemão totalmente quimérica e ilusória. Entretanto, tal como Descartes, que explica o erro como uma desproporção, isto é a transcendência da vontade em relação ao entendimento, para Leibniz o erro consistirá, de certa forma, em um descompasso também, que, no entanto, será de um outro tipo, a saber, entre a intensidade e a extensão da percepção, como se verá logo a seguir. Continuando, entretanto, na questão de como as substâncias criadas em geral limitam-se, convém perguntar: uma vez que as criaturas carregam em si a marca da onisciência, expressando o universo inteiro, como ocorre que elas não se tornem deuses? Se todas as percepções das criaturas são verdadeiras, como o é a visão de Deus, de onde vem a limitação? Ora, é justamente porque, como Leibniz afirma no parágrafo supracitado do Discurso de Metafísica, a expressão das substâncias finitas consiste num determinado lado ou maneira pela qual o sistema geral dos fenômenos se manifesta, isto é, é a contemplação do universo existente de uma determinada perspectiva, a saber, como já foi mencionado, a partir do seu corpo orgânico correspondente. É pela

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atribuição de um corpo36 que as mônadas se limitam, pois todo corpo tem uma situação, que condiciona as percepções segundo o espaço e o tempo, como já se disse. Ora, todo o sistema, isto é, tanto os corpos como o que é imaterial, têm de ser entr’expressivos para que a harmonia sempre subsista. Assim, é deste modo que as mônadas não se tornam deuses e permanecem na finitude. Com efeito, a visão que elas possuem, ainda que total, é parcial: engloba o universo inteiro, mas depende da parte que lhe corresponde no mundo.

Deus, ao regular o todo, considerou cada parte e particularmente cada Mônada; cuja natureza sendo representativa não poderia ser limitada, por coisa alguma, a representar só uma parte das coisas, ainda que seja verdade que essa representação seja apenas confusa quanto ao detalhe de todo o universo, e distinta apenas em uma pequena parte das coisas, isto é, naquelas que são ou as mais próximas ou as maiores com relação a cada uma das mônadas; de outro modo cada Mônada seria uma Divindade. Não é no objeto, mas na modificação do conhecimento do objeto, que as Mônadas são limitadas. Todas elas tendem confusamente ao infinito, ao todo; mas são limitadas e distinguem-se pelos graus de percepções distintas 37.

Ou seja, embora o objeto da percepção seja infinito, pois refere-se ao universo inteiro com todas as seus acontecimentos e relações, a capacidade de representá-lo com distinção é finita e limitada pela situação que é assinalada a cada criatura. Deste descompasso entre a extensão infinita e a intensidade essencialmente finita da representação que se encontra na mônada, ou ainda entre o apetite – que consiste na mudança de uma percepção a outra – e a própria representação, nasce a confusão38. Assim, embora toda percepção seja verdadeira, a maioria

36 De fato, todos os seres criados, sem exceção, incluindo-se aí os anjos e os gênios,

possuem um corpo. A diferença é que os anjos possuem um corpo mais sutil do que o nosso (Teodicéia, § 249, in GP VI, p. 265).

37 Monadologia, § 60, p. 142 (itálicos meus). 38 “A ação do princípio interno que faz a mudança ou a passagem de uma percepção a

outra pode ser chamada Apetição; é verdade que o apetite nem sempre pode alcançar inteiramente toda a percepção a que tende, mas sempre obtém algo dela e chega a percepções novas” (Monadologia, § 15, p. 133). Apesar de poder parecer que o descompasso aqui em questão é aquele mesmo apontado por Descartes, a saber, entre vontade e entendimento (apetite e representação), trata-se, na realidade, da

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delas é confusa. Isto é: as mônadas tendem ao infinito, mas são incapazes de compreendê-lo por causa de sua limitação original. Para dar uma idéia do que é esta confusão presente na representação das criaturas, Leibniz lança mão nos Princípios da Natureza e da Graça de uma comparação com a experiência que nós possuímos quando andamos junto à orla da praia39. Conquanto nós sejamos afetados pelo conjunto dos barulhos produzidos pelas ondas do mar, isto é, tenhamos a aptidão de perceber, por assim dizer, a totalidade do que nos impressiona, somos, contudo, incapazes de discernir o barulho particular de cada vaga. Do mesmo modo, as substâncias criadas representam o infinito, o universo, mas não podem perceber com acuidade todas as coisas que nele estão contidas. É por isso que neste mesmo parágrafo dos Princípios, o autor nos expõe uma outra bela imagem acerca deste jogo entre finito e infinito, entre o atual e o virtual: “poderíamos reconhecer a beleza do universo em cada alma se pudéssemos desdobrar todas as sua dobras, que só se desenvolvem sensivelmente no tempo”, assim “cada percepção distinta da alma compreende uma infinidade de percepções confusas que envolvem todo o universo”.40 Por esta razão, Leibniz diz no trecho supracitado da Monadologia que é na modificação do conhecimento do objeto que as mônadas são limitadas, porque, tendendo ao infinito e de certa maneira englobando-o, a maioria de suas percepções permanecem envolvidas, virtuais, isto é, implicadas em suas dobras, que estão na dependência do tempo para se desenvolver. Ora, é então desta confusão que provém o erro: não da transcendência do ato da vontade em relação ao alcance do entendimento, tal como Descartes explica com base na sua definição de juízo, mas na limitação da própria representação. Afinal, para Leibniz, a cada percepção distinta, corresponde uma infinidade de confusas. E esta percepção distinta é o que mais caracteriza particularmente cada mônada em relação às demais, pois se absolutamente tudo caísse na confusão, tudo recairia também na indistinção. As mônadas, com efeito,

desproporção entre o horizonte implicado na expressão da mônada e a sua efetiva explicitação, como se comentará a seguir.

39 Princípios da Natureza e da Graça, § 13, p. 160. Comparação também presente em Discurso de Metafísica, §33.

40 Idem.

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distinguem-se pelos graus de percepções distintas. Mas vejamos se isso é relativo apenas ao lugar e ao momento no qual se situa a substância criada no universo ou se já envolve uma outra questão. 3 A escala dos seres Anteriormente, vimos como as mônadas, por um lado, harmonizam-se entre si na medida em que todas representam o mesmo universo, já que todas as substâncias criadas possuem o mesmo conteúdo perceptivo ou o mesmo referente. Ao mesmo tempo, por outro lado, elas distinguem-se entre si e salvaguardam sua identidade face às demais pela maneira como elas o expressam. Assim, ficou em aberto como seria esta maneira ou perspectiva pela qual uma é diferente da outra. Ora, depois foi citado o trecho da Monadologia no qual Leibniz expõe que este modo como as mônadas expressam o universo é análogo ao modo como os corpos são afetados pelos movimentos que os demais corpos realizam no mundo. Isto porque Deus regrou todo o cosmo de modo que tudo seja coerente entre si, o que faz com que a seqüência dos movimentos nos corpos corresponda à seqüência das percepções nas almas e vice-versa, ou seja, aquilo que o nosso autor chama de harmonia preestabelecida. Também no trecho citado do parágrafo quatorze do Discurso de Metafísica, Leibniz, ao explicitar que a atividade expressiva das substâncias criadas é uma certa visão derivada da onisciência divina, determina que as perspectivas consistem em diferentes relances pelos quais o sistema de fenômenos é pensado por Deus, ou seja, suas expressões são uma limitação da visão divina por meio da situação que elas possuem no mundo. Entretanto, esta limitação apresentada por meio dos graus de distinção que acompanham as representações das mônadas, não diz respeito exclusivamente às suas determinações espaciais e temporais, através dos quais expressa com mais distinção o que lhe é próximo no espaço e no tempo, mas também em outro sentido, a saber, com relação à mônada mesma, isto é, ao tipo de ser que ela constitui. No quarto parágrafo dos Princípios da Natureza e da Graça, Leibniz apresenta esta escala de seres que constituem o mundo atual, escala que também é apresentada do parágrafo vigésimo quarto ao vigésimo nono da Monadologia:

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Cada Mônada, com seu corpo particular, constitui uma substância viva. Desse modo não só há vida em toda parte, incorporada nos membros ou órgãos, como também há uma infinidade de graus entre as Mônadas, e umas dominam mais ou menos as outras. Mas, quando a Mônada tem órgãos tão ajustados que graças a eles ganham relevo e distinção as impressões que eles recebem e, por conseguinte, também as percepções que os representam (...), então se pode chegar até o sentimento, quer dizer, até uma percepção acompanhada de memória, isto é, uma percepção cujo eco perdura durante muito tempo, fazendo-se ouvir na ocasião apropriada; tal vivente é chamado animal e sua Mônada é chamada alma. E quando esta Alma se eleva até a Razão, ela é algo mais sublime e pode ser incluída entre os espíritos.41

Assim, Leibniz discerne os diferentes tipos de ser com base em propriedades que acompanham suas representações ou, o que é o mesmo, de acordo com as diferentes espécies de expressão de que são capazes42, espécies que comportam consigo determinados graus de distinção. Desta forma, enquanto as mônadas nuas não possuem nada de distinto em suas percepções, isto é, possuem apenas uma percepção natural, as almas, que constituem as mônadas dominantes nos animais, detêm memória e sentimento, o que envolve um grau maior de distinção nas suas representações. Com efeito, a memória, consistindo na reminiscência de uma percepção passada, permite às almas sensitivas associar determinadas percepções com outras que ocorreram na mesma ocasião, o que permite a estes seres “uma espécie de consecução que imita a razão, mas que deve ser distinguida dela”43, já que esta conhece pelas causas. Ou seja, por possuírem percepções mais distintas e com maior relevo, podendo ter recordações acerca delas, os animais ganham, em relação às almas vegetativas, a aptidão de agir de maneira empírica, isto é, com base em percepções passadas. Já os espíritos, estes são capazes de se elevar até a verdadeira razão e ao conhecimento intelectual, o que significa não só um grau maior de distinção na expressão, mas também um tipo completamente diferente de representação: a apercepção, da qual falaremos posteriormente.

41 Princípios da Natureza e da Graça, § 4, p. 155. 42 “A expressão é comum a todas as formas, e é um gênero do qual a percepção

natural, o sentimento animal e o conhecimento intelectual são espécies” (Carta de Leibniz a Arnauld de 09 de outubro de 1687, GP II, p. 112).

43 Monadologia, § 26, p. 135.

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Vale, pois, esclarecer a explicação da limitação de como as mônadas representam o universo pela situação que lhes é assegurada no mundo criado. Contudo, esta situação tem de ser entendida de um modo mais amplo do que meramente pelas condições do espaço e do tempo, pois, pela analogia com a propagação do movimento no pleno, não se compreende como alguns seres envolvem um grau maior de distinção em suas representações do que outro: isto é, se por um lado, esta analogia dá conta de por que todas as perspectivas são limitadas e distintas entre si, por outro, porém, ela parece dar a entender que todas são igualmente limitadas ou confusas, diferindo não em superioridade, mas apenas com relação ao que cada uma representa com mais distinção conforme as distâncias. Ora, convém distinguir, principalmente quando os espíritos entram em jogo, já que estes seres possuem uma grande diferença quanto à moral e ao conhecimento em relação aos demais. Com efeito, esta situação dada aos seres finitos na criação envolve considerações morais. Não só com relação ao princípio do melhor implicado na harmonia que pode ser observada em relação à organização temporal e espacial do universo, mas também com referência a uma hierarquia que se estabelece entre os seres, já que eles são classificados conforme os graus de perfeição que possuem, ou, o que é o mesmo, os graus de distinção que estão presentes nas respectivas representações. É o que faz, notadamente, que algumas substâncias criadas sejam dominantes em relação a outras ou, dito de outra forma, que umas expressem ações que em outras criaturas correspondem a paixões. De fato, todas as criaturas possuem um grau de atividade que as faz imitar a divindade44 o quanto está em seu poder, de modo que a cada uma cabe, pois, um determinado lugar na ordem do mundo conforme à sua própria perfeição. Vale salientar, além disso, que, embora Leibniz exponha a divisão das mônadas em três tipos – as nuas, as almas e os espíritos – , há uma escala de seres que engloba uma gradação infinitamente variada das representações presentes nas criaturas, como o autor afirma no trecho supracitado dos Princípios. Ora, o princípio de continuidade

44 Carta de Leibniz à princesa Sofia, in GP VI, p. 521.

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deriva-se do princípio de conveniência e é um dos principais do sistema leibniziano, sendo que toda a realidade criada a ele se submete. Segundo ele, não há saltos na natureza, mas tudo é contínuo, sem lacunas, já que seriam contrárias à harmonia e à perfeição. Por esta razão, tudo é contíguo e contínuo, sendo que as diferenças são, na verdade, de aparências e de graus45. Assim, a gradação dos seres conforme sua perfeição tem que se dar de maneira ininterrupta, desde o atordoamento característico das mônadas nuas até as mais sábias inteligências, cujo modelo último encontra-se na onisciência de Deus, espírito supremo, que determinando a situação dos demais seres, não possui ele mesmo alguma, pois está fora do mundo. E também se segue por este mesmo princípio que não há no interior do universo criado o grau mínimo ou o máximo: assim como não existe na natureza repouso absoluto, bem como o movimento mais rápido, não existe uma mônada cujas percepções, por mais indistintas que se apresentem, não sejam representativas do que lhe é exterior. Do mesmo modo, nenhuma substância criada, por mais elevada que seja, possui o grau de distinção máximo em sua representação do mundo, sem um ponto de vista correspondente, já que tal qualidade pertence única e exclusivamente a Deus, que é onisciente e não possui qualquer perspectiva. Também é importante notar que, uma vez que cada tipo de alma no mundo deve ser pensada como correspondente a um grau de perfeição, que não está à parte, mas numa relação de continuidade com as demais, cada novo grau de perfeição na mônada envolve as inferiores:

Eu também reconheço graus nas atividades, como vida, percepção, razão, e que assim pode haver outras espécies de almas, do que as que se denomina vegetativa, sensitiva, racional, que há corpos que possuem vida sem sentimento, e outros que possuem vida e sentimento sem razão. Entretanto, eu creio que a alma sensitiva é ao mesmo tempo vegetativa, e que a alma racional é sensitiva e vegetativa e que, assim, em nós uma única alma compreende estes três graus, sem que seja necessário conceber como que três

45 Carta de Leibniz a Des Billettes de dezembro de 1696, in GP VII, p. 452.

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almas em nós, das quais a inferior seja material em relação à superior, e parece que isto seria multiplicar os seres sem necessidade.46

Além de criticar a divisão aristotélica em três almas47, Leibniz explicita no trecho supracitado como a classificação dos tipos de mônada é em termos de grau e envolve uma escala de perfeição, pois a superioridade de algumas em relação a outras se dá por acréscimo progressivo de capacidade representativa: a alma sensitiva possui a aptidão de expressar o mundo como a vegetativa, mas, em relação a esta, possui sentimento e memória a mais. Do mesmo modo, as almas racionais, tal como as dos animais, detêm sentimento e memória, mas discernem-se destas por possuírem razão. Afora isso, o autor também dá conta nesta carta à rainha Sofia Carlota de por que nós, mesmo sendo espíritos, experimentamos estados semelhantes ao das almas vegetativas quando dormimos sem sonho ou desmaiamos, sem qualquer sentimento ou lembrança. Ou ainda, quando não damos prova de sermos racionais, mas agimos com base no princípio de memória, ao invés de razões, tal como um cão que foge de um bastão por já ter sido por este objeto açoitado48. Com efeito, Leibniz afirma que os homens agem, tal como os irracionais, exclusivamente empiricamente em três quartas partes das vezes, e exemplifica este modo de proceder pela expectativa que possuímos de que o Sol nascerá amanhã pelo fato de ter sido sempre assim e não por razões que sustentem esta previsão. É, com efeito, a maneira como os médicos empiristas exercem sua prática que, governando-se pelos sentidos e pelos exemplos, não possui embasamento teórico49. Entretanto, não se pode ignorar que, quando considerados em relação aos demais, os espíritos ocupam um lugar muito privilegiado,

46 Carta de Leibniz à rainha Sofia Carlota, in GP VI, p. 521. 47 Ética a Nicômaco, in Aristóteles, Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril,

1973, livro I, capítulo 13. 48 Princípios da Natureza e da Graça, § 5. 49 Monadologia, § 28. Leibniz não despreza a maneira empírica dos homens de agir,

pois uma vez que nem sempre as razões nos são conhecidas, muitas vezes agimos bem ao seguir os exemplos, a autoridade e os costumes no lugar de querer sempre examinar as razões. Mas freqüentemente, esta maneira de pensar pode nos levar a associações errôneas. (Novos Ensaios, II, 33, §1).

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para não dizer quase à parte, no universo criado: os seres racionais, com efeito, foram ordenados na criação de preferência às demais coisas e constituem, assim, o gênero supremo, ou, ainda, as almas de primeira ordem no mundo50 e, à diferença dos demais, são elevados de simples almas sensitivas a este estado por eleição divina no momento de sua concepção51, enquanto as demais criaturas desenvolvem-se de maneira natural a partir de suas preformações. Os espíritos finitos distinguem-se com respeito aos demais seres criados pela sua elevação tanto moral quanto cognitiva ou, dito com mais exatidão, relativamente ao grau de distinção presente na sua atividade expressiva – pois, justamente, o conhecimento só a eles cabe – o que marca quase um salto deste gênero de ser em comparação com o resto da escala, pois, em seu departamento, isto é, em sua situação no cosmo, os seres racionais são como pequenas divindades.52 No que diz respeito à moral, estes seres possuem uma série de privilégios e é notável que o nosso autor coroe tanto o Discurso de Metafísica, quanto a Monadologia, bem como os Princípios da Natureza e da Graça com as considerações acerca da Cidade de Deus, que consiste na comunhão de todos os espíritos e constitui o reino moral no reino natural53. Por esta relevância e mesmo sobrelevação nos espíritos

50 “Diálogo entre um político sagaz e um sacerdote de reconhecida piedade”, in

Escritos Filosoficos, p. 240. 51 Monadologia, § 82. 52 Idem, § 83. 53 Relativamente à Cidade de Deus apresentada por Leibniz no último parágrafo do

Discurso de Metafísica, Georges Le Roy comenta a diferença que há entre esta e aquela teorizada por Santo Agostinho, de quem afinal a doutrina da Cidade de Deus provém: “Para Santo Agostinho, há duas cidades heterogêneas, a Cidade da terra e a Cidade de Deus; a primeira, fundada no amor de si, que pode ir até o desprezo de Deus, é simbolizada por Babilônia e obedece apenas a Satã; a segunda, fundada no amor de Deus, que pode ir até o desprezo de si, é simbolizada por Jerusalém e obedece apenas Cristo. Em realidade, uma e outra existem atualmente juntas, a despeito de sua oposição; mas, por natureza, elas permanecem antitéticas e serão um dia separadas: só se pode passar de uma a outra por uma conversão total. Para Leibniz, ao contrário, há apenas uma e única Cidade, aquela que os espíritos formam em união com Deus; esta Cidade corresponde ao desdobramento regular de um mundo moral no seio do mundo físico, um acrescentando-se ao outro, sem o destruir, pela elevação de seus elementos mais puros; ela se desdobra desde então

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finitos da moral em relação ao seu caráter de elementos constituintes da ordem física do mundo criado, os seres racionais parecem, quanto ao seu poder representativo, escapar da analogia com o movimento no pleno, pois, como irei tratar logo a seguir, eles são capazes de espelhar diretamente Deus e tomar conhecimento das verdades eternas, o que é inexplicável por sua relação com o seu corpo orgânico, já que esta relação nos auxilia a entender apenas de que maneira cada um representa o que está submetido às relações do espaço e do tempo. Mas, além disso, Leibniz aponta a excelência e especificidade destes seres com a afirmação de que “os espíritos são as substâncias mais suscetíveis de aperfeiçoamento e suas perfeições caracterizam-se por se estorvarem reciprocamente o mínimo, ou sobretudo por se ajudarem mutuamente, pois só os mais virtuosos poderão ser os mais perfeitos amigos”.54 Isto é, enquanto as demais substâncias criadas, pela harmonia preestabelecida, estão sujeitas às leis de ação e paixão, pelas quais o acréscimo de grau de perfeição de uma corresponde à diminuição da outra, os espíritos podem, sem ferir a harmonia geral, escapar destas leis por sua excelência moral, pois a verdadeira amizade, por exemplo, é um tipo de interação entre seres criados que não implica a reciprocidade de aumento e diminuição de grau de perfeição, mas, ao contrário, envolve o aperfeiçoamento de ambos os termos da relação, o que é uma exceção no mundo natural. De fato, as diferenças dos espíritos com relação às demais criaturas não param por aí. Se as demais mônadas são imperecíveis e

como o acabamento supremo de uma harmonia universal: pode-se passar do reino da natureza àquele da graça por um desenvolvimento contínuo” (Discours de Métaphysique et correspondance avec Arnauld, p. 273 e 274). Com efeito, é esta idéia que se quer desenvolver aqui com relação aos espíritos e suas qualidades tanto morais quanto intelectuais: a Cidade de Deus é o ápice da consideração da união dos espíritos pela razão, isto é, da relação de conveniência de todos os seres racionais por meio das leis absolutamente universais da razão, sob cuja legislação estão Deus – o monarca –, os anjos, os gênios e os homens. Isto é, há apenas uma Cidade justamente porque todos os espíritos, sem exceção, dela participam, pois não há como se subtrair a estas leis da razão, sendo que todos, mesmo que sejam pecadores, possuem qualidades morais tais como a liberdade e a conservação da identidade pessoal.

54 Discurso de Metafísica, § 36, p. 76.

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conservam sua identidade, pois, não possuindo partes, elas só podem começar por criação e terminar por aniquilamento55, os espíritos mantêm, em adição, sua identidade pessoal, isto é, subsistem não só metafísica como também moralmente, conservando a recordação ou o conhecimento do que são de maneira perpétua para que possam ser passíveis de castigo e de recompensa56. Afinal, os seres racionais possuem responsabilidade: enquanto as demais substâncias criadas são apenas espontâneas, os espíritos também são livres57, isto é, se as outras são movidas pelo princípio interno da apetição, os espíritos são ainda capazes de volição, o que envolve um grau maior de perfeição, pois a liberdade supõe, além do princípio da ação própria, a inteligência, que faz a base da deliberação58. 4 A especificidade dos espíritos: a apercepção Deste modo, as qualidades morais só surgem sob o pano de fundo da inteligência que os espíritos possuem, isto é, de sua capacidade de representar não só com um grau maior de distinção, mas mesmo de um modo diverso: se as demais substâncias criadas exprimem o universo de modo mais imperfeito que os espíritos, isto é, com um grau menor de distinção, convém, entretanto, salientar que a especificidade dos espíritos em relação às outras criaturas não reside só nisso, “mas a principal diferença é que (estas) desconhecem o que são ou fazem, e, por conseqüência, são incapazes de reflexão e não poderiam descobrir verdades necessárias e universais. Também por falta de reflexão sobre si mesmas não tem qualidade moral”.59 Ou seja, assim como a liberdade e a responsabilidade moral das almas racionais não consistem numa mera questão de grau, quando contrapostas à espontaneidade natural das demais substâncias, também o que lhes fundamenta, a saber, o ato

55 Monadologia, § 4, 5 e 6. 56 Discurso de Metafísica, § 34. 57 GP VII, p. 109. 58 Com efeito, se a apetição e a percepção estão nas mônadas correlacionadas, a

volição está diretamente ligada com a apercepção nos espíritos: “a volição constitui o esforço ou a tendência (conatus) para aquilo que consideramos bom e contra o que se acredita mau, de modo que esta tendência resulta imediatamente da apercepção que temos” (Novos Ensaios, II, XXI, § 5, p. 124).

59 Discurso de Metafísica, § 34.

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reflexivo, não pode ser simplesmente tratado como uma percepção mais distinta que o ser simples possui dos compostos que lhe são exteriores, mas envolve algo diferente disto: a apercepção. Com efeito, Leibniz ressalta mais de uma vez a diferença entre a percepção e a apercepção. Esta distinção é de grande importância, pois o autor a utiliza para argumentar contra Descartes tanto em relação à liberdade de indiferença60 como à concepção de que não há alma nos seres irracionais61. Além deste filósofo, Leibniz também visa com esta distinção contrapor-se à crença de Locke segundo a qual nem sempre temos pensamentos ou percepções, mas a mera faculdade de pensar ou perceber vazia de determinações atuais, já que nem sempre possuímos consciência de nosso estado62. Por esta razão, a explicitação da diferença entre percepção e apercepção toma especialmente corpo nos Novos Ensaios. Para Leibniz, se aquela é, com efeito, uma atividade que é comum a todas as criaturas e se define pela capacidade de representar a

60 Teodicéia, § 50, in GP VI, p. 130. Leibniz argumenta, com efeito, que há

percepções que determinam os nossos atos sem que nós nos apercebamos, isto é, sem que tenhamos consciência delas, de modo que se produza uma ilusão de que nós nos decidimos sem motivos que nos inclinem.

61 Monadologia, § 14. 62 Com efeito, logo no Prefácio dos Novos Ensaios, Leibniz indica que uma das

primeiras teses de Locke a ser combatida é a de que o espírito nem sempre pensa e percebe (quando dorme sem algum sonho, por exemplo). A isto, o filósofo de Hannover objeta que assim como não há jamais um corpo desprovido de movimento, não existe substância sem ação. “De resto, existe uma série de indícios que nos autorizam a crer que existe a todo momento uma infinidade de percepções em nós, porém sem apercepção e sem reflexão: mudanças na própria alma, das quais não nos apercebemos, pelo fato de as impressões serem ou muito insignificantes e em número muito elevado, ou muito unidas, de sorte que não apresentam nada de suficientemente distinto; porém, associadas a outras, não deixam de produzir o seu efeito e de fazer-se sentir ao menos confusamente” (Prefácio, p. 11 e 12). De fato, a distinção entre percepção e apercepção será importante para desvincular a identidade da consciência atual: contra a afirmação de Filaleto-Locke de que “é também só nisso que consiste a identidade pessoal, ou seja, o que faz com que um ser racional seja sempre o mesmo; quão longe esta consciência pode estender-se sobre as ações ou sobre os pensamentos já passados, tão longe vai a identidade desta pessoa e o eu é agora o mesmo que era antes” (idem, II, XXVII, § 9, p. 176 e 177), Leibniz comenta: “parece que o nosso autor pretende que não haja nada de virtual em nós , e mesmo nada que nós não nos apercebemos sempre atualmente” (Prefácio, p. 37).

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multiplicidade das coisas a elas externas, esta consiste, por sua vez, na consciência ou estado reflexivo daquela e pertence exclusivamente aos espíritos e, mesmo nestes, não se dá continuamente, à diferença da percepção, que se dá ininterruptamente63. Ou seja, a apercepção é uma ação de caráter pontual que se exerce sobre o pensamento ou a percepção64 (que, vale salientar, tem de ser distinta para que essa ação ocorra65), de modo que é uma espécie de percepção da percepção, pela qual o espírito toma consciência de seu estado interior. Trata-se da intensificação da atividade expressiva na substância simples que a torna capaz de possuir representações mais distintas e de alcançar, portanto, este outro patamar de representação que consiste na reflexão ou conhecimento de si, por meio da qual se atingem as primeiras proposições e, por conseguinte, os demais conhecimentos:

A apercepção imediata de nossa existência e dos nossos pensamentos nos fornece as primeiras verdades a posteriori, ou de fato, isto é, as primeiras experiências, como as proposições idênticas contêm as primeiras verdades a priori, ou de razão, isto é, as primeiras luzes. Umas e outras são incapazes de ser demonstradas e podem ser denominadas imediatas: aquelas, porque existe imediação entre o entendimento e o seu objeto, estas porque existe imediação entre o sujeito e o predicado66.

Assim, é a apercepção a atividade própria dos espíritos que os distingue das demais criaturas, pois é por meio da apercepção de si próprio com seus pensamentos ou ato reflexivo, que as almas racionais

63 PNG, § 4, carta de Leibniz a Thomas Burnett, in GP III, p. 156. 64 Leibniz utiliza muitas vezes o termo “pensamento” e o termo “percepção” como

sinônimos, afirmando, no contexto dos Novos Ensaios, ora que possuímos uma infinidade percepções sem qualquer apercepção, ora que pensamos sempre, ainda que nem sempre acompanhado de reflexão. A Burnett (GP III, p.261), Leibniz define o pensamento como uma espécie de percepção, a saber, como um determinado grau de percepção. Assim, do mesmo modo que toda mônada percebe ininterruptamente, os espíritos sempre pensam, ainda que nem sempre se apercebam do que está na mente.

65 Carta de Leibniz a Thomas Burnett, in GP III, p. 307. 66 Novos Ensaios, IV, IX, § 2, p. 352. Na Monadologia, porém, Leibniz afirma que é

pelo conhecimento das verdades necessárias e eternas que nos elevamos ao conhecimento de nós mesmos e à ciência.

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têm acesso às primeiras verdades, tanto as de fato, como as de razão, atingindo aquelas pela coincidência entre o entendimento e seu objeto e estas pela identidade entre sujeito e predicado. Ou seja, a apercepção é o que introduz os seres racionais finitos no conhecimento e o possibilita para eles. Deste modo, Leibniz se contrapõe àqueles que defendem que o início do conhecimento se dá com a experiência, cujos maiores representantes são, para o nosso autor, além de Aristóteles, Locke, seu interlocutor nos Novos Ensaios. O empirista inglês sustenta, com efeito, que não há noções inatas na mente, sendo que todas as nossas idéias provêm sempre de impressões que recebemos através dos sentidos. Ora, para Leibniz, no rigor metafísico, todo ser contém de maneira inerente todas as suas determinações e em qualquer mônada, incluindo-se aí (e, talvez possa ser dito, principalmente, na medida em que a analogia com a mecânica se aplica ainda menos a eles) os espíritos, nenhuma de suas representações provém de seu exterior, mas lhes são inatas. Por isso, o filósofo de Hannover presta homenagem a Platão e à sua teoria da reminiscência, pois ambos autores concordam que nada poderia nos ser ensinado cuja idéia nós não já tenhamos na mente, sendo que aprender é atualizar aquilo que já se encontrava virtualmente na alma67. Deste modo, o ato de conhecer começa por um olhar para dentro, isto é, pela percepção das percepções ou pensamentos que já temos em nós68. Dito de outra forma, é a reflexão que está na origem da constituição do conhecimento: ela é, com efeito, “em nós a mãe das ciências”.69 Não são as percepções, mas a consciência destas que faz os

67 Discurso de Metafísica, § 26. 68 Se para Leibniz, a reflexão ou apercepção de si é a operação pela qual os espíritos se

elevam às primeiras verdades e daí, com a aquisição dos primeiros princípios, tornam-se capazes de conhecer em geral, para Descartes, esta apercepção de si mesmo possui o caráter de primeira verdade na cadeia das razões a partir da qual será constituído o verdadeiro conhecimento. Entretanto, o filósofo de Hannover argumenta na “Advertência à parte geral dos princípios de Descartes” , bem como nos Novos Ensaios, que o “eu penso” não pode ser considerada a primeira verdade absoluta na cadeia de razões, mas é, ao lado das primeiras verdades de razão, verdade de fato primeira junto com a proposição de que diversas coisas são pensadas por mim (GP IV, p. 357; Novos Ensaios, IV, II, §1).

69 Carta de Leibniz à rainha Sofia-Carlota de 08 de maio de 1704, in GP III, p. 344.

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espíritos se sobressaírem em relação ás demais criaturas. Apesar de todas as substâncias criadas lançarem-se para o exterior a partir de suas percepções internas, o que há de específico em relação aos espíritos é que estes são capazes de, por meio da apreensão de suas representações internas, ter conhecimento do que subsiste fora deles e mesmo do que subsiste eternamente. É por meio de um espelhamento de seu interior, isto é, pela reflexão, que as almas racionais obtêm as primeiras verdades e mesmo chegam a espelhar Deus. Assim, Leibniz nos diz na Monadologia que são, de fato, os atos reflexivos

que nos fazem pensar no que se chama Eu e considerar que isto ou aquilo está em nós; e é assim que, ao pensar em nós, pensamos no ser, na substância, no simples ou no composto, no imaterial e no próprio Deus, quando concebemos que o que em nós é limitado, nele é sem limites. E esses atos reflexivos fornecem os objetos principais de nossos raciocínios.70

Pela reflexão, pois, dirigimos a nossa atenção às idéias que estão presentes em nossos pensamentos e tornamo-nos por essa via capazes de discerni-las no meio da confusão, o que consiste justamente na capacidade de abstração. Daí podermos, a partir da consideração de nós próprios, nos aperceber da idéia de ser, de simples, de composto, de imaterial, pois todas estas idéias estão já envolvidas na idéia de si mesmo: somos seres, conseqüentemente, somos simples e imateriais, em nossas percepções o composto está representado e, em última instância, se refletirmos sobre nossas qualidades e as concebermos sem limites, chegamos à idéia de Deus. Deste modo, nos Novos Ensaios, Leibniz, defende que muitas das idéias que são confusas e encerram muitas outras, pensa-se serem, na terminologia de Filaleto-Locke, simples por falta de nossa apercepção as dividir71. Ou seja, o filósofo de Hannover atribui à apercepção a tarefa de discernir os elementos que estão envolvidos em uma representação, isto é, de nos possibilitar ter um grau maior de distinção nestas. Assim, se as outras mônadas são espelhos vivos do universo, os espíritos são ainda espelhos da divindade, ou melhor, exprimem melhor

70 Monadologia, § 30, p. 136. 71 Novos Ensaios, II, II, § 1.

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Deus do que o mundo, ao contrário das outras criaturas72. Isto porque, ainda que as outras substâncias simples exprimam a Divindade na medida em que foram por ela criadas e que expressam todo o resto de sua criação, elas exprimem melhor o mundo do que Deus porque elas representam mais diretamente o jogo da causalidade eficiente que rege os fenômenos naturais, isto é, as leis da força e da comunicação do movimento. Já os espíritos, estes são ainda capazes de convir nas mesmas relações de razão que Deus, já que este também é um espírito, o que explica por que pode ser dito que os homens foram feitos à imagem e semelhança da Divindade, tal como revelado na Bíblia. Os seres racionais finitos podem conhecer, com efeito, as verdades necessárias e eternas, que são verdades que não guardam relações com o espaço e tempo, sendo que sua apreensão não possui analogia com o movimento que se propaga nos corpos, analogia que pode ser aplicada para as expressões das demais substâncias criadas. E se pode ser dito que, enquanto os outros tipos de mônada expressam mais o universo do que Deus, os espíritos exprimem mais a divindade do que o mundo, é porque estes seres são capazes de exprimir Deus de uma forma inteiramente diferente das demais: eles são capazes de conhecê-lo, seja a priori, seja a posteriori. Por um lado, os espíritos finitos conhecem Deus a priori quando refletem sobre suas próprias qualidades e as concebem abstratamente sem os limites que neles existem, o que os faz contemplar as idéias de onipotência, de onisciência e de bondade suprema. E como essas qualidades ou perfeições são compatíveis entre si e, no ser supremo a existência está compreendida em sua essência, já que a existência é uma perfeição, conclui-se que este ser é. Por outro, os seres racionais, ao perceberem o mundo e aperceberem-se da harmonia, da beleza e da copiosidade que aí existem, inferem que a razão de um tal mundo existente só poderia se encontrar em última instância em Deus, de modo que os espíritos são um gênero de seres “que não representam apenas o mundo, mas que representam ainda Deus no mundo”.73 Ou seja, os espíritos conhecem e provam a existência de Deus tanto por

72 Discurso de Metafísica, § 35; Anexo da carta de Leibniz a Remond de julho de

1714, in GP III, p. 624. 73 Carta de Leibniz a des Billetes de 14 de dezembro de 1696, in GP VII, p. 452.

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uma relação de idéias como pela reflexão que fazem sobre sua experiência, exprimindo-o, portanto, de modo direto, à diferença das demais criaturas, que o realizam de modo indireto, por assim dizer. Deste modo, “a diferença entre as substâncias inteligentes e as que não o são é tão grande como a que há entre o espelho e aquele que vê”.74 Isto é, os espíritos e as demais criaturas discernem-se essencialmente nisto: enquanto estas exprimem, ainda que espontaneamente, de forma passiva, isto é, sem distinção e inteligência, aqueles sabem o que são e o que fazem, sendo capazes de expressar a realidade com conhecimento. Trata-se, na verdade, da diferença que há entre a percepção e a apercepção, pois esta não é somente, como a primeira, a representação do composto no simples, mas envolve, além disso, consciência desta representação mesma. Isto é, o ser racional não é só como o espelho, mas possui atividade intelectual e lança um olhar apontado para este espelho, o que se denomina reflexão, que é refletir o refletido, produzindo algo inteiramente diferente, que não aumenta a extensão do que é representado, já que toda mônada expressa o universo inteiro, o infinito, mas a intensidade aí presente, acrescendo no grau de distinção envolvido nas suas representações75. De maneira anacrônica, pode-se dizer que a apercepção em relação à percepção, sendo a diferença entre o espelho e aquele que vê, envolve uma certa intencionalidade, pois consiste justamente na atenção dirigida à percepção, para aí poder reconhecer elementos inteligíveis que permitam a constituição de um conhecimento referente a ela própria e ao que está fora dela. Trata-se de um ato de inteligência que, dirigindo-se às suas próprias representações, visa ter uma compreensão da realidade e torna os espíritos capazes de constituir uma ciência. Ora, a partir desta centralidade da apercepção na consideração do conhecimento e dos espíritos no interior da cosmologia leibniziana, este conceito investiu-se de grande importância e fez história na filosofia que se seguiu nos séculos posteriores.

74 Discurso de Metafísica, § 35, p. 174 e 175. 75 Assim, no opúsculo “A profissão de fé do filósofo”, Leibniz afirma que o

conhecimento exato pode crescer não por uma novidade na matéria, mas na reflexão (Escritos Filosoficos, p. 131). Isto é, o conhecimento, através da reflexão aumenta não em extensão, mas em intensidade.

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Referências ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, in Aristóteles, Coleção Os Pensadores. Tradução: Leonel Vallandro. São Paulo: Editora Abril, 1987. DESCARTES. Descartes. Coleção Os Pensadores. Tradução: J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Editora Abril, 1973. LEIBNIZ, G. W. Die Philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm Leibniz. Edição: C. I. Gerhardt. Berlim: Georg Olms Hildesheim,1960. _______ Discours de Métaphysique et Correspondance avec Arnauld. Comentários: Georges Le Roy. Paris: Vrin, 1993. _______ Discurso de metafísica e outros textos. Tradução: Marilena Chaui e Alexandre da Cruz Bonilha. São Paulo: Martins Fontes, 2004. _______ Escritos Filosoficos. Edição: Ezequiel de Olaso. Tradução: Roberto Torretti, Tomás E. Zwanck e Ezequiel de Olaso. Buenos Aires: Editorial Charcas, 1982. _______ Leibniz (II). Coleção Os Pensadores, volume XIX. Tradução: Luiz João Baraúna. São Paulo: Editora Abril,1980.

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 167-186

Eckhart’s Bilder

Luís M. Augusto* 1 Resumo: A extrema originalidade da doutrina eckhartiana dos bilder, ou formas, deve-se, mais do que ao facto de conter novos elementos, à conciliação entre três fontes à primeira vista incompatíveis: Platão, Aristóteles e o pensamento cristão. Neste artigo mostra-se que a doutrina eckhartiana dos bilder é simultaneamente a) a recriação epistémico-aristotélica da doutrina platónica das ideias e b) a recriação ontológico-cristã da doutrina aristotélica da cognição. Como tal, trata-se de uma manipulação técnica destas fontes, mais do que de uma doutrina mística. Palavras-chave: Abegescheidenheit, Bilder, Intelecto, Ideias Platónicas, Universais Abstract: Eckhart’s doctrine of the bilder is highly original not so much for containing new elements as for the conciliation it achieved among sources at first sight incompatible; these sources can be reduced to three main ones: Plato, Aristotle, and Christian thought. In this paper, I show that Eckhart’s doctrine of the bilder is simultaneously a) an Aristotelian epistemic recreation of Plato’s doctrine of ideas, and b) a Christian ontological recreation of Aristotle’s doctrine of cognition. As such, it is a technical manipulation of these sources, rather than a mystical doctrine. Keywords: Abegescheidenheit, Bilder, Intellect, Platonic Ideas, Universals Eckhart’s2 doctrine of the bilder is undoubtedly the crux of his thought and the core of its misinterpretations, and this mainly for the following reasons: firstly, though his starting point is the Platonic teaching of the ideas, he adapts it to both an Aristotelian epistemic and a Christian ontological viewpoints; this suffices to deceive many interpreters, and the fact that in his German sermons Eckhart translates much of the Latin philosophical terminology into Middle High German, thus rendering it more accessible to a secular audience while making it dangerously equivocal for the expert, explains to some extent the

* Pós-doutorando (FCT) no Instituto de Filosofia da Universidade do Porto,

Portugal. E-mail: [email protected]. Artigo recebido em 13.10.2008 e aprovado em 05.12.2008.

1 Most of the research conducing to this paper was carried out at the Université Paris IV – Sorbonne and was funded by a doctoral fellowship granted by FCT. My thanks to both.

2 Eckhart of Hochheim (c. 1260 – c. 1328), also known as Meister Eckhart.

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wildly diversified interpretations of this doctrine. Once one realizes these two factors, his doctrine of the bilder loses its supposedly mystical overtones, and is seen for what it is, a doctrine on representation as real content. 1 The Context: Late Medieval Intellectualism vs. Voluntarism To a great extent, medieval epistemology can be characterized by the realist ‘slogan’ of the adequacy between the thing and the intellect (veritas est adaequatio rei et intellectus); in other words, truth is secured when there is a one-to-one correspondence between an object and the mental representation that expresses/captures its essence. The background for this formula is Christianity and the belief in a creation carried out by a unique god; this creation is said to be ex nihilo, out of nothing, from the ideas in the verb; it is thus an act of self-expression, according to the Trinitarian view that sees the Father, the Son, and the Holy Spirit as one and the same person. For the Christian believer, God expressed himself with a view to being known by man, the most sublime of his creations in the physical world, and therefore its objects somehow carry his ‘brand’; they are material, no doubt, but each one of them was created from an intellectual archetype that must somehow be accessible to the human mind if the creator is to be known through his creation. Therefore, man somehow has, or participates in/of, the verb. The source of this doctrine is Plato’s world of ideas, a source metamorphosed by his disciple into what would become the highly polemical controversy of the categories that spans the entire duration of the Middle Ages; because Platonism was highly compatible with Christian beliefs, and Aristotelianism was not completely inadaptable to them, with Bonaventure, a major figure of Christian orthodoxy, one has an extremely unequal synthesis in which the different elements are utilized in the direct proportion to their plasticity in relation to faith: there is a material world, indeed, but it is a mere copy, or imitation, of the essences in the verb; moreover, knowledge of nature gives but a partial knowledge of its creator: only a completely transcendental kind of knowledge, a sort of ‘mystical night,’ can open the door to a complete or absolute knowledge of God. Plato’s finger in all this is all too obvious, and Aristotle’s influence is also not difficult to dig out:

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beyond the obviousness of his hylomorphic metaphysics, there is the also patent doctrine of the resemblance between knower and thing known, which now becomes one between man and God. Augustine’s doctrine of divine illumination that makes of knowledge an act of grace, the generation in man of the very verb, not only fitted well into this synthesis, but actually overcame the deficiencies of both Platonism (the object of knowledge is inaccessible to man) and Aristotelianism (it is the principle of knowledge that is inaccessible), or so Bonaventure thought.3 But his is a highly Christian-biased view, because this divine grace is technically identical to the Platonic myth in the Phaedrus that explains the ideas in the human soul, and to the Aristotelian doctrine of the two intellects, the agent one ‘giving’ the forms to the possible intellect. There is thus no synthesis in Bonaventure, but a manipulation of diverse non-Christian sources for what Kant would call empirical ends, i.e. happiness. Thus, the realist ‘slogan’ “veritas est adaequatio rei et intellectus” is but the christianization of an epistemology that since Aristotle tended more and more to concentrate its entire foundation in the world, albeit for wholly different reasons from those of the Christian philosophers; moreover, it is a highly deceiving slogan, because the coordinating conjunction ‘and’ is there for mere syntactic sense, the hidden adequacy being one of the intellect to the thing that was first created by God. To change the conjunction ‘and’ by the preposition ‘to’ (ad) in this ‘slogan’ (veritas est adaequatio rei ad intellectum), a change carried out by Albertus Magnus,4 amounted technically to a clear separation between truth in the world and truth for faith; psychologically, this amounted to the beginnings of a liberation from both a creator and its created world: not man, yet, but philosophy stands or falls alone. This is the result of the affirmation of a growing intellectualism as opposed to voluntarist views. The opposition is not always clear-cut; for instance, Aquinas’, an intellectualist, and Bonaventure’s ‘slogan’

3 Cf. É. Gilson, La philosophie de saint Bonaventure, Paris, Vrin, 1924, p. 377. 4 Liber de praedicamentis II, ed. Borgnet, Opera Omnia I, Paris, L. Vivès, 1890, p.

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concerning truth is the same; however, there are evident different interpretations in both cases: for Aquinas, there are undoubtedly objects in the world, but their truth, or essence, is in the intellect inasmuch as this is their principle; as he put it, “truth is first and foremost in the intellect; secondarily in things, according as they are compared to the intellect as to a principle.”5 Indeed, the principles in the intellect are still those of the verb, but the intellectualist turn is there in that they are there, integrally so, while for Bonaventure the ‘principle’ was in the human intellect in a sort of corrupted or incomplete way.6 This is easily explained inside the opposition in question in that for a voluntarist knowledge depends on an act of the will, or of the appetite (appetitus), and this tends to the thing itself, while for an intellectualist knowledge depends on an act of the intellect, which per force tends to the principles of cognition, and, therefore, to the object as it is in the mind of the knower.7 Because of this, the principles of cognition would soon inevitably be seen as constituting ones – namely with Dietrich of Freiberg – and no longer as merely receptive principles; if the doctrine of divine illumination saw the intellect as a first and foremost receptive faculty, the intellectualist turn hampered such an approach, the intellect being seen as a ‘transforming’ faculty, as the following passage clearly conveys:

As the true is in the intellect inasmuch as it conforms to the thing known, it is necessary that the reason of the true derive from the intellect to the thing known, so that the thing known is said true according to its having some relation to the intellect. But the thing known can have a relation to the intellect either essentially or by accident. Essentially, it has an essential

5 Summa theologiae I, q. 16, a. 1 co. 6 Cf. Les six jours de la création, IV, 9, trans. M. Ozilou, Paris, Desclée-Cerf, 1991, p.

176-7. 7 Thomas Aquinas, Summa theol., ibid.: “Just as the good denominates that towards

which the appetite tends, so does the true denominate that towards which the intellect tends. However, there is this difference between the appetite and the intellect, or any form of cognition, that cognition is according to what the thing known is in the knower, while the appetite is according to the way the desirer is directed to the desired thing. And thus the end of the appetite , which is the good, is in the desired thing, but the end of cognition, which is the true, is in the very intellect.” [all translations are my own]

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relation to the intellect on which it depends in terms of its being; by accident, however, to the intellect by which it is cognizable. Just as if we said that the house is compared to the intellect of the architect essentially, but by accident it is compared to the intellect on which it does not depend. A judgment on a thing is, however, not made according to that which is in it by accident, but according to that which is in it essentially. Hence a thing is said true in an absolute sense according to the relation to the intellect on which it depends. (Thomas Aquinas, Summa theol., I, q. 16, a. 1 co.) (my italics).

One cannot emphasize too much the fact that never before in Latin thought had the human intellect been given such power of being the source of truth; only with Albert’s intellectualist turn did the intellect acquire such a property that amounts to a primacy over reality.8 Aquinas, Albert’s student, accepts his doctrine of the universal post rem, in the intellect, and conciliates it with the Platonic doctrine of the ideas: of every existing thing, there is an idea.9 They are firstly in the divine intellect, and this in two ways, as the principles of the ‘making’ of things (principia factionis rerum), and as the principles of knowledge (principia cognoscitiva); as far as the first way is concerned, the ideas are ‘models’ (exemplares) according to which things are created, thus belonging to the terrain of practical knowledge; in the second case, they are rationes, ‘types,’ and can belong to theoretical knowledge. This duplicity is explained by the need to separate in God the things he creates from the things he knows, and this especially because of the problem concerning the existence of evil, given that for everything there is, there must be in him an idea; this separation consists in that the ideas, as exemplares, concern every thing that god has created, while as rationes they concern every thing that God knows, even those things that will never be created. Man, too, has the twofold feature of being capable of knowing as well as creating, and he does both through the ideas in his intellect; however, for Aquinas it is necessary to clearly distinguish God’s

8 For Albertus Magnus’ role in the origin of late medieval intellectualism, see L. M.

Augusto, “Albertus Magnus and the Emergence of Late Medieval Intellectualism” (forthcoming) .

9 Cf. Summa theol. I, q. 15, a. 3 co.

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creative power, a power to create ex nihilo, from man’s, which is no more than a mere form-giving to already existing matter; this he does by ‘creating’ according to the resemblance in his mind, that is to say that he creates according to the intelligible being (esse intelligibile), i.e. the idea. Thus, the difference between man and God is that the latter creates natural beings, endowed with an esse naturale, while the former can only make ‘artificial’ things. We can now complete the quotation above:

And that is why artificial things are said true in relation to our intellect, the house being said true that achieves the resemblance of the form in the mind of the architect ; and a discourse is said true inasmuch as <it is> a sign of the true intellect. And in the same way the natural things are said to be true according to whether they achieve the resemblance of the species that are in the divine mind; thus the stone is said true that achieves the proper nature of a stone according to the preconception of the divine intellect. (Thomas Aquinas, Summa theol., I, q. 16, a. 1 co.)

Eckhart shook this entire edifice when he made being depend completely on the intellect, because in him, as in his elder contemporary Dietrich, existence is essence, and if the intellect gives being, it is because it has the essence of that to which being is given. This means that Aquinas’ distinction between the esse naturale and the esse intelligibile becomes, if not inexistent, opaque; the Eckhartian intellect creates truly, if not in a ‘creationist’ sense, in an emanating way, undoubtedly, as was to be expected from his Neoplatonic influences. Given this, to say that for the Thuringian the intellect is the ‘place’ of truth10 is to say something altogether different from the same expression when referring to Aquinas, or Albert, for that matter; it is not only the realist ‘slogan’ of the adequacy between the thing and the intellect, but also Albert’s ‘slogan’ that becomes entirely obsolete for the German master, given that there is no longer an adequacy, but an identity truth = thought = being. This epistemological ‘revolution,’

10 Cf. In Sap., c. 1, n. 6, ed. J. Kocher & H. Fischer, Die lateinischen Werke [LW] II,

Stuttgart, W. Kohlhammer, 1994, p. 327; ibid., c. 16, n. 274, LW II, p. 604; In Exod., c. 20, n. 176, ed. K. Weiss, LW II, p. 152.

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technically transparent in Dietrich,11 is carried out by Eckhart in a highly metaphorical style and language, which contributes to a great extent to the proliferation of misidentifications with mystic thought. If this is not correct, the ‘translation’ of Eckhart into a phenomenological language12 is perhaps even less so, because there is not in him a concept, however incipient, of phenomenon; for him, the moment one thinks, or knows a thing, it is a true thing, a true existent, but the subject does not contribute much to this ‘creation,’ that is, it does not constitute the object, or the phenomenon; knowledge, and therefore the giving of being, is something that simply happens to the subject when it is receptive, i.e. when it is a blank slate, and the effort that it has to make is one of erasing whatever may be on the slate, and this is none other than his doctrine of the abegescheidenheit. Because this roots directly in Aristotle’s theory of abstraction, one can speak of representation and, thus, and obliquely, of phenomenon, but it is rather a sort of attention, or concentration; it is not so much an effort of self-annihilation as a preparation to receive the object to be known by ‘erasing’ every representation in the mind. As we shall see, his doctrine of the bilder consists in a theory of ‘content’: the idea is its own content, and this causes an immediate identity between the knower and the thing known; but this is nevertheless a merely formal identity – for example, s/he who knows justice can be nothing else but just because s/he has a formal identity with justice, in other words, both justice and the subject have the same form, and therefore both are the same content, in the same way as the eye seeing a chunk of wood remains an eye, but an eye whose visual content is not itself but the chunk of wood.13 In itself, the eye is mere possibility of seeing, and in itself, the chunk of wood is merely the possibility of being seen; it is

11 Namely in his De origine rerum praedicamentalium, ed. L. Sturlese, Opera Omnia

III, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1983. 12 E.g.: Michel Henry, “La signification ontologique de la critique de la connaissance

chez Maître Eckhart”, in E. zum Brunn (ed.), Voici Maître Eckhart, Grenoble, Jérôme Million, 1994, p. 175-185. It is hardly necessary to give examples of mystical interpretations of Eckhart’s thought, such is their profusion.

13 Cf. below.

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when the eye sees the chunk of wood that both are some content: in idealist terms, reality. 2 Eckhart’s bilder 2.1 An Aristotelian Epistemic Recreation of Plato’s Doctrine of the Ideas Among other characteristics, Plato’s ideas are separated from the things that imitate them and of which they are the cause, existing thus before them; Aristotle criticized this tenet for epistemic reasons: if separated from the things that ‘imitate’ them, there is no visible epistemic role for them, and they might as well be altogether dropped. He concludes that, if there must be ideas, they must be in the things, but if they are to have an epistemic function, then they must be in the human intellect, too; he transposes Plato’s world of ideas into the agent intellect, apparently part of the human soul, and thus ‘humanizes’ it (by this, I mean that he turns the ideas into human tools, as against their supernatural character in Plato’s postulation). This was the legacy that Plato and Aristotle left to their successors, and much of western thought from then on was the more or less desperate attempt to conciliate two views that seemed to be correct in themselves, but that simply did not work together. Plato’s ideas reach Eckhart already mixed with the Aristotelian universals, or said intelligible species, and he clearly ‘neglects’ the problem of universals, siding with Aristotle; for him the universals – now clearly conceived as rationes – are both in the things and in the intellect. His first major contribution to this issue was a clarification of the metaphysical nature of the intelligible species, or images, and this with, too, epistemological ends in view: the bilde must be completely non-distinct from the reality whose bilde it is –without which it would be epistemically useless –, without, nevertheless, being one and the same thing.14 But Plato, too, had his epistemic reasons to separate the ideas, given that if mixed somehow with the things that participated in/of them, they would risk corruption, and their role of guaranteeing

14 Cf. In Ioh., c. 1, n. 194, ed. J. Koch et al., LW III, p. 162-3.

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absolute knowledge would cease. Eckhart thus separates them.15 Before Albert the Great and his intellectual turn, Eckhart would be expected to put the rationes in the verb, just as Augustine had claimed was the only reasonable thing to do,16 but the Thuringian was too much of an intellectualist himself, and he placed them in the locus of truth, which, as seen, is the intellect. Now, he was too much of a Christian, too, to take them completely away from the verb, and he seems at first sight to make a sort of conciliation – the ideas are both in the verb and in the intellect – but the important fact is that he sees no difference whatsoever between the ideas in the verb and those in the human mind, which eliminates the hypothesis of a mere conciliation and forces us to see the obvious: for him, the ideas in the verb and in the human mind are the same, with no difference whatsoever in status or function:

The reasons of the created things are <themselves> not created, nor creatable as such. They are before the thing17 and after the thing,18 as the original cause of those very things. That is precisely why through them the changeable things are known as through causes and by an immutable science, as is evident in the science of the natural things. The outer thing itself is changeable as far as its formal, creatable and created being is concerned. And that is what is meant here: god created so that everything would be. The things in him are the reasons of things, Ioh. 1: “in the beginning there was the verb,” or logos, which is the reason;19 and Augustine [De trin. VI, c. 10, n. 11] says that it is an “art” “filled with the reasons of everything.” (In Sap., c. 1, n. 22, LW II, p. 343) (my emphasis)

Eckhart’s use of the conjunction ‘and’ is so subtle that it risks inconspicuousness, and thus being overlooked by most interpretations of his thought. But the fact is that he himself seems quite unaware of the impact he causes in the medieval landscape, seeing himself as merely following the authorities, namely Aristotle and Augustine.20

15 Cf. ibid., n. 12, LW III, p. 12. 16 Cf. De diversis quaestionibus LXXXIII, 46, 2, PL 40/30. 17 Ante rem. 18 Post rem. 19 Also: the notion. 20 Cf. In Eccli., c. 24, n. 10, ed. J. Koch & H.Fischer, LW II, p. 240.

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His epistemic foundations are not different from those of the Stagirite, in that he requires that one know the causes if there is to be true knowledge of a thing,21 but this entails an onto-epistemic gap if one follows the ‘orthodox’ theory of knowledge that separates the thing known, its cause or ratio, and the source of its ratio, i.e. realism. Following this stance, knowing a thing is either not knowing the thing itself (because the thing is not its cause just as the cause of a circle is not a circle itself),22 or not knowing the cause (for the same reason), which is altogether but a very partial – if any – knowledge. True knowledge is only knowledge at the same time of the thing itself and of its cause, similar as dissimilar they might be, and if one followed the realist view, knowledge of God would be impossible through his creation, because the reasons in him would be different from those in the things; moreover, God’s reasons are also not those in the human mind, according to this stance, the reasons in the human intellect being formal, while those in God are causal and virtual, i.e. “they in no way designate, they give neither the species nor the name.”23 These are the theological consequences of epistemological realism. Although Eckhart seems to accept the distinction above between formal and causal-virtual reasons, and this perhaps for theological reasons more than philosophical ones, he does not comply with it, entirely neglecting the latter, firstly in the process of cognition and, ultimately, as an ontological tool: if a thing is nothing more than the ‘effect’ of its formal notion (ratio), which gives it the name and the species, a priori in the intellect and in a superior way in relation to the thing, this means that a thing is when it is known; it is simultaneous with the act of knowing; it is its being known, the very intellect itself.24

21 Pr. 8, ed. J. Quint, Die deutschen Werke [DW] I, Stuttgart, W. Kohlhammer, 1958,

p. 135: Waz man bekennen sol, daz muoz man bekennen in sîner ursache. Niemer enmac man ein dinc rehte in im selber bekennen, man enbekenne ez in sîner ursache. (What one must know, one has to know it in its cause. Never can one rightly know a thing in itself unless one knows it in its cause.)

22 Cf. In Exod., c. 20, n. 120, LW II, p. 113-4. Cf. also In Ioh., c. 1, n. 12, LW III, p. 12.

23 In Exod., c. 20, n. 121, LW II, p. 114. 24 In Ioh., c. 1, n. 38, LW III, p. 33: Iterum etiam [ratio] coaeva est intellectui, cum sit

ipsum intelligere et ipse intellectus.

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But Eckhart goes further: in his – supposedly – first Parisian quaestio, he made being depend on the intellect;25 this was emphasized in the Middle High German sermon no. 9, in which God’s being itself is no more than his churchyard, God being actually an intellect;26 in his In Ioh., he is faithful to these claims, but he goes further, making of the intellect the absolute condition of existence: “there is nothing beyond knowing.”27 This leads him into an idealist ontology: every creature is nothing in that it is only when it is known; when the knowledge of a thing ceases, it, the thing, ceases to exist altogether. Berkeley will say exactly the same four centuries later on: esse est percipi. And about one century after this, Hegel will take being as the very beginning of the dialectical process and, as such, the most indeterminate category of all,28 becoming real only at the end of the movement in which the mind realizes that being is precisely this progress in knowledge, the absolute idea.29 The connection established by Aristotle between the forms in the intellect and in the things (to be abstracted in the case of the material things, identical to the very thing in the case of the intelligible things) is one of a formal identity: the intellect knowing a form is that very form, and nothing else beyond it, because without a form it is mere possibility of thought; this in the case of the possible intellect, while the agent intellect always thinks, being the totality of the forms

25 Quaestio Parisiensis I, n. 5, ed. B. Geyer, LW V, p. 42: [I]ntelligere est altius quam

esse et est alterius condicionis. 26 Cf. Pr. 9, DW I, p. 150. 27 In Ioh., c. 1, n. 38, LW III, p. 33: [N]ihil praeter intelligere est. 28 Wissenschaft der Logik I, ed. F. Hogemann & W. Jaeschke, Gesammelte Werke

[GW] 11, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1978, p. 43-4 (Being, pure being, – with no other determination. In its undetermined immediacy it is only identical to itself, and it is not unequal as opposed to the other, has no difference inside its own, nor to the outside. Through some determination or content that is differentiated in it or through which it would be posited as different from another, it would not be captured in its purity. It is the pure indetermination and void. There is nothing to intuit in it, if one can speak of intuiting here; or it is only this pure, empty act of intuiting itself. It is very little to think something in it, or it is only this empty thinking. Being, the undetermined immediacy is in fact nothing, and nothing more nor less than nothing.)

29 Cf. Wissenschaft der Logik II, ed. F. Hogemann & W. Jaeschke, GW12, p. 236f.

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in act; but Aristotle never said clearly that this agent intellect is in the human soul, though in certain passages he says that the soul is the place of the forms (yet again, he could be referring to the possible intellect). What matters to us is that the Stagirite establishes a formal identity between the subject and the object, and Eckhart, again, is faithful to this source:

But it so happens that my eye is one and simple in itself, and that it opens and is directed to the piece of wood in contemplation; so remains each that which it is, but both become in the act of the contemplation only one in such a way that one can truly say eyewood, and the wood is my eye.30

However, we are not facing a pure Aristotelianism, and the entire metaphysical tradition of the Middle Ages makes itself evident in the fact that Eckhart sees this identity as one in being (though not ontological, i.e. the subject is not the object, and vice versa): the intellect knowing a thing and that thing are formally just one being.31 And we already know why: because being is a product of the intellect. But that the intellect is at the same time also a being, when according to the Neoplatonic metaphysics to which Eckhart remains attached the cause cannot be present in the effect if it is a true cause32 means only that the intellect is, as a being, cause of itself.

30 Pr. 48, DW II, p. 416: Geschihet aber daz, daz mîn ouge ein und einvaltic ist in im

selben und ûfgetân wirt und ûf daz holz geworfen wirt mit einer angesiht, sô blîbet ein ieglîchez, daz es ist,und werdent doch in der würklicheit der angesiht als ein, daz man mac gesprechen in der wârheit: ougeholz, und daz holz ist mîn ouge.

31 Ibid: Wære aber daz holz âne materie und ez zemâle geistlich wære als diu gesiht mînes ougen, sô möhte man sprechen in der wârheit, daz in der würklicheit der gesiht daz holz und mîn ouge bestüenden in éinem wesene. Ist diz wâr von lîplîchen dingen, vil mê ist ez wâr von geistlîchen dingen. (But if the wood were without matter and purely spiritual like the vision of my eye, one could say in truth that, in the act of vision, the wood and my eye would consist in one single being. If this is true of the corporeal things, it is even more so of the spiritual things.)

32 Cf. Quaestio Parisiensis II, n. 10, ed. B. Geyer, LW V, p. 54. Cf. also Pseudo-Dionysus, De divinis nominibus, II, 8, 645C-D, ed. B. R Suchla, Corpus Dionysiacum I, Berlin – New York, Walter de Gruyter, 1990.

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2.2 A Christian Ontological Recreation of Aristotle’s Doctrine of Cognition Interestingly enough, Eckhart’s doctrine of the bilder is elaborated mostly in the German sermons, in which he goes from orthodoxy to daring, sometimes in the same paragraph. His expression is somehow ‘conservative’ in the Latin texts, the doctrine of the ideas remaining in them very much unchanged in relation to the tradition that handed it to him. Given that his sermons in German are usually more innovative, and that in the same text Eckhart often mixes orthodoxy with originality, one is hardly surprised to find in sermon no. 17 a monotonous explanation of the doctrine of the forms – bilder for him – as it was conceived by Latin thought33 being used merely as an introduction with a view to some sort of philosophical ‘impact’: explained the doctrine of the ideas within an Aristotelian background (that is to say that in order to know something, and thus become that very thing, the intellect must be like a blank slate), Eckhart claims that it is the responsibility of the knower to become ‘blank,’ so as to be capable of accepting all forms and therefore become every thing, and especially, as a Christian, God himself. This is none other than the doctrine of the abegescheidenheit, the source of the most mystical interpretations of his thought precisely because they miss this eminently technical aspect: that it roots directly in Aristotle’s doctrine of abstraction. At most, it is an Aristotelian doctrine adapted to a Christian worldview that renders the individual responsible not only for her/his actions, premeditated or accidental, but even for thoughts, conscious or unconscious. This is obviously difficult to conciliate with Eckhart’s intellectualism, inasmuch as this is a notoriously voluntarist doctrine,34 but again this is mere appearance:

33 Cf. Pr. 17, DW I, p. 290-1. 34 I do not really think there can be any doubt of the side chosen by Eckhart; the

following passage from Pr. 37, DW II, p. 216, merely one in many, shows this side-taking: Vernünfticheit ist eigenlîcher ‘kneht’ dan wille oder minne. Wille und minne vallent ûf got, als er guot ist, und enwære er niht guot, sô enahteten sie sîn niht. Vernünfticheit dringet ûf in daz wesen, ê si bedenke güete oder gewalt oder wîsheit oder swaz des ist, daz zuovellic ist. (The intellect is a more genuine servant than the will or love. The will and love attach themselves to god as long as he is good, and if he were not good, they would not care for him. The intellect penetrates in the being before

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as a consistently devoted Neoplatonic, he is again only following these masters according to whom it is inevitable that the created thing will turn to its creator, the One, and this in a spontaneous way; Eckhart’s man, too, turns spontaneously to God, and because this is a spontaneous act not dependent so much on the will as on the nature of creation, he rejects all sorts of actions deemed capable of bringing God to man, i.e. fasts, unending prayers, self-flagellations, the morbid whatnot that seemed to make the cup of tea of many medieval Christians. His abegescheidenheit is a detachment, without doubt, but it is a positive one in that it is merely intellectual: just as one who solves a mathematical problem concentrates on the numbers and their relations, so the individual willing to know – better: be – all the forms has to abstract him-/herself from all materiality. Rather than of abandonment or detachment, and as already pointed out, one should speak of concentration. This interpretation counterbalances those more mystical ones, which see in the abegescheidenheit some sort of doctrine of ecstasy, or even of apatheia, the absence of sensation and feeling. It is a fact that Eckhart abundantly uses terms and expressions that convey the meaning of detachment and disinterest,35 but he always makes a connection between this ‘self-annihilation’ and Aristotle’s doctrine of abstraction, which suggests that he constantly keeps in mind the technical meaning of this source. One can also hypothesize that this vocabulary is addressed to an audience in its vast majority composed by Dominican nuns, most of them not learned in philosophical matters, and who were certainly far better acquainted with the vocabulary of the female Rhineland mystics than with that of both technical theology and philosophy, namely that of Aristotle. By this I do not mean that he made his thought more accessible; much on the

thinking about the good or power, about wisdom or whatever it is that is accidental.).

35 Words of these semantic fields are, for instance, nouns such as gelâzenheit, not caring, vernihtung, annihilation, abelegung, undressing, blôzheit, nudity, and verbs such as [sich] ergeben, to abandon [oneself], [sich] abeschelen, [sich] berouben, [sich] entschelen, to undress [oneself], lâzen, leave, ledic machen, detach, uzgân, go out, leave, flow, etc.

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contrary, this highly metaphorical language makes the interpretation of his thought if anything more difficult. Moreover, Plato, too, advocated the need to ‘escape’ this world in order to reach the realm of ideas, and so far no one succeeded in making of him some sort of mystic of detachment.36 Back to the doctrine of the bilder, and having discussed Aristotle’s role as its main background, let us now turn again to its most direct source, Plato; according to this, the ideas were the formal causes, the ousia of things that were but mere copies of them; we are thus facing a model-copy relation, a relation that Bonaventure took without much originality for his Christian aims, and a relation that was first rejected by Aristotle in his harsh criticism of the thought of his former master (a criticism, however, that was firstly carried out by Plato himself in the Parmenides). This relation between the model (paradeigma) and the copies (homoiômata) is precisely the core of the difficulties of the doctrine of the ideas, the main difficulty being the resemblance between them: to postulate a resemblance between model and copy, does this not imply that one has to postulate yet another form, that of the resemblance between them? Certainly, answers Socrates, unaware of where this answer is going to take him: if the resemblance is caused by the form of resemblance, then the copy does not resemble the model, because, besides this form, another one would be required to justify the relation of resemblance, and so on ad infinitum (indeed, this is precisely Aristotle’s criticism in Met. A, 9, known as the argument of the third man); Parmenides’ conclusion, which Socrates is forced to accept, is that the resemblance cannot explain the relation of participation between model and copy and that it is necessary to search for another explanation.37 This problem is so embarrassing that it is altogether forgotten for centuries, and it is precisely Eckhart who will be bold enough to

36 My criticism of the mystical interpretations does not aim at their elimination; if

anything, and in the name of the principle of proliferation proposed by Paul Feyerabend, it aims to force its supporters to do a much better work than they have done so far, neglecting or simply missing the ‘technicalities’ that, whether they want it or not, are everywhere in Eckhart’s thought.

37 Cf. Parmenides 132c-133a.

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retake it, attempting to find a good account of this relation between the models and their copies. Sermon no. 16b is almost integrally a treatise on this subject. In it, the solution found by the Thuringian is ingenious: to speak of model and copy as far as the eidetic relation is concerned has nothing to do with speaking of material models and material copies; the terrain is altogether different. A recipient, or container has two features: it simultaneously receives in itself a content, and it contains it; this relation is clearly one between two different things when we are speaking of a material container, given that a jug is not its content, and the content is not the jug either; for instance, a jug contains wine, and the wine is in the jug, and in spite of this to drink the wine does not obviously mean that one drinks the jug. This clear distinction ceases when one is talking of spiritual things; a spiritual ‘jug’ is that which it contains, and the content is that which contains it. It is very much evident that Eckhart establishes the analogy between jug and soul through the notion of containing, and the soul is thus characterized by this notion: it contains all the forms of all things. And if one follows Aristotle’s claim that the knower resembles the thing known, then there can be no distinction between the container and the content. Eckhart’s conclusion is abrupt, and it is ultimately of a theological character, in that the soul of the individual that ‘contains’ God is God himself. His highly allegorical explanation features eggs: two resembling eggs are not the same egg, precisely because they are not each other’s bilde; if there is bilde, then there is resemblance, because if something has to be the bilde of another thing, then that relation must come from its very nature, it must be a fruit of that nature, and must be identical to it.38 For all this, it is very much obvious that the Middle High German word bilde is better left untranslated, since it means at the same type the model, the copy, and the archetype, and that the term resemblance, translating the Middle High German ‘glîcheit,’ is but a very poor translation itself, the original word conveying a mixture of resemblance and identity.

38 Pr. 16b, DW I, p. 265: [W]an daz des andern bilde sol sîn, daz muoz von sîner natûre

komen sîn und muoz von im geborn sîn und muoz im glîch sîn.

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Adopting an analytical structure much more frequent in his Latin texts, Eckhart characterizes this resemblance, which entails an ontological identity in four properties between the bilde and that of which it is the bilde:

1. The bilde receives its being immediately from that of which it is the bilde;

2. this ‘resemblance’ entails that: 1.1. the bilde is not of itself or for itself; 1.2. it derives from that of which it is the bilde and belongs

to it completely; 1.3. it has a being with that of which it is the bilde and it is

the same being. The example he gives is the one of vision, an example very much resorted to since Antiquity and throughout the Middle Ages to illustrate theories of perception and cognition, and thus theories of intelligible forms. The eye has an image when it perceives something, but this image does not belong to it; it belongs to the thing of which it is the image. Although the image ‘comes out’ of a thing, it is ‘one’ with that thing: it is the very thing itself, the same being. But when the eye sees the thing, vision, the action of seeing, becomes that very thing, too, having the same being precisely because they both share the same image. Is there anything new in this doctrine? Not really: a brief analysis shows us that we are not far from Aristotle’s De anima:

(1) In sensation, it is the things themselves that affect the body.

(2) They do it through their qualities, such as color, sound, taste, etc; therefore, they do it through their forms and not through their matter.39

(3) In sensation, like is affected by like.40

39 Cf. De anima II, 12, 424b10-11 and 424a17-24. 40 That is, the perceiving organ, in the act of sensation, becomes the ‘quality’ it senses;

cf. ibid., 5, 417a18-21 and 418a4-6.

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If (4) thinking is a –bodily? – process like sensing,41

then (5) in the act of knowing, like is affected by like.42

The conclusion one draws from this argument is that, when one knows a thing, one becomes in a way that thing; the subject and the object ‘share’ the same intelligible form in act in the action of cognition. But Eckhart seems to go further than this, claiming that the form is the very being of a thing, its quoddity; moreover, he claims that the being of a thing is given by the intellect possessing its essence. But there is still nothing really new in this, because Aristotle, too, had stated that the agent makes that which is in potency identical to itself,43 i.e. the sensible object makes the sense organ like it: eyesight, being in potency all its sensibilia, the visible things, is made into gold by the vision of gold. If thinking is a process akin to sensing, as seen above, then having the form of a thing is to become that form in act, because the soul is potentially all the intelligible forms. 3 Conclusion With the above analysis, I showed that, at the technical and formal levels, Eckhart’s doctrine of the bilder is an Aristotelian epistemic recreation of Plato’s doctrine of the ideas and a Christian ontological recreation of Aristotle’s doctrine of cognition. It is an intellectualist44 solution to the problem of the resemblance relation between the model and its copy, and it is an intellectualist solution in that it first establishes a formal-epistemic identity between both to establish the ontological identity between thought and reality: reality is nothing but

41 Actually, Aristotle rejects that thinking is a bodily process like sensation (cf. ibid.,

III, 3, 427a19-427b6), but he seems to accept that thinking and sensation are alike processes, at least in the case of the possible intellect (cf. ibid., 4, 429a13-22).

42 Although Aristotle apparently rejects this theory (cf. ibid., III, 3, 427a27-8), it does not differ from his statement that the possible intellect thinking an object is in entelechy that object (cf. ibid., 4, 429b31).

43 Cf. ibid., II, 11, 424a1-2. 44 As a matter of fact, it is an idealist solution, but I cannot go into that subject in this

paper.

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thought, because it is the latter that first has the essences, or forms of everything there is. Eckhart’s intellectualism is coherent through and through, inasmuch as he never leaves the terrain of the intellect, making of both the Platonic ideas and the Aristotelian intelligible forms true tools of donation of being. If much in his thought seems at first ‘too’ original, or even mystical, this is only when one neglects or altogether misses its Aristotelian and Platonic roots. References ALBERTUS MAGNUS, Liber de praedicamentis, ed. Borgnet, Opera Omnia I, Paris, L. Vivès, 1890 ARISTOTLE, De anima, trans. W. S. Hett, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2000 _______ Metaphysica, ed. W. Jaeger, Oxford, Oxford University Press, 1988 AUGUSTINE, De diversis quaestionibus LXXXIII, ed. A. Mutzenbecher, Turnhout, Brepols, 1975 _______ De trinitate libri XV, ed. W. J. Mountain, Turnhout, Brepols, 1970 AUGUSTO, L. M., “Albertus Magnus and the Emergence of Late Medieval Intellectualism” [forthcoming] BONAVENTURE OF BAGNOREGIO, Les six jours de la création, trans. by M. Ozilou, Paris, Desclée-Cerf, 1991 DIETRICH OF FREIBERG, De origine rerum praedicamentalium, ed. L. Sturlese, in Opera Omnia III, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1983 ECKHART, Expositio Libri Exodi [abbr.: In Exod.], ed. K. Weiss, in Die lateinischen Werke [LW] II, Stuttgart, W. Kohlhammer, 1992 _______ Expositio Libri Sapientiae [abbr.: In Sap.], ed. J. Kocher & H. Fischer, in Die lateinischen Werke [LW] II, Stuttgart, W. Kohlhammer, 1992 _______ Expositio sancti evangelii secundum Iohannem [abbr.: In Ioh.], ed. J. Koch et al., in Die lateinischen Werke [LW] III, Stuttgart, W. Kohlhammer, 1994 _______ Predigten, ed. J. Quint, Die deutschen Werke [DW] I-III / ed. G. Steer DW IV, Stuttgart: W. Kohlhammer, 1958-1976 / 2003

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_______ Quaestiones Parisienses una cum quaestione Magistri Consalvi, ed. B. Geyer, in Die lateinischen Werke [LW] V, Stuttgart, W. Kohlhammer, 1936ff _______ Sermones et lectiones super Ecclesiastici c. 24, 23-31 [abbr.: In Eccli.], ed. J. Koch & H. Fischer, in Die lateinischen Werke [LW] II, Stuttgart, W. Kohlhammer, 1958 GILSON, É., La philosophie de saint Bonaventure, Paris, Vrin, 1924 HEGEL, G. W. F., Wissenschaft der Logik I, ed. F. Hogemann & W. Jaeschke, Gesammelte Werke [GW] 11, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1978 _______ Wissenschaft der Logik II, ed. F. Hogemann & W. Jaeschke, Gesammelte Werke [GW] 12, Hamburg, Felix meiner Verlag, 1981 HENRY, M., “La signification ontologique de la critique de la connaissance chez Maître Eckhart”, in E. zum Brunn (ed.), Voici Maître Eckhart, Grenoble, Jérôme Million, 1994, p. 175-185 PLATO, Parménide, ed. and trans. A. Diès, Paris, Les Belles Lettres, 1923 PSEUDO-DIONYSUS, De divinis nominibus, ed. B. R Suchla, Corpus Dionysiacum I, Berlin – New York, Walter de Gruyter, 1990 THOMAS AQUINAS, Summa theologiae, Leonine edition, Turin – Rome, 1952-62

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 187-208

Preservação da dignidade humana e aperfeiçoamento moral: a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo”

Letícia Machado Pinheiro*

Resumo: Tomando como fontes basilares a “Doutrina da Virtude” (segunda parte da Metafísica dos Costumes) e a Lições de ética – obras nas quais Kant trata com mais afinco o tema intentado –, o texto que segue apresenta em linhas gerais a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo”. Partindo das dificuldades que Kant aponta como subjacentes ao conceito de “dever para consigo mesmo” e, definindo os pontos distintivos entre deveres perfeitos e imperfeitos, pretende-se apresentar os pontos por ele realçados como pertencentes aos deveres perfeitos que o agente moral tem para consigo próprio. Palavras-chave: Deveres, Kant, Moral, Natureza humana, Progresso Abstract: Taking basic sources as the “Doctrine of Virtue” (second part of Metaphysics of morals) and Lectures on ethics – works in which Kant addresses the issue with more precision – the text that follows shows in general the concept of Kantian “perfect duties to oneself”. On the difficulties that Kant located in the concept of “duty to oneself” and by defining the distinction between perfect and imperfect duties, it is intended to present the points highlighted by Kant as belonging to the perfect duties that the agent for has itself. Keywords: Duties, Kant, Moral, Human nature, Progress 1 Dificuldades na noção de “dever para consigo mesmo” Kant admite pelo menos duas dificuldades no que tange à concepção de “deveres para consigo mesmo” (Pflichten zu sich selbst): por um lado, ele salienta que se trata de um tema interpretado erroneamente pelas filosofias morais em geral; por outro, reconhece que porquanto o conteúdo dos “deveres para consigo mesmo” seja compreendido de maneira adequada – ou seja, ainda que a primeira dificuldade seja sanada –, essa noção permanece problemática, na medida em que parece envolver em seu próprio conceito uma contradição.

* Doutoranda em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –

UFRGS. E-mail: [email protected]. Artigo recebido em 21.07.2008, aprovado em 19.12.2008.

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Relativo ao primeiro ponto, Kant menciona nas Lições de ética (obra fruto de um curso acadêmico, publicada somente em 1924)1 que “nenhuma outra parte da moral tem sido tratada de forma tão deficiente como a que versa sobre os deveres para consigo mesmo”2(LE, 339-340). Kant justifica essa deficiência denunciando que nas filosofias morais em geral, os “deveres para consigo mesmo” são restritos ao signo da promoção da felicidade e do bem estar próprios. Tal restrição redunda, por um lado, em eles serem concebidos tão-somente como complementos da moralidade (o que deprecia a sua importância); por outro, e em consequência disso, que sejam postergados aos outros deveres, como se não se constituíssem em matéria da moral no sentido forte do termo. Kant se mostra de tal modo contrariado com essa posição relativa aos “deveres para consigo mesmo”, a ponto de afirmar – de modo incisivo e categórico – que “no tocante a esse capítulo todas as filosofias morais resultam falsas”3(LE, 340). Em vista disso, ele busca esclarecer – e ao seu modo superar as filosofias morais que interpretam o “dever para consigo próprio” de maneira destorcida –, que tais

1 Segundo alguns estudiosos, o ano de exercício do curso varia entre 1775 e 1789 –

sendo que no próprio livro a data apresentada é de 19 de abril de 1785. A pouca recorrência dos comentadores à obra Lições de ética é fruto de sua impopularidade, cuja imposição se deu pela demora de sua edição, ocorrida (pelo empenho de Paul Menzer) apenas em 1924 sob o título Eine Vorlesung Kants über Éthik. Entre 1974 e 1979, Gerhard Lehmann a incluiu na edição da Akademie (base da tradução aqui utilizada). A primeira tradução da Lições de ética apareceu em 1930 para o inglês (Lectures on Ethics) efetuada por Louis Infeld, na qual consta um prólogo escrito por Beck. A que dela se segue é a espanhola (da qual nos servimos) editada em 2002 com a tradução de Roberto Rodríguez Aramayo e Concha Roldán Panadero, que conta com um estudo inicial de Aramayo intitulado “La cara oculta del formalismo ético” (p.07-34). É com as suas palavras, inclusive, que se pode sintetizar de maneira bastante precisa a leitura de tal obra: “Nas Lições de ética se encontram muitos dos fermentos que terminaram por catalisar o formalismo ético, só que expressos por uma linguagem mais tosca e menos técnica”(Aramayo, p.18. In: Lições de ética). “En las Lecciones de ética se encuentran muchos de los fermentos que terminaron por catalizar el formalismo ético, sólo que expressados com un lenguaje más tosco y menos tecnificado”.

2 “ninguna outra parte de la moral há sido tratada de forma tan deficiente como la que versa sobre los deberes para com uno mismo”.

3 “En lo tocante a este capítulo todas las filosofías morales resultan falsas”.

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deveres devem ser interpretados como “independentes de todo o proveito”, atendendo “tão-só à dignidade do ser humano”4 (LE, 342-343). Com essa sua interpretação, Kant propõe uma transição na concepção dos “deveres para consigo mesmo”, que consiste no seguinte: retirá-los de seu caráter vulgar (no qual eles são abreviados pela busca das próprias satisfações), concebendo-os em uma conotação mais racionalista em que se põe em evidência a dignidade humana. Essa transição é suposta por Kant, sobretudo em função de ele conceber a moralidade como referente a um agir universal e racionalmente aceito por todos (concebido livre de qualquer condição subjetiva) visando aprimorar o que há de característico e distintivo no humano: a racionalidade. Tal concepção de moralidade não comporta o modo como até então o “dever para consigo mesmo” ordinariamente era concebido. Sob tal figuração, esse dever, além de resultar em um princípio egoístico (o que por si só contradiria a prática moral), converter-se-ia teoricamente em uma dupla contradição: uma, seria um dever desprovido de caráter objetivo (a felicidade e o bem seriam concebidos em função da subjetividade de cada indivíduo); outra, concebido nesses termos o “dever para consigo mesmo” se constituiria em um obstáculo ao dever para com os outros. Kant em sua interpretação tem, pois, um propósito bem definido: compatibilizar a noção de “dever para consigo mesmo” com a prática moral. Tal dever ele o define como uma obrigação que põe em evidência a humanidade do indivíduo, ou seja, os caracteres que o distinguem dos demais seres da natureza. Trata-se, com efeito, de um dever de preservação, de manutenção e de aperfeiçoamento do homem sob a perspectiva da sua natureza humana como um todo, ou seja, no seu aspecto animal e racional. Kant, e agora independentemente de qualquer elucidação e subversão teórica no que tange ao conteúdo dos “deveres para consigo mesmo”, admite uma segunda dificuldade: a de que essa noção encerra em si mesma uma aparente contradição. Só pelo fato de ele qualificar tal

4 “son independientes de todo lo provecho y atienden tan sólo a la dignidad del

género humano”.

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contradição de aparente, deixa claro que uma solução já é figurada. Apesar disso, Kant não se furta de descrever o problema, e o faz nos seguintes termos: “Se o eu que impõe obrigação for tomado no mesmo sentido do eu que é submetido à obrigação, um dever para consigo mesmo será um conceito contraditório” (MC, 417). Kant parte da suposição clássica de que no âmbito do dever existem dois domínios: o daquele que ordena e o daquele que recebe a ordem. No caso de um “dever para consigo mesmo”, esses dois domínios colapsam em um mesmo agente. Para usar os termos kantianos, o sujeito “obrigante” (do dever) e o sujeito “obrigado” (pelo dever) estariam em um mesmo agente, de modo que, inclusive, o “obrigante” poderia prescrever apenas deveres “agradáveis” ao “obrigado”, ou até mesmo, exonerá-lo de cumprir a obrigação. A fim de resolver essa dificuldade que ele denomina de aparente contradição, Kant recorre, primeiramente, a um argumento mais amplo, relativo à suposição de que se não houvesse tais deveres (para consigo mesmo) não se poderia conceber nenhum outro dever em geral. Kant, pois, num primeiro momento, não se dedica a resolver a contradição em si mesma, mas tão-somente em provar que, embora o argumento de que não se possa conceber “deveres para si mesmo” não esteja teoricamente bem fundamentado, é plausível não admitir a sua impossibilidade sob pena de, no âmbito da razão prática, abolir todo o tipo de deveres5. Num segundo momento, porém, Kant se empenha em resolver a contradição no interior dela mesma, em dependência do que nos oferece a seguinte resposta: a propósito dos “deveres para consigo mesmo”, há que se distinguir o sentido do termo homem (Mensch) quer como “obrigado” quer “obrigante”.

5 Essa íntima ligação entre os “deveres para consigo mesmo” e os outros deveres, a

ponto de a exclusão dos primeiros fomente a dos últimos, Kant a concebe nos seguintes termos: “Pois supondo que não houvesse tais deveres [para si mesmo], não haveria deveres quaisquer que fossem e, assim, tampouco deveres externos, posto que posso reconhecer que estou submetido à obrigação a outros homens somente na medida em que eu simultaneamente submeto a mim mesmo à obrigação, uma vez que a lei em virtude da qual julgo a mim mesmo como estando submetido à obrigação procede em todos os casos de minha própria razão prática e no ser constrangido por minha própria razão, sou também aquele que constrange a mim mesmo” (MC, 417-418).

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O ser humano [diz ele], como ser natural possuidor da razão (homo phaemenon), pode ser determinado por sua razão, como uma causa, as ações no mundo sensível e, até aqui, o conceito de obrigação não é considerado. Mas o mesmo ser humano, pensado em termos de sua personalidade, ou seja, como um ser dotado de liberdade interna (homo noumenon), é considerado como um ser que pode ser submetido à obrigação e, com efeito, à obrigação para consigo mesmo (para com a humanidade em sua própria pessoa) (MC, 418).

Kant, pois, recorre à sua famosa proposição do “homem como cidadão de dois mundos”, e com essa sua teoria pretende justificar que, embora o “obrigante” e o “obrigado” – enquanto protagonistas do “dever para consigo mesmo” – estejam contidos no mesmo ser, não o estão sob a mesma perspectiva6. É, pois, nesse “palco” que Kant abona a possibilidade de se conceber a noção de “deveres para consigo mesmo” sem contradição: de um lado, tem-se o sujeito reconhecedor e condescendente a uma lei incondicional, legislando-se a partir dela; de outro, tem-se o ser racional finito, que também é capaz de reconhecer e aderir a tal lei, mas é frágil e falível, o que inibe a atualização da sua capacidade. 2 Deveres perfeitos e imperfeitos Quanto à sua qualidade, Kant divide os “deveres para consigo mesmo” em “perfeitos” e “imperfeitos”. Apesar de oferecer essa divisão, Kant, contudo, não é tão claro quanto a essa perfeição ou imperfeição dos deveres. H. J. Paton, fazendo coro com a grande maioria dos comentadores, reconhece que “Kant concede grande importância para a distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos, mas parece não definir em parte alguma a distinção claramente”7 (Paton, 1947, p.147). Apesar

6 Allen Wood explica que “o que é distintivo acerca do conceito de um ser

imperfeitamente racional e autolegislador (um ser com personalidade em sentido kantiano) é que esse conceito envolve a relação entre duas pessoas que são combinadas em um único e mesmo ser” [“what is distinctive about the concept of an imperfectly rational and self-governing being (a being with ‘personality’ in the Kantian sense) is that this concept involves that of a relation between two person who are combined in one and the same being”] (Wood, 2006, p.12).

7 “Kant attaches great importance to the distinction between perfect and imperfect duties, but he seems nowhere to define the distinction clearly...”

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de não haver um elemento textual pelo qual Kant exponha com nitidez as nuances entre “deveres perfeitos e imperfeitos”, Paton ressalta que ao menos podemos indicar como tais deveres não são concebidos pelo ponto de vista kantiano. Kant não se serve da noção de tais conceitos (sugere o comentador) no mesmo sentido ordinário das escolas da época. “O uso ordinário observava os deveres como perfeitos se eles pudessem ser impostos por uma lei externa, e como imperfeitos se eles não pudessem ser impostos assim”8 (Paton, 1947, p.147). Kant não pode acatar tal distinção (diz Paton) uma vez que, tal como ela é edificada, pressupõe os “deveres perfeitos” somente com relação a um outro, ao passo que Kant admite que temos “deveres perfeitos” também com relação a nós mesmos (Cf. Paton, 1947, p.147). Nos raros momentos nos quais Kant se vale dessas noções de “perfeito” e “imperfeito” relativas ao “dever para consigo mesmo”, fica posto que os “deveres perfeitos” são assim qualificados em função de serem estritos: ordenam explicitamente o que se deve e o que não se deve fazer. Os deveres “imperfeitos”, por sua vez, são de alcance amplo: sugerem um modo de agir. Dada essa caracterização inicial de cada um desses deveres em termos de restrição e amplitude, fica saliente que os “deveres perfeitos” figuram uma “obrigação”, ao passo que os “imperfeitos” um, por assim dizer, “conselho”9 (pois apontam tão-somente para um agir maximamente recomendável). É isso, inclusive, o que sublinha Kant na seguinte passagem da Metafísica dos costumes:

Quanto mais lato o dever, mas imperfeita é a obrigação de um homem para com a ação (...). Deveres imperfeitos são, conseqüentemente, apenas deveres de virtude. O cumprimento deles é um mérito (meritum) = +a; mas o não cumprimento deles não é em si mesmo culpabilidade (demeritum) = -a, mas a

8 “The ordinary usage regarded duties as perfect if they could be enforced by external

law, and as imperfect if they could not be so enforced”. 9 No “Teorema IV” da “Analítica da razão prática pura”, na Crítica da razão prática

(1788), Kant faz uma breve menção daquilo que é tomado como um “dever” em relação ao quê é figurado como um “conselho”: “A máxima do amor de si (prudência) apenas aconselha; a lei da moralidade ordena. Há, porém, uma grande diferença entre aquilo que se nos aconselha e aquilo para o qual somos obrigados” (CRP, 64).

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mera deficiência de valor moral = 0, a menos que o sujeito erija como seu princípio não aquiescer a tais deveres (MC, 390).

Os chamados “deveres perfeitos”, por serem obrigatórios e incondicionais, são diretamente proporcionais à noção de imputabilidade (e com ela, de mérito e demérito); os “imperfeitos”, contudo, por estarem eximidos da obrigação, isto é, por permitirem hesitação e ajuizamento, não fundam demérito caso não seguidos, mas, se acatados, geram mérito10. Assim, o agente que realiza os “deveres imperfeitos” acumula um, por assim dizer, plus moral, pois além de cumprir a sua obrigação, ainda segue o que é recomendado fazer. Disso não resulta, porém, que os “deveres imperfeitos” possam ser manejados sem compromisso pelos agentes, pois, ainda que sejam imperfeitos, eles permanecem como deveres (Pflichten), e isso significa que seguindo uma máxima de dever imperfeito nós não estamos “livres para abandonar a máxima, mas apenas para limitá-la por uma outra máxima do dever”11 (Paton, 1947, p.147). 3 Deveres perfeitos para consigo mesmo Relativo aos “deveres para consigo mesmo”, Kant os concebe dentro do que ele chama de divisão objetiva e divisão subjetiva. Dentro da divisão objetiva, ele distingue dois tipos de deveres: os restritivos ou de omissão e os deveres ordenativos ou de execução. Os primeiros são restritivos porque “proíbem um ser humano de agir contrariamente ao fim de sua natureza e, assim, têm a ver meramente com a sua auto-preservação moral”; os ordenativos evidentemente “ordenam a fazer de um certo objeto de escolha o seu fim, concernem ao aperfeiçoamento de si

10 A propósito da motivação de Kant em admitir os “deveres imperfeitos” como

deveres (malgrado a sua latitude e não obrigação estrita), Allen Wood explica que tal ocorre porque as ações por eles recomendadas “são concebidas como objetos de preparação da autocoerção – coisas que nós podemos fazer nós mesmos executar através do exercício da razão e dos sentimentos morais nascidos da aplicação da razão prática para a nossa faculdade de desejar” [are conceived as fit objects of self-constraint – things we can make ourselves do through the exercise of reason and the moral feelings arising from the application of practical reason to our faculty of desire] (Wood, 2006, p.01).

11 “free to abandon the maxim, but on to limit it by the maxim of another duty…”

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mesmo” (MC, 419). No contexto da divisão subjetiva, Kant se refere não a, digamos, deveres do agir e, sim, ao modo como os “deveres para consigo mesmo” devem ser direcionados à natureza humana. Tendo em vista essa natureza, Kant considera o homem sob dois aspectos, em dependência dos quais supõe os deveres12: o homem como ser animal e simultaneamente moral, e o homem somente como ser moral. Para o primeiro (enquanto ser animal e simultaneamente moral), Kant supõe que “os deveres para consigo mesmo” devem ser fundamentados no seguinte princípio: “‘viva em conformidade com a natureza’ (naturae convenienter vive), ou seja, preserva a si mesmo na perfeição de sua natureza. Para o segundo (para o homem como ser unicamente moral), Kant pensa os “deveres para consigo mesmo” fundados no seguinte aforismo: “‘faça a si mesmo mais perfeito do que a simples natureza lhe fez’ (perfice te ut finem; perfice te ut médium)” (MC, 419). No que tange aos “deveres perfeitos do homem para consigo mesmo”, os deveres pertencentes à classe do homem como ser animal e simultaneamente moral, Kant, os concebe como restritivos ou de omissão (no sentido de que dizem o que não se deve fazer); os outros, ligados ao homem considerado unicamente como ser moral, alguns são de omissão, outros de execução. 3.1 Deveres perfeitos do homem considerado como um ser animal e simultaneamente moral Kant antecede os deveres do homem como ser animal e ao mesmo tempo moral àqueles prescritos como ser unicamente moral. Disso, porém, não se segue que os primeiros sejam tomados por Kant como mais proeminentes que os segundos. Referindo-se aos deveres do homem enquanto ser animal e simultaneamente moral, Kant diz que “o primeiro, ainda que não o principal dever de um ser humano para

12 Tal divisão seria um dos motivos pelos quais Kant não apresenta nesse contexto

todos os deveres que, geralmente, atribui aos homens. Ou seja, na Metafísica dos costumes (1797), Kant não está concebendo os deveres morais de seres racionais em geral, mas aqueles referentes à natureza humana. Isso explica, inclusive, a inserção de itens de “casuística” (estudo dos problemas concretos que se apresentam à ação moral) no decorrer da obra, algo incomum nos textos kantianos.

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consigo mesmo como um ser animal, é preservar a si mesmo em sua natureza animal” (MC, 421). Malgrado Kant afirme que o dever da conservação (animal) não é o mais relevante, uma vez que se relaciona tão-somente com a preservação física e com todos os excessos que a animalidade carrega consigo, não poderia deixar de admiti-lo como primeiro, pois é ele que roga pela integridade (material) do agente da moralidade e se faz como pressuposto para a aplicação de todos os outros deveres. É claro que, primordialmente, a animalidade é uma disposição pertencente ao homem como ser físico, mas disso não se segue que ela não contenha uma conotação moral. A animalidade humana tem, por assim dizer, uma conotação moral na medida em que ela oportuniza, mesmo que indiretamente, o desenvolvimento da moralidade no homem, isto é, na medida em que mantém o instinto de sobrevivência de uma espécie (a humana) capaz de reconhecer a lei moral13. Kant, a propósito dos deveres do homem como ser animal e moral, restringe tais deveres ao que ele chama de omissão, pelos quais põe em foco a necessidade de combater vícios que se opõe ao “dever para consigo mesmo”(Cf. MC, 421). Tais, deveres de omissão – característicos do homem tomado como ser animal e ao mesmo tempo moral –, Kant os deriva a partir de três fins básicos da natureza animal: o da preservação da vida, o da conservação da espécie e o da manutenção e defesa da vida. Desses três fins são extraídos os seguintes deveres que ele chama de omissão: o de repúdio ao suicídio, o de comedimento no sexo e o de moderação na comida e na bebida.

13 Kant, na Antropologia (1798), ressalta que “o destino físico e primeiro do homem

consiste no impulso que o leva a procurar a conservação de sua espécie como espécie animal” *(ANT, p.282). Kant, nessa passagem, concede ênfase à idéia de destino físico, que, evidentemente, deve anteceder ao destino moral, visto que antes de o homem ser considerado um ser reconhecedor da lei da moralidade, ele deve ser tido como um membro do mundo animal. Satisfazer as necessidades, por assim dizer, provindas de nossa natureza animal, é indispensável para que o homem possa realizar a sua humanidade. *“El destino físico y primero del hombre consiste em el impulso que le lleva a procurar la conservación de su especie como especie animal”.

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3.1.1 Sobre o dever humano de repudiar o suicídio: Kant, nas suas Lições de ética, avalia, em primeiro lugar, os argumentos supostamente favoráveis ao suicídio. Tais argumentos se restringem basicamente a dois: um, referente à liberdade do homem sobre a sua própria vida; outro, que trata da anulação da vida em caso de não mais ser possível ao indivíduo agir moralmente. Quanto ao primeiro argumento, ele decorre da pressuposição ou afirmativa habitual de que se o homem tem a liberdade de dispor de todos os bens sobre a terra (desde que não prejudique os demais), e ainda permitir a amputação de um membro em caso de saúde, não estaria ele também autorizado a por fim à vida, caso ela esteja impregnada de desgraças? A esse questionamento, Kant responde que, embora seja sedutor, esse pressuposto é falho, uma vez que tanto dispor dos bens do mundo, quanto submeter-se a uma imputação, são atitudes tomadas em função de um estado (Stand) e em prol da conservação. No que tange ao suicídio, esta é a questão primordial, ele não abole de modo restrito um estado, uma situação aflitiva ou algo parecido, mas, sim, a própria pessoa. Regular, pois, a admissão do suicídio em função de valores concedidos à vida, “subjetivizaria” a própria vida, de modo a tornar lícito ou não o suicídio em dependência do que cada um apreciaria ou deixaria de apreciar em termos de valores subjetivos na vida (Cf. LE, 373). Daí, segundo Kant, que o suicídio é maximamente e incondicionalmente oposto ao dever, visto que ele elimina as condições de cumprimento de outros deveres; e mais, “o suicídio ultrapassa todos os limites do uso do arbítrio, dado que esse só é possível se existe o sujeito em questão”14 (LE, 370). Quanto ainda ao argumento que pretende sancionar o suicídio alegando que, no caso de não ser possível seguir uma vida conforme a virtude, tanto melhor seria o seu término, Kant alega que ele é bastante persuasivo, não obstante, contraditório. A contradição está em que o primeiro mandamento da moralidade (do homem para consigo mesmo) é a preservação da vida, visto que só quem está vivo detém a aptidão para se submeter e trilhar o rumo da moral. Ainda que se trate,

14 “El suicídio sobrepasa todos los limites del uso del arbitrio, dado que éste sólo es

possible si existe el sujeto em cuestión”.

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por hipótese, do caso de alguém que nunca poderá agir moralmente, mesmo assim ele se mantém como agente moral, uma vez que, como homem, é detentor da consciência da lei da moralidade. Kant, aliás, na Metafísica dos costumes, ainda que não retome tais argumentos, mantém-se igualmente incisivo quanto ao fato de que o suicídio atenta diretamente contra a moralidade: “aniquilar o sujeito da moralidade na própria pessoa é erradicar a existência da moralidade mesma do mundo” (MC, 423). 3.1.2 Sobre o dever humano de ser comedido na sua sexualidade: quanto a uma recorrência imoderada ao sexo, Kant além da justificativa corriqueira usada pelos recatados – de “que o ser humano abre mão de sua personalidade (descartando-a), posto que ele usa a si mesmo meramente como meio de satisfação de um impulso animal” –, também emprega termos mais severos, os que se não surpreendem, ao menos chocam os leitores mais desavisados: “tal vício [diz ele], em sua não naturalidade, parece do ponto de vista de sua forma (a disposição que envolve) exceder, inclusive, o suicídio” (MC, 425). Por “sua forma”, Kant entende a disposição que envolve o indivíduo frente ao suicídio e frente ao sexo. Claro que é bastante curioso ele relacionar uma disposição com a outra. Todavia, ele relaciona devido ao fato de o suicídio, por princípio, ser uma disposição não-natural, e, a sexualidade (aquela que não tem fins reprodutivos) segundo ele também. Quanto ao suicídio, isso é ainda o que o próprio Kant diz, ele requer coragem, o que preserva pelo menos uma centelha do valor da humanidade; ao passo que a entrega à concupiscência não natural15 (concebida como a total entrega as inclinações animais) degrada o homem.

15 “A concupiscência é classificada como não natural [diz Kant] caso se seja despertado

para ela não por um objeto real, mas pela imaginação, de modo que o próprio indivíduo cria um objeto que é contrário ao propósito natural; pois dessa maneira a imaginação produz um desejo contrário ao fim da natureza, e realmente um fim ainda mais importante do que aquele do amor próprio à vida, uma vez que colima a preservação de toda a espécie e não apenas a do indivíduo” (MC, 425). Kant cita nas Lições de ética como exemplos dessa concupiscência (que lá ele denomina de crimina carni contra naturam) a relação entre pessoas do mesmo sexo e a relação sexual com animais (Cf. LE, 391).

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O tema da “sexualidade” nesse contexto (vinculado, sobretudo à liberdade sexual nos tempos modernos) é, sem dúvida, controverso e, para não frutificar mal entendidos, merece ser recepcionado dentro da conjuntura na qual Kant o propõe, isto é, dos fins estabelecidos pela natureza. Nesse sentido, o prazer sexual não é um fim da natureza strictu sensu, mas tão-somente a reprodução. O que Kant, todavia, questiona não é propriamente o prazer sexual, mas o uso da sexualidade tendo em vista tão-só o prazer, sem referência (e deferência) quer à propagação da espécie, quer à humanidade que nos é distintiva. 3.1.3 Sobre o dever humano de se moderar na comida e na bebida Relativo aos abusos na comida e na bebida (quanto à gula e ao alcoolismo), Kant pondera que se deve tomar como um “dever para consigo mesmo” evitá-los, porque, tanto a gula quanto o alcoolismo, por um lado, deturpam as faculdades intelectuais do homem, e, por outro, reduzem-no à animalidade. A redução ao caráter meramente animal, cuja ênfase é maior, se explica pelo fato de Kant distinguir os vícios ditos por ele de estritamente humanos (como a tendência à mentira e à comparação), daqueles que são brutais (que envolvem a gula e o alcoolismo, entre outros) (Cf. LE, 380). Dentro de seu ponto de vista, o que se questiona, não é propriamente o fato de o homem ter vícios, mas, sim, o de se associar a vícios que não são peculiares à condição humana. Kant, com efeito, e em última instância, não valora negativamente a animalidade, mas a sua conjunção desmedida com a humanidade, isto é, o fato de o homem tomar como seus, vícios que são próprios da condição meramente animal. Um fato curioso, é que Kant estabelece uma espécie de hierarquia entre esses dois vícios (do excesso na comida e na bebida) e parece conceder à embriaguês, ou melhor, como ele diz à inclinação para o álcool, uma função no processo da sociabilidade humana:

A inclinação à bebida não é tão rasteira, já que a bebida é um meio útil para a sociabilidade e a loquacidade ao provocar certa euforia no homem, e é

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desculpável nessa medida, se bem que ao menor excesso cede lugar ao vício da embriaguês16 (LE, 380-381).

Quanto ao gosto pela bebida, está visto que Kant é um tanto quanto condescendente, e até mesmo se mantém entusiasta, desde que o recurso ao álcool não seja excessivo. No que tange à gula, contudo, ele é categórico:

o vício da embriaguês não resulta tão depreciável quanto o da gula, que é muito mais abjeto, não só porque nada tem a ver com a sociabilidade, mas por tratar-se de uma mera exibição de bestialismo17 (LE, 381).

Kant, com efeito, não se detém com afinco a explicar essa sua proposição. O que fica claro é que todo o excesso é questionável, sendo por ele curiosamente admitida certa demasia, desde que modesta, no caso da bebida, com a justificativa de servir ou tratar-se de um instrumento de sociabilização. 3.2 Deveres perfeitos do homem considerado unicamente como ser moral No que concerne aos “deveres perfeitos do homem para consigo mesmo”, na medida em que ele é considerado unicamente como ser moral, Kant os elucida quer como deveres de omissão, (relacionados com a fuga da mentira, da avareza e da falsa humildade)18, quer como deveres de execução (relacionados com a promoção da moralidade), os quais encerram o autoconhecimento moral e o “dever para com os outros” (nos termos que ele delimitará). Ambos os tipos de

16 “La inclinación a la bebida no es tan rastrera, ya que la bebida es un médio últil

para la sociabilidad y la locuacidad, ao provocar cierta euforia em el hombre, y es disculpable en esa medida, si bien el menor exceso da lugar ao vicio de la ebriedad”.

17 “el vicio de la ebridad no resulta tan despreciable como el de la glotonería, que es muito más abyecto, no solo porque nada tiene que ver con la sociabilidad, sino por tratarse de uma mera exhibición de bestialismo”.

18 Segundo o comentário de Allen Wood, Kant deriva os três deveres negativos referidos à mentira, à avareza e à falsa humildade dos três objetos que, em sociedade, são por ele admitidos como elementos que conduzem os indivíduos a usar os seus semelhantes como meios, a saber: o poder, a riqueza e a honra (Cf. Wood, 2006, pp.16-17).

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mandamento (de omissão e execução) têm por finalidade levar o indivíduo a se pôr de acordo com os “deveres perfeitos do homem para consigo mesmo considerado unicamente como ser moral”. Nos primeiros, contudo, é pressuposto o repúdio ao vício (como, por exemplo, evitar a mentira e a avareza), enquanto que os segundos visam unicamente o aperfeiçoamento moral do homem. Esses dois tipos de mandamento são diretamente proporcionais, não só porque tem como objetivo comum a qualificação moral do homem, mas, principalmente, porque atuam de forma escalar na promoção desse objetivo. A interrupção dos vícios que obstruem o progresso moral (tal como é proposto nos deveres de omissão) careceria de sentido, caso a partir disso, não frutificasse um progresso efetivo em direção à moralidade; de modo análogo, os deveres de edificação moral (de execução) seriam improfícuos sem antes terem sido extirpados os vícios que obstruem o progresso moral. Kant supõe, portanto, num primeiro plano, deveres cuja função é evitar que o homem se degrade moralmente, e, posteriormente, deveres que desenvolvam e aperfeiçoem o caráter moral nele sito. 3.2.1. Deveres de omissão a) Mentira: Kant é de opinião que a maior violação dos “deveres do homem para consigo mesmo”, na medida em que ele é considerado unicamente como ser moral, é a mentira19. Para o indivíduo que mente são, inclusive, reservadas duras palavras: “Pela mentira um ser humano descarta e, por assim dizer, aniquila a sua dignidade enquanto ser humano” (MC, 429). A verdade (Wahrheit) representa um dever do ser humano para com a sua própria humanidade. “A maior violação do

19 Kant abomina de tal modo a mentira a ponto de, em A religião nos limites da simples

razão (1793), associá-la a uma das caracterizações do mal radical (Radicale Böse). Na terceira vez em que menciona o termo “mal radical”, Kant põe em foco justamente a idéia da mentira externa e interna que o homem comete acerca de suas intenções: “Esta desonestidade de lançar poeira nos próprios olhos, que nos impede a fundação de uma genuína intenção moral, estende-se então também exteriormente à falsidade e ao engano de outros, o que, se não houver de se chamar maldade, merece pelo menos apelidar-se de indignidade, e reside no mal radical da natureza humana...” (Rel, p.44). Cf. Pinheiro, Letícia Machado. “Por que o mal é radical em Kant?”. In: Tempo da Ciência. Vol. 15, n.30. Cascavel: Edunioeste, 2008, pp.121-135.

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dever de um ser humano consigo mesmo, considerado unicamente como ser moral (a humanidade em sua própria pessoa), é o contrário da veracidade, a mentira” (MC, 429). Nota-se que a mentira é desprezada num primeiro momento, não pelo dano que se possa causar a um “outro”, mas por denegrir, perante si mesmo, aquele que mentiu. Kant distingue, na Metafísica dos costumes, a mentira interna (pregada a si mesmo) da mentira externa (por meio da qual o homem se torna um objeto desprezível aos olhos alheios). A mentira interna, ele a considera mais grave do que a externa em razão de que o seu agente “torna a si mesmo desprezível aos seus próprios olhos e viola a dignidade da humanidade em sua própria pessoa”(MC, 429). A mentira interna concerne à relação do agente moral com a sua própria intenção. Ela se dá exclusivamente no campo da moralidade20. É do julgamento que o homem faz a respeito de sua conduta moral que se origina a fundação de uma boa intenção moral e que o põe em marcha na direção do restabelecimento da disposição para o bem. Quando o homem mente a si mesmo acerca de sua intenção, ele obscurece a consciência da incondicionalidade da lei e atrasa o que Kant concebe como progresso moral. O próprio Kant confessa que a idéia da mentira interna parece contraditória. Tal contradição decorre do fato de a mentira, para se fazer vigente, requerer uma segunda pessoa a quem se deseja enganar. No caso da mentira interna, existe apenas um sujeito que encerra em si a função de enganar e de ser enganado. Apesar desse impasse, Kant não descarta a existência de mentiras internas. Segundo ele (e nesse caso, sem qualquer esforço argumentativo de teorizar a questão), “é fácil demonstrar que o ser humano é efetivamente culpado de muitas mentiras internas21; porém, parece mais difícil explicar como são possíveis...” (MC, 430). A mentira externa pode ocorrer voluntária ou involuntariamente, mas, em ambos os casos, em termos de moralidade,

20 Zeljko Loparic observa que a mentira interna, sendo associada diretamente à

moralidade, denota um crime contra a humanidade e tem como punição o autodesprezo e a aversão dos outros (Cf. Loparic, 2006, p.62).

21 Kant, contudo, não aponta em que consiste tal facilidade.

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a questão se põe sobre uma ação que, apesar de ter ocorrido conforme o mandamento da lei moral, não foi motivada por ela. A mentira externa é voluntária22 quando o agente sabe que executou a ação movida por móbiles exteriores ao campo da moralidade, mas promulga que agiu por puro dever. No que se refere à mentira externa involuntária, ela deriva da mentira interna, e se dá quando o agente se engana acerca de suas próprias intenções e transmite esse engano aos outros. Independentemente do modo que se apresenta, a mentira externa perturba a imputabilidade da ação e o julgamento moral acerca de sua execução. b) Avareza: O avaro, na definição de Kant, é aquele que impõe a si mesmo uma privação de prazeres de que poderia usufruir. Tendo a possibilidade de atendê-los, ele, contudo, se compraz apenas com a sua possibilidade, sem se remeter ao objeto de prazer propriamente dito. O avaro, por esse ponto de vista, é alguém que inverte uma certa ordem corriqueira de valores. Frente à riqueza, por exemplo, ele concede mais apego ao dinheiro do que ao prazer que ele pode proporcionar. No dizer de Kant “o avaro que tem o dinheiro no bolso” faz o seguinte raciocínio: “como será a tua disposição de ânimo quando tiveres gasto o dinheiro destinado ao prazer? Depois disso serás tão disposto como agora?” Diante da possibilidade do infortúnio, conclui: então “vale mais conservar o dinheiro” 23 (LE, 400). Assim, o avaro se priva “do próprio gozo dos recursos do bem viver”. E se priva “de modo tão estrito a ponto de deixar as próprias efetivas necessidades insatisfeitas” (MC 432). Daí que é essa desatenção para as próprias e reais necessidades humanas que Kant concebe como oposta ao “dever para consigo mesmo”. Ele assim o concebe porque vê na negação de satisfazer as próprias necessidades uma ruptura com a capacidade racional que o

22 Na Crítica da razão pura, Kant fala de uma certa insinceridade referente “à

inclinação que temos para esconder os verdadeiros sentimentos e manifestar certos outros, considerados bons e honrosos” (CRP, B 776). Há uma inclinação (Neigung) do homem em manifestar aos outros, virtudes, apesar de não as possuir, porque sabe que são bem reconhecidas aos olhos alheios.

23 “cómo será tu disposición de ánimo cuando hayas gastado el dinero destinado al placer? Después de eso será tu tan lista como ahora, por lo que vale más conservar el dinero”.

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humano tem de empregar meios em prol de fins. Enfim, e numa definição bem meridiana, Kant concebe o avaro nos seguintes termos: como o agente que “abandona o mundo feito um pobre estúpido que nem se inteirou de ter vivido”24(LE, 405-406). c) Falsa humildade: De modo semelhante ao que Kant define o avaro (como aquele que se priva de prazeres, para resguardar a possibilidade de tê-los), a “falsa humildade” é por ele referida como a diminuição do “próprio valor moral, meramente como um meio para conquistar o favor de outrem” (MC 436). Aqui a atitude específica realçada por Kant é o vangloriar-se (veladamente), em que os indivíduos se servem da autocrítica hipócrita e da comparação como meio de auto-apreciação, seja perante si mesmo, seja diante dos outros. Kant concebe a “falsa humildade” como uma afronta ao “dever para consigo mesmo”, justo porque ela degrada o indivíduo em sua própria humanidade. Não que o homem não deva estimar e cuidar de si mesmo; isso, aliás, é próprio da natureza humana. Kant, inclusive, realça que o ser humano (enquanto agente da moralidade e ente capaz de se colocar fins) detém um preço incalculável, e que referenciar e cultivar essa sua natureza é um dever. Daí, pois, que ele supõe na “falsa humildade” uma inversão de valores: ao invés de o homem apreciar sua capacidade de reconhecimento da moral, se deprecia, na medida em que se detém a valorar dotes subjetivos, usando de fingimento e simulação, a fim de obter ou forjar importância perante os outros. 3. 2.2 Deveres de execução A propósito dos “deveres perfeitos para consigo mesmo” do homem considerado unicamente como ser moral, após ter indicado o que o agente moral não deve fazer, Kant agora descreve o que ele deve fazer. Enquanto que os deveres de omissão (relativos ao que não se deve fazer) estavam vinculados diretamente à preservação da dignidade humana, os deveres de execução (relativos ao que se deve fazer) se relacionam com a promoção da moralidade no homem. Dito de outro modo: assim como os mandamentos de omissão priorizavam a preservação da dignidade

24 “abandona el mundo como um pobre estúpido que ni se há enterado de haber

vivido”.

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humana; nos mandamentos de execução, Kant põe em questão a necessidade da edificação da moral do homem. Na perspectiva dos deveres de omissão e no intuito de fomentar esse aperfeiçoamento, Kant indica dois deveres: o primeiro diz respeito ao autoconhecimento moral, o segundo ao acolhimento dos outros como objetos de dever. a) O autoconhecimento moral: Kant exprime o primeiro mandamento de todos os “deveres para consigo mesmo” com a máxima mais ancestral da História da Filosofia: Conhece-te a ti mesmo. Essa máxima, do modo como Kant a supõe, não desempenha a função de promover um autoconhecimento humano na sua perspectiva biológica, mas, sim, de agenciar um “mergulho” na intenção moral do homem em busca das fontes de suas ações. O conhecimento moral de si mesmo, segundo Kant, “que procura penetrar as profundezas (o abismo) do próprio coração, cuja sondagem é sumamente difícil, é o começo de toda a sabedoria humana” (MC, 441). É desse autoconhecimento que deriva a imparcialidade do homem no julgar-se moralmente, quer conhecendo os seus próprios valores, quer admitindo as suas fraquezas. Esse autoconhecimento moral é requerido porque ele está diretamente vinculado ao dever de progredir moralmente. Para que se estabeleça progresso moral é por suposto necessário um auto-exame do agente sobre o seu estágio e condições morais. Kant, pois, reconhece no autoconhecimento moral um “dever perfeito do homem para consigo próprio” porque é um dever humano promover o progresso moral, cuja efetivação só se dá uma vez detectados e removidos os vícios contidos na intenção humana. b) O dever para com os outros seres: Kant supõe que o homem tem para consigo mesmo o dever perfeito de admitir que possui deveres para com os outros. Como o que aqui está em pauta é o dever de conotação moral, a fim de delimitar quais os “outros” a quem se deve obrigação, Kant apresenta os requisitos que viabilizam “algo” como um objeto de dever moral: por um lado, é requerida uma vontade (que constranja o “obrigado” ao dever) e, por outro, a sujeição à experiência possível (pois, o dever tange ao fim posto pela vontade de quem constrange ou obriga). Diante desses pressupostos, Kant é levado a afirmar que “um ser humano não pode, portanto, ter dever algum com quaisquer seres,

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r que

além dos seres humanos” (MC, 442). Mas essa sua afirmação se dá sob uma reflexão bem pontuada: do fato de o homem ter deveres somente para com os outros humanos não se segue que ele não tenha nenhuma espécie de obrigação (Verpflichtung) de instanciação moral para com os seres não humanos. Kant observa que há nesse sentido uma confusão entre “dever em consideração a outros seres” (que ele reconhece que os homens têm para com a natureza em geral e para com os seres sobre-humanos) com um “dever para com esses seres”(admitido só de homem para homem)25 (Cf. MC, 442). A propósito dessa distinção, Paul Guyer observa que com ela Kant quer prova

embora o princípio fundamental da moralidade – de respeitar o ser racional como um fim em si mesmo – não possa ocasionar deveres diretamente para com a natureza não-racional, um dever que nós temos para com nós mesmos como seres racionais pode originar deveres de observância com relação à natureza não racional26 (Guyer, 1996, p.307).

Kant, pois, e conforme observa Paul Guyer, busca acomodar o princípio básico da moralidade (cujo teor prescritivo se restringe à relação do homem perante o seu semelhante) com a noção de que cabe ao humano uma espécie de “observância” ou “consideração” quer para com a natureza em geral, quer para com os seres sobre-humanos. Esse acomodamento é bem sucedido na medida em que Kant estabelece o preceito da “observância” ou “consideração” como uma instanciação do “dever para consigo mesmo”. Ou seja, o homem só tem alguma espécie de obrigação para com os seres não humanos, na medida em que tem “deveres para consigo mesmo” e, nesse caso, um dever bem definido, o da promoção do aperfeiçoamento moral. É sob a perspectiva desse aperfeiçoamento que Kant justifica a “observância” e “consideração” que cabe aos homens diante da natureza

25 São os chamados “deveres de consideração” que Kant pretende abordar aqui, já que

no que concerne aos deveres para com os seres humanos ele aborda no contexto dos “deveres para com os outros”.

26 “although the fundamental principle of morality – to respect rational being as an end in itself – cannot give rise to duties directly toward nonrational nature, a duty that we have toward ourselves as rational beings may give rise to duties regarding nonrational nature”.

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em geral e dos seres sobre-humanos. Quanto à primeira, Kant descreve a relação nos seguintes termos: a destruição e a negligência pelo o que o cerca (seja natureza inanimada, sejam os animais) elimina no homem a compaixão pelo sofrimento alheio, aniquilando paulatinamente disposições naturais muito úteis à moralidade27 (Cf. MC, 443). Contudo, Kant salienta que o homem, desde que não se produza muito sofrimento, está autorizado a matar animais e também submetê-los ao trabalho (Cf. MC, 443). Há nitidamente no discurso kantiano acerca desse ponto uma tensão entre o viés utilitário no manejo dos animais e o dever indireto de instanciação moral que temos para com eles – Kant, inclusive, chega a mencionar “a gratidão ao longo serviço prestado por um velho cavalo ou um velho cão (tal como se fossem membros da comunidade doméstica)” (MC, 443). O fato é que para Kant o que está em pauta aqui não é o que hoje chamaríamos de “bioética” ou “direitos dos animais” – noções desenvolvidas sob o pressuposto de tomar a natureza em geral como um “sujeito”-, mas, por assim dizer, os direitos e “deveres” do homem relativo à natureza, cuja determinação tem um propósito bem demarcado: o progresso moral do próprio homem. Quanto aos seres sobre-humanos (Deus), Kant explica que a sua noção é oriunda de uma idéia produzida pela própria razão e que o homem não tem deveres para com eles, mesmo porque não há nenhum acesso a tais seres, nem tampouco a sua realidade empírica é provada: “Deus nada de nós pode receber [diz Kant]; não podemos agir nem sobre Ele e nem para Ele” (Rel, p.156 ,n.58). Do fato de não ser objeto de deveres, não se segue, porém, (e Kant aqui é cauteloso) que a idéia (Idee) de Deus não detenha um forte caráter moralizador. Segundo ele,

trata-se de um dever do ser humano para consigo mesmo aplicar essa idéia, a qual se apresenta inevitavelmente à razão, à lei moral nesse ser humano, onde é da maior fecundidade moral (MC, 444).

27 Priscilla Cohn sugere uma incompatibilidade da proposição kantiana – de que o

trato com os animais detém elementos que favorecem moralmente o trato com humanos – servindo-se de contra-exemplos empíricos. Ela, inclusive, cita Hitler como um homem que era dedicado aos animais e capaz das maiores atrocidades contra os humanos (Cf. Cohn, 1988, p. 200-201).

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Ele justifica tal tese lançando mão do conceito de “religião subjetivamente considerada” (o reconhecimento dos nossos deveres como mandamentos divinos), o qual evidencia que o nosso suposto dever para com Deus é, na verdade, um dever para com os nossos semelhantes e para com nós mesmos, na medida em que está vinculado às nossas ações de cunho moral28. É, enfim, um “dever perfeito do homem para consigo mesmo considerado unicamente como ser moral”, aplicar a noção por ele produzida de um ser sobre-humano em prol do amadurecimento da sua humanidade, na qual o “dever de consideração” para com esse tipo de “ser”, deve converter-se em um reforço para o progresso moral. Referências KANT, I. Antropología en sentido práctico (ANT). Trad. de José Gaos. Madrid: Alianza, 1991. _______. A metafísica dos costumes (MC). Trad. Edson Bini. São Paulo:EDIPRO, 2003. _______. A religião nos limites da simples razão (Rel.). Trad. de Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, 1992. _______. Crítica da razão prática (CRPr). Trad. de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002. _______.Crítica da razão pura (CRP). Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. _______.Fundamentação da metafísica dos costumes (FMC). Trad. de Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural \ Pensadores,1980. _______.La metafísica de las costumbres. Trad. y notas de Adela Cortina Orts y Jesus Conill Sancho. Madrid: Tecnos, 1989.

28 “De que serve, por exemplo, ao comerciante todas as suas orações, se quando

regressa de ter ouvido a missa engana os clientes desprevenidos com negócios fraudulentos?” [“De qué lhe sirven, por ejemplo, al comerciante todas sus oraciones, se quando regressa de oír misa engaña a los clintes incautos com mercancías fraudulentas ?”](LE, 332).

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_______.Lecciones de ética (LE). Trad. de Roberto Aramayo y Concha Roldán Panadero. Introducción y notas de Roberto Aramayo. Barcelona: Crítica, 2002. CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Trad. de Álvaro Cabral e revisão de Valério Rohden. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. COHN, Priscilla. “Kant y el problema de los derechos de los animales”. In: GUISÁN, Esperanza (coord.). Esplendor Y miséria de la ética kantiana. Barcelona: Anthropos, 1988, pp. 197-213. GUYER, Paul. Kant and the experience of freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. LOPARIC, Zeljko. “Kant e o pretenso direito de mentir”. In: Kant e-prints. Série 2, v. 1, n.2, Campinas,jul.-dez. 2006, pp. 57-72 PATON, H.J.. The categorical imperative. A study in Kant’s moral philosophy. London: London:Hutchinson, 1947. WOOD, Allen. “Duties to oneself, duties of respect to others”. In: http://www.stanford.edu/~allenw/webpapers/(2006), p.1-32.

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 209-223

Cuidado, educação e singularidade: idéias para uma filosofia da educação em bases heideggerianas

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens* Resumo: Investigamos a possibilidade de pensar uma Filosofia da educação a partir da obra do filósofo alemão Martin Heidegger. Temos os objetivos específicos de esclarecer o que é o cuidado no campo teórico do autor, como ele poderia se relacionar com a educação e como este poderia basear uma pedagogia que preza pelo exercício de ser si-próprio. Presumimos poder afirmar que o cuidado, entendido preliminarmente como a essência do existir humano, tornaria possível um modo do discente colocar-se diante de suas vivências ressignificando sua existência. Etapas precedidas por uma apropriação filosófica da educação e das experiências existenciais dos que estão envolvidos no processo de educar para a época atual. A filosofia de Heidegger, que sabemos resguardar muitos pormenores, será tratada aqui de maneira simplificada e, embora respeitando seu cânon, buscaremos traduzi-la em linguagem acessível, de modo a não nos perdermos em especificidades que poderiam obstruir nosso caminho de argumentação. Palavras-chave: Filosofia da educação, Heidegger, Impessoal, Pedagogia do cuidado Abstract: We investigate the possibility of thinking a Philosophy of education from the German philosopher Martin Heidegger’s work. Our specific purposes are to make it clear what the care is in the author’s theoretical field, how it could relate to education and how it could found a pedagogy which entails the exercise of being own-self. We think we can state that care, at first understood as the essence of human existing, would make it possible to pave a way along which the learner can face their experiences by resignifying their whole existence. Those are steps that enable an education philosophical appropriation of those who are in charge of educating for the current era. Heidegger’s philosophy, which is very much complex, will be treated here in simplified way and although we do respect its canon, we will search to translate it into an accessible language in order not to lose the specificities that could build our argumentation line. Keywords: Heidegger, Pedagogy of care, Philosophy of education, They

* Doutorando em Filosofia pela UERJ; Professor da Universidade Cândido Mendes e

do Centro Universitário Plínio Leite. E-mail: [email protected]. Artigo recebido em 22.02.2008, aprovado em 05.12.2008.

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Considerações introdutórias sobre a filosofia da educação Em uma época reconhecida como uma autêntica revolução no mundo da educação (Sequeiros, 2000), faz-se urgente a recolocação da pergunta pela educação, com o propósito de rever seus princípios fundamentais. Constata-se que esta urgência persiste por mais que autores contemporâneos, por diversos enfoques, se proponham a expor fundamentos ou pontos centrais do que consistiria o ato de educar o discente. Assim, teorizações buscam explicar o modo com que o aprendizado ocorre, podendo ser apreendidos como teorias do conhecimento. Entre estas teorias voltadas à educação, é inegável a contribuição que as investigações de caráter científico como a psicologia da educação. Associada aos sócio-interacionistas, esta inicialmente jogou luz sobre o processo de conhecimento na chave do aprendizagem/ensino, revelando uma face do indivíduo; outras contribuições, igualmente relevantes neste sentido, nos fornecem correntes filosóficas como o vitalismo, o historicismo, o existencialismo e a fenomenologia (Saviani, 1995). Com a concepção humanística presente nas referidas correntes, diversa da visão enciclopédica ou de leituras parciais da educação, temos uma modalidade que parte das circunstâncias à reflexão filosófica, ainda que isto se dê por meio da leitura interpretativa de um texto. Assim, parece admissível que um estudo de filosofia da educação seja tomado como um estudo de filosofia, que propicie um ponto de contato da filosofia com a educação e não apenas um estudo crítico sobre temas da educação. Esta interseção, entretanto, não indica qualquer submissão de um saber sobre o outro; isto é, da educação sobre a filosofia, nem seu inverso. Insistir no contrário seria reduzir uma a serva da outra, a filosofia como serva da educação (uma vez que contribuiria apenas com o aparato lógico-argumentativo capaz de viabilizar tal análise) como tantas vezes foi feito no medievo, referindo-se à teologia: philosophia ancilla theologiae. De maneira simples, o estudo das questões fundamentais da educação carece não de uma filosofia da educação, mas de uma filosofia na educação (sic). A proposição imediata, que poderia sugerir um

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gracejo desprovido de conteúdo efetivo, aponta à necessidade de tomarmos as questões filosóficas da educação a partir do terreno teórico no qual têm origem. Isso significa que um tal estudo consideraria os problemas no âmbito de uma filosofia primeira, num pensamento ontológico que antecede as demais reflexões sobre aspectos da realidade, como a linguagem, a cultura, a vida social, o trabalho, a história, a educação, a existência e sua verdade. Nesse caso, uma filosofia na educação perguntaria sobre como as questões da educação poderiam aparecer como problemas filosóficos, por exemplo, na obra de Platão, Aristóteles, Agostinho, Kant, Hegel, Nietzsche etc; para, a partir de uma apropriação destas, em vista das urgências contemporâneas, podermos empreender uma síntese dessas idéias (Paviani, 1988). Assim, com uma filosofia na educação passa a não mais estar em jogo apenas um discurso crítico sobre doutrinas educação, tampouco uma historiografia de seus temas. Passamos a ter a filosofia toda na educação, demonstrando como a filosofia pode pensar os problemas da educação a partir de autores filósofos. Não se trataria de pensar a educação como coisa distante sobre a qual se disserta informando (discurso entabulado em terceira pessoa gramatical), mas de pensar filosoficamente a educação, aprofundando suas questões numa reflexão conduzida em primeira pessoa, de modo a pôr a educação no centro do diálogo com o pensamento filosófico. Esta tarefa que exige um contato somente possível por meio de uma introdução à filosofia, isto é, não um saber elementar coletor de notícias filosóficas, mas um dispor-se ao universo da filosofia, um comprometer-se autenticamente com as questões desde uma perspectiva filosófica, um filosofar. O cuidado como um problema da filosofia da educação Entre os problemas em pauta na filosofia, a contemporaneidade adotou a existência humana como um dos seus principais. A pergunta pela existência humana é, no fundo, a pergunta pela essência deste fenômeno, essência que para alguns autores tem origem na noção filosófica de cuidado (Heidegger, 1988). Por isso, presenciamos o conceito de cuidado ganhar relevo em diversas áreas do conhecimento, inclusive naquelas que buscam pensar o homem em sua relação com o mundo e com os outros. Presenciamos também a aplicação larga do

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termo “pedagogia do cuidado” nomeando a formação do homem para estas circunstâncias. É comum encontrar o nome pedagogia do cuidado ligado às ciências da saúde ou do meio-ambiente. No primeiro caso, relaciona-se a atualizações das teorias dos cuidados humanos e à formação humanizada do profissional de saúde, nestas, os escritos de Paterson e Zderad1 são referenciais; no segundo, vigora a premissa de preservação e educação ambiental, abrangendo as relações com o ambiente e as pessoas, para a qual a formulação de Jonas (1979, p.49): “Aja de maneira tal que os efeitos de sua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida sobre a terra”, já constitui imperativo. Em vista destas, Boff (1999) fala desta pedagogia como o aprender a zelar pelos viventes e por tudo que nos cerca. Tal cuidado seria pré-condição para a vida do planeta e sua educação, etapa necessária a ressignificação da vida humana de modo a garantir seu sustento e a diversidade dos seres vivos. A partir de uma fábula latina atribuída a Higino (citada por Heidegger),2 Boff evidencia o cuidado ao modo de ser do indivíduo.

1 Dorotéia Paterson e Loretta Zderad: Especialistas em enfermagem clínica, atuaram

em instituições renomadas nos EUA, tendo publicado o tratado Enfermagem humanística (1976), no qual propunham a chamada Teoria prática da enfermagem humanística. Desenvolvida a partir de experiências existenciais relatadas pelas enfermeiras e as pessoas que recebem tratamento, este conjunto de idéias busca uma visão abrangente dos cuidados humanos, procurando compreendê-lo por uma perspectiva fenomenológica. Tal enfoque recebe a influência da filosofia de Nietzsche, Buber, Husserl e Heidegger que permitiriam pensar esta lida em face da existência e da presença iminente do outro, atendo-se às condições existencias como a autoconsciência, a alteridade, a responsabilidade, a finitude e a busca de uma significação para a vida. Ao lado destas, podemos citar também as contribuições de Madaleine Leininger que, nos anos de 1950, tratou o fenômeno em sua Teoria transcultural do cuidado como experiência universal do humano e elemento essencial à enfermagem.

2 Martin Heidegger (1889-1976): Filósofo alemão, professor em diversas universidades européias. Inicialmente esteve associado à escola fenomenológica de E. Husserl, de quem foi assistente. Distanciou-se do projeto da fenomenologia para empreender uma síntese própria deste método e, posteriormente, propor a retomada da questão do ser, denominada ontologia fundamental. Sua filosofia influenciou

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Na alegoria, diz-se que o homem deve pertencer ao cuidado enquanto viver (Cura enim quia prima finxit, teneat quandiu vixerit), o que faz desta estrutura algo constitutivo da existência, se enfocado filosoficamente. Heidegger dedica parte significativa de sua obra a tal conceito, no interior de uma investigação que buscou tratar a essência do indivíduo em face da compreensão de seu ser. Esta se chama analítica existencial (como veremos adiante). A dedicação ao referido tema fez com que Heidegger fosse reconhecido como “... por excelência o filósofo do cuidado” (Boff, 1999, p. 89). Sendo de importância na obra de Heidegger e um conceito basilar em Ser e tempo (1927), o cuidado é visto, por um certo recorte conceitual, na filosofia de autores anteriores; entre eles, os antigos e os medievais, dos quais o alemão se apropriou.3 Com Heidegger o cuidado (Sorge) é pensado como traço constitutivo da existência humana, na medida em que este se empenha a cada instante em cuidar de si mesmo, de sua existência, em um processo de “singularização” apontando o modo de ser do indivíduo, mediante o esforço continuado de compreensão de seu ser e do ser das coisas em geral. É desta última compreensão do cuidado que partiremos para pensar o conceito referente à educação. É preciso dizer, contudo, que não é a primeira vez que se fala do cuidado, como aqui, e que isso não foi feito por Heidegger, que apenas marginalmente propôs idéias sobre

diversas gerações de intelectuais de vulto no século XX, como: H. Marcuse, H. Arendt, H-G. Gadamer, J-P. Sartre, E. Lévinas e K. Löwith.

3 O cuidado é intuído a partir do conceito aristotélico de “phrónesis”, tal como encontrado no livro VI da Ética a Nicômacos, referindo-se a um certo modo de prudência, epicentro do qual o indivíduo pode gerir suas ações. Em versão latina, o termo “cura” corresponde à experiência da fábula; é possível encontrar no período medieval, desdobramentos dessa em pensadores como Agostinho, tratando o cuidado como “cura”. Heidegger em sua preleção Estudos sobre mística medieval (1910-11) explora o conceito no autor como traço fundamental da existência em face da decadência e de outros conceitos cristãos como o de tentação. Ainda em Agostinho, o cuidado é pensado na vulgata de “sollicitudo” (Mac Dowell, 1993). Presumimos que também em Mestre Eckhart, na Baixa Idade Média, o conceito se encontra presente, desta vez tratado como zelo, no sentido de uma atenção para que o indivíduo não se desvie daquelas que seriam tarefas de fato necessárias de sua existência.

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o aprender/ensinar e ao propor metas para a educação, em um contexto específico, pode se dizer que não foi exatamente feliz.4 Seus estudos filosóficos teriam trazido contribuições mais significativas do que os poucos que propõem algo à educação (Kahlmeyer-Mertens, 2005). A prova disso é que os autores da educação, quando se referem ao pensamento de Heidegger, o fazem a partir de seus textos filosóficos. É o caso de Ozmon e Craver (2004) acenando para a importância do pensamento do autor no âmbito da fenomenologia; Giles (1983) ao tocar no conceito de cuidado, tratando do processo educativo como uma saída da existência imediata do indivíduo em seu mundo e o respectivo encaminhamento a um sentido autêntico à própria existência e, também, Martins (1992), quando fala do cuidado, ao discutir a questão educacional dos currículos por um enfoque fenomenológico, compreendendo-o como a preocupação ou o zelo que, na dialética discente/docente, abre o indivíduo a um horizonte de possibilidades próprias a sua existência. Por mais que se observe aqui que nem todos os discursos sobre o cuidado e sua pedagogia sejam metodologicamente ingênuos, tendo uma consciência da dimensão ontológica do tema, vê-se que o esforço de viabilização da proposta toma a contramão do pensamento de Heidegger. Pois a preocupação por uma ética, uma política ou, mesmo, uma educação é pragmática, uma derivação da questão intentada pelo filósofo, assim, está num domínio dos entes, é ôntica (referindo-se ao estado das coisas que são); não no âmbito fundamental de uma compreensão do ser, de uma ontologia.

4 Professor da Universidade de Freiburg, Heidegger foi eleito Reitor em 1933. Já em

seu Discurso de posse, professava um modelo educacional para a universidade que acreditava ser capaz de restaurar a identidade do povo alemão e formar indivíduos com força produtiva suficiente para tirar a Alemanha de sua crise. Este projeto, inicialmente inspirado na Paidéia grega, desbancou para uma dura disciplina, reflexo das concepções políticas reacionárias do nacional-socialismo com o qual Heidegger se encontrava envolvido. Tal modelo não agradou a comunidade acadêmica que o reputava uma “...influência devastadora do ponto de vista pedagógico” (Jaensch apud Loparic, 2004, p.13). O contraste entre a pedagogia possível de ser pensada a partir do cuidado e o projeto político pedagógico de Heidegger para a universidade alemã mereceria um estudo futuro.

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Assim, será também da obra filosófica de Heidegger que partiremos para nossa caracterização do cuidado e daquilo que derivaria numa filosofia da educação. Exercício que apresentará brevemente, os elementos de sua análise da existência, nos apoiando naquela que é reconhecida como uma de suas principais obras. O cuidado na filosofia de Heidegger e a sua contribuição à educação A filosofia de Heidegger retoma a pergunta pela verdade como o ser das coisas, acreditando ser a questão mais fundamental entre todas. Tal questão ocupa persistentemente a reflexão humana, motivando as investigações dos antigos e estando latente na reflexão sobre o homem e seu mundo. Em poucas palavras: é “a pergunta pela avaliação e orientação para a vida e o por que e para que de mundo, cosmos, universo” (Safranski, 2000, p.188). Sendo tarefa em toda sua obra, mesmo em diferentes fases e investidas ao tema, é em uma obra que ela ganha sua formulação. Ser e tempo é o tratado no qual esta tentativa ganha concretude, pensada a partir do sentido que ali está em jogo, tendo por tarefa preliminar a investigação fenomenológica pelo único ser capaz de colocar a pergunta por este sentido: o homem. A compreensão que Heidegger (1996) faz do homem não é a de um sujeito dotado de um aparato cognitivo e capaz de interagir com um mundo diferente dele. Embora tal compreensão expresse o indivíduo em sua condição de sujeito, Heidegger não parte mais deste ponto de vista, entendendo este ente como um ser-aí.5 Tomar o indivíduo como ser-aí, não é um requinte antropológico (adjetivo), mas uma exigência ontológica (substantiva), necessária à explicação do modo de ser deste que compreende o sentido de ser. O ser-aí é compreendido como a possibilidade de ser situado nas circunstâncias de seu mundo e ao constante exercício de existir neste.

5 O termo ser-aí é tradução de “Dasein”, como no alemão. Este significa, em sua

acepção primeira, existência fática, repercutindo na tradição da filosofia clássica alemã com este sentido. A versão deste termo se torna um problema para todos os idiomas, pois nenhum é capaz de traduzir o sentido em jogo na compreensão heideggeriana. Opta-se normalmente pela tradução literal assim, teríamos être-là, no francês; esser-ci, no italiano e there-being ou, mesmo, being-there no inglês. Por ser-aí, diferente da acepção tradicional, Heidegger entende o modo do existir humano.

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Infere-se, assim, que ser no mundo é mais um cultivo do que uma estática condição humana. Também o mundo, neste sentido, não se resume a uma realidade física no qual este ser-no-mundo travaria suas relações, mas remonta à dinâmica desse existir. O ser-aí existe ao passo que compreende seu mundo, afetando-se por humores, junto às coisas que encontra à mão, ocupando-se destas como utensílios em virtude de afazeres que só fazem sentido nessa íntima conformidade revelada pelas referências do mundo e de seus propósitos e dos outros com quem convivemos. Heidegger traz certa especificidade à terminologia referente às maneiras práticas de estar no mundo, que apareceriam como derivações do cuidado, tomado por modo existencial paradigmático:

Se o ser-com (os outros) permanece existencialmente constitutivo ao ser-no-mundo, ele deve poder ser interpretado em face do fenômeno cuidado, que usamos para designar o ser do ser-aí em geral, (...) o caráter do ocupar-se das coisas não é próprio do ser-com, apesar deste modo de ser seja um ser para os entes encontrados no mundo. O ente, com o qual o ser-aí se relaciona como ser-com não tem o modo de ser do utensílio à mão, sendo também este um ser-aí. Desse ente não se ocupa, com ele se preocupa. Também “ocupar-se” da alimentação e vestuário, tratar do corpo enfermo é preocupação. Se entendermos esta expressão de modo que seu uso corresponda a uma ocupação com coisas como termo de um existencial. A “preocupação”, no sentido de assistência social de fato, por exemplo, funda-se na constituição do ser-aí como ser-com. (Heidegger, 1996, p.114 )

Vê-se que o cuidado é designado um modo de ser no mundo, maneira de ser si mesmo em cada novo instante; evidenciando que no ser-aí nada está como é, mas que tudo nele seria um esforço por ser. Isso nos deixa claro que este cuidar (Sorge) não é a ocupação (Besorge), no sentido de um uso das coisas no cotidiano e das tarefas mais diversas possíveis junto a estas; tampouco a preocupação (Fürsorge), que indica o comportamento com o outro ou, ainda, para o outro. Para Heidegger, qualquer gesto que expresse zelo, assistência, tutela ou responsabilidade por alguém (inclusive os que envolvem o tratamento de um enfermo ou a prática educativa) seria preocupação em vista de

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uma relação de ser com o outro.6 Entretanto, nem sempre estes modos são claros ao ser-no-mundo, que, imerso nas suas ocupações cotidianas, ignora o modo de ser de sua existência e a dos outros, compreendendo tudo como coisas simplesmente dadas, compreensão esta que

provém do fato de, no início e na maioria das vezes, o ser-aí se manter em modos deficientes de preocupação. O ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado pelos outros são modos possíveis de preocupação. E precisamente estes modos, que mencionamos por último, de deficiência e indiferença caracterizam a convivência cotidiana mediana de um com o outro (Heidegger, 1996, p. 116).

O convívio cotidiano é marcado pela pressuposição de uma existência durável e de relações que remontam o âmbito de significações pré-estabelecidas, herdadas, irrefletidas e normalmente latas, mas que permitem o bom trânsito do indivíduo nas relações de seu mundo. Cotidianamente, o ser-aí ganha modos que permitem que ele proceda em conformidade ao que se convencionou adequado a aquele contexto de mundo; assim, pensa comumente ao grupo que convive, age em conveniência ao que dele se espera, compartilha costumes fazendo que sua existência se reduza à ocupação de ajustar-se a certos padrões de normalidade. Estes padrões são estipulados coletivamente sem que nesta coletividade se identifique uma pessoa ou grupo determinado autor dessas normas. Daí Heidegger (1996) chamar de impessoal (Man) este modo de ser com os outros que apresenta o consenso tácito quanto ao comportar-se. No impessoal o ser-aí age conforme atitudes prescritas para a gente. Assim, o indivíduo se vê abonado da tarefa de decidir por seus atos, pois, em cada comportamento, estaria encoberto por este modo existencial segundo o qual normalmente a gente procede, gregariamente a gente pensa, comumente a gente se educa... Mais que senso comum, este impessoal é um modo de ser da existência que impregna a constituição do ser-no-mundo cotidiano e

6 Esclarecimento que proporia uma revisão na terminologia da Teoria dos cuidados

humanos, alterando-a para preocupações humanas.

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uma estrutura de sua existência. Assim, negócios, comportamentos e as visões de mundo que lhe são próprias recebem diretiva da gente.7 Educar em favor da singularidade e contra o impessoal Também a educação (tal como apreendida na sua divisão em informal e formal) se influenciaria por diretrizes impessoais presentes na mediania do cotidiano. Isto acontece quando, em ambos os segmentos, vemos costumes se reproduzirem, por vezes, de maneira herdada e irrefletida, determinando, à revelia, o tipo de educação que o indivíduo teria. Assim:

O importante é saber que não somos totalmente livres para termos a educação que queremos, pois nosso querer desde que nascemos vem sendo educado por idéias e comportamentos que ultrapassam nossa consciência das coisas. Sob a educação formal que nos é transmitida existe uma educação invisível cuja força nem sempre é levada em conta em nossos estudos. A escola como aparelho doutrinário certamente exerce influência, mas também recebe influência da educação informal que se transmite através dos grupos sociais, meios de comunicação, organizações sindicais etc. (Paviani, 1988, p.11)

Ressaltemos que antes mesmo da falta de autonomia remontar o político-ideológico, o sócio-cultural ou o pedagógico-curricular, encontramos o impessoal dando parâmetros de comportamentos nas interações mais primárias. Este estaria presente na educação informal, que, como sabemos, consistiria de experiências latas, dadas espontaneamente e nem sempre refletidas, que tenham efeito formativo sobre o indivíduo; e pela educação formal, mediada por instituições escolares de caráter estrito, com conteúdos programados e

7 Exemplos deste comportamento são identificados na literatura autores que se

ocuparam de tratar do impessoal em alguns de seus principais traços. No romance Being There (traduzido para o português com o título de O videota – o homem que aconteceu), Jerzy Kosinski retrata um indivíduo jogado em circunstâncias nas quais mesmo em modos deficientes de ocupação, alternantes entre a apatia e repetição de clichês aprendidos na televisão, seriam capazes de propiciar relações hábeis e competentes em seu mundo. Menos caricato, Thomas Mann, em seu A montanha mágica, esboça tais preocupações ao narrar démarches de salão nas quais até mesmo bom tom estaria sobre tutela do impessoal. Safranski (2000) elenca outros autores da década de 1920 que tratam da impessoalidade em obras literárias.

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pretensamente crítica, mas sabidamente influenciada pela outra (Kneller, 1996). O impessoal na educação é o que torna capaz a reprodução de uma existência imprópria (entendendo impropriedade como o estado no qual este não se apropria de uma compreensão singular de suas possibilidades de ser-aí, elucidado de sua existência sempre em exercício). Uma tal educação seria a “oficina” na qual são forjados os comportamentos guiados por um conjunto de diretrizes estabelecidas por um invisível consenso. Este, com a autoridade de coisa que se consagra pela repetição, se acomoda constituindo hábitos, costumes e induzindo sua aceitação como padrão de bom senso, para, em seguida, criar identidades e distinções; agrupamentos e segregações; valorações e hierarquias capazes de ser observadas no modo com que se estruturam as sociedades e se conjugam as relações. Nestas, o papel da educação formal, em termos radicais, constituiria um dilema, situado entre o individual e o público. (Paviani, 1988). Tomar o indivíduo como ponto de partida da nossa análise não nos torna partidários de um individualismo, como perspectiva teórica da qual compartilhariam algumas escolas antropológicas ou sociológicas, mas revela que o espaço aberto à presente problematização é o da análise existencial, para o qual o cuidado estaria em evidência como traço essencial deste, também em sua educação. Uma filosofia da educação que parte da consideração do cuidado, como outros discursos educacionais, trafega no âmbito do dever-ser, projetando reflexivamente suas experiências e práticas. Nesta, os diversos modos de ocupação presentes à existência se conjugariam, na medida em que na relação educativa docente/discente,

há a possibilidade de uma preocupação que nem tanto substitui o outro, mas que se lhe antepõe em seu poder-ser na existência, não para retirar-lhe o “cuidado” dele, mas antes para devolvê-lo como tal. Essa preocupação, que pertence ao autêntico cuidado, ou seja, à existência do outro e não a algo de que se ocupa, proporciona ao outro, por meio de seu cuidado, livre para tornar-se transparente a si mesmo. (Heidegger, 1996, p.115)

Heidegger descreve a possibilidade de uma relação na qual a preocupação pelo outro não aniquila sua individualidade, na qual não

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se age com o outro preservando-lhe de experimentar os encargos de sua própria existência (de retirar-lhe o cuidado), mas, ao contrário, proporciona oportunidades de conduzi-lo às possibilidades de sua realização mais própria. Na relação discente/docente isto se aplica pensando o segundo não como aquele que, se antecipando ao aluno (presumido-o desprovido de luz, como indica a composição latina do termo “alumnu”), predeterminaria a educação que lhe julgasse adequada, mas como aquele que estaria preocupado com o necessário para que o discente se descobrisse livre a um sentido próprio a si. O docente, então, passa a não ser mais o repetidor de lições ou o instrutor de matérias, mas quem cria ao discente a oportunidade de um encontro consigo mesmo, que promove a possibilidade deste se educar (ou, como também no latim, “educere”), isto é, expor-a-si mesmo e descobrir para si uma possibilidade capaz de libertá-lo para a significação necessária a uma existência singular. Singularidade na qual o indivíduo é sempre e em cada vez de acordo com os sentidos que lhe são próprios, que dizem respeito ao seu destino. Assim, a uma filosofia da educação, que pensa o cuidado/preocupação, “traz mau apreço ao mestre quando se permanece sempre e somente aluno” (Nietzsche, 1994, p.92). Permanecer aluno, neste sentido, significa não se reconhecer como um ser em exercício ou, ao saber-se este existente, optar comodamente por interpretar-se como coisa. Assim, ao invés de escolher a si próprio, não buscando apropriar-se de um sentido que conduz tal existência, deixa de decidir radicalmente por si-próprio, para, quem sabe, decidir como a gente faz. Nesta,

o ser-aí decidido liberta a si-mesmo para seu mundo. A decisão por si-mesmo primeiro traz o ser-aí para a possibilidade de, sendo com os outros, se deixar “ser” em seu poder-ser mais próprio e, justamente com este, abrir a preocupação que liberta numa ocupação. (Heidegger, 1996, p. 274)

Decidir por si não é assumir o convencionado. Não significa seguir à risca um conjunto de normas morais que confeririam perfectibilidade a nossas ações. Mas é o disparar de uma compreensão da existência que orienta a construção de sentidos próprios a cada indivíduo. Uma educação, como possível de ser pensada em uma filosofia da educação heideggeriana, não nos dá senão a oportunidade

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de experimentarmos a possibilidade de sermos livres da imediatez cotidiana; colocando-nos diante da urgência por escolher um sentido próprio a si, do decidir pelas ocupações necessárias ao esforço por ser singular no mundo. Esta resolução (única e cunhada em conformidade com os significados mais relevantes ao ser no mundo) nos destacaria do impessoal, fazendo-nos despontar como indivíduos singulares. Ora, mas nessa educação que parte de uma escolha individual (do discente) por si próprio, qual seria o papel do docente? Como praticar uma educação como essa? O docente, aqui, é aquele que tem a tarefa, quase socrática, de pro-vocar o discente a conhecer a si-mesmo, de oportunizar um encontro com essa possibilidade. O resultado disso pode ser uma existência na qual o indivíduo na cotidianidade não mais se deixe arrastar pela torrente de diretivas da gente. Podendo conduzir sua própria existência e, ainda, atender aos anseios de uma educação contemporânea, preocupada em formar cidadãos reflexivos, autônomos e participativos contribuindo à esfera do indivíduo, da sociedade e da espécie. Importa dizer, que o docente nesta relação não é um tutor, que diz doutrinas e instrui em saberes, mas aquele que acompanha o processo. Conclusões Estas reflexões nos colocariam diante de questionamentos preocupados com implicações práticas que uma filosofia da educação; ainda, com os dilemas de pensar um modo de tomar o cuidado como um “veículo” da educação, atendendo as exigências práticas do fazer educativo. Assim, constatamos que muitos pontos ainda carecem numa reflexão filosófica que indique um lugar para o cuidado na educação, entre eles, o que nos recorda que a educação não é apenas uma idéia, mas algo que só se efetiva por meio de métodos, através dos quais as teorias se tornam práticas.8 Abrir mão disso seria desconsiderar o caráter iminentemente

8 Contribuições neste sentido podem ser encontradas na obra de Paulo Freire (1921-

1997), cujas técnicas de seu método criam condições pedagógicas para que o indivíduo, reflexivamente, descubra-se numa situação de opressão e conquiste para si a possibilidade de se libertar desta. O cuidado no interior de uma filosofia da educação poderia ser pensado aproximadamente de uma educação como prática de liberdade (afinal, aquilo que chamamos desde Heidegger de exercício de cuidar por

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prático desta, incorrendo naquilo que Gadotti (1991, p.38) denuncia como: “Uma filosofia da educação que foge a essa responsabilidade (...) entrincheirando-se atrás do mundo das idéias” e que “arrisca-se a ser um ópio, uma fuga, um supplément d’âme, em resumo, uma caricatura do homem e do pensar”. Assim, concordamos que a filosofia da educação cabe aos filósofos, mas também aos pedagogos e a todos os membros da comunidade escolar dispostos ao educar, fazendo da filosofia da educação (inclusive aquela que entende a educação como um eduzir o discente à possibilidade de sua singularidade) não um discurso de especialistas mas de parceiros preocupados em libertar o indivíduo para seu próprio cuidado. É fato que significativos esforços para pensar uma educação e uma filosofia da educação, neste sentido, já foram dados, principalmente no campo da pedagogia. Afinal, é consolidada a idéia de uma educação que liberta à singularidade (Stein, 1987), ainda que esta não se utilize dos conceitos de ser-aí, decisão e cuidado, como faz Heidegger. Assim, o presente texto buscou trazer não a proposta de mais uma pedagogia (no caso a do cuidado, iniciativa com propósitos questionáveis), mas de buscar pensar como a educação pode ser abordada no pensamento heideggeriano, contribuindo não só para a educação, mas também aos estudos da filosofia do autor. Referências BOFF, Leonardo, (1999). Saber cuidar: Ética do humano: compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes. GILES, Thomas R. (1987). Filosofia da educação. São Paulo: EPU.

ser si-próprio, em muito se assemelharia à conscientização entendida por Freire) não fossem algumas das diferenças entre os dois autores como o fato de: a) Freire ainda partir de uma compreensão subjetiva do sujeito, o que implica dizer que o autor ainda toma a realidade humana a partir da dualidade homem-mundo, na chave de sujeito-objeto. Mais próximo da fenomenologia de Husserl do que da filosofia transcendental de Kant, Freire tem o homem como subjetividade que transcende ao mundo, o que ainda denota um entendimento dicotômico. b) Freire compreende a educação como um ato político. Embora formule isso apenas posteriormente, esta intuição já é presente nos primeiros textos em que pensa uma educação libertadora. Subtrair estes pontos do pensamento freireano seria alterar sua obra ao ponto da descaracterização.

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GADOTTI, Moacir. Idéias diretrizes para uma filosofia crítica da educação. In. Educação e poder: Introdução à uma pedagogia do conflito. São Paulo: Cortez, 1991. p.37-49. HEIDEGGER, Martin, (1996). Being and time. New York: State University of New York: Albany. Trad. Joan Stambaugh. JONAS, Hans, (1959). Le principe de responsabilité. Paris: Flammarion. KAHLMEYER-MERTENS, Roberto Saraiva, (2005). Heidegger educador: Acerca do aprender e do ensinar. In Aprender – Cadernos de filosofia e psicologia da educação. Vitória da conquista: UESB. v. 3, n.º 4. p.161-171. KNELLER, George F, (1996). Introdução à filosofia da educação. Rio de Janeiro: Zahar. Trad. Álvaro Cabral. LOPARIC, Zeljko. (2004) Heidegger. Rio de Janeiro: Zahar. MAC DOWELL, João, (1993). A gênese da ontologia fundamental de M. Heidegger: Ensaio de Caracterização do modo de pensar “Sein und Zeit”. São Paulo: Loyola. MARTINS, Joel, (1992).Um enfoque fenomenológico do currículo: Educação como poíesis. São Paulo: Cortez. Org. Vitória Helena Cunha Espósito. NIETZSCHE, Friedrich, (1994). W. Assim falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém. 7.ª ed. São Paulo: Bertrand. Trad. Mário da Silva. OZMON, Howard, A.; CRAVER, Samuel, M. (2004). Fundamentos filosóficos da educação. 6.ª ed. Porto Alegre: Artmed. Trad. Ronaldo Cataldo Costa. PAVIANI, Jayme, (1988). Problemas de filosofia da educação. 4.ª ed. Petrópolis/RJ: Vozes. SAFRANKI, Rüdiger, (2000). Heidegger: Um mestre na Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração. Trad. Lya Luft. SAVIANI, Demerval, (1995). Escola e Democracia: Polêmicas de nosso tempo.Campinas: Autores Associados. SEQUEIROS, Leandro, (2000). Educar para a solidariedade: Projeto didático para uma nova cultura de relação entre povos. São Paulo: Artmed. STEIN, Suzana (1987). Por uma educação libertadora. 8ª ed. Petrópolis: Vozes.

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p.225-248

Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre

Luciano Donizetti da Silva* Resumo: É consenso entre os comentadores de Sartre que sua filosofia segue os moldes do racionalismo cartesiano; para sustentar essa tese utiliza-se, em especial, a marcante influência de Husserl e a utilização recorrente da idéia de intencionalidade da consciência. Ora, se Sartre é cartesiano e sua filosofia mantém as mesmas conquistas do racionalismo, por certo reedita os mesmos problemas, dentre os quais aquele relativo ao tempo, tema desse trabalho: o instantaneísmo. Qual seria a solução apresentada pelo filósofo para superar essa questão? De que modo Sartre encaminhará seu pensamento a fim de transpor a evidência do instante, inerente ao cogito e, assim, instaurar a temporalidade, necessária para tematizar a lida cotidiana Presente que, invariavelmente, remete ao Passado e ao Futuro? A discussão dessas questões motiva esse artigo. Palavras-chave: Cogito, Instantaneísmo, Sartre, Tempo, Temporalidade Abstract: It is consensus among the commentators of Sartre that his philosophy follows the Cartesian rationalism molds; to sustain that theory it is used, especially, the outstanding influence of Husserl and the appealing idea about conscience’s intentionality. Now, if Sartre is Cartesian and his philosophy has the same qualities of the rationalism, for sure it republishes the same problems, among these, the question relative at time is the theme of this work: the instantaneous time. Which would be the solution presented by the philosopher to overcome that subject? How Sartre will direct his thought to transpose the evidence of the instant, inherent to the cogito and, finally, to establish the temporality, necessary for think the daily practice Present that, invariably, corresponds to the Past and the Future? The discussion of those subjects motivates this article. Keywords: Cogito, Instantaneous, Sartre, Time, Temporality

O tempo sempre me pareceu um quebra-cabeça filosófico e eu construí, sem lhe dar atenção, uma filosofia do instante (...) por não compreender a duração. (...) E atualmente entrevejo uma teoria do tempo. Sinto-me

embaraçado ao expor minha teoria. Sinto-me um menino. (Sartre, Diário)

* Doutor em Filosofia pela UFSCar. Professor de filosofia na UFPI, Campus Ministro

Reis Velloso (Parnaíba). E-mail: [email protected]. Artigo recebido em 29.09.2007, aprovado em 10.11.2008.

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No contexto da história da filosofia o pensamento de Sartre é definido, dentre outros rótulos, de cartesiano, fato que chama a atenção por mostrar que, na contramão de seu tempo, o filósofo insiste na necessidade de partir do cogito com a condição de poder deixá-lo.1 Em pleno século XX, momento em que a fundamentação para toda filosofia está em crise e é objeto de crítica, em especial a noção de sujeito, encontra-se em O Ser e o Nada o projeto de uma filosofia que dê conta de seus fundamentos e que tenha como solo inicial uma certeza inabalável. Não fosse isso suficiente, os primeiros movimentos da ontologia fenomenológica de Sartre têm como inspiração o pensamento de Husserl, filosofia notadamente cartesiana.2 Mas se a filosofia de Sartre é mesmo cartesiana, uma pergunta se coloca de imediato: não estaria ela, por ter como ponto de partida o cogito, fadada a repetir as dificuldades enfrentadas por Descartes? As questões suscitadas pela decisão sartriana de contrariar a tendência do pensamento de sua época são várias e variadas, mas esse texto dará ênfase a apenas um de seus aspectos: o problema do tempo. Isso porque ao enquadrar a filosofia sartriana dentre aquelas chamadas cartesianas, Sartre passa a figurar numa espécie de ‘cone de trevas filosófico’, cone que tem como centro o problema do instantaneísmo. É possível, partindo do cogito, superar a evidência do instante e, assim, falar sobre o homem concreto, na sua lida cotidiana (o que exige dar conta do passado e do futuro)? Ou a ontologia fenomenológica de Sartre esbarra nessa questão e, por ser uma filosofia da consciência, jamais poderá recuperar as dimensões da temporalidade? Para buscar resposta para essa questão é necessário, antes de tudo, entender as peculiaridades da noção de cogito na filosofia de Sartre; de maneira concisa, a primeira parte do presente texto tem por

1 Sartre, 1943, p. 116 (tradução p. 122). 2 De 1933 a 1934 Sartre estuda em Berlim e, nesse mesmo período, publica A

transcendência do Ego (1937) que, embora sendo uma crítica a Husserl, é fortemente influenciado pela fenomenologia. O mesmo pode ser dito de A Imaginação (1936), Esboço de uma teoria das emoções (1939), O Imaginário (1940) e, em certa medida, também de O Ser e o Nada (1943), obras nas quais A intencionalidade: uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl (texto de 1939) tem uma importância fundamental, conforme Contat & Rybalka, 1970.

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objetivo marcar a diferença do ponto de partida de Sartre com relação a Descartes e Husserl. Nesse sentido será preciso recorrer à instância da pré-reflexividade e, dela, mostrar aquilo que Sartre considera o erro cartesiano no que concerne a radicalidade do cogito; na mesma medida será preciso mostrar como, por partir dessa instância anterior à reflexão, a filosofia de Sartre se distancia daquela de Husserl; só então será proveitoso passar ao problema do tempo, que é o que nos interessa. Para tanto, o esforço inicial desse trabalho será relativo à noção de intencionalidade da consciência. Entretanto, se é com a intencionalidade que Sartre encontra elementos para superar o instantaneísmo, isso não significa de maneira alguma a simples retomada da filosofia de Husserl. É graças a esse instrumento que Sartre pode alargar o conceito de consciência (ao esvaziá-la de qualquer positividade) ao mesmo tempo em que afirma a transcendência do mundo; mas a intencionalidade não dá conta de explicar a reflexividade, ou mostrar de que maneira a consciência pode ser, também, consciência de si. É nesse panorama que a fenomenologia de Sartre toma ares de uma ontologia, notadamente influenciada por Heidegger: a consciência é o que não é e não é o que é.3 Continua válida a necessidade de partir do cogito, mas ao lado desse princípio passam a figurar os conceitos de ser-no-mundo, facticidade e, ainda mais contundente, a necessidade de entender o ser da consciência. É a partir daí que Sartre mostra que, ainda que não seja posicional, uma vez que só há posicionamento de objetos, a consciência é consciência de si. Em resumo, ao analisar o fenômeno de ser, a ontologia de Sartre mostra que o ser do fenômeno é em-si e para-si (introdução de O Ser e o Nada); o

3 No primeiro capítulo de Ser e Tempo Heidegger analisa os fundamentos do Dasein e,

assim, o ente que coloca seu ser em questão deve esclarecer inicialmente seu ser-no-mundo; ora, o Dasein “não é uma determinação composta por adição, mas uma estrutura originária e sempre total. Não obstante, oferece perspectivas diversas dos momentos que a constituem. Mantendo-se continuamente presente a totalidade preliminar dessa estrutura, deve-se distinguir fenomenalmente os respectivos momentos”; ainda, “O Dasein se determina como ente sempre a partir de uma possibilidade que ele é e, de algum modo, isso significa que ele se compreende em seu ser. (...) para uma interpretação ontológica desse ente, a problemática de seu ser deve ser desenvolvida a partir da existencialidade de sua existência”. Heidegger, 1988, p. 75 e 79.

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passo seguinte exige mostrar (fenomenologicamente) que há um cogito pré-reflexivo, e que esse é condição do eu penso cartesiano (primeira parte de O Ser e o Nada). Se toda consciência é consciência de um objeto (posicional, portanto), para Sartre ela é, também, consciência não posicional (de) si.4 O mesmo problema diagnosticado em Descartes, qual seja, duplicar a consciência (de) si, parece ser encontrado em Husserl. Ainda que, na esteira da purificação do campo transcendental, Husserl libere a filosofia do Eu formal e psíquico, segundo Sartre resta o Eu transcendental. Husserl não teria se dado conta de que o Eu transcendental não passa de uma contração infinita do Eu material e, por isso, aquele causaria as mesmas dificuldades que este: tornaria a consciência opaca para si (uma coisa) e, enquanto tal, relativa. Porém, e essa pergunta parece ser o principal eixo do problema em voga, se não há nem Ego nem Eu transcendental, o que poderia promover a unidade da consciência? Entra em cena o problema da relação da consciência com o mundo e, no limite, da consciência consigo mesma: a negação que a consciência é. Sartre enfrenta esse problema em dois momentos. Primeiro, a unidade transcendente se encontra no objeto mesmo: é na transcendência que a consciência, por ser negação do objeto, encontra sua unidade. Porém, como não há mais possibilidade de aceitar o realismo espontâneo, e a ontologia de Sartre afirma uma camada constituinte, há que se admitir que os objetos exigem uma instância originária de unificação (os objetos são, em parte, constituídos pela negação que a consciência é, pela desordem que ela promove no ser; mas a consciência não pode, por si mesma, fundamentar o ser). Desse modo, é preciso que a consciência tenha, em seu ser, a garantia da unidade na imanência. É na análise da estrutura ontológica da consciência que se encontra a possibilidade de recuperação de si (passado) e projeção de si (futuro); conforme será visto, por ser negação do ser e de si, a

4 Sartre mostra que, graças à pré-reflexividade, a consciência de si não remete a

nenhuma dualidade. Por isso, utiliza o de entre parênteses. Sartre, 1943, p. 20-21 (tradução p. 25).

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consciência escapa de seu presente (objeto intencionado) rumo àquilo que não é mais ou que tem de ser. Percebe-se que, no cerne da questão, encontra-se o tempo; não mais unicamente o tempo do mundo, mas a temporalidade do para-si.5 É no surgimento da consciência, e em sua constância temporal, que Sartre vai mostrar a unidade originária da consciência (ou, a temporalidade). Daí porque tematizar esse problema em dois momentos: 1) a superação do instante e 2) a recuperação do passado e possibilização do futuro. Nesses, por sua vez, a discussão será feita tendo como contraponto os filósofos com os quais Sartre, em sua obra, discute: Descartes e o problema do instante; Bergson e o monismo temporal; Husserl e a questão da diferença, não de qualidade, mas ontológica, entre as três dimensões temporais. Importa frisar que deverá ser satisfeita a afirmação tanto do passado quanto do presente sem que isso redunde em nenhum tipo de opacidade da consciência (ela deverá permanecer translúcida). Além disso, será preciso dar conta da relação dessas dimensões com o futuro. Assim, parece ser possível retomar a questão que norteia esse texto e responder se, efetivamente, uma filosofia que toma como ponto de partida a certeza do cogito está condenada ao instantaneísmo; mais, será possível produzir uma análise sobre a teoria do tempo na filosofia de Sartre. Reflexão e pré-reflexão A ontologia de Sartre é fenomenológica porque tem como prerrogativa partir daquilo que lhe é mais próximo; assim, por fazer uma filosofia que toma como fundamento a consciência (que é o que cada homem pode ter de mais próximo a si), Sartre é considerado cartesiano. No entanto, há que se fazer mediações no que tange a essa classificação de sua filosofia: o cogito é, para ele, uma instância secundária que Descartes pensou ser radical. Se para Descartes o cogito fornece uma

5 Note-se o Capítulo 2 da Segunda Parte de O Ser e o Nada, no qual Sartre distingue

as três dimensões temporais do para-si por oposição ao tempo do mundo. Nesse sentido, o tempo tem sua origem no para-si, mas é encontrado no mundo pelo homem; e isso gera a oposição aparente entre tempo e temporalidade, na medida em que o tempo é transcendente, enquanto a temporalidade é imanente, constituinte, da consciência do tempo.

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certeza imediata de um ser pensante, res cogitans, Sartre afirma que “existe um cogito pré-reflexivo que é condição de todo cogito cartesiano”.6 Não se trata, para Sartre, de um sujeito que se fecha em si mesmo, como seria o caso da substância pensante; o sujeito sartriano deverá, ao mesmo tempo em que se volta sobre si, direcionar-se ao transcendente. É nesse contexto que se insere um instrumento herdado de Husserl e muito caro a Sartre: a intencionalidade da consciência. Pela afirmação de que toda consciência é intencional, ou seja, que ela sempre visa algo distinto dela mesma, Sartre recupera uma instância ainda mais fundamental que o cogito; não é por acaso que a intencionalidade, vastamente utilizada em O Ser e o Nada, é a idéia fundamental da fenomenologia. Originariamente, a consciência não pode voltar-se apenas para-si, sob risco de aí permanecer, mas deve ser relação direta com o transcendente. Assim, o primeiro passo deve ser a purificação absoluta do campo transcendental e, dessa feita, a afirmação da transcendência do mundo. Noutros termos, o mundo não poderá ser reduzido às idéias e, assim, ser considerado uma representação; para Sartre trata-se do mundo concreto. De outra feita, o sujeito estaria encerrado em uma esfera de subjetividade e seria forçoso retirá-lo daí, e o mundo, por sua vez, nada mais seria que representação, já que constituído por associação de sensações e idéias. Sem esse cuidado prévio o pensamento reduzir-se-ia a uma cópia do mundo e a pretensa relação entre sujeito e objeto nada mais seria que um evento psicológico (encerrar-se-ia no sujeito). A solução está em, com a intencionalidade, recolocar o mundo na sua transcendência e garantir que a consciência seja relação com esse mundo. A intencionalidade da consciência carrega, na filosofia de Sartre, o sentido de que, em seu ser, a consciência é incapaz de conter qualquer representação; sua relação deve ser com o objeto real (transcendente, portanto). A consciência transcende-se rumo a um objeto que de maneira alguma pode ser confundido com um conteúdo psíquico: “Vós vedes esta árvore, seja. Mas vós a vedes no local mesmo em que ela está: no fim do caminho, em meio à poeira, só e torta sob o

6 Sartre, 1943, p. 19 (tradução p. 24).

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calor, a vinte léguas da costa mediterrânea. Ela não pode entrar em vossa consciência, pois não é da mesma natureza que ela”.7 Com a intencionalidade Sartre coíbe toda e qualquer possibilidade de representação no que diz respeito à percepção; porém restam ainda as sensações, a imaginação e outros tipos de consciência que poderiam ser alvo de crítica, no sentido de apontar a permanência de algo na consciência.8 Sartre se adianta em levar a intencionalidade não apenas ao âmbito da percepção, mas a todos os modos de consciência (dor, sede, etc.); com isso, a consciência é purificada de tudo aquilo que ela pudesse conter ou produzir: a consciência é, a rigor, nada (rien). Encerra-se, com isso, a possibilidade de pensar a consciência como uma substância voltada para si (sei que penso). Não há nenhum tipo de interioridade, seja física ou psíquica. Ser consciência é direcionar-se ao mundo, e todas as impressões subjetivas, que poderiam ser consideradas da consciência, não são mais que meios diferenciados de relação entre consciência e mundo. Porém, sem interioridade e sem Eu, onde a consciência encontra sua unidade? Sartre entende que, no caso do cogito cartesiano, há exigência de dualidade dessa consciência; ainda que não se trate de uma consciência cognoscente, há uma consciência do cogito, o que remeteria a uma relação do tipo sujeito-objeto no interior mesmo da consciência.9 Entretanto, ser consciência é ser ‘consciência (de) si’ sem que isso se caracterize duplicidade, afinal, a consciência jamais poderia ser um objeto para si mesma. Ao intencionar um objeto qualquer (e

7 Sartre, 1947, p. 32. 8 Esse é, notadamente, o problema do capítulo intitulado Husserl, de A Imaginação:

“A distinção entre imagem mental e percepção não poderia proceder unicamente da intencionalidade: é necessário, mas não suficiente, que as intenções difiram; é preciso também que as matérias sejam dessemelhantes” (Sartre, 1978, p. 105); O Imaginário tem, por sua vez, a mesma questão em seus dois primeiros terços: a partir da análise das possibilidades de imagem (família da imagem), mostra que em nenhum caso, inclusive no que se refere à imagem mental, pode-se reduzir a imaginação aos elementos imanentes à consciência, conforme Sartre, 1996.

9 É o que se passa na filosofia cartesiana: “De sorte que após haver pensado bem, e haver rigorosamente examinado todas as coisas, é necessário, enfim, concluir e ter por constante que a proposição eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou a concebo em meu espírito”. Descartes, 1973, p. 100.

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todo objeto é transcendente), a consciência posiciona esse objeto e, no mesmo ato, é consciência não posicional de si: “toda existência de consciência existe como consciência de existir”.10 De outra feita (caso a consciência exigisse outra consciência para promover sua unidade) seria necessário uma regressão ao infinito; e, se essa afirmação de Sartre parece remeter a um círculo vicioso, ele afirma que é constitutivo da consciência existir em círculos. Aqui, melhor que em qualquer outro lugar, torna-se possível marcar a diferença de posição entre as noções de cogito para Descartes e para Sartre: o cogito cartesiano, por ter como fundamento desconhecido o cogito pré-reflexivo, pôde ser estabelecido com a necessária presença de um Eu. Porque a consciência é remissão a si sem que isso configure uma dualidade (trata-se apenas de uma estrutura ontológica do para-si), Descartes pode chegar ao Eu por uma espécie de conhecimento de si, e estabelecer a relação dual consigo mesmo (indubitavelmente, eu sou quando me enuncio ou me concebo). De fato, seria inaceitável uma consciência que fosse inconsciente de si; mas, daí, inferir a noção de sujeito é inserir a dualidade na estrutura mesma do conhecimento e impedir, por princípio, qualquer unificação posterior. É assim que, segundo Sartre, substancializa-se a absoluta espontaneidade que a consciência é; constitui-se uma substância paralela ao mundo e incapaz de relacionar-se com ele sem mediação (Existência e Perfeição divinas, na quarta meditação). Por isso, o cogito cartesiano deve ser considerado lícito; mas é, também, tributário da estrutura originária da consciência (a pré-reflexividade) que Descartes não se deu conta e, assim, produziu uma teoria que redunda na dualidade substancial. Com respeito a Husserl a questão sobre a radicalidade do cogito não se resolve tão facilmente. Sartre critica em seu mentor a noção de Eu transcendental, presente nas Idéias; isso mostra que seu objetivo é inverter posições: se para Husserl é o Eu puro que vai permitir a unificação da experiência e, assim, garantir o acesso ao transcendente, para Sartre trata-se de uma unidade prévia das consciências e é a partir dessa unidade que o Eu se possibiliza. O ponto almejado não é outro que manter a absoluta purificação do campo transcendental e impedir

10 Sartre, 1943, p. 20 (tradução p. 25).

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que, ainda que seja com a noção de Eu transcendental, a consciência encontre em si mesma algo que lhe seja exterior, que a torne opaca para si. Porém, o problema continua: como a consciência pode unificar-se? Se ela é intencional, ou se ela se reduz a um lançar-se em direção ao transcendente, como pode promover a unidade do mundo e sua própria unidade, uma vez que, nessa perspectiva, ficam barrados os conceitos de interioridade e representação? Falta entender como, no campo da imanência, a consciência pode ser una: sendo a consciência intencional, ela nada mais é que um fluxo que se encaminha ao objeto transcendente, “ela é clara como um grande vento, nada mais há nela, salvo um movimento para se escapar,”.11 Por esse movimento intencional, num jogo de intencionalidades transversais, a consciência unifica a si (e por si) mesma. Seja em relação ao transcendente ou a si mesma, a consciência não precisa de um Eu para se unificar; é ela mesma que se faz “pessoal porque (...) ela é reenvio a si”.12 A unidade da consciência deve ser buscada em sua transcendência: ao escapar de si mesma rumo ao que ela não é e, nesse mesmo ato, voltar-se sobre si, a consciência se unifica por seu movimento de fuga. A unidade dos objetos está no mundo (a unidade é transcendente, ou seja, por que no mundo ‘dois e dois fazem quatro’, a consciência encontrará aí sua unidade). Entretanto, essa solução resolve o problema apenas em parte: se os objetos são responsáveis pela unidade transcendente da consciência e se esses objetos são para a consciência, onde eles encontrariam sua unidade? Percebe-se que é necessária uma instância mais fundamental que produza a unidade dos objetos. Assim, muito próximo à posição husserliana das Lições, Sartre vai buscar no surgimento da consciência e em sua constância no fluxo temporal a saída para a unidade originária dos objetos e, no limite, a unidade da consciência ela mesma. Embora possa parecer que o problema da noção de Eu seja apenas uma decorrência da compreensão de consciência como intencional, já que, sendo apenas um fluxo, a consciência não teria em

11 Sartre, 1947, p. 34. 12 Sartre, 1994, p. 101.

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si nada de positivo, em A transcendência do Ego Sartre mostra que não se satisfaz apenas com a demonstração de que o Eu formal (ou psíquico) é desnecessário. Isso porque, mesmo tendo encontrado em Husserl tal recusa, Sartre valoriza excessivamente a noção de Eu transcendental encontrada nas Idéias; mais ainda, Sartre vai mostrar que o Eu transcendental husserliano é na verdade uma contração infinita do Eu material.13 Nas Idéias a redução leva necessariamente a um eu puro (que não tem por objetivo unificar a consciência), adjunto de todas as vivências, a um sujeito que permanece sempre idêntico.14 Sartre considera essa noção de unidade da consciência um retrocesso de seu mentor que, assim, desrespeita a verdade mais fundamental da fenomenologia: “toda consciência é consciência de alguma coisa”.15 Tal verdade exige que, igualmente a todos os demais objetos, também o Eu seja um habitante do mundo. Feitas essas considerações é hora de passar ao problema do tempo. Isso porque, ao partir das noções de intencionalidade e pré-reflexividade e, por essas, purificar absolutamente a subjetividade de tudo que seja positivo ou interior, Sartre coloca em jogo a noção de sujeito. Não há um Ego que promova a unidade temporal, também não há um Eu, seja esse de qual ordem for, que dure. A subjetividade sartriana foi a tal ponto esvaziada que pode, sem grande dificuldade, ser identificada a nada (néant). Dito de outro modo, a consciência é nadificante, negação do ser (fuga do presente) e negação de si (impossibilidade de coincidência, nada) rumo àquilo que ela tem de ser (ser em-si-para-si). Um grande movimento, um turbilhão que se

13 “Entendamos: o Eu formal ‘transcendental’ nada mais é que uma ‘contração

infinita do Eu material’ simplesmente porque se o transcendental é fato, não princípio lógico, o Eu é da mesma ordem, isto é, material e não formal. Daí porque o Eu transcendental implica opacidade: é que se trata de um Eu material contraído”. Moutinho, 1995, p. 31-32.

14 “Todos eles, contando o simples ato do eu, em que tenho consciência do mundo ao voltar-me espontaneamente até ele e apreendê-lo como algo que está imediatamente aí diante, estão compreendidos na única palavra cartesiana cogito”; (...) “Assim mesmo, trata-se de caracterizar a unidade da consciência requerida por aquilo que é próprio das cogitações, e requerida tão necessariamente, que as cogitações não podem existir sem essa unidade”. Husserl, 1992, p. 70 e 78.

15 Sartre, 1978, p. 99.

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arranca na direção do mundo e retorna sobre si; nesse contexto, como falar em passado ou em presente? Não seria essa condição ainda pior que a verdade cartesiana do instante? Ou mesmo, pior que a posição idealista de Husserl que, ao menos com as noções de protensão e retenção, podiam explicar a inserção da consciência no tempo? Enfim, como, a partir desse fluxo contínuo ao qual o sujeito foi reduzido, falar em dimensões temporais ou temporalidade? A superação do instante Ao alinhar Sartre do lado de Descartes e Husserl, o que mostra que seu pensamento é cartesiano, percebe-se de antemão que a maior dificuldade relativa ao tempo deverá ser o instantaneísmo. E Sartre não está alheio às dificuldades relativas ao tempo, principalmente no que se refere a esse problema específico, tanto que, no que tange à primazia do instante na constituição do tempo, o autor alvo da discussão é justamente Descartes. Se para Descartes é a intuição de si (eu penso) que fornece a certeza do sujeito como substância (res cogitans), não há outra alternativa que entender o tempo como uma instância externa à consciência; dessa feita, o tempo deverá ser identificado ao objeto do mundo. Sendo assim, como falar em dimensões temporais? É no instante que se dá a certeza de ser, ou melhor, a verdade penso, logo sou é indubitável quando enunciada. Entretanto, ao afirmar que a verdade do cogito é devida a uma certeza primeira, Descartes também afirma que a existência pode ser infinitamente dividida; dessa feita não há, necessariamente, nenhuma relação entre o foi e o será. Além da criação, também a continuidade de cada ser (duração) deverá resultar de um ato divino.16 A existência é, dessa maneira, continuada de um instante a outro pela ação divina; não há nenhuma relação que possa ser apontada entre as dimensões

16 “Pelo nome de Deus eu entendo uma substância infinita, eterna, imutável,

independente, todo conhecimento, todo potência e pela qual eu mesmo e todas as coisas que são (...) foram criadas e produzidas”; e “ainda que eu possa supor que seja possível que eu sempre tenha sido como sou agora, eu não poderia por essa razão evitar a força desse raciocínio, (...). Pois todo o tempo de minha vida pode ser dividido em uma infinidade de partes, cada uma das quais não dependentes de forma alguma das demais”. Descartes, 1973, p. 107 ss.

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temporais, não há para o homem nem mesmo tempo, afinal, seu presente, a representação do passado ou qualquer projeção futura deverão ser feitos no instante e ao instante reduzirem-se. Para a filosofia cartesiana, se há passado ou futuro, esses estão reservados a Deus, cabendo ao homem apenas o instante. A criação ex-nihilo gera uma espécie de temporalidade em que a ligação de suas partes é contingente; não há conexão necessária entre momentos vividos. Como explicar, nesse panorama, a passagem de um instante a outro?17 Sem a relação intrínseca de momentos apenas uma testemunha externa e alheia ao tempo poderia promover a concatenação temporal. Isso mostra que, na filosofia cartesiana, o tempo no mundo não passa de uma ilusão: ao instalar o homem no instante, como aceitar que houve mudança, que o que foi não é mais? Mesmo a identidade do sujeito perde seu valor pois se cada aparição a si mesmo é feita de forma desconexa com a anterior, o que pode garantir que há o si mesmo? Enfim, ao partir da realidade do instante, apenas Deus pode estabelecer as relações entre o instante e o tempo. Entretanto, para Sartre apenas suprimir o cogito não é garantia de superação do problema do instante. É, por exemplo, o caso do associacionismo que pensa o tempo tal qual instantes que se sucedem como pontos dispostos em uma linha;18 essa doutrina produz, imediatamente, o prejuízo de que cada momento permanece fechado em si mesmo. A síntese que faria dessa coleção de instantes uma totalidade é impossível, haja vista que cada momento foi definido de maneira externa em relação aos demais. É justamente contra a noção associacionista que Sartre retoma Bergson e a negação do instante: “Brevemente, a pura duração bem poderia não ser senão uma sucessão de mudanças qualitativas que se fundem, que se penetram, sem contornos precisos, sem qualquer tendência a se exteriorizar uns em relação aos outros, sem qualquer parentesco com o número: isso seria

17 Sartre afirma que é necessário que “se o tempo é separação, ao menos é uma

separação de tipo especial: uma divisão que reúne”, Sartre, 1943, p. 176 (tradução p. 186).

18 O nexo entre antes e depois deve ser interno; de outro modo o problema apenas se resolveria com a noção de um Deus intemporal (Descartes) ou com a remissão a um eu penso que esteja fora do tempo, como unidade sintética.

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esentes.21

heterogeneidade pura”.19 Para Sartre o tempo é múltiplo, não há dúvida; mas, em conformidade com Bergson, ele admite que o que faz com que o tempo seja apreendido como uma gama infinita de instantes é sua espacialização. Ora, feito isso não se trata mais do tempo, mas de uma representação quantitativa na qual há uma relação de exterioridade de um momento a outro. Há, para Bergson, relação intrínseca de um estado a outro e, dessa feita, o tempo não se reduz a uma sobreposição infinita de instantes; a divisão do tempo em ‘agoras’ é devida a uma atividade posterior, a um esforço retrospectivo. Sendo assim, Sartre entende que a síntese que compõe a duração na filosofia de Bergson se reduz a uma espécie de ‘monismo temporal’; ora, sem intermediação, sem passagem real de um momento a outro, não há diferença entre as dimensões temporais e, com isto, o tempo se torna novamente uma ilusão.20 Ainda que na filosofia de Bergson não seja necessário um ato que engendre a temporalidade, para Sartre é preciso encontrar no presente a estrutura que o faz intrínseco às demais unidades temporais (passado e futuro) e, além disso, capaz de reunir-se aos demais pr Sartre contrapõe-se à filosofia cartesiana, que privilegia o instante; critica, por sua vez, Bergson, na medida em que negar o instante não se resolve com a afirmação de uma totalidade temporal dada; também nega que o meio termo possa ser o associacionismo, uma vez que nessa teoria os instantes estariam fechados em si e, por isso, incapazes de serem reunidos. Qual a saída para, ao mesmo tempo, negar o privilégio do instante e manter coesas as dimensões temporais? Como primeira resposta é preciso voltar à estrutura ontológica da

19 Bergson mostra como, devido a uma estrutura psicológica, o tempo é entendido a

partir da noção de espaço, o que produz sua heterogeneidade; mas, conforme mostra Sartre no Diário de uma Guerra Estranha, essa compreensão se deve a um engano, qual seja, inserir sub-repticiamente a espacialização do tempo. Sartre, 1983, p. 77-79.

20 Bergson “Tem razão contra Descartes, ao suprimir o instante; mas Kant tem razão contra ele quando afirma que não há síntese dada. Esse passado bersoniano, que adere ao presente e até o penetra, é pouco mais que uma figura de retórica”. Sartre, 1943, p. 181 (tradução p. 191).

21 A solução para o impasse é, segundo Sartre, produzir uma ontologia da temporalidade. Sartre, 1943, p. 181 (tradução p. 191).

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consciência: o cogito sartriano não é tal como para Descartes, uma substância; ele é nada, um fluir ininterrupto rumo àquilo que ele não é. Dessa feita não se trata, como seria no caso de Descartes, da presença de um em-si a outro (consciência ao objeto); isso denotaria uma relação de exterioridade e a necessidade de um terceiro termo (Deus) que promova sua união. O cogito sartriano é esvaziado, e sua existência requer, no mesmo ato, presença a algo que ele não é; e por não se tratar de uma substância, a relação não se dá de forma externa, mas uma relação interna com o objeto presentemente intencionado.22 Além disso, para ser presença a determinado objeto, a consciência deve ser, também, presença a si (pré-reflexividade). O que media a relação da consciência com qualquer objeto é ela mesma, a partir do tipo de relação reflexo-refletidor; chega-se, enfim, ao território da negação: a consciência é dupla negação e, assim, é ela mesma quem instaura a temporalidade. Ser consciência é relacionar-se com algo que não se é, ou seja, ao intencionar um objeto presentemente, a consciência nega esse objeto; com isso o objeto é posicionado. Porém, no mesmo ato, a consciência nega-se enquanto negação do objeto; assim, por uma autoposição, a consciência estabelece seu ser, ou melhor, seu nada de ser. A consciência escapa ao ser contrapondo-se ao em-si e, por esse mesmo ato, negando-se a identificar com o ser-negação-do-objeto, escapa também ao presente – “o presente é uma fuga perpétua frente ao ser”.23 A decorrência imediata é que o presente não se configura enquanto algo que se apresenta à consciência, mas, contrariamente, é pela consciência que o presente é levado ao ser; o presente ocorre porque a consciência é presença a. Dessa maneira, está negado o instante (a exemplo de Bergson) sem que, para isso, seja necessário afirmar a constância do cogito frente a um determinado objeto; melhor, sem a necessidade de afirmar que há uma síntese temporal a priori. A unidade das consciências (duração) não exige, pois, a existência real do presente em fusão com o passado; é necessário sim, para que haja tempo, o movimento reflexivo (negativo)

22 Noção de negação interna, conf. Sartre, 1943 p. 58 e 228 (tradução p. 64 e 242). 23 Sartre, 1943, p. 167 (tradução p. 177).

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do para-si: ele é o único que pode estar presente a um objeto e, nessa medida, promover a co-pertença de ambos (para-si e objeto) a um presente. Sem a consciência não há mediação possível entre quaisquer objetos, que continuam fechados em si e incapazes de se relacionar. O presente (não o instante) se dá pelo ultrapassamento do em-si pelo para-si; entretanto, o em-si, ultrapassado, não desagrega e deixa, por isso, de existir. É a partir daí que se pode falar em passado. Recuperação e projeção de si A filosofia de Sartre não está mais no registro cartesiano. Superado o instante, no qual duas substâncias compartilham um mesmo momento e cabe a Deus o papel de promover a temporalidade (Descartes), Sartre passa a haver-se com Bergson. Também para ele não se coloca o problema do instantaneísmo; trata-se, tal qual Sartre, do presente que se estende sobre o passado e o futuro.24 Para Bergson o presente se estende sobre o passado graças à memória; o passado se difere do presente por sua natureza, afinal ele não deixa de ser, mas perde a capacidade de agir no presente.25 Dessa feita, a consciência presente conserva o passado, o que significa para Sartre uma clara indicação de confusão entre ser-em-si e consciência: nada há que justifique que a consciência possa expandir-se rumo ao passado e ao futuro, uma vez que, mesmo com a mudança de natureza, tudo é presente. Também para Sartre o passado é em-si (não age sobre o presente). Entretanto, não se trata de em-si no presente (o presente é fuga perpétua); o passado é em-si para o presente. Não há contemporaneidade entre presente e passado na mesma medida em que não há contemporaneidade entre consciência e objeto negado presentemente. Para Sartre a relação entre o para-si e seu passado deve ser ontológica, ou seja, o passado é em-si superado sobre o qual o para-

24 Bergson, 2006, p. 161. 25 Em resumo, para Bergson a memória, nos níveis mais expandidos, conserva o

passado; quando se aproxima da percepção, a memória se contrai. Tal contração faz com que o passado confunda-se com o presente, mostrando que a relação entre passado e presente se dá numa co-extensão e não numa existência paralela. Assim, a diferença entre passado e presente não seria de grau, mas de natureza: o passado é inativo, o presente é ação. Bergson, 2006, p. 169.

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si não pode mais agir: o para-si não é fundamento de seu passado, não pode mais mudá-lo; o passado é para-si fixado no Ser. “Assim, o passado é a totalidade sempre crescente do em-si que somos. Enquanto ainda não morremos, todavia, ainda não somos esse em-si sob o modo da identidade. Temos de sê-lo”.26 O surgimento do para-si evoca as três dimensões temporais uma vez que ele já surge com um passado (em-si superado) e foge rumo ao que não é (futuro). Para tanto, o passado do para-si não pode ser apenas memória. Diferentemente de Bergson, a filosofia sartriana exige que a solidariedade com o passado não se resuma ao que é lembrado ou foi percebido, mas, antes, a todo o passado do para-si. É no plano pré-reflexivo que o passado surge ao para-si; muito além do que se poderia nomear passado psicológico, o passado é aquilo que o para-si foi e, presentemente, deve continuar sendo. Contrariamente a Bergson, o passado não necessita ser posicionado para ser; no entanto, não é também inconsciente. Ser consciência é estar além daquilo que se lhe é dado presentemente; isso faz com que a consciência seja capaz de alcançar e se relacionar com a dimensão passada sem possibilidade de confusão com o presente (com o era, foi, ou simplesmente em-si). O passado faz parte do campo de presença do para-si; por isso, a relação com o passado deve ser ontológica. Paralelamente, o problema do tempo da maneira como foi desenvolvido por Husserl também tem forte influência sobre Sartre. Mas, segundo ele, a filosofia husserliana erra por, mesmo tendo entendido o tempo como duração e buscado desfazer a ruptura entre as três dimensões temporais, não estabelecer uma instância responsável pela totalização temporal. Assim, “o único meio possível de estudar a temporalidade é abordá-la como uma totalidade que domina suas estruturas secundárias e confere-lhes significação”.27 Husserl não considera suficiente a análise das sensações para que seja estabelecida a sucessão temporal (ou sucessão de sensações); desse modo, a sensação presente deve, de alguma maneira, carregar consigo uma relação interna com a sensação anterior. Ou, fazendo o caminho inverso, para que uma

26 Sartre, 1943, p.158 (tradução p. 169). 27 Sartre, 1943, p. 158 (tradução p. 169).

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sensação passada possa reaparecer, essa deve, necessariamente, manter alguma relação com a sensação atual. Esse problema é mais bem explicitado no exemplo de uma melodia: ao ouvir os novos acordes não há o desaparecimento dos anteriores. Se fosse dessa maneira, haveria uma gama de sons indiferenciados e jamais seria possível ouvir uma música; tratar-se ia de uma seqüência de acordes irremediavelmente separados entre si.28 Por isso Husserl recorre ao conceito de associação originária, segundo o qual o que acontece é a associação de um momento passado no instante presente; esse passado, por sua vez, apresentar-se-ia como irreal e, desse modo, a sucessão temporal seria, segundo Sartre, um recurso ao imaginário. Se o problema se resolve em parte, afinal ela aplica uma marca que distingue a aparição do passado no presente, cria por sua vez o problema de distinguir uma percepção temporal atual (ouvir uma melodia) e a rememoração (lembrar-se de que ouviu uma melodia), problema que se agrava quando a existência real do mundo é colocada entre parênteses (epoché fenomenológica). Mas é Husserl mesmo quem mostra essa dificuldade, afinal, ao tentar recuperar a possibilidade de relação entre as três dimensões temporais afirmando o presente e relegando o passado e o futuro ao status de irreal, relega-se também o tempo ao imaginário. Não há qualquer possibilidade de recuperar a objetividade temporal dos fatos passados. Melhor seria, como meio de apreensão da estrutura temporal, analisar a consciência e sua relação com os objetos temporais; para tanto, é necessário abandonar a posição transcendente do objeto dado, e analisá-lo como puro dado hilético (matéria subjetiva, presente na consciência). Assim, no caso da melodia, percebe-se que cada acorde se mantém consciente e, em seguida, passa a ter um coeficiente passado, sendo substituído por um outro e, consecutivamente, a melodia enquanto uma totalidade, ao findar, também se afasta; é a nota presente que modifica e retém a nota passada. A impressão presente se liga a uma série de retenções formando um contínuo e reafirmando a totalidade temporal.

28 Husserl, 1994, p. 45-50.

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Se isso pode explicar a relação original com o passado, o que explica a ligação com o futuro? De fato, cada presente traz consigo um passado; o futuro é, por sua vez, visado como intenção vazia ou protensão. O futuro é aquilo que é projetado, o vazio rumo ao qual cada presente é arrastado. A partir da impressão presente, tanto passado quanto futuro arrancam seu sentido: é a partir do dado presente que podem ressurgir o passado e projetar o futuro.29 Estaria assim resolvido o problema e, conforme pretende Sartre, o tempo teria sido pensado enquanto totalidade? Não. Para Sartre Husserl vai além de Bergson porque alarga o presente. A consciência permanece presente ao objeto visado; mas de maneira alguma isso responde sobre o ser do passado e do futuro. E se Husserl pode falar de modificação naquilo que é retido, com relação à impressão presente, Sartre se pergunta sobre o lugar dessa modificação, afinal, se for uma modificação ontológica, faz-se necessária uma consciência para reconhecer a mudança no ser; se não é isso, o problema continua: como é possível sair do presente (ou recuperar o passado), afinal haveria que se admitir que o passado é presente. Não há meio de considerar a retenção e a conseqüente modificação hilética do vivido uma boa solução para o problema do passado; nem mesmo a intenção vazia como uma solução adequada para o problema do futuro. A mesma dificuldade antes apontada por Sartre em relação à Husserl pode ser aqui retomada: feita a redução, o que pode ser considerado real, ou melhor, como distinguir mundo (ou tempo) imaginado de mundo (ou tempo) percebido? Assim como apenas a intencionalidade não era suficiente para distinguir a árvore imaginada da árvore percebida, as operações de retenção e protensão, somadas ao constante distanciamento dos fatos vividos, não são suficientes para limitar as dimensões temporais (distinguir tempo imaginado e tempo percebido) e, nem mesmo, dar conta da temporalidade do vivido. A modificação (o coeficiente de passado) não pode ser apenas qualitativa, mas deve ser ontológica: o passado deverá ser o para-si na medida em que participa do ser; o futuro deverá ser o para-si como projeto de ser.

29 Husserl, 1994, p. 94 ss.

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Considerações finais Enfim, para concluir essas reflexões, será feita uma avaliação da temporalidade sartriana para entender em que medida, ou melhor, a que preço, Sartre formula sua estrutura do tempo. Entretanto, trata-se de conclusões, afinal, não será possível uma afirmação única no que diz respeito a esse problema; o que parece desnecessário afirmar, em resposta à primeira indagação desse texto, é que ter como fundamento da filosofia a certeza inabalável do cogito não encerra, de maneira alguma, tal filosofia no instante. Sartre mostra que a pré-reflexividade do cogito além de garantir a relação entre consciência e mundo, antecipa, também e por isso mesmo, a inserção da consciência nos três ek-stases temporais. Para isso, porém, o tempo deverá perder seu caráter de realidade, devendo ser engendrado pelo para-si. É justamente isso que pode ser dito do presente: ele não tem um caráter de tempo do mundo, ou então não é concebido como um instante ou um ponto em uma linha temporal; não há, sequer, a linha. O presente passa a ser deduzido da presença a que o para-si, por sua estrutura incapaz de coincidir com qualquer objeto intencionado, simplesmente é. “A presença a... é uma relação interna do ser que está presente com os seres aos quais está presente”.30 É da presença da consciência a qualquer objeto que o presente se institui; a temporalidade é levada ao mundo pelo para-si. Para tanto, além da exigência da pré-reflexividade do cogito e da intencionalidade, a consciência deverá ser, também, negação. Todas as relações que a consciência estabelece, seja com o mundo ou consigo mesma, deverão ser negativas. É a negação que garante a relação interna entre a consciência que nega e o ser negado:

Assim, a presença do para-si ao ser pressupõe que o para-si seja testemunha de si em presença do ser como não sendo o ser; a presença ao ser é presença do para-si na medida em que este não é. Porque a negação não recai sobre uma diferença de maneira de ser que distinguisse o para-si do ser, mas sobre uma diferença de ser. É o que se exprime sucintamente dizendo que o Presente não é (Sartre, 1943, p. 167, tradução p. 176).

30 Sartre, 1943, p. 165 (tradução p. 174.

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Por isso a negação também é a origem das demais estruturas pelas quais Sartre supera o problema da temporalidade: é devido à relação interna entre o para-si e o objeto que a consciência é intencional (nada); é devido à negação que a consciência é fuga de si e do passado que ela tem-de-ser; por fim, é também negativamente que a consciência busca seus possíveis (seu futuro). Por isso, a consciência que não é acabará por ser a origem de todas as coisas e, mesmo, das estruturas do mundo, como é o caso da temporalidade; o nada de ser do para-si deverá, dessa forma, confundir-se com o tempo. Mas, como contrapelo dessa afirmação, Sartre não estaria afirmando que o tempo também é nada? Inicialmente, o passado existe a partir do presente, não como iluminação ou resquício (mancha) no presente, mas para o presente. O passado é aquilo que o para-si é sem possibilidade de coincidir com seu ser (foi) e, desse modo, está aberto ao presente. “O passado não é nada, também não é o presente, mas em sua própria fonte acha-se vinculado a certo presente e a certo futuro”.31 Por isso, do presente, tem-se a total possibilidade de acesso ao passado sem que haja qualquer confusão entre passado e presente; o passado infesta o presente, é verdade, mas na medida em que o presente é seu passado. Portanto, não adiantaria, como faz Husserl, pensar o passado num jogo de retensões como meio de preservá-lo como passado, afinal, isso requer que o cogito se dê, previamente, como instantâneo; sendo assim, não há mais como sair do cogito.32 Tampouco resolveria, como faz Bergson, que o passado fosse co-extensivo ao presente; isso não pode recuperar o tempo real porque confunde passado e presente: “não explicamos como o passado pode renascer e infestar-nos, em suma, como pode existir para nós”.33 Porém, se o passado apenas pode existir para o para-si (presente), como resolver essa contradição? Afirmando uma relação ontológica entre essas duas dimensões temporais pela qual o passado é um para-si recapturado e inundado pelo em-si; a relação com o passado é originária do para-si, é o para-si na medida em que ele se cristalizou no ser.34 Na mesma medida em que o para-si não pode

31 Sartre, 1943, p. 153 (tradução p. 162). 32 Sartre, 1943, p. 152 (tradução p. 161). 33 Sartre, 1943, p. 152 (tradução p. 160). 34 Sartre, 1943, p. 164 (tradução p. 173).

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coincidir com seu presente, também não coincide com seu passado; nem por isso pode deixar de sê-lo: o para-si não pode desligar-se de seu ser. Isso explica porque o encaminhamento da questão da temporalidade na filosofia de Sartre passa sempre pela crítica ao privilégio que outros autores dão à dimensão presente. Uma vez afirmado o presente, por mais que esse seja expandido, torna-se impossível recuperar o passado; ou, “se começamos fazendo do homem um insular, encerrado na ilha instantânea de seu presente (...) suprimimos rapidamente todos os meios de compreender sua relação originária com o passado”.35 O passado é o para-si que já não é mais e, por essa razão, mesmo que acessível, não há como mudá-lo, já que se tornou em-si para o presente. É dessa maneira que o para-si arrasta o passado que é seu e, todavia, não pode superá-lo nem dele se desgarrar: o passado é a contingência original do para-si. Ser para-si é fugir do objeto ao qual ele é presença a, e instaurar o presente (nada); no mesmo ato, ser para-si é escapar de qualquer possível identificação com a negação da negação (negar a impossibilidade de coincidir com aquilo que é negado no presente) e, dessa forma, empurrar a presença a si, instaurando seu passado. Mas, além desses dois ek-stases temporais, há ainda um outro: o para-si se faz existir tendo seu ser fora de si, no futuro (ainda não). Nesse sentido, o futuro se apresenta como aquilo que o para-si tem de ser e não pode ser, positivamente, o que quer que seja; há futuro porque o para-si, embora sendo fuga de seu presente e incapaz de reunir-se com seu passado, ele é para além de si (ele tem-de-ser seu projeto ontológico de ser-em-si-para-si). O presente é para-si, o passado é em-si (para-si cristalizado) e o futuro não é ainda;36 o futuro acontece porque o para-si tem-de-ser e não pode coincidir nem com seu passado nem com seu presente. “Assim, o futuro, como presença futura de um para-si a um ser, arrasta consigo o ser-em-si rumo ao futuro”.37 Há futuro porque, sendo

35 Sartre, 1943, p. 151 (tradução p. 160). 36 Sartre, 1943, p. 174 (tradução p. 183). 37 Sartre, 1943, p. 172 (tradução p. 181).

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negação, o para-si pode não sê-lo. Em resumo, a fenomenologia das três dimensões temporais mostra que o presente é o que o para-si é no modo de não ser; que o passado é o que o para-si é no modo de não ser mais; que o futuro é o que o para-si é no modo de não ser ainda. Porque o para-si está impossibilitado de coincidir com qualquer uma das dimensões temporais ele instaura a distância de si relativa a cada uma delas e, existindo fora de si, estabelece o tempo como temporalidade. Ainda com respeito à fenomenologia das dimensões temporais cabe uma pergunta: o que faz com que o para-si tenha de ser? Justamente sua estrutura de ser, qual seja, o para-si é o que não é e não é o que é. Com essa frase Sartre explicita a estrutura de ser do para-si, que não é seu presente à maneira de sê-lo, e é seu passado à maneira de não sê-lo; ser para-si é assumir, em seu ser, a contradição, uma vez que o para-si é o em-si (passado) na medida em que não coincide com ele, e é seu presente na medida em que dele foge. Mas para onde foge o para-si? Rumo a um ser que está no horizonte de ser do para-si, o ser que o para-si busca ser para realizar-se: o ser em-si-para-si. O para-si busca fundamentar seu ser na exata medida em que busca coincidir-se com esse ser; é o projeto de ser Deus que, no limite, dá sentido à temporalidade sartriana: “o futuro é o ponto ideal em que a compreensão súbita e infinita da facticidade (passado) do para-si (presente) e de seu possível (futuro) faria surgir, por fim, o Si como existência em-si do para-si”.38 Desse modo Sartre arranca a temporalidade do nada de ser do para-si. É certo que o para-si tem, no ato de seu surgimento, a instauração dos três ek-stases temporais; não há privilégio de um sobre o outro pois o surgimento do para-si (acontecimento absoluto) é, por esse mesmo ato, a instauração da temporalidade. O para-si é, ao mesmo tempo, seu passado (nadificado, já que é sem sê-lo), seu presente (é falta e arrasta seu passado como presente negado) e é seu futuro (busca ser em-si-para-si). Ser para-si é ser diaspórico, no sentido em que a temporalidade não é prévia ao para-si; a temporalidade se possibiliza na

38 Sartre, 1943, p. 172 (tradução p. 182). Ainda, “a eternidade que o homem procura

não é a infinidade da duração desta vã perseguição do si pela qual eu mesmo sou responsável; é o repouso em si, a temporalidade da consciência consigo mesma”. Sartre, 1943, p. 188 (tradução p. 198).

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estrutura do ser-para-si: o para-si é o ser temporal por excelência. Concluindo, encontra-se enfim a resposta para a unidade originária da consciência: “A temporalidade é uma força dissolvente, mas no âmago de um ato unificador; é menos uma multiplicidade real – que, em conseqüência, não poderia receber qualquer unidade e, portanto, sequer existiria como multiplicidade – do que uma quase-multiplicidade, um esboço de dissolução no núcleo da unidade”.39 Noutras palavras, o que promove a unidade da consciência é o nada que a separa de si e jamais pode ser superado; tal unidade é instaurada pelo surgimento da consciência e expressa pelo reconhecimento da temporalidade. Referências BERGSON, H. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: ed. Martins Fontes, 2006. CONTAT, M. e RYBALKA, M. Les Écrits de Sartre. Paris: ed. Gallimard, 1970. DESCARTES, R. Meditações e Cartas. Col. Os Pensadores. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973. HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Tradução Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: ed. Vozes, 1988. HUSSERL, E. Ideas relativas a una fenomenología pura y una filosofia fenomenológica. Tradução José Gaos. México: ed. Fondo de Cultura Económica, 1992. _______ Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Tradução Pedro M. S. Alves. Lisboa: ed. Imprensa Nacional, 1994. MOUTINHO, L. D. S. Sartre:Psicologia e Fenomenologia. São Paulo: ed. Brasiliense, 1995. SARTRE, J. P. A Imaginação. Col. Os Pensadores, p. 33. Tradução Luis Roberto Salinas Fortes. São Paulo: ed. Abril Cultural, 1978. _______.Consciência de Si e conhecimento de Si. Tradução: Pedro M. S. Alves. Lisboa: ed. Colibri, 1994. _______. Diário de uma guerra estranha. Rio de Janeiro: ed. Nova Fronteira, 1983.

39 Sartre, 1943, p. 181 (tradução p. 191).

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___________. Esboço para uma teoria das emoções. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2007. _______ L’ Être et le Néant. Essai d’ ontologie phénoménologique. Paris: ed. Gallimard, 1943. (No Brasil, tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis: ed. Vozes, 1997). _______. O Imaginário. Tradução Duda Machado. São Paulo: ed. Ática, 1996. _______ Une Idée Fondamentale de la Phénoménologie de Husserl: L’ Intentionnalite. Situations I. Paris: ed. Gallimard, 1947 (No Brasil, tradução de Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005).

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p.249-265

TRADUÇÃO

“Deus está sonhando você”:

Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno

Costica Bradatan* O ponto de partida de meu ensaio é uma afirmação paradoxal que o filósofo, poeta e romancista espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) fez – em seu ensaio Vida de Don Quijote y Sancho (1905) – que Dom Quixote, o personagem de Cervantes, é mais real e autêntico que o próprio Miguel de Cervantes. Em seguida, depois de discutir esta afirmação e analisar as implicações de um engenhoso artifício literário que Unamuno empregou em sua novela Niebla (1914), esboçarei algumas das possíveis conseqüências filosóficas que os conceitos literários de Unamuno poderiam ter sobre a compreensão da identidade fundamental do eu, e da natureza da condição humana em geral. O artigo divide-se em três partes: 1) a primeira parte é dedicada a discutir a acima mencionada alegação paradoxal em Vida de Don Quijote y Sancho; 2) a segunda parte trata principalmente do Capítulo XXXI de Niebla de Unamuno; e 3) na parte final tratarei do insight de Unamuno que a relação entre o eu e Deus é, propriamente falando, da mesma natureza que a relação entre um autor literário e os entes imaginários que ele cria. Além disso, tentarei situar o insight de Unamuno dentro de um contexto mais amplo da história das idéias, e apontar algumas de suas principais implicações filosóficas.

1. “Para falar a verdade, não se pode dizer que Dom Quixote é produto de Cervantes.” (Unamuno, 1967: III, 455). Esta é uma das idéias centrais que ocorrem, de várias formas e sob diferentes aspectos, do início ao fim de Vida de Dom Quixote e Sancho de Miguel de Unamuno. Na opinião de Unamuno, um personagem como Dom Quixote é uma criatura muito complexa, profunda e autentica para ser simplesmente o produto da imaginação de alguém. Menos ainda da imaginação de Cervantes. Frequentemente Unamuno é muito crítico a respeito da

* Professor do Departamento de Filosofia da Miami University, Oxford. E-mail:

[email protected]. Artigo publicado originalmente in Janus Head, 7(2), 453-467. Copyright © 2004 by Trivium Publications, Amherst, NY, gentilmente cedido para publicação em português. Tradução de Jaimir Conte.

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maneira de Cervantes tratar seus próprios personagens. Unamuno censura Cervantes por ter sido muito frequentemente movido, ao lidar com seus personagens, por tendenciosidade, preconceito e inveja, e por ter entendido mal o verdadeiro significado dos personagens do livro que ele escreveu: “Considero-me mais Quixotista que Cervantista, e... tentarei livrar Dom Quixote do próprio Cervantes, permitindo-me às vezes chegar até a discordar da maneira como Cervantes compreendeu e tratou seus dois heróis, especialmente Sancho.” (Ibid., 4). De certo modo, Cervantes enquanto pessoa não atinge as altas expectativas causadas em nós por Cervantes enquanto um autor, ou pelo menos pela complexidade e autenticidade humanas dos personagens de sua narrativa. De vez em quando, Unamuno chega até a usar uma linguagem tão forte quanto aquela revelada por seus comentários sobre o relato de Cervantes do “affair dos leões”: “Ah, abominável Cide Hamete Benengeli, ou quem quer que foi que escreveu sobre este feito, como é detestável e insignificante compreendê-lo (Ibid., 187). Em geral, do começo ao fim de seu livro Unamuno pede-nos repetidamente para não confundi-lo com um desses eruditos literários ou historiadores da literatura que, em sua estreiteza de espírito, consideram os principais personagens de Cervantes simplesmente em termos de “entes de ficção.” Ele constantemente nos reafirma seu compromisso de empreender uma abordagem completamente diferente de Dom Quixote: “Não desejo ser confundido com a perniciosa e pestilenta seita dos homens vãos, repletos de falsa erudição histórica, que ousam manter que nunca houve tais homens como Dom Quixote e Sancho no mundo.” (Ibid., 189). Profundamente marcado pela “injustiça” que tem sido feita aos personagens de Cervantes durante séculos por gerações de eruditos e historiadores literários, Unamuno decide aventurar-se na difícil tarefa de revelar o verdadeiro – supremo e absoluto – significado da novela Dom Quixote. Uma tarefa difícil, certamente – se tivermos em mente que, para Unamuno, inclusive o próprio Cervantes interpretou completamente mal seus personagens. De maneira significativa, o título completo da primeira edição do livro de Unamuno é: A vida de Dom Quixote e Sancho de acordo com Miguel de Cervantes Saavedra, explicada e comentada por Miguel de Unamuno (Vida de Don Quijote y Sancho,

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según Miguel de Cervantes Saavedra, explicada y comentada por Miguel de Unamuno). Ao analisar detalhadamente o modo de vida de Dom Quixote, seu temperamento e caráter, seus feitos, pensamentos, comportamento habitual, suas opiniões e argumentos, seu “contexto intelectual” e sua verdadeira Weltanschauung, Unamuno conclui que há boas razões para acreditar que Dom Quixote foi “um louco sensato e não um produto da ficção, como comumente se acredita. Ele foi um daqueles homens que comeram, beberam, dormiram e morreram.” (Ibid., 56). O que significa dizer que, para Unamuno, Dom Quixote adquiriu tal grau de sólida realidade e inconfundível “concretude” que pode perfeitamente ser considerado um hombre de carne y hueso (“um homem de carne e osso”), a medida suprema pela qual Miguel de Unamuno avalia a autenticidade humana. De maneira interessante, ao estabelecer se alguém existe ou não autenticamente, como um “homem de carne e osso”, Unamuno faz uso de um critério pragmático: operari sequitur esse (“a ação segue o ser”), um princípio de acordo com o qual se pode dizer que alguma coisa, ou alguém, existe na medida em que produz efeitos visíveis e duradouros sobre o mundo circundante e/ou sobre as mentes de seus próximos, seja no presente ou no futuro: “só o que age existe e o que existe está agindo; se Dom Quixote influencia aqueles que o conhecem, e produz obras vivas, então Dom Quixote é muito mais histórico e real que todos esses homens, sombas com nomes, que se admiram com... as crônicas...”(Ibid., 131). Enquanto tais, as pessoas que aparentemente viveram algum tempo atrás, inclusive aquelas cujos nomes podemos ainda encontrar mencionados em documentos e arquivos históricos, não existem realmente se elas não afetam, de uma maneira séria, nossas vidas, destinos e maneiras de pensar. Elas são meramente “sombras com nomes”, sem qualquer realidade ou significado que seja se não acrescentam alguma coisa a nossas vidas e não significam alguma coisa para nós. O esquecimento é nossa maneira de puni-las. Por outro lado, existem aquelas figuras do passado que estão ainda moldando e alimentando fortemente nossas vidas, aquelas que – de uma maneira ou outra – estão ainda influenciando nossas idéias e teorias, nossos ideais e maneiras de viver. Neste processo elas são, de acordo com Unamuno, trazidas à verdadeira existência. E a lembrança é a nossa maneira de

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recompensá-las. Finalmente, depois de ter estabelecido este princípio para sua conclusão final, Unamuno tem de reconhecer abertamente que: “Na eternidade, as lendas e ficções são mais verdadeiras que a história.” (Ibid., 132). Como um resultado, convencido que Dom Quixote, por meio de todos seus ditos e feitos, revela uma complexidade humana que Miguel de Cervantes não poderia ter sido capaz de compreender – menos ainda de inventar – Unamuno passa a mostrar como temos de separar o autor do seu personagem. Tecnicamente, como é bem conhecido, Cervantes usou em sua novela o velho truque retórico de atribuir a composição do livro a alguém estranho, a saber, a um tal Cide Hamete Benengeli, que supostamente relatou de primeira mão os feitos de Dom Quixote, Cervantes sendo apenas a pessoa que teve a sorte de “descobrir” ou “deparar-se com” o antigo manuscrito. Tudo o que Cervantes subseqüentemente fez foi “obra editorial”, por assim dizer. E é precisamente sobre esta insincera “confissão” que Cervantes fez sobre a composição de Dom Quixote que Unamuno baseia seu devastador ataque a Cervantes. Ele faz isso de uma maneira muito irônica, e – como veremos – com resultados inesperados.

Não há dúvida de que no Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha Miguel de Cervantes Saavedra exibe um gênio muito acima do que poderíamos ter esperado dele em vista de suas outras obras... De modo que podemos razoavelmente acreditar que o historiador árabe Cide Hamete Benengeli não é simplesmente um artifício literário, mas antes encerra uma profunda verdade, a qual é que a história foi ditada a Cervantes por outro homem... o relato era real e verdadeiro, e... o próprio Dom Quixote, disfarçado como Cide Hamete Benengeli, ditou a narrativa a Cervantes. (Ibid., 322).

Como tal, não somente o papel de Cervantes na gênese da novela fica drasticamente minimizado, mas – o que é mais importante – a própria substância e estrutura do Dom Quixote o exclui: propriamente falando, não há lugar para ele na produção e estrutura do livro, pois um de seus personagens simplesmente ditou a história a seu fictício e suposto autor. Acontece que uma “transferência de realidade” entre o autor e seu personagem toma lugar, com o resultado paradoxal

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de que no fim o personagem imaginado chega a parecer mais real e mais autêntico do que o autor que o imaginou:

embora muitas vezes consideremos que um escritor é uma pessoa real, verdadeira e histórica porque o vemos em carne e osso, e consideremos os personagens que ele inventa em suas ficções como puramente imaginários, a verdade é exatamente o contrário. Os personagens são reais, eles é que são os seres autênticos, e eles fazem uso da pessoa que parece ser de natureza humana a fim de assumir forma e existir aos olhos dos homens. (Ibid., 323)

Consequentemente, poder-se-ia dizer (e Unamuno o faz repetidamente) que, no fim, é Dom Quixote que, propriamente falando, inventou Cervantes. Ele é o criador de Cervantes exatamente como Hamlet é, para citar outro personagem de Unamuno em Niebla, “um dos protagonistas que inventaram Shakespeare” (uno de los que inventaron a Shakespeare) (Unamuno 1976: VI, 215). Assim sendo, se alguém olhar este processo de desrealizar a realidade de um ângulo diferente, mais de senso comum, torna-se evidente que toda esta demonstração deveria ser considerada, por assim dizer, com certo cuidado – mais precisamente, como uma brilhante demonstração per reductionem ad absurdum. A suposição fundamental sobre a qual tal controvérsia se baseia é, eu suponho, a noção que, basicamente, a narrativa – junto com seus princípios, regras, padrões, realizações, etc. – pode perfeitamente ser vista com um meio através do qual a humanidade poderia ser de algum modo definida ou, em todo caso, melhor compreendida. Como num espelho, dentro de uma narrativa podemos encontrar encerradas as próprias condições de possibilidade da humanidade, nossa própria definição dela mais sintética, abrangente e autêntica. O que significa dizer: existe uma sutil dialética entre imaginar um eu (ou seja, concebê-lo em termos puramente teóricos e especulativos) e traduzi-lo em situações existenciais precisas. Para colocar isso de outra maneira, a lógica situacional revelada por um enredo literário bem construído e cuidadosamente elaborado tem talvez alguma coisa importante a dizer sobre nossos conceitos fundamentais de realidade do eu, revelando nossas projeções daquilo a que o eu é semelhante. Um personagem literário bem construído não pode agir arbitrariamente (precisamente

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porque ele é bem construído): ao contrário, ele terá de agir coerentemente, e – por causa disso – todos os seus movimentos, todos os seus feitos dentro da narrativa – de uma maneira inconfundível – serão indicativos dos limites últimos do conceito de humanidade. A fim de serem convincentes, os personagens literários devem ser já exemplares; eles não podem dar-se ao luxo de ser “simplesmente” humanos, eles devem ser humanos em seu mais alto grau. E dadas precisamente as regras deste tipo de determinação, pode-se dizer que às vezes “personagens fictícios suplantam a realidade de seus criadores” (Jurkevich, 1991: 33). De certo modo, então, uma vez que o autor tem de estritamente seguir as regras da construção narrativa ao criar seus personagens – caso contrário ele não produzirá criaturas plausíveis – pode-se dizer que ele é subordinado a elas ou dependente delas. Preso como ele se encontra no mundo específico de seus personagens, um mundo dominado por regras e princípios específicos, o autor não tem nenhuma escolha senão ser seu “crônista” fiel. Ironicamente, esta humilde situação em que o autor se encontra é uma conseqüência imediata, embora paradoxal, de sua grandeza como um autor. Quanto mais obediente ele é ao seguir a lógica interna dos mundos (das pessoas) que ele cria, melhor ele é como um autor de ficção. Aliás, isso é exatamente o que Unamuno tem de admitir: “depois de sua concepção inicial, os personagens têm uma maneira de impor-se sobre seu autor; eles tornam-se autônomos no sentido de que seu autor não pode realmente controlá-los.”(Basdekis 1974: 54)1. Em consequência, podemos perfeitamente chegar a dizer que certos personagens são mais reais que estas ou aquelas pessoas, talvez mais reais e mais importantes que seu próprio autor: isso acontece precisamente porque o personagem literário atua de maneira mais coerente – em termos de plausibilidade, razoabilidade, lógica situacional, etc. – que um ser humano “real”

1 Ao fazer um comentário sobre o Dom Quixote de Cervantes ele confessa num dado

momento: “para minha vergonha, devo admitir que tenho às vezes inventado seres imaginários, personagens de romances, com o objetivo de colocar em suas bocas palavras que eu não ousaria colocar em minha própria, e fazê-las dizer como que de brincadeira alguma coisa que eu considerei muito seriamente.”(Unamuno, 1967: III, 14).

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atuaria numa situação similar.2 Obviamente, de acordo com uma tal visão, a narrativa passa a ser muito mais que (se não alguma coisa diferente de) meramente uma “obra literária”. Longe de ser simplesmente um espelho parcial da “vida real”, uma narrativa passa agora a desempenhar o papel de um critério para a autenticidade e significatividade da vida. De certo modo, a literatura deixa simplesmente de “refletir” a vida, mas ela valida, ou ainda cria, a vida.

2. Como um comentador certa vez disse, “Névoa [Niebla] é a extensão lógica, a tradução para a ficção de todos os pronunciamentos teóricos em Vida de Dom Quixote e Sancho.” (Basdekis 1974: 52). Nesta novela podemos encontrar em uso por assim dizer, personificados em situações e enredos literários concretos, alguns dos insights teóricos que Unamuno desenvolveu no ensaio A vida de Dom Quixote e Sancho. Niebla é uma estória muito mais complexa do que eu posso descrever aqui, mas – para os propósitos do presente ensaio – permitam-me apenas extrair e discutir em alguma extensão um capítulo isolado, a saber, o Capítulo XXXI. Neste capítulo ocorre que um personagem do livro, um tal Augusto Pérez, antes de vir a cometer suicídio, decide fazer a coisa mais inesperada que jamais passou pela cabeça de um personagem literário em toda a história da moderna narrativa: isto é, sair da novela e fazer uma visita de despedida a seu verdadeiro criador, ao próprio Miguel de Unamuno. Este é, como Carlos Blancos Aguinaga coloca, um “capítulo extraordinário – e justamente famoso” onde, “as convenções da Ficção, e, portanto, da existência, são quebradas”, um capítulo de uma “originalidade surpreendente” (Blancos Aguinaga 1964: 1940), que terá uma

2 Naturalmente, isso porque, em última instância, é o leitor que “constrói” o

personagem literário do livro que ele está lendo: “em últimos termos a essência intrínseca de uma criatura imaginária deve ser formada pelo leitor, que por sua vez descobre alguma coisa em si mesmo… o papel do autor tem sido minimizado, pois o leitor torna-se o verdadeiro autor das personagens imaginárias.”(Basdekis 1974: 55) Mas, dentro do espaço limitado deste artigo, procurei deixar de lado todos estes problemas da recepção, da contribuição do leitor para a construção do enredo, etc.

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influência decisiva sobre o futuro da narrativa no século XX. O singular encontro acontece no escritório de Unamuno, na Universidade de Salamanca, onde então ele atuava como professor de filologia, reitor da universidade, e profeta nacional espanhol (algo semelhante àquilo que Tolstoy tinha chegado a ser na Rússia algumas décadas antes):

Naquele tempo, Augusto tinha lido um ensaio meu em que, ainda que de passagem, falava do suicídio, e causou tal impressão sobre ele... que não quis deixar este mundo sem conhecer-me e conversar um pouco comigo. E, deste modo, ele veio a Salamanca, onde faz mais de vinte anos eu vivo, a fim de me visitar (Unamuno 1976: VI, 216-17)

E aí, na sala de Unamuno na Universidade, nós nos tornamos testemunhas deste notável tour de force literário: ou seja, uma conversa vívida e sofisticada entre um personagem literário e o próprio autor do livro dentro do qual ele desempenha o papel de um personagem. Eles falam sobre obras literárias e entes de ficção, sobre a natureza última dos entes de ficção e que tipo preciso de existência eles possuiriam. Eles conversam sobre deixar estes entes mortos ou mantê-los vivos. É desta maneira que, entre outras coisas, Augusto Pérez ouve de Miguel de Unamuno a insuportável verdade que sua constituição ontológica última é de tal natureza que ele não pode jamais... cometer suicídio: “a verdade... é esta: você não pode matar-se porque não está vivo, e que não está vivo, nem tampouco morto, porque você não existe... Você não é ... mais que um produto de minha imaginação e da imaginação de meus leitores...” (Ibid., 218-19). Em seguida, numa tentativa de confortá-lo, Unamuno tenta ensinar a seu personagem algumas das coisas que nós já discutimos acima, isto é, que “[um] romancista ou dramaturgo justamente não pode fazer qualquer coisa que ele imagina com um personagem que ele cria. Nem pode um ente saído de um romance fazer qualquer coisa que um leitor poderia esperar dele, de acordo com os preceitos básicos da arte...”(Ibid., 221). No que diz respeito ao futuro de Augusto, não há nada que seu criador possa fazer por ele, pois as regras estritas da construção narrativa têm sua parte a desempenhar neste caso: “Já está escrito. Está nos livros. Seu destino está determinado e você não pode viver mais. Já não sei o que fazer com você. Deus, quando não sabe o

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que fazer conosco, mata-nos”. (Ibid., 226). Nascido milagrosamente da imaginação de alguém, o personagem é inevitavelmente marcado pela precariedade, ambigüidade e não substancialidade que caracterizam as coisas imaginárias: “o ente fictício... visto que ele é um sonho ou narrativa, é real. Ele possui uma vida ou existência temporal do mesmo modo que um ser humano, mas, visto que ele é o resultado de uma fingere, um sonho do autor, ele não tem nenhuma substância... e cai no vazio, no nada.”(Marías 1966: 93). Então, outra coisa significativa – habilmente aludida nas passagens Unamunianas previamente citadas – ocorre em suas conversas: isto é, a noção que, de certo modo muito similar àquela em que um personagem tem seu destino “determinado”, o próprio autor depende, por sua vez, de alguém diferente: de seu Autor divino, ou – mais precisamente – de Deus o “sonhar”. O autor não é um senhor auto-suficiente, independente e livre para fazer qualquer coisa que ele deseja, mas ele é “escrito” por alguém diferente. Propriamente falando, ele não é senão um personagem de outra estória. Augusto Pérez:

Você quer me matar como um ente de ficção? De modo que hei de morrer ente de ficção? Pois bem, meu senhor criador Dom Miguel, também você morrerá. Você retornará ao nada de que saiu...! Deus deixará de sonhar você! Você morrerá... ainda que não o queira; morrerá você e morrerão todos os que lerem minha história, todos ... Entes de ficção como eu; o mesmo que eu! ... você, meu criador, meu caro Dom Miguel, você não é mais que outro ente “nivolesco”. (Unamuno 1976: VI, 226).

Carlos Blancos Aguinaga, ao comentar este capítulo, chega a dizer que “a coisa mais importante sobre este capítulo, a mais óbvia e seguramente a menos observada, não é que Augusto tenta libertar-se do mundo da Ficção, mas que, nele, um novo personagem finalmente deixa sua névoa e entra no romance: um personagem com o nome de Miguel de Unamuno.” (Blancos Aguinaga 1964: 197)3. Esta é

3 Carlos Aguinaga inclusive concebe um cenário fascinantemente engenhoso para

tornar esta tese mais convincente: “podemos perfeitamente imaginar um dia em que um ser humano encontrará em alguma biblioteca desconhecida uma obra estranha e antiga com o título de Niebla, autor desconhecido: qual então será a diferença entre Miguel de Unamuno e Augusto Pérez?”(Blancos Aguinagua 1964: 198).

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realmente uma coisa importante sobre este capítulo – um dos mais engenhosos e inovadores artifícios literários empregados em toda narrativa moderna. (Gostaria apenas de lembrar que Seis personagens à procura de um autor de Luigi Pirandello apareceram, publicados e encenados, uns sete anos depois de Névoa, em 1921, assim como as obras de Borges apareceriam somente muito depois. E igualmente todos os escritos de Mikhail Bakhtin sobre a autonomia do herói literário.) Entretanto, existe nesta passagem algo mais importante e conseqüente do que o fato que Unamuno entra no romance como justamente outro ente de ficção. De um ponto de vista filosófico, eu diria que a coisa mais significativa sobre este capítulo não é que, nele, Miguel de Unamuno passa a ser um mero personagem literário, mas que a própria vida torna-se uma narrativa, uma história com um Autor que a “narra”, uma narrativa com um enredo específico e personagens específicos.4 Dedicarei a última parte de meu ensaio para discutir algumas das principais implicações deste insight particular de Miguel de Unamuno.

3. A noção de que nós seres humanos podemos perfeitamente ser apenas atores em alguma peça ou brincadeira, sem qualquer verdadeira autonomia e auto-suficiência, totalmente dependentes de um magister ludi, de alguém que é encarregado de organizar, iniciar e terminar a brincadeira, é certamente um dos mais antigos temas no mundo europeu. Por exemplo, em suas Leis (803 c-d) Platão diz em algum momento que

enquanto Deus é a verdadeira meta de todo esforço beneficente sério, o homem ... foi construído como um brinquedo por Deus, e isso é, na realidade, o que há de melhor nele. Todos nós, então, tanto homens como mulheres, devemos nos conformar com nosso papel e passar a vida

4 Na verdade, Blacos Aguinaga alude a este fato: “no final das contas esta é a

exemplaridade, a lição de Niebla. Um belo exemplo de como a tradição novelística em uso numa situação moderna pode forçar a imaginação a aproximar-se a ponto de não retornar, para aí revelar o significado do jogo de Ficção, a precariedade da Existência.”(Blancos Aguinagua 164: 205).

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representando nossa peça o mais perfeitamente possível... Deveríamos passar nossas vidas jogando... com o resultado do talento obter a graça dos céus... (Platão 1961: 1375).

Mais tarde o tema assumiu várias formas e passou a ser conhecido sob vários nomes, todos eles reunidos em torno da mesma intuição central: que esta vida que vivemos não é tão real e substancial como ela parece ser, mas somente uma existência de segunda ordem. Quer na forma de theatrum mundo (“O teatro como um ‘teatro do mundo’, uma representação do cosmos em que o homem desempenha seu papel...[Yates 1969: 165]), quer na forma de mundo como peça/fábula (mundos est fabula), ou naquela da vida como um sonho (la vida est sueño), o tema tem preocupado vários artistas, escritores, filósofos, eruditos, etc. desde a remota antiguidade Greco-romana, e tem formado à sua própria maneira a fisionomia da mente Ocidental. Por algumas razões, ela teve uma grande renovação durante a Renascença (“o teatro do mundo como um emblema da vida do homem era um topos difundido no Renascimento, quer na forma de teatros da memória, ou de emblemas, ou de discursos retóricos.”[Ibid., 165]), para tornar-se “um lugar comum no pensamento barroco” (Nancy 1978: 636). É de fato um lugar comum no mundo de Shakespeare (“O mundo é um palco/ E os homens e mulheres meros atores”), mas foi provavelmente o teatro espanhol durante o Siglo d’Oro que mais o empregou. Por outro lado, no que diz respeito à história da filosofia num sentido mais estrito, o tema tem ocorrido algumas vezes. Limitar-me-ei aqui, muito brevemente, somente a dois exemplos. Primeiro, seria suficiente dizer que o Deus de George Berkeley, que está “percebendo” todas as coisas no mundo tornando-as existentes e inteligíveis, é de uma maneira suprema Narrador ou um Sonhador do mundo. O mundo existe somente na medida em que Deus é consciente dele. Além disso, Berkeley explicitamente diz que o mundo é um “discurso divino”, um sistema de signos e símbolos, por meio do quais, cuidadosamente compreendidos, podemos apreender alguma coisa sobre seu Autor.5

5 Mais sobre esta questão em meu ensaio “George Berkeley’s ‘Universal Language of

Nature’.” (Bradatan, 2005).

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Levando esta noção à sua conclusão final, existe um certo sentido em que o mundo de Berkeley poderia ser visto como uma aparência semelhante a um sonho, como a frágil epifania de nosso próprio pensamento. William Butler Yeats compreendeu de maneira penetrante que o mundo de Berkeley é em última instância dependente de nós o “sonharmos”.

God-appointed Berkeley that proved all things a dream,

That this pragmatical, preposterous pig of a world, its farrow that so solid seem

Must vanish on the instant if the mind but changes its them (Yeats 1965: 268)

Em segundo lugar, poder-se-ia perfeitamente ver a filosofia de Schopenhauer como pertencendo à mesma tradição de pensamento em que um divino magister ludi está incessantemente fazendo e desfazendo este nosso mundo. Como ele amargamente a vê, a Wille é alguém ou alguma coisa que todo o tempo faz uso de nós, “brincando” cruelmente e ironicamente conosco, sem deixar-nos qualquer liberdade ou autonomia verdadeira. No segundo volume de Die Welt als Wille und Vorstellung Schopenhauer fala abertamente sobre este mundo como alguma coisa “semelhante a um sonho”, para não dizer nada aqui sobre seus entusiásticos empréstimos da filosofia indiana, especialmente a noção de Maya. Portanto, os insights de Unamuno de que existimos somente na medida em que Deus está nos sonhando ou contando “nossa estória”, e que nossa constituição ontológica última é determinada pela natureza dos papéis que desempenhamos dentro da narrativa divina (ou representamos, ou jogamos), não são necessariamente originais em si mesmos. Além disso, considerando alguns dos fatos sobre sua personalidade, afinidades, sensibilidade, educação, e tendo em mente o complexo e rico contexto histórico e cultural diante do qual o pensamento de Unamuno emergiu, Carlos Blancos Aguinaga chega ainda a concluir que Unamuno tinha, de certo modo, de chegar a empregar abertamente tal tema:

Na qualidade de um homem preocupado com a aparente falta de substancialidade de sua própria existência, obcecado com a impossibilidade

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da verdadeira comunicação…, e preocupado com o cultivo de sua própria imagem como uma coisa diferente dele mesmo, era simplesmente natural que Unamuno, um espanhol imerso em sua própria tradição, se voltasse para as obras de Calderón para tomar emprestadas as duas metáforas centrais de Niebla (Vida-Sueño; teatro del mundo) e que ele se deleitasse na totalidade Barroca do Engaño: Vida como Ficção. (Blancos Aguinaga 1964: 203-4)

O que é não obstante original em seu caso é precisamente seu patetismo e acento dramáticos. A vida como um sonho de Deus (com toda a ambiguidade, precariedade e completa falta de substancialidade que a palavra “sonho” implica) é para Unamuno não meramente um tema literário, ou algum artifício retórico a ser empregado de maneira neutra nas obras de ficção, mas uma das coisas mais trágicas sobre a natureza humana. Pois “Deus cessará de sonhar você!” significa automaticamente: “Você morrerá”. Se Deus despertar, muda o tema de seus sonhos, ou por alguma outra razão não nos sonhará nunca mais, o que necessariamente nos levará de volta ao nada. Esta foi para Unamuno não apenas uma matéria de exercício literário, mas uma fonte central de angústia e desespero durante toda sua vida, e deveria ser considerada na mais estreita conexão com sua obra filosófica El Sentimiento Tragico de la Vida (1911) e outras obras filosóficas. Que ele não considerou este tema em termos simplesmente retóricos é provado, por exemplo, por aquilo que ele confessa a um amigo numa carta privada (a Walter Starkie, datada de Outubro de 1921): “Afirmo que somos um sonho de Deus. Deus está nos sonhando e virá o dia em que ele despertará. Deus está sonhando. É melhor não pensar nisso, mas continuar a imaginar que Deus está sonhando.” (Unamuno 1967: III, xxxiv). A partir do nosso entendimento do que um ente de ficção é nós derivamos a aguda consciência daquilo que é o caso quanto ao que diz respeito à natureza fundamental de nossos eus: ou seja, compreendemos o fato que somos ontologicamente precários e incertos, sem densidade e qualquer fundamento mais profundo. O que está por trás do insight de Unamuno é o indizível fato que nós humanos somos, na melhor das hipóteses, simples ficções. É verdade, “ficções de uma ordem superior”, nascidos da mente de um Autor absolutamente nobre, mas não obstante ficções. O que significa dizer: somos “seres” somente de uma

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maneira irônica, criaturas ontologicamente dessaraigadas e dependentes. Precisamos de alguém diferente para nos sonhar, ou para contar nossa estória, para conferir existência a nós ao simplesmente ter-nos em sua mente. Dentro de tal contexto, a obra de ficção passa a ser vista como uma forma mais conveniente e mais elegante a partir da qual somos moldados. Ao estudar cuidadosamente a obra de ficção, a maneira como ela está sendo produzida, desenvolvida e estruturada, podemos obter um melhor entendimento de nossa própria “condição humana”.

Se passarmos [do domínio da ficção] para a esfera da realidade do homem verdadeiro encontraremos uma situação análoga: visto do ponto de vista de Deus, o homem também carece de substancialidade e depende de seu criador… a realidade humana também aparece como um sonho da divindade, como ficção de uma ordem superior capaz de produzir ficções de uma ordem secundária, que são aqueles chamados entes fictícios. (Marías 1966: 93)

Há, entretanto, algo que nos pode “salvar”, por assim dizer, algo que pode compensar nossa precariedade ontológica. Ainda que Unamuno não fale explicitamente sobre esta forma particular de “salvação”, considero como sendo uma das consequências lógicas de sua noção em Niebla que Deus nos está “sonhando”, que não passamos de “personagens” na estória cósmica de Deus. Minha interpretação avança como segue. Considerando que estamos entre um Deus que nos cria apenas por meio do sonho e o denso nada (nada) do qual tentamos sair fora, parece que a única maneira razoável de dar sentido à nossas vidas é contar estórias e imaginar a vidas dos outros (nossas vidas não vividas?), produzir/sonhar narrativas e torná-las conhecidas de nossos vizinhos, criar por nossa conta entes fictícios e mundos fictícios. É verdade: do ponto de vista exclusivo de Deus, somos feitos da mesma substância de que os sonhos são feitos. Não obstante, precisamente por nossa habilidade para sonhar/contar estórias, ou seja, espelhar e multiplicar o mundo de Deus, nós não estamos completamente perdidos. Como Unamuno coloca, “narrar a vida é a maneira mais profunda de vivê-la”. Desta maneira a literatura deixa de ser simplesmente uma “prática cultural” como qualquer outra, mas de algum modo passa a adquirir o

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status privilegiado de uma técnica soteriológica. Pois, fazendo isso, criando mundos fictícios, praticamos uma forma de imitatio Dei, imitação de Deus. Feitos como somos “à Sua imagem e sua semelhança”, estamos fadados, em nossos feitos, a “imitar” Deus e sua maneira de lidar com o mundo. Existe em nós uma necessidade primordial de contar estórias, de imaginar e tecer narrativas, e – de acordo com esta linha de pensamento – deveríamos tomar esta necessidade como, por assim dizer, a “marca registrada” que Deus imprimiu em nós. O ato de “sonhar” o mundo por parte de Deus, quando traduzido em termos humanos, toma a forma de nossas “narrativas”, estórias, dramas, etc. Aquilo que era previamente visto como nossa fraqueza fundamental poderia converter-se em nossa força mais expressiva. Considerada deste ângulo particular, a história humana – como uma história acompanhada em toda parte por mitos, estórias e grandes narrativas – mostra-se como uma tentativa contínua de imitar o processo divino através do qual o mundo está sendo trazido à existência. Ao trazer mundos fictícios à existência nós seguimos, de certo modo, o exemplo de Deus. Mais do que isso, este deveria ser considerado como o consolo metafísico mais significativo a que temos acesso: ou seja, que – por sermos narradores da vida – somos de alguma maneira deuses en miniature, exemplos vivos de Deus. É verdade, nós mesmos somos “entes fictícios”, mas – devido a nossa capacidade de praticar a divina arte da narrativa – somos eventualmente “salvos” e obtemos certa dignidade e base ontológica. Pois as estórias que contamos, as narrativas que tecemos e os mundos ficcionais que criamos são a prova viva de que, no final das contas, estamos mais próximos de Deus que do nada, e de que aquilo que fazemos pode ser significativo. Por meio do próprio ato de contar uma estória estamos transcendendo a nós mesmos no sentido de que, ao contar essa estória, apontamos para o supremo Autor, para o Narrador divino. Isso torna um mito, porquanto uma estória teológica, não apenas uma estória sobre Deus, mas – indiretamente, em virtude do fato que mitos são possíveis – uma prova oblíqua que Deus existe. Uma consequência da analogia acima referida entre o ato de Deus nos sonhar e o nosso ato de contar estórias e tecer narrativas é que a simples

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existência do mito pode perfeitamente ser vista como um “sinal” que Deus deixa no mundo. Gostaria de concluir este ensaio lembrando ao leitor de certa “ficção” de Borges, provavelmente o mais influente dos discípulos de Unamuno. Este texto muito curto (que no original em espanhol tem um título em inglês: Everthing and Nothing) é sobre a vida e a morte de William Shakespeare, sobre o que ele fez e o que ele não fez em sua vida, e – de maneira mais importante – sobre o significado supremo da vida de um autor. Perto do final desta (de fato muito Borgesiana) biografia de Skakespeare, nós nos deparamos com a seguinte nota:

A história acrescenta que, antes ou depois de morrer, encontrou-se diante de Deus e Lhe disse: Eu, que tantos homens tenho sido em vão, quero ser um, ser eu. A voz de Deus o contestou de dentro de um redemoinho: Eu tampouco sou; eu sonhei o mundo como você, Shakespeare, sonhou sua própria obra, e entre as formas de meu sonho está você, que como eu era muitos e, contudo, ninguém. (Borges 1998: 320).

Na realidade, a versão inglesa não transmite toda a força retórica da fala de Deus como ela está presente no original espanhol. Pois no final Deus não diz simplesmente “Shakespeare”, mas “meu Shakespeare” (mi Shakespeare), ironicamente enfatizando o caráter semelhante a um sonho da própria existência de Shakespeare: yo soñé el mundo como tú soñaste tu obra, mi Shakespeare, y entre las formas de mi sueño estás tú, que como yo eres muchos y nadie. (Borges 1960: 45) Quando se chega aos significados supremos, estamos mais perto de Deus do que estamos ordinariamente inclinados a acreditar. Tanto Deus como Shakespeare são sonhadores: o sonho do primeiro toma a forma do mundo, com nós mesmos nele, e o sonho do último toma a forma de vários contos, mitos e narrativas que, tomados em conjunto, tornam nossas vidas no mundo de Deus um pouco mais suportável. Referências BRADATAN, C. (2005). George Berkeley’s “Universal Language of Nature’.” In K. van Berkel & A. Vanderjagt (Eds.), The book of nature in modern times. Leuven: Peeters Publishers. BASDEKIS, D. (1974). Unamuno and the Novel. Estudios de Hispanófila, 31.

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 267-296

O tema do “pecado original” na teoria do conhecimento de Nicolau de Cusa

Gianluca Cuozzo* Tradução:

Íris Fátima da Silva** e Edrisi Fernandes***

Resumo: Nicolau de Cusa (1401-1464) ao acenar a dupla possibilidade de fazer descender o malum mundi ou do pecado atual ou da culpa original, afirma que “este pecado pode ser muito bem aquele da origem, da maneira que aquele que é concebido pela mãe no pecado tem a sua existência originada na impureza e na volúpia da carne”. Então, prossegue o Cusano, “dado que todos, a partir de Adão, foram concebidos de tal modo pela mãe segundo a vontade de um homem [...], por isso nascemos filhos da ira e temos o espírito de concupiscência da carne [...] e desta inclinação ao mal, que sentimos desde a adolescência; conhecemos que não somos movidos pelo espírito bom de Deus”. Palavras-chave: Nicolau de Cusa, Pecado Original, Malum mundi Abstract: Nicholas de Cusa (1401-1460) to wave the double chance to take off the malum mundi or the current sin or guilt of original, He says that "this sin can be very well that the origin, the way they are mother is conceived in sin by its existence has caused the impurity and the lust of the flesh”. Then, continuing Cusano, because everyone, from Adam, were designed so the mother according to the will of one man [...], why children born of anger and we have the spirit of lust of meat [...], and this inclination to evil, we feel that since adolescence; know that we are not moved by the good spirit of God”. Keywords: Nicholas de Cusa, Malum mundi, Sin or guilt of original

* Professor Associado de filosofia teorética – Università degli studi di Torino. Título

original: Il tema del “pecato originale” nella teoria della conoscenza di Cusano e-mail: [email protected]

** Mestre em Filosofia pela UFRN. E-mail: [email protected]. *** Professor e doutorando em Filosofia pela UFRN. E-mail: [email protected].

Tradução recebida em 09.09.2008 e aprovada em 28.11.2008.

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Nota bibliográfica As obras de Nicolau de Cusa foram citadas diretamente no texto, entre parênteses, segundo a edição crítica da Academia das Ciências de Heidelberg (NICOLAI DE CUSA Opera omnia, iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita) em vias de publicação pela Editora Felix Meiner em vinte e dois volumes. A abreviação da obra citada é seguida em algarismo romano pela indicação do livro ou do capitulo; além disso, depois do ponto e vírgula segue, sempre em algarismo arábico, a página da tradução italiana à qual foi feita a referência. A tal critério fazem exceções somente os sermões e o epistolário cusano, cujas edições estarão indicadas em notas de rodapé. Aqui em seguida são dadas as abreviações das obras citadas de Nicolau de Cusa (segundo a numeração progressiva da Opera omnia) e as traduções italianas adotadas: DI = De docta ignorantia, traduzida por E. Hoffmann e R. Klibansky in Opera omnia, vol. I, Leipzig, 1932; trad. it. de G. Santinello (in Cusano, La dotta ignoranza, Le congetture), Milão, Rusconi, 1988 (= s) e ou de G. Federici Vescovini (in Nicolò Cusano, La dotta ignoranza), Roma, Città Nuova, 1991 (= v); ApDI = Apologiae doctae ignorantiae, traduzida por R. Klibansky, in Opera Omnia, vol. II, Leipzig, 1932; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, ed. bilíngüe latim-italiano), vol. II, Bolonha, Zanichelli, 1980; Coni. = De coniecturis, traduzida por J. Koch e K. Bormann, in Opera omnia, vol. III, Hamburgo, 1972; trad, it. de G. Santinello (in Cusano, La dotta ignoranza, Le congetture, cit.) (= s) e ou de G. Federici Vescovini (in Opere filosofiche di Nicolò Cusano), Turim, Utet, 1972 (= v); Deus absc. = De Deo ascondito, in Opuscola I, traduzida por P. Wilpert, in Opera omnia, vol. IV, Hamburgo, 1959; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II (= s) e ou de L. Mannarino (in Nicolò Cusano, Il Dio nascosto), Bari, Laterza, 1995 (= m); Quaer. = De quaerendo Deum, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II (= s) e/ou de L. Mannarino (op. cit.) (= m); De fil. = De filiatione Dei, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II (=s) e ou de L. Mannarino (op. cit.) (= m); De dato = De dato Patris luminum, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II; De gen. = De genesi, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II; Id. De sap., Id. De men. = De idiota (De sapientia, De mente, traduzida por R. Steiger, com dois Apêndices de R. Klibansky; De staticis experimentis, traduzido por L. Baur, com o acréscimo de uma breve Dissertação de K. Bormann e H. G. Senger), in Opera omnia, vol. V, Hamburgo, 1983; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. I, Bolonha, Zanichelli, 1965; De vis. = De visione Dei, traduzida por A. D. Riemann, in Opera omnia, vol. VI, Hamburgo, 2000; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II;

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O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa

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Crib. = Cribatio Alkorani, traduzida por L. Hagemann, in Opera omnia, vol. VIII, Hamburgo, 1986; trad. it. de P. Gaia (op. cit.);

Aequal. = De aequalitate, traduzida por H. G. Senger, in Opera omnia, vol. X, Opuscola II, fasc. 1, Hamburgo, 2001; trad. it. de G. Federici Vescovini (in Opere filosofiche di Nicolò Cusano, cit.);

Compl. = De theologicis complementis, traduzida por H. G. Senger, in Opera omnia, vol. X, fasc. 2a, Hamburgo, 1998; trad. it. de G. Federici Vescovini (in Opere filosofiche di Nicolò Cusano, cit.);

Princ. = Tu qui es/“De principio”, in Opuscola II, traduzida por A. D. Riemann e K. Bormann, in Opera omnia, vol. X, fasc. 2b, Hamburgo, 1988; trad. it. de G. Federici Vescovini (in Opere filosofiche di Nicolò Cusano, cit.);

Beryl. = De beryllo, traduzida por L. Baur, in Opera omnia, vol. XII, Leipzig, 1940 (Ver também a mais recente “edição menor” da Academia das Ciências de Heidelberg traduzida por K. Bormann, texto bilíngüe latim-alemão, Hamburgo, Meiner, 1977); trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II;

Pos. = Trialogus de possest, traduzida por R. Steiger, in Opera omnia, vol. XI2, Hamburgo, 1973; trad. it. de G. Santinello (in Nicolau de Cusa, Scritti filosofici, cit.), vol. I;

Comp. = Compendium, traduzida por B. Decker e K. Bormann, in Opera omnia, vol. XI3, Hamburgo, 1973; trad. it. de G. Santinello (in Nicolau de Cusa, Scritti filosofici, cit.), vol. I;

Non al. = Directio speculantis seu de non aliud, traduzido por L. Baur e P. Wilpert, in Opera omnia, vol. XIII, Leipzig, 1944 e Hamburgo 1950; trad. it. de G. Federici Vescovini (in Opere filosofiche di Nicolò Cusano, cit.);

Conc. = De concordantia catholica, traduzido por G. Kallen, 4 vols., in Opera omnia, vol. XIV, Leipzig, 1939-1968; trad. it. de P. Gaia (op. cit.). 1 O pecado original na exegese bíblica de Nicolau de Cusa Algumas das páginas mais significativas que o Cusano dedica ao tema do pecado original encontram-se na Cribratio Alkorani (1460-61). Nesta obra, ao enfatizar a centralidade para a fé cristã dos dogmas da encarnação, da morte e da ressurreição de Cristo, o pecado é definido pelo Cusano como divisio, como separação do homem de Deus: “O pecado traz divisão entre Deus e o homem (dividere inter Deum et hominem), como diz o profeta: ‘Os vossos pecados vos afastaram de vosso Deus’ (Is. 59, 2)” (Crib. II, 114; 810). Ao acenar a dupla possibilidade de fazer descender o malum mundi ou do pecado atual ou da culpa original, o Cusano afirma que “este pecado pode ser muito bem aquele da origem, da maneira que aquele que é concebido pela mãe no pecado tem a sua existência originada na impureza e na volúpia

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da carne” (ibid). Então, prossegue o Cusano, “dado que todos, a partir de Adão, foram concebidos de tal modo pela mãe segundo a vontade de um homem [...], por isso nascemos filhos da ira e temos o espírito de concupiscência da carne [...] e desta inclinação ao mal, que sentimos desde a adolescência; conhecemos que não somos movidos pelo espírito bom de Deus” (ibidem 114-5; 811). É, portanto Adão, o nosso proto-parente, o responsável direto desta alteração do criado e da inclinação do homem para o mal. O homem, que entre as criaturas intelectuais tem agora o ínfimo posto, possui um intelecto somente potencial; ele, conseqüentemente, bem longe “de todo otimismo pelagiano”1, “necessita de um outro ato que o faça precisamente passar da potência ao ato”; ao mesmo modo da “virtude iluminadora do cego de nascença, que pela fé adquire a visão sem saber como” (Pos. 39; 269), também o intelecto, portanto, “precisa da graça criadora (donum gratiae creantis) para poder-se realizar no ato do entender” (De dato I, 69; 135): unicamente ao Pater dator formarum, automanifestando-se no Filho unigênito e procedendo atemporalmente no “Espírito perfectivo divino” (ibidem V, 82; 153), “cabe levar a termo cumprimento” o nosso intelecto (ibidem I, 70; 137). Deus, então, “não será visto se a possibilidade de ver não for trazida ao ato, mediante uma manifestação de si, por aquele mesmo que é a atualidade de toda potência” (Pos. 36; 269). Este ato perfeitíssimo, afirma o Cusano, é a graça divina, da qual o jardim do paraíso terrestre era totalmente invadido e circundado. Neste estado de beatitude, Adão, “ornado de inocência” e vivendo em plena obediência a Deus, podia elevar-se até “a visão da glória do seu Deus e ao gozo dela” (Crib. II, 108; 806). Todavia o homem, criado livre, se deixou persuadir pelo diabo, “recusou-se a obedecer a Deus, para poder conhecer por si mesmo o bem e o mal”, e assim perdeu a inocência, foi expulso do paraíso e “tornou-se mortal e ignorante” (ibid). Agora, a danação que segue à queda se identifica com a perpetuação daquele “estado de separação” devido ao spiritus divisionis, que é próprio do “espírito bestial do cão e do porco, do

1 R. Haubst, Die Christologie des Nikolaus von Kues, Friburgo, Herder, 1956, p. 63.

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raivoso, do ciumento e do luxurioso etc.”2 O inferno, afirma o Cusano no sermão XXIV sobre o Pater Noster, “consiste [mesmo] na divisão, na discórdia, na disputa, na ignorância, nas trevas”; por isso, “os príncipes do inferno se dizem príncipes das trevas ou diabos”,3 do grego diabállein, que significa exatamente dividir, separar, aquilo que no reino de Deus existe ao contrário no estado de concórdia do amor (enquanto “conexão amorosa”) e da sua sabedoria luminosa todo-envolvente (enquanto nessa sabedoria tudo é complicado em um modo superior à nossa capacidade de compreender). Em tal sentido, “nós por natureza somos ‘filhos da ira’, da discórdia, do pecado, isto é, da divisão: de fato, o termo Sunde (pecado) deriva de sundern”, (pecador) que em alemão antigo moselfrankisch (no qual o Cusano pronunciou e escreveu o sermão citado) significa mesmo dividir, separar.4 Em outro sermão, intitulado significativamente Remittuntur ei peccata multa (1445),5 o Cusano, concentrando-se principalmente sobre o caráter de oposição real a Deus que caracteriza a vontade malvada, define o pecado como “a ofensa, causada pelo homem, à luz da inteligência”,6 ofensa em conseqüência da qual “a alma perde o esplendor da luz divina e o ornamento da graça”7. Aqui, continua o Cusano, na luz da inteligência resplandece o lumen cognitionis divinum, que é a verdade mesma. Trata-se daquela lux veritatis sine omni tenebra, de cuja irradiação o nosso espírito faz derivar, portanto, toda virtude

2 Nicolau de Cusa, Sermones CXXXVII, “Tibi dabo claves” (1454), in Nicolai de Cusa

Opera Omnia, cit., vol. XVII, Sermões II (1443-1452), fasc. 2 (sermones XL-XLVIII), traduzido por R. Haubst e H. Schnarr, 1991, p. 38B (trad. G. Cuozzo, presentemente vertida para o português).

3 Idem, Sermones XXIV, Jhesus in eyner allerdemutichster Menscheit (Pater noster in vulgari expositum) (1441), Opera omnia, cit., vol. XVI, Sermones I (1430-1441), fasc. IV (sermones XXII-XXVI), traduzido por R. Haubst e M. Bodewig, 1984, p. 431A; trad. it. de P. Gaia, Predica sul Padre nostro, Turim, SEI, 1995, p. 56.

4 Ibidem, p. 403A; trad. it. cit., p. 41. 5 Idem, Sermones LIV, Remittuntur ei peccata multa (1445), in Nicolai de Cusa Opera

omnia, cit., vol. XVII, in Sermones II (1443-1452), fasc. 3 (sermones XLIX-LVI), traduzido por R. Haubst e H. Schnarr, 1996.

6 Ibidem, p. 262A. 7 Idem, Sermones VII, Remittuntur ei peccata multa (1431), in Nicolai de Cusa Opera

Omnia, cit., vol. XVI, in Sermones II (1430-1441), fasc. 3 (sermones V-X), traduzido por R. Haubst, M. Bodewig e W. Krämer, 1973, p. 121B.

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cognoscitiva e a faculdade moral de discernir o bem do mal: “A criatura racional – escreve o Cusano – foi criada para que conheça o sumo bem; e conhecendo-o o ame, e amando-o o possua, e possuindo-o o desfrute. Quando, porém a vontade renuncia ao primeiro princípio, dado que nasceu por ser movida por ele, em vista dele e por causa dele, visto que todo pecado é uma certa desordem da mente (inordinatio mentis) – ordem pela qual nasceram a virtude e o vício -, o pecado atual se configura como desordem. Ora, enquanto tal desordem destrói a ordem da justiça, ela se diz mortal, posto que a separa de Deus (separat a Deo) pela qual nossa alma é vivificada; enquanto não destrói a ordem da justiça, porém a altera, ela se diz venial”.8 O pecado original, nesta segunda acepção encontrada – distanciando-se bastante da Cribratio Alkorani, na qual a culpa da origem parecia transmitir-se às gerações através de uma propagação hereditária de natureza “quase biológica” -, se configura assim como um verdadeiro e próprio ato de rebelião da razão contra Deus e sua lex aeterna. Isso consiste em um “ato positivamente malvado” e que tem a própria raiz na soberba (“quae omni peccato inest”);9 um ato de oposição real que é reatualizado em todas as decisões históricas do homem que “perverte a justa ordem das coisas”: “Quando transgredimos os avisos do lume da inteligência”, afirma o Cusano, se antecipa o bem efêmero àquele imutável, o útil ao honesto, a nossa vontade aquela de Deus, os sentidos à razão. Trata-se, portanto da “transgressão do destino e dos preceitos aos quais nos remeteu a luz [divina], da realização frustrada das obras da luz, que são as obras da verdade deo placita”: “Sem desobediência não se dá transgressão, sem soberba não se dá desobediência. Por isso a soberba é “vício capital”.10 O pecado, em outras palavras, é o “consenso da razão para operar mortalmente na perversão da justa ordem” – afirmações, estas últimas, nas quais se mostra uma certa analogia com as análises conduzidas por São Tomás nas Quaestiones 75 a 83 da Summa theologiae, na qual o pecado é

8 Ibidem, p. 129A. 9 Ibidem, p. 121A. 10 Idem, Sermones VI, Respexit humilitatem (1431), in Nicolai de Cusa Opera Omnia,

cit., vol. XVI, Sermones I (1430-1441), fasc. 2, cit., p. 109 (o itálico é de G. Cuozzo).

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definido como actus inordinatus e como“voluntas sine adhibitione regulae rationis vel legis divinae”.11 Em uma carta ao noviço de Montoliveto, Nicolò Albergati (Montepulciano, 5 de junho 1463), a alteração (ou disproportio) da relação ontológica que liga a inteligência criada a Deus, é apresentada ainda uma vez como o efeito da hybris e da vanitas humana que “afasta o homem de Deus”: o homem, criado para alcançar a visão da glória divina, “possuía por natureza o arbítrio, de forma que acreditasse e obedecesse a Deus por livre escolha, sem a isso ser necessariamente obrigado. Ele, todavia, abusando de sua liberdade, quis introduzir-se por iniciativa própria na via da ciência. E quis saber ao invés de crer: a obediência foi destruída e a inocência traída”. Em outros termos, continua o Cusano, Adão “não quis dar o louvor e a glória a Deus, o qual por seu dom gratuito ia conduzir o homem inocente na via da obediência à visão da glória, mas ele quis dar o louvor a si mesmo, com a presunção de poder alcançar isso com a força da própria inteligência”12 – e nisto, a bem ver, consiste a sua presunção funesta, a sua narcisista e culpável concentração sobre si e sua própria “razão separada”, no sentido de uma espécie de “contractio exclusiva e pecaminosa” que é própria daqueles que querem ser “sapientes por si mesmos” (sibi ipsi sapientes) (Quaer. III, 28; 27m) –. Eis, portanto, o pecado que reina no mundo: “Que todos os filhos de Adão presumem de entender e possuir a ciência soberba e vaidosa, e se gloriam de serem doutos e sapientes”13 Eles, então, afirma o Cusano no De visione Dei (1453), pensando em poder refutar a paternidade divina, acabam por precipitar a própria razão em uma região distante separantes nos a te,

11 São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, q. 75, a. 1; comentário editado pelos

Dominicanos italianos (com texto latino da edição leonina), Bolonha, Edição Studio Domenicano, vol. II. Vizi e peccati, Tradução, introdução e notas de T. S. Centi, 1984, p. 141.

12 Nicolau de Cusa, carta a N. Albergati, in G. von Bredow, Cusanus-Texte IV, Briefwechsel des Nikolaus von Kues, dritte Sammlung (Das Vermächtnis des Nikolaus von Kues. Der Brief an Nikolaus Albergati nebst der Predigt in Montoliveto, 1463), traduzido por G. von Bredow, Heidelberg, Winter, 1955, p. 36; trad. it. cit., p. 65-6 (o itálico é de G. Cuozzo).

13 Ibidem (o itálico é de G. Cuozzo).

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sofrendo assim a mais grave servidão sob um príncipe adverso a Deus (ibidem VIII, 29; 289). 2 O transcensus da alma humana: da ratio ao intellectus No Idiota De mente o Cusano detém-se sobre vários poderes cognoscitivos da nossa alma. Procedendo desde abaixo onde se encontram os sentidos, ligados indissoluvelmente ao mundo da exterioridade e da matéria. A razão, em relação ao sentido, concebendo as imutáveis essências das coisas abstratas da matéria, tem a prerrogativa de entender as formas “como elas são em si e para si”, para construir sobre elas as ciências e as artes matemáticas. Se pensarmos a tal propósito a geometria, mediante a qual a nossa mente pode construir notionaliter um triângulo idealmente perfeito e preciso, como não é dado encontrar na natureza, entre cujos elementos constitutivos (ângulos e lados) podemos estabelecer várias ordens de relação e de proporções numéricas, cujo valor é imutável e apodítico. A matemática e a geometria, todavia, são ciências de ordem comparativa, que giram em torno “ao mais e ao menos”; elas não estão em grau de atingir a “precisão absoluta” (ou absoluta quidditas) das coisas. Com efeito, não obstante a precisão alcançada, segundo o Cusano, a ciência racional permanece ainda ligada ao mundo da alteridade diversa e da diferença. Com efeito, se permanecermos no nível das figuras finitas da razão a forma do triângulo não é aquela do quadrilátero, e estas são outra coisa em relação àquela do círculo. Somente no conhecimento intelectual “a mente intui todas as coisas em unidade e intui a si mesma como assimilação daquela unidade”; ela chega, portanto à forma suprema do saber adquirida naturalmente, e àquela apreensão unitiva que vê todas as formas complicadas na unidade simplicíssima da mesma forma incontracta et absoluta, a Sabedoria divina, “ipsa omnem conceptum excedens ineffabilis forma” (ApDI 9; 216); do mesmo modo, todas as figuras geométricas traçáveis sensivelmente estão contidas virtualmente no círculo infinito, o qual, refletindo enigmaticamente em si “a forma das formas com mais semelhança do que em qualquer outra figura” (Compl. VII, 36; 623), é a precisa mensura de toda figura traçável sensivelmente.

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A verdade, o objeto próprio do intelecto, é, portanto a infinita essendi forma, simplicissima e perfeitissima (ApDI 9; 216), na qual se resolve toda alteridade e oposição; essa verdade é portanto a coincidentia oppositorum (cf. DI II, 95; 165s). Aqui, esta visio intellectualis da unidade complicativa, afirma o Cusano, “promove uma visão semelhante àquela que se teria de uma alta torre”: aquele que está lá em cima, com uma simultanea visio, vê logo aquilo que, com um discurso diversificado e por vestígios, vai procurando aquele que vaga pela região da diferença e da alteridade racional. Neste modo a mente humana, posta na alta região do intelecto (o apex mentis), “é juiz da razão discursiva” (ApDI, 227): isto é, a visão intelectiva pode iluminar-lhe o caminho lógico, que passa de razão em razão, de verdade determinada em verdade determinada, oferecendo à ratio aquele fio sintético e orgânico que faz, sim, que ela não desperdice a própria procura na fragmentariedade de um discurso meramente analítico e fracionário, perdendo de vista a unidade daquele verdadeiro absoluto que, enquanto único, complica na própria simplicidade a multiplicidade vária de todas as razões inteligíveis. A verdade intuída pela mente escreve de fato o Cusano, “não é outra coisa que falta de alteridade (carentia alteritatis)” (Compl. II, 7; 611). Nesta tripartição das faculdades cognoscitivas, descrita pelo Cusano – sensus, ratio e intellectus –, o primeiro ponto crítico verdadeiro e marcante é representado pela conversão da razão, no ápice das explicações das suas virtudes, na intuição intelectual. A esta intuição se chega através da dupla via de uma translatio ad infinitas figuras (na passagem da “matemática exata” àquela “teológico-especulativa”, que faz um uso simbólico das conjeturas racionais através de uma transumptiva proportione); e, em segundo lugar, de uma transumptio ad infinitum simplex (saltando da “matemática simbólica ou especulativa”, que é “o espelho das figuras teológicas”14, àquela propriamente mística, que tem como objeto o infinito em ato puro e simples). Aqui, a ciência humana, que tem como modelo próprio o saber matemático procedente por meio das “sombras” das figuras geométricas e dos números, descobre a própria inconsistência e inadequação em relação

14 G. Federici Vescovini, Il pensiero di Nicola Cusano, Turim, UTET, 1998, p. 83.

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ao infinito Posse divino, no qual não há indícios de alteridade, e que vive em um estado de absoluta indiferença (o absoluta complicatio), anterior a qualquer tipo de alteridade, oposição e contrariedade: Deus, afirma o Cusano no De non aliud, enquanto “absoluto não-outro”, é ab alio aliud, ante aliud; ou seja, ele, dado a sua absoluta transcendência e incomparabilidade com o existente finito e limitado por ele colocado na existência, “é não-outro de uma coisa qualquer e é tudo em tudo” (Non al. XX, 50; 843). A razão, se por um lado é consciente da própria suficientia na apreensão das formas abstratas da realidade, por outro lado sabe não poder ultrapassar aquela dimensão de alteridade do instável “acontecer do sombreamento” do múltiplo, em cujo interior somente pode exercitar a própria virtude descritiva: “A nossa mente, embora careça de toda alteridade sensível, não é desprovida de toda alteridade” (Compl. II, 7; 611). A ratio, de forma totalmente paradoxal, quanto mais tenta elevar-se àquela unidade simples na qual todos os contraditórios estão unificados (a visio unitiva, sobretudo do intelecto, que renuncia ao princípio de não-contradição), quanto mais se torna consciente dessa sua impotência constitutiva e da sua necessária ligação com o mundo da alteridade, e acaba dessa forma levando a cisão e a alteridade ao interior de si próprio. Trata-se daquela cisão entre o seu obiectum ideal (a forma formarum, absolutamente simplicíssima) e os seus instrumentos de investigação, os entia rationis (os números, as figuras, as proporções entre as grandezas), que são conceitos ligados à região da alteridade e da diferença. Se por um lado, então, a razão reconhece “que todo o conhecimento racional fica fechado no interior dos limites da multiplicidade e da grandeza quantitativa”, por outro lado, ela, no limiar do próprio auto-transcendimento intelectual, “constata que o princípio primeiro deve necessariamente ser um princípio simplicíssimo, senão não seria um princípio primeiro”.15 A razão, guiada pela praegustatio ingustabilis daquele “alimento saborosíssimo” que é a Sabedoria, na qual todas as oposições lógicas

15 Idem, Sermones XXII, Dies sanctificatus (1440), in Nicolai De Cusa Opera Omnia,

cit., vol. XV, Sermones I (1430-1441), fasc. 4 (sermones XXII-XXVI), traduzido por R. Haubst e M. Bodewig, 1984, p. 344B; trad. it. de G. Federici Vescovini, in Opere filosofiche di Nicolò Cusano, cit., p. 674.

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encontram sua perfeita conciliação, pressente quase instintivamente que a sua posição vacila e é completamente instável: o máximo da explicação da sua virtude cognoscitiva se transforma de fato no seu passo definitivo, no qual urge a passagem para uma outra faculdade, o intellectus, a qual, todavia se encontra já nela “segundo uma participação alterada” (Coni. II, 75; 292s), isto é, como uma luz, que ainda fraca e indireta, começa a abrir uma passagem na sombra caliginosa das figuras, dos números e dos graus proporcionais de grandeza. Para descrever o transcensus da alma humana, o Cusano recorre no De coniecturis (1440-45) à “figura paradigmática P”. O Cusano adota, portanto, esta figura heurística também para esclarecer o sentido da participação do espírito humano no intelecto eterno de Deus. Imaginamos então que a base da pirâmide luminosa represente a lux veritatis sine omni tenebrositate apreendida no modo intuitivo do intelecto, enquanto aquela [luz] das trevas representa o estado incoativo inicial da ratio humana, na qual essa resulta ainda subjugada pela alteridade diversa da sensibilidade e da imaginação (trata-se, portanto daquela que o Cusano chama ratio phantastica seu imaginativa, ainda ligada à variedade das imagens sensíveis, e distinta daquela [ratio] superior definida como apreensiva) (Coni. II, 156; 344s). Quanto mais nos aproximamos do Logos divino, tanto mais o nosso intellectus, “recolhendo-se das alteridades diversas” da razão, alcançará a sua plena atualidade, por último unificando-se naquele ato cognoscitivo simplicíssimo que é a visio intellectualis ipsius Cunctipotentis (Pos. 45; 272), capaz de entender e pensar super rationem a coincidência dos opostos. A função desta figura é aquela de mostrar como a razão e a inteligência não são faculdades distintas rigidamente; segundo a figura P, elas, com efeito, fluem constantemente, umas na outra, e são, portanto co-presentes no espírito humano segundo “graus de intenção e de remissão diversos”16, distinguíveis quantitativamente segundo o mais e o menos inversamente proporcional entre eles. Além disso, é evidente que o progresso da alma na racionalidade é de todo ambíguo:

16 G. Federici Vescovini, op. cit., p. 20.

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quanto mais a razão chegar ao seu estado de atualidade e de perfeição, tanto mais ela tenderá a afastar-se da base da pirâmide à qual pertence para aproximar-se ao seu vértice, e, portanto ao ponto médio da base da pirâmide da luz: “o terceiro céu do intelecto puríssimo” no qual reina soberana a unidade do intellectus (DI III, 153; 225s). A ratio, portanto, quanto mais se tornar ‘verdadeira razão’ tanto mais se aproxima ao lume da inteligência, a ele assemelhando-se até dissipar-se imperceptivelmente na intuição intelectual, e, portanto, até por-se à parte em favor daquela faculdade superior: a inteligência, afirma o Cusano, “percebendo a inadequação dos termos da ratio” (necessariamente “delimitada pela multiplicidade e pela quantidade”)

17, “livra-se deles e concebe Deus acima dos seus significados como o princípio que os complica” (Coni. I, 40; 268s). Em outras palavras, a ratio devém ciente que “todos os procedimentos da pesquisa racional não são suficientes para alcançar a substância tanto desejada” (Non al. XVIII, 45; 836), a unidade inefável absque omni alteritate et diversitate. A razão, que enquanto compasso vivente “resolve tudo em multiplicidade e grandeza” (Coni. I, 40; 268s), compreende com efeito que o obiectum último da sua pesquisa é a immensurabilis omnium mensura (De vis. XIII, 48; 316); isto é, ao mesmo tempo “medida máxima” (da qual não pode existir uma maior) e “mínima” (da qual não pode existir uma menor). A verdade absoluta é, portanto “quantidade infinitamente grande e infinitamente pequena”, ao mesmo tempo o maximum e o minimum absolutos, algo, portanto que pela razão é uma pura contradição lógica, absolutamente impensável e conceitualmente indeterminável. Por isso, com a finalidade de conhecer – embora somente naquela forma sui generis de conhecimento que é a docta ignorantia –, a razão deve afinal renunciar a si mesma, vale dizer, aos próprios instrumentos lógico-conceituais, o mais importante dos quais é o princípio aristotélico de não contradição (DI I, 10; 74s). A forma desta “contradição entrópica” ou curto-circuito da razão, que é afinal também paradoxalmente o seu necessário

17 Nicolau de Cusa, Sermones XXII, Dies sanctificatus (1440), cit., p. 344A, trad. it.

cit., p. 687.

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cumprimento na intuição intelectual, é, portanto, a coincidentia oppositorum, que foge à própria apreensão e que, portanto, ela julga, como sendo uma forma de “conhecimento impossível”. A razão, então, está absolutamente certa que a “afirmação contradiz a negação, e que coisas que contrastam entre si não podem, juntas, ser predicadas da mesma coisa” (Non al. XIX, 46; 837): “Saber reduzir tudo a este princípio, que é preciso evitar a coincidência dos contraditórios, é suficiente para todas as disciplinas sujeitas à indagação racional” (Coni. II, 79; 247v). O transcensus da ratio para o intellectus pode, portanto ser descrito como uma verdadeira e própria mudança de paradigma do pensamento, que da lógica, sendo ela “a arte na qual se explica a força da razão” (ibidem 82; 298s), através da superação das categorias racionais conseqüentes à sua elevação ao absoluto (o transsumptio in infinitum), chega à admissão daquilo que para a razão é totalmente impossível: para o intelecto, com efeito, afirma o Cusano, é necessário “procurar a verdade onde se encontra a impossibilidade” (De vis. IX, 34; 296). Essa impossibilidade lógica, que para o intelecto se transforma na mais alta necessidade do pensamento, é precisamente a coincidência dos contraditórios, que o Cusano expressa com a imagem do murus paradisi sive coincidentiae. Esse baluarte, ao mesmo tempo impermeável (pela razão) e permeável pela visio mystica (à qual conduz o intelecto), delimita, com efeito, aquele lugar paradoxal e inacessível para a razão no qual, além de toda oposição, habita Deus, que é percebido “no modo revelado” (revelate) somente com a ascensão mística: “Começo a vê-lo senhor, já na porta da coincidência dos opostos, custodiada pelo anjo colocado na entrada do paraíso” (ibidem X, 36; 301); “Vejo, por conseguinte, no muro do paraíso, onde tu estás Deus meu, que a pluralidade coincide com a singularidade, enquanto tu habitas além daquele muro, bem longe dele” (ibidem XII, 60; 335). O espírito humano, assim como é representado de acordo com a figura paradigmática P, resulta extremamente instável, fluctuans, como se expressa o Cusano. Ele, segundo a escala hierárquica dos seres de ascendência neoplatônica, ocupa uma posição intermediária entre o topo da natureza animal (em cuja sensibilidade predominante está já presente uma forma germinal de ratio) e o grau mais inferior das

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criaturas angélicas, os demônios, os quais apesar de serem atingidos pelo “torpor na alteridade obscura da ignorância” (Coni. II, 135; 332s), são puramente intelectuais. O homem, em virtude da sua posição central na ordem da criação, verdadeiro e próprio methórios, como o define Filo, “dotado de uma natureza intermediária entre a espécie imortal e aquela mortal”18 mesmo em virtude desta sua posição central na ordem da criação, é colocado “acima de toda a obra de Deus e um pouco abaixo à natureza Angélica” (DI III, 126-7; 196s): ele é portanto copula mundi, quasi nexus universitatis entium (Id. De men. XIV, 210). No entanto, estas expressões assumem no Cusano um significado dinâmico, conectado intimamente ao tema da liberdade: o espírito humano é livre para experimentar todos os graus de intenção ou contração proporcional entre o sensus e o intellectus, e isto atravessando os graus intermediários da ratio, cuja ciência é exatamente uma media speculatio. Dito de outro modo, a razão, possuindo “uma natureza intermediária entre o mundo inferior e aquele superior (Coni. II, 119; 270v), pode ascender à visão intelectiva (aquele “saber negativo” de caráter intuitivo, que é o fundamento da união mística: a docta ignorantia); ou, pode subjugada pelos sentidos e pela imaginação precipitar-se por escolha própria nas regiões inferiores da alteridade diversa, onde a matéria opaca projeta na ciência a sombra obscura da diferença e das oposições, não permitindo a ela conhecer a unidade complicativa do verdadeiro. E esta, se olharmos bem, é a sede da ignorância “realmente insipiente”, não, portanto aquela do sábio, que é docta, enquanto ele “scit suo modo et tamen nescit in preciso” (Id. De sap. I, 22; 70); porém aquela [ignorância] culpável e pecaminosa do bruto e do insensato. Este último, rejeitando o intellectualis beryllus da coincidência, não faz nenhum uso da visão unitiva do intelecto, apoiando-se unicamente no “bastão da razão” (baculus rationis). Ele vive, com efeito, na regio dissimilitudinis, à sombra do muro do paraíso, sem poder nunca nem

18 Filo de Alexandria, in Les Œuvres de Philon D’Alexandrie, Publieés sous le patronage

de l’Université de Lyon par R. Arnaldez, J. Pouilloux e C. Mondésert, texto bilíngüe grego-francês, vol. XIX, introdução tradução e notas de P. Savinel, Éditions du Cerf, Paris, 1962, II 228, p. 216; trad. it. in L’Uomo e Dio, traduzido por C. Kraus Reggiani, Milão, Rusconi, 1989, p. 588.

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alcançá-lo nem tampouco ultrapassá-lo, permanecendo, então, impossibilitado de alcançar o pensamento supra-racional da coincidentia. 3 O pecado da razão: aspectos sapienciais da docta ignorantia e humilitas Neste ponto do discurso deveria ter emergido a centralidade, na doutrina cusana do conhecimento, da libera voluntas, segundo a qual o homem pode “aut ampliare aut restringere capacitatem gratiae tuae” (Deus) (De vis. IV, 15; 272): “Se não me olhas com o olho da graça, é porque me separei de ti, desviando-me de ti e dirigindo-me a outro que a ti eu preferi” (ibidem V, 18; 275). Mas, como vimos, o pecado original é um evento que tem diretamente a ver com a ciência: Adão pecou na medida em que presumiu poder “conhecer por si mesmo o bem e o mal”, somente com as suas forças, abusando delas e concentrando-se egoisticamente nele per dar louvor, antes que a Deus, à própria ratio separada. A culpa da origem é, portanto antes de qualquer coisa um mal em relação ao conhecimento racional. Ela, além disso, tem o significado de divisão (esta é, com efeito, a primeira acepção do pecado encontrada), uma separação que no Cusano é possível de uma dupla interpretação. 1) Em primeiro lugar, o pecado original é divisão enquanto é o efeito do subtrair-se do homem do seu vinculo originário com a graça divina, que teria permitido a mente humana à elevação àquela visio facialis onde a razão, por presunção e por soberba, presume ao contrário poder chegar “só com as suas forças”. Aqui, portanto, a separação tem o sentido da concentração narcisística e satisfeita do homem sobre o próprio ser e sua própria faculdade racional. Ele pensa, com efeito, ser igual a Deus e se ilude assim de poder chegar com a própria razão “à perfeição da ciência dos Deuses”. E dado que é necessário demonstrar a própria pretensão da divindade, o homem, desobedecendo a lex aeterna, decide não usufruir do “Espírito participador divino” e tenta prometeicamente alcançar, “totalmente sozinho”, aquilo que, ao contrário, ele iria receber com uma “infinita profusão” pelo Pater luminum. A Sabedoria, à qual tende o desejo do nosso espírito, afirma o Cusano, se pode alcançar somente “em virtude

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do Pai doador das formas, ao qual, sobretudo espera levar à completude o nosso intelecto” (De dato. I, 70; 137). 2) O pecado, em segundo lugar, é divisão de Deus enquanto significa “se ad aliud penitus convertere” (De vis. IV, 18; 274). Isto é, Ele, é a vontade da razão de permanecer estavelmente ancorada, mediante o princípio descritivo de não-contradição, ao mundo da diferença e da alteridade racional, à sombra do muro da coincidência-mundo que, sendo “posto na falibilidade da variedade, não é posto no Bem que convém somente a Deus [...], mas é no maligno” (Prin. 52; 741). O pecado é, portanto, a recusa, segundo o esquema oferecido pela figura P, de passar do âmbito da ratio (ou da alteridade racional) àquele do intellectus (ou da unitas intelectual), na qual todas as oposições estão superadas na unitiva visio do primeiro princípio, que é a absoluta complicatio omnium contradictoriorum. Nesta acepção negativa da “razão separada e separante” - isto é, filha do “espírito racional separado de Lúcifer, que tentou com a própria força ascender à similitude do altíssimo” (De dato I, 70; 137) –, nesta acepção negativa da razão, portanto, devemos talvez ver o motivo da recusa do Cusano em traduzir a intuição intelectual, que se identifica com a docta ignorantia, com a expressão abgeschaiden leben. Esta expressão eckhartiana foi proposta e empregada heuristicamente, a propósito da interpretação do pensamento cusano, por Johannes Wenck, o filósofo aristotélico autor do escrito polêmico De ignota literatura (1449),19 que tinha tentado atribuir ao Cusano o clima de

19 O título, explica E. Vansteenberghe, é uma retradução, embora de valor inverso,

da doutrina cusana da docta ignorantia, onde o Cusano parte do conhecido para alcançar, de modo comparativo, aquilo que é desconhecido e [de] onde pode aprender; para Wenck, bem diversamente, o processo do conhecimento deve partir do desconhecido para alcançar o conhecido: “Ex proporcionali seu comparativa reduccione incerti, ignoti seu incogniti quod inquiritur, ad presuppositum seu propositum certum, notum, manifestum et cognitum, ut innotescat et manifestetur”: in “Le ‘De ignota litteratura’ de Jean Wenck de Herrenberg contre Nicolas de Cues De ignota litteratura”. Beiträge z. Geschichte d. Philosophie d. Mittelalters, VIII (1910), Heft 6, p. 22. “Vacate et videte quoniam ego sum Deus” (Salmo XLV, 11), lembra Wenck no início do próprio opúsculo polêmico; necessita, portanto como Davi, preventivamente “se fateatur non cognovisse litteraturam” (cf. Salmo LXX, 15-16): ibidem, p. 23. Ora, a ignorância a qual precisa partir para

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hostilidade que ameaçava o pensamento de Eckhart (“docta ignorantia vulgariter ‘abgeschaiden leben’”, escreve Wenck na obra citada acima)20. O Cusano, que em algumas páginas tinha defendido o místico alemão das acusações ‘ontologísticas’, através do personagem principal (que professa ser seu discípulo) do diálogo fictício encenado na Apologia (1449), refuta esta tentativa de assimilação, definindo a tradução como uma “insignificância pueril”; talvez seja melhor retraduzir o abgeschaiden leben eckhartiano (isto é, o viver de modo separado, longe e afastado das coisas do mundo, para recolher-se no profundo da alma e alcançar assim, “sem perturbar-se com nada”, a visão do princípio)21 como abstacta vita. Também esta expressão, todavia, para o Cusano mal se adapta para expressar a visio intellectualis, que ele ao contrário prefere definir como visio unitiva. Bem diversamente àquela expressão, esta põe o acento em cima do caráter negativo da separação e do separar (no sentido próprio do sundern), poderia significar o modo de compreender da abstracta ratio concentrada solipsisticamente em si (ApDI 31; 249): aquela espécie de adulterina ratio que não produziu a conversão “da necessidade do complexo à necessidade absoluta” (Id. De mente, VII, 161; 153); ou que, depois de chegar fatigadamente ao pensamento paradoxal da coincidentia, recai fatalmente sobre si, dividindo e separando novamente (mediante o princípio de não-contradição) aquilo que para o intellectus constitui ao contrário, uma unidade complicativa simplicíssima (De beryl. 25; 415). O pecado original, que é reatualizado em todo ser humano no ato em que ele escolhe degradar a si mesmo privando-se da faculdade superior da inteligência unificadora, é, portanto, o querer permanecer

alcançar ad notum, e da qual em seguida necessitaria aproveitar-se e alegrar-se, afirma Wenck, é mesmo aquela que pode ganhar nova vida na obra do Cusano, De docta ignorantia, cujas doutrinas ilusórias são frutos de verdadeira ignorância.

20 Para este conceito eckhartiano (Abgeschiedenheit, no sentido de separação e destaque), ver o tratado alemão Von Abgeschiedenheit: “a perfeita diferença não pode existir sem a humildade (Demut), já que a perfeita humildade tende ao anulamento de si”; isso, todavia, “conduz o homem a uma maior semelhança com Deus”: in Die deutsche und lateinische Werke, Die deutsche Werke, vol. V (Meister Eckharts Traktate), traduzido por J. Quint, 1963, p. 540-1; trad. it. Del distacco, in Opere tedesche, traduzido por M. Vannini, Florença, La Nuova Italia, p. 108-11.

21 Ibidem, 540; trad. it. cit., p. 110.

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obstinadamente no mundo da alteridade diversa das construções lógicas e nocionais que são próprias da abstracta ratio: a razão pensa então que a verdade não pode ser entendida com uma precisão superior àquela oferecida pela multiplicidade dos entia rationis, os números e as figuras da geometria. A faculdade racional, permanecendo agarrada ao princípio aristotélico da não-contradição, termina assim por condenar-se a viver “na sombra de uma morte intelectual” na qual ela “permanecerá marcada por uma perene pobreza” (Pos. 47; 275). A ratio, todavia, não é um mal em si, e não há indícios no Cusano de um verdadeiro e próprio irracionalismo (e para compreender a confiança colocada pelo Cusano nos poderes da razão, quando ela não transcende aos limites a ela atribuídos basta pensar no terceiro livro do Idiota e no De staticis experimentis: aquela espécie de “manifesto anti-filosófico”22 no qual todos os fenômenos físicos, incluídos aqueles de ordem qualitativa como a doença e o envelhecimento, podem ser conhecidos “precisamente” através da sua transcrição na linguagem matemática da mensura e do pondus). A razão, todavia, torna-se malvada quando, “enrijecendo-se sobre si mesma”, exclui a priori que além de si possa haver outros “campos do saber”, nos quais a dimensão sombreada e muito escura da diferença e da alteridade racional desaparece, e onde, portanto a virtude descritiva da razão não tem mais nenhum tipo possibilidade de aplicação e de validade. A mente humana, assim, se separa de Deus no momento em que elege como único e exclusivo critério do verdadeiro o princípio de não-contradição (o fundamento nocional da distinção entre os entes), que é ao contrário um simples princípio lógico-formal válido somente para o modus intelligendi da razão, e cujo valor de verdade é, portanto, ligado à alteridade diversa das suas construções mentais, que têm um sentido somente aquém do muro da absurdidade e da coincidência. Poder-se-ia, portanto, dizer que para o Cusano, o verdadeiro saber teológico – aquele ao qual se tem acesso através do intelecto, que vê a Deus com o intellectualis beryllus da coincidentia oppositorum –, é aquele que se esforça para traduzir em um conceito filosófico, nos

22 M. De Gandillac, Genèses de la modernité. De la “Cité de Dieu” à la “Nouvelle

Atlantide”, Paris, Cerf, 1992, p. 446 (o itálico é de G. Cuozzo).

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limites da pensabilidade humana, a assertiva de Tertuliano “credo quia absurdum”; na linguagem do Cusano isso soaria assim: eu posso conhecer com o intelecto, atribuindo-lhe um caráter de absoluta necessidade, aquilo que pela ratio é uma absoluta impossibilitas lógica, um verdadeiro e próprio absurdo e um salto mortal, isto é, aquilo que por ela resulta irracional e é skàndalon. Trata-se, portanto do pensamento meta-conceitual da coincidência, que “torna insensata a sabedoria do mundo”, aquela ciência media, isto é, fundada somente sobre o princípio lógico da não-contradição (Pos. 38; 269): “Não há outra via de acesso para ti, senão aquela que para todos os homens, também para os mais doutos filósofos, parece totalmente impraticável (inaccessibilis) e impossível”. Para a mente humana, portanto, escreve o Cusano retomando a carta dionisíaca ad Gaium, “é necessário entrar na escuridão e admitir a coincidência dos opostos, além de toda capacidade da razão, e procurar lá onde se encontra a impossibilidade” (De vis. IX, 34; 297). Mas, concluindo, entendo acenar para como, no Cusano, a doutrina do conhecimento, analisada através da lente do pecado original, assume um valor bem mais vasto e complexo de quanto a um primeiro olhar possa parecer. Acima de tudo, o objeto das intuições intelectuais não é Deus sic et simpliciter, porém o Verbo ou Sabedoria de Deus; é, de modo particular, o Deus incarnatus sive revelatus, Cristo. Em segundo lugar, o cume do conhecimento do intellectus ao qual a mente deve alcançar, é a visão beatífica dos filhos adotivos de Deus. O mystice videre não se exaure, portanto em uma mera apreensão intuitiva; porém, é aquela experiência salvífica centrada na figura de Cristo pela qual o homem obtém a filiação divina per adoptionem. Esta última, todavia, conformemente à figura paradigmática P, “não é outro que o se transferir dos obscuros vestígios das imagens à união com a razão infinita” e encarnada, o Homem Deus (De fil. III, 50; 47m). Trata-se, porém de um ato de fé, de imitação e de assimilação à pessoa de Cristo, que salva o homem tornando-o “cristiforme”. Por último, pretendo acenar para um outro motivo relevante, que tem a ver com o tríplice nexo humilitas, sui cognitio e ignorantia, desenvolvido de modo análogo por Petrarca e o Cusano. Petrarca, com

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efeito, no contexto do De sui ipsius et multorum ignorantia23, enuncia algumas doutrinas que poderiam ter oferecido mais de um motivo para algumas das argumentações teológico-morais reencontráveis no Idiota de sapientia do Cusano.24 Pode ser, revelativo a tal propósito que no curso do décimo quarto século, e de grande parte do décimo quinto, tenha sido atribuída uma reelaborarão do mesmo diálogo cusano De sapientia a Petrarca, que ele tenha sido depois publicado em todas as edições do século quinze das Opera omnia de Petrarca25; e, por outra

23 F. Petrarca, De sui ipsius et multorum ignorantia, edição comentada bilíngüe,

traduzida por E. Fenzi, Milão, Mursia, 1999 (O texto latino reproduzido, com algumas correções, é aquele da edição das Obras latinas de F. Petrarca, traduzido por A. Bufano, cit.).

24 O Cusano, como Petrarca, afirma E Vansteenberghe (Le cardinal Nicolas de Cues, cit., p. 450), teria sido propenso a “preferir à ciência à virtude e a fé”; donde a definição do pensamento cusano como “humanismo cristão”, cuja fonte poderia ser vista, se não diretamente em Petrarca, naquele “endereço místico-platônico” – em contraste com aquilo que era a erudita teologia escolástica desse tempo – permeado fortemente pelos valores cristãos de humildade e de piedade, que o jovem Cusano fez seu na provável permanência em Deventer, junto aos “Irmãos da vida comum”. Dessa comunidade, fundada da Gerhard von Groot (cujo espírito místico-religioso, à base da devotio moderna, vem bem compendiado pela Imitatio Christi de Tomás de Kempis/Thomas von Kempen), sairá também, pouco mais de cinqüenta anos depois, Erasmo de Roterdã: cf. P. Rotta, Il cardinale Niccolò di Cusa. La vita e il pensiero, Milão, Vita e pensiero, 1942, p. 4-6. A influência exercitada por este endereço antiescolástico sobre o pensamento do Cusano durante a sua permanência em Deventer – endereço em clara contraposição a um certo “fanatismo aristotélico”, cujas fontes seriam possíveis rever em Pier Damiani, em São Bernardo, em São Boaventura e em Mestre Eckhart –, segundo M. de Gandillac, é bem visível entre o outro [= N. De Cusa] em “bem determinados elementos da sua teologia cristocêntrica”, o mais importante dos quais é o conceito de idiota (Laie), “que é mais sábio que o filósofo”; todavia, este tema assume no Cusano um sentido filosófico, “que vai além da contraposição entre simples irmãos e os dígnatários sobrecarregados de títulos e honras”: Nikolaus von Kues. Studien zu seiner Philosophie und philosophischen Weltanschauung, Düsseldorf, Schwann, 1953, p. 51-2. Sobre este endereço antiescolástico de algumas correntes do pensamento religioso medieval tardio, que culminará na “crítica da parte do ‘humanista’ Petrarca aos falsos sábios de Pádua” e no “mito revolucionário do idiota” (segundo o qual “por aquilo que concerne o grau de santidade, também o maior teólogo resulta distante do anjo da hierarquia inferior, tanto quanto uma senhora anciã e devota”), cf. ibidem, p. 52-4.

25 Cf. E. Vansteenberghe, Le cardinal Nicolas de Cues, cit., p. 449. De Gandillac, a propósito desta ocorrência “editorial”, observa: “Filelfo, sensível sobretudo àquilo

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que no De sapientia remete aos elementos tradicionais, retirou dali alguns trechos e os uniu depois a alguns fragmentos do De remediis, a fim de constituir com todos estes pedaços um tratado pseudo-petrarquesco”: Genèses de la modernité, cit., p. 447. Este tratado pseudo-petrarquesco, intitulado De vera sapientia, foi editado junto ao Dicteriarum vel Apophythegmatum de Plutarco (traduzido em latim por Filelfo), pela primeira vez em Utrecht em 1473 (Traiecti ad Rhenum per Nicolaum Katelaer et Geradum de Leempt), antes mesmo que saíssem [em 1488] as obras publicadas do Cusano; a primeira edição na Opera Omnia [de Petrarca] foi publicada em 1554 (Basilae excudebat Henricus Petri), traduzida por Johannes Herold. G. Santinello, recusando-se a ver em Francesco Filelfo o autor do tratado pseudo-petrarquesco proposto por K. Borinsky [“Eine unerkannte Fälschung in Petrarcas Werke”. Zeitschrift f. romanische Philologie, XXXVI (1912), 5, p. 586-597], fala de um desconhecido humanista de século quatorze que, pelas manipulações e interpolações do De sapientia cusano com partes do De remediis utriusque fortunae, “reencontrou dois diálogos intitulados De vera sapientia, por ele editados como obra de Petrarca antes ainda que saisse a primeira edição, em 1488, da obra do Cusano. Este [trabalho do] Pseudo Petrarca passou em todas as edições do século quinze das Opera omnia de Petraca como seu trabalho autêntico e teve a honrra de várias traduções, em boêmio [= tcheco], em alemão e em italiano, citadas freqüentemente como obra de Petrarca”: Introduzione a Niccolò Cusano, cit., p. 87. O falseio foi descoberto próximo do fim do século dezoito por E. Übinger: cf. “Die angeblichen Dialoge Petrarcas ‘Über die wahre Wahrheit’”. Vierteljahrschrift für Kultur und Literatur der Renaissance (1897), t. II, p. 57-70. Resta, porém, o fato que o Cusano, continua Santinello, “conhecia muitas obras latinas de Petrarca e os códices nos quais tinha lido algumas anotações de seu próprio punho. Ele estava interessado, de modo particular, pela concepção ascética do De otio religiosorum de Petrarca e por motivos do De suis ipsius et multorum ignorantia que ele podia apresentar como motivos próximos à sua douta ignorância”: op. cit., p. 87. As obras de Petrarca encontradas ainda hoje nos códigos do Cusano conservadas no St. Nikolaus Hospital de Berkastel-Kues são o De vita solitaria (Cod. Cus. 53), o De remediis (Cod. Cus. 198 e 199), e Rerum memorandarum, o De secreto, o De otio, o Sine nomine e o De sui ipsius et multorum ignorantia (Cod. Cus. 200). Para a história da obra pseudo-petrarquesca ver R. Klibansky, De dialogis De vera sapientia Francisco Petracae addictis (Appendix II), in Nicolai de Cusa Opera omnia, vol. V, Idiota, traduzido por L. Baur, Hamburgo, Meiner, 1983, p. LXV-LXXII. Para as relações entre o Cusano e Filelfo – em quem, todavia, Klibansky recusa-se a ver o hipotético falsário do tratado pseudo-petrarquesco -, relações indiretas tornadas possíveis através da mediação de Giovanni Andrea de Bussi (que difunde a obra do Cusano na Itália), veja-se sobretudo a p. LXVII; é muito provável, assim escreve Klibansky, que o autor do tratado - dadas as discrepâncias estilísticas entre Petrarca e o escrito do desconhecido autor - seja um dos seguidores da devotio moderna, como Tomás de Kempis: “Porque de Petrarca, na França setentrional e na Holanda, grande era a

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parte, que o Cusano mesmo possuísse algumas obras latinas de Petrarca glosadas de próprio punho (De remediis, Secretum, De sui ispius et multorum ignorantia)26. Petrarca, em particular, liga estreitamente o conhecimento de si e a consciência dos limites iniludíveis pelos quais é condicionado o saber humano, a chamada litterata ignorantia27. Esta última, por sua vez, se sobressai sobre o fundo da idéia de Deus28, cuja Sabedoria eterna supera infinitamente aquela do homem, mercator inops literarum29. Por isso, todos os homens que são reentrados em si mesmos da dispersão no exterior, por concentração sobre si mesmos, [aqueles] nos quais somente se pode encontrar Deus, “sabem qual ínfima parte do todo seja o inteiro saber humano, se o colocamos em confronto com aquilo que os homens ignoram e com aquilo que Deus sabe”.30 Em Petrarca, porém, mediante uma significativa retomada em chave cristã do ‘ideal socrático de sabedoria’, segundo o qual o ápice da ciência humana consiste no “saber de não-saber” (sei que nada sei), o filosofema tradicional, articulando-se no binômio conceitual “conhecimento de si/conhecimento de Deus”, se enriquece do “finitístico” motivo da consciência do limite intrínseco ao humano “poder-conhecer”. Segundo este momento “crítico-negativo” (no qual, segundo Cassirer,31 emerge “o conceito polêmico do não-saber”, sobre o plano gnosiológico “útil para formar alguns conceitos-limites do

autoridade não tanto como poeta lírico, mas ainda mais como ‘filósofo moral’; é, porém, fácil entender por quais razões o falsário do livro De vera sapientia o tivesse atribuído propriamente a Petrarca”: ibidem, p. LXX.

26 Como afirma G. Santinello, “os dois fatos citados, ou seja, a falsificação de uma obra do Cusano deixada passar sob o nome de Petrarca, e as notas e sinais marginais do Cusano às obras petrarquescas, constituem uma pequena documentação para uma história mais vasta da influência de Petrarca sobre o pensamento e a espiritualidade européia, sobretudo no domínio cultural da Renânia e de Flandres”: Studi sull’umanesimo europeo. Cusano e Petrarca. Lefevre, Erasmo, Colet e Moro, Pádua, Antenore, 1969, p. 9.

27 F. Petrarca, De sui ipsius et multorum ignorantia, cit., p. 198. 28 Ibidem, p. 203. 29 Ibidem, p. 236. 30 Ibidem, p. 301. 31 E. Cassirer, Il problema della conoscenza nella filosofia e nella scienza

dall’Umanesimo alla scuola cartesiana, cit., p. 47.

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saber”),32 conformemente ao nexo antigo entre autoconhecimento e miséria humana, conhecer-se, acima de tudo, “significa descobrir a miséria do homem”33. “Isto somente sabemos, não que não sabíamos nada, como disse Sócrates pouco confiante no seu intelecto, mas certamente que se trata de coisa inefável e incompreensível, inacessível ao nosso intelecto”34.

32 G. Federici Vescovini, Il pensiero di Nicola Cusano, cit., p. 16. 33 P. Courcelle, Connais toi-même. De Socrate a Saint Bernard, Paris, Institut

d’Études Augustiniennes, 1975, vol. II, p. 38. 34 F. Petrarca, De otio religiosorum. É significativo que este passo, presente no Cod.

Cus. 200, tenha sido destacado pelo Cusano: cf. G. Santinello, Appendice II (Notas e sinais marginais do Cusano nos Codd. Cus. 199 e 200) in Studi sull’umanesimo europeo, cit., p. 18. Santinello, a tal propósito, releva entre o Cusano e Petrarca a seguinte divergência: “A ignorância do homem de Petrarca é somente um aspecto parcial da geral pobreza humana sobre a qual age a graça divina. A douta ignorância do homem Cusano é, ao contrário, uma força positiva que suscita uma pesquisa inesgotável; somos conhecedores da nossa ignorância não simplesmente porque a constatamos em nós, mas porque, através da pesquisa conjetural, a provichiamo em nós, até conduzi-la ao momento da contradição e do jogo, somente no qual se ascende à luz da visão”: ibidem, p. 23. Este juízo, certamente verdadeiro, tende, todavia, a supervalorizar na docta ignorantia um seu aspecto imprescindível: o seu caráter sacro e santissimo de dom revelado, e por isto pode-se falar no Cusano de uma verdadeira e própria douta ignorância sobretudo lá onde “termina a persuasão e começa a fé” (DI III, 152; 225), no ponto de mudança, isto é, naquilo que permite a passagem da pesquisa conjetural (na qual se explica o poder natural da faculdade do conhecer), mediante a abertura à fé, à visão mística (a divina ciência, que integra sobrenaturalmente o posse contractum mentis). O nexo Cusano douta ignorância-graça divina, sobre o qual se procurou antes chamar a atenção, tem mais de um ponto em comum com “a tendência exortatória e moralizante” de Petrarca, na qual “o acento cai mais sobre o significado negativo e moral da ignorância que sobre seu aspecto teórico e positivo, para a qual essa se torna visão intelectual” (G. Santinello, op. cit., p. 25) – conservando-se, porém, a legitimidade do querer definir depois, como por outro lado se faz no curso da presente pesquisa, a posição do Cusano como “mística e especulativa” a um mesmo tempo: juízo que nasce da consciência do sólido sistema gnoseológico no qual se inscreve e se origina a teologia mística e a doutrina da douta ignorância do Cusano. Sobre estes aspectos insistirei ainda no desenvolvimento do trabalho, guiando-me para um “momento crítico” intrínseco à mística cusana. Mesmo sobre este momento crítico-cognoscitivo (ou transcendental) insistiu K. Flash, sublinhando como a teologia mística cusana (como coincidência de teologia positiva e negativa) resulta fundada sobre aquelas “condições de possibilidades filosóficas” que de fato a tornam possíveis, mostrando assim a própria

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Em tal sentido, em Petrarca e no Cusano o oráculo délfico (Gnothi s’auton), de um modo que se pode ver antecipado, em uma certa medida, somente em Porfírio35, Santo Agostinho36 e em São

“origem conceitual e filosófica” e, em particular, a própria dependência em relação ao modelo de pensamento neoplatônico (Plotino e Proclo): cf. Die Metaphysik des Einen bei Nikolaus von Kues, cit., p. 197-204.

35 “Sob todos os aspectos [...] a ignorância de si mesmo é coisa perversa, seja no caso que, ignorando a grandeza da dignidade interior, se revela o divino, seja no caso que, ignorando a mesquinhez que por natureza nos é acrescentada do exterior, se nos orgulhamos disso [...]. Cada um, porém, por ignorância de si, é condenado a exaltar aquilo que é nele, além da natureza que o criou, mais do que essa havia querido [...]. Logo, o ‘conhece a ti mesmo’ penetra em todo conceito da capacidade que está presente em nós, exortando a conhecer a medida de todas as coisas”: PorfÍrio, I frammenti sul conosci te stesso, in Vangelo di un pagano, traduzido por A. R. Sodano, ed. bilíngüe grego-italiano, Milão, Rusconi, 1993, p. 190-2.

36 Sob a provisão da definição do homem como Dei imago, AgostinHo enriquece a autoconsciência humana deste novo momento finitístico, que, como sustenta E. Gilson, resultará característico para toda a filosofia cristã futura, essencialmente suspensa entra orgulho e presunção, por um lado, e timidez e desconfiança por outro: “A grandeza do homem é de ter sido criado à imagem de Deus. Para a sua liberdade comanda a natureza e a usa segundo as suas necessidades; com a inteligência a conhece e por conseqüência a domina; mas ao mesmo tempo o homem sabe que o homem não deve a si mesmo a própria grandeza, e é isto um primeiro aspecto da sua miséria. Se ignora a própria dignidade, ignorará a si mesmo; se toma consciência sem dar-se conta que a deve a um maior que ele, afundará na vanglória”: Lo spirito della filosofia medioevale, cit., p. 274-5. Trata-se, por este segundo aspecto, de se pôr em relevo o fundo de opacidade, nunca convertível em plena evidência, que resulta interior ao nosso eu mais profundo: se, de fato, o homem é criado à imagem e semelhança de Deus, resulta assim por aquela parte superior (apex mentis), na qual está a marca do divino (por sua natureza infinita e inexaurível), a não-perfeita auto-transparência: e o quem, de fato, poderia colher a fundo, embora enquanto presente na nossa alma, qual é a verdadeira essência do Criador? Na memória, nas vastas plagas do espírito a que me dirijo para procurar Deus, há um fundo obscuro – quase a assinatura que o criador colocou na criatura, como diz Descartes – que me foge, que não pode ser extraído na clareza da luz do autoconhecimento. Este descarte (scarto), esta não perfeita adequação de si a si mesmo na autoconsciência, que traz a presunção do homem aos seus exatos limites, assim é expressa por Agostino: “Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, no pensamento; está ali a imagem de Deus. Por isto o pensamento mesmo não pode ser entendido, nem mesmo por si mesmo, enquanto é Dei imago”: “Grande é esta virtude da memória, ó meu Deus, grande mesmo, recipiente de amplitude ilimitada: e quem poderia tocar-lhe o fundo? É uma força do meu espírito, faz parte da minha

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Bernardo37, relativo a um pecado original que tem a ver com a presunção e a arrogância da “razão separada e separante”, sobre a seguinte torção “finitística”: “Conhece acima de tudo a finitude que te é própria, finitude que é co-natural ao ser homem”38, limite (o cusano

natureza, mas nem mesmo eu me arrisco a conter tudo aquilo que sou. Ou que o ânimo é demasiado restrito para conter si mesmo? E que será aquilo que de si não vos é apenso (accolto)? [...] A estas considerações, uma grande maravilha surge em mim: sou invadido pelo estupor”: Sermo I De symbolo, c. 2, in PL, vol. XL, col. 628. Em tal sentido, conhecer a si mesmo significa ao mesmo tempo ter consciência daquilo que eu - enquanto isso que carrega a marca da transcendência - não posso saber de mim mesmo: “Confessarei, portanto, aquilo que sei de mim: confessarei também aquilo que não sei: porque aquilo que sei de mim o sei através da tua luz, aquilo que de mim não conheço devo ignorá-lo até que as minhas trevas, na visão do teu rosto, se tornarão ‘como a luz do meio dia’ (Is. LVIII, 10)”: Idem, Confessiones, X, c. 5 (Homo sese totum non novit) in PL, vol. XXXII, col. 782; trad. it. de C. Vitali, Milão, Bur, 1985, p. 265.

37 S. Bernardo, segunndo o qual “Humilitas est virtus, qua homo verissima sui cognitione sibi ipse vilescit”: De gradibus humilitatis et superbiae, cap. II (Quo fructu ascendatur gradus humilitatis); PL, vol. CLXXXII, col. 943.

38 W. Beierwaltes, Autocoscienza ed esperienza dell’Unità. Plotino, Enneade V, 3, traduzido por G. Reale, trad. it. de A. Trotta, Milão, Vita e Pensiero, 1992, p. 44. No escrito pseudo-petrarquesco De vera sapientia, afirma Santinnello, pelo fim do primeiro diálogo (no qual se alternam passos tirados por Petrarca com passos tirados do Cusano) o autor desconhecido acrescenta algumas reflexões suas (ou talvez extrapoladas de uma fonte ainda desconhecida) relativas ao conceito de douta ignorância, nas quais - acrescento com toda a cautela que o caso requer - transparece esta conotação finitística do tema da sui cognitio: “´É preciso fazer-se ignorante para tornar-se sapiente. O verdadeiro sapiente é aquele ao qual as coisas ‘sapiunt prout sunt’, coisas mortais não eternas; ele deve aprender a gostar somente de Deus. O homem deve se reconhecer como ‘animal rationale aut mortale’; racional sim, mas mortal”: in Studi sull’umanesimo europeo, cit., p. 12. Esta conotação moral típica das obras latinas de Petrarca, que Santinello ademais julga estar em contraste com a relevância filosófico-teológica do De sapientia cusano, poderia ser reveladora de uma tendência implícita na obra do próprio Cusano. Que seja possível um confronto nesta direção (alargando os termos do confronto, estendendo por um lado as análises ao De ignorantia petrarquesco, e por outro com o analisar a obra do Cusano no seu complexo) constitui o fundo do que se trata internamente no presente artigo. Acolheremos, portanto, algumas sugestões de G. Saitta, Nicolò Cusano e l’Umanesimo italiano (com outros ensaios sobre o Renascimento italiano), Bologna, Zanichelli, 1957, p. 131-144: o De idiota, afirma Saitta, seria de sabor esquisitamente pertrarquesco; “a mesma palavra Idiota é transportada desde

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terminus) cujo conhecimento o homem, todavia, prevê na projeção de si, criatura essencialmente em falta e pecadora no speculum veritatis, no qual somente pode ver a si mesmo assim como realmente é, ou como “uma imagem divina desfigurada”39 Este chamado alterna-se entre autoconsciência (sui cognitio), humilitas e “exata estima da própria insuficiência” (proprie imperfectionis aestimatio), tem-se a percepção, desse modo, da própria ignorantia et fragilitas constitutivax1, se tem presente que esta textura de relações se inscreve sempre e somente no horizonte da luz interior da

Petrarca, mais especialmente o conceito de incipiência ou de ignorância [...]. A verdadeira doutrina está, portanto, no reconhecer-se idiota, mas o reconhecimento como idiota é sinal de humildade. Esta humildade, que é no fundo o conhecimento dos próprios limites ou da própria finititude, é o Leitmotiv que ressoa preciso e insistente na obra petrarquesca, mas o Cusano, indubitavelmente, teve o mérito de inseri-la na visão filosófica que lhe foi própria”: ibidem, p. 123. Saitta, em geral, documentou a relação Cusano-Petrarca sobre a base de uma comum matriz platônica de algumas das suas mais significativas doutrinas filosóficas: “Nos inclinamos a reter que a confusão entre o De vera sapientia e o De idiota teve razões bem diversas daquelas puramente literárias. E não somente o agostinismo, mas também o platonismo, convergem na comunhão do pensamento petrarquesco com aquele do Cusano”: ibidem, p. 131. A tal propósito é de se notar que lá onde Petrarca, no De ignorantia, declara a própria predileção por Platão, por tudo não entendido por Aristóteles (op. cit., p. 278), o Cusano anota assim sobre o seu próprio manuscrito: “Nota comparationem Platonis et Aristotelis”: in N. Santinello, Studi sull’umanesimo europeo, cit., p. 39.

39 Cf. E. Gilson, La teologia mistica di San Bernardo, traduzido por C. Stercal, trad. it. de S. Mascheroni, Milão, Jaca Book, 1995, p. 78-9. Em tal sentido, pode-se pensar em uma atenuação daquelas diferenças, remarcadas por Gilson, entre “Socratismo cristão” e “Socratismo puro”; segundo o qual enquanto “os gregos dizem: conhece a ti mesmo para saberes que não és um Deus, mas um mortal; os cristãos dizem: conhece a ti mesmo para saberes que não és um simples mortal, mas a imagem de um Deus”: ibidem, nota 27, p. 78. Esta identificação, ademais, é também reencontrada em Plutarco: “As sentenças ‘Tu és’ e ‘Conhece a ti mesmo’, parecem estar, por algumas vezes, em oposição recíproca, e, ao contrário, por outras vezes parecem concordar entre si, na medida em que uma é pronunciada com temor e reverência nos confrontos com o Deus, e proclama que ele é sempre, enquanto a segunda é um remeter o ser mortal à sua natureza e à sua fragilidade”: De E apud Delphos, in Corpus Plutarchi moralium, vol. 27, edição crítica bilíngüe grego-italiano, introdução, texto crítico, tradução e comentário por C. Moreschini, Nápoles, D’Auria, 1997, p. 118.

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idéia de Deus (Dei cognitio) – e, de fato, Petrarca declara no Secretum, ao elevar-se da alma pura e simples ad previdentiae divinitatis archana é necessariamente ligada a proprie mortalitatis cogitatio40 41-, isso constitui o fundo no qual é possível colocar, no âmbito de uma história da idéia centrada naquilo que Gilson chamou o “socratismo cristão”,42 o conceito cusano de docta ignorantia, que também poderia ter,

0 Como afirma H. G. Senger, para Petrarca, a partir da conscientia ignorantiae, “adquire força um processo natural de reflexão que é o vir a ter consciência da ignorância. Este saber é o pressuposto do juízo tanto sobre o próprio não saber quanto sobre aquele de outros. O não saber, como estado de consciência, devém assim um saber positivo sobre si mesmo e sobre o genus humanum. Em tal modo, porém, a ignorância se transforma em uma forma de saber positivo: ambos são complementares; aqui esses vêm a coincidir”: in M. Thurner (ed.), Nichtiwissen als Wissensform. Ignoranzkompensationen von Petrarca bis Erasmus: Nicolaus Cusanus zwischen Deutschland und Italien. Beiträge eines deutsch-

4

italienischen Symposions in (Veröffentlichungen des Grabmann-Instituts,

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digma de pensamento, de modo mais transparente

der Villa Vigoni vom 28.3 – 1.4.200148), Berlim, Akademie Verlag, 2002, p. 633-658; pág ? 1 Idem, Secretum, cit., II, 98, p. 170. 2 E. Gilson, Lo spirito della filosofia medioevale, trad. it. de P. Sartori Treves, Bréscia, Morcelliana, 19642, p. 254: “Permanece [...] um elemento comum ao socratismo de Sócrates e aquele de que trataram os Padres da Igreja ou os filósofos do Medievo: seu antifisicismo. Nem uns nem outros reprovam o estudo da natureza como tal, mas todos concordam em admitir que o conhecimento de si mesmo é muito mais importante para o homem do que o conhecimento do mundo externo”; para todos aqueles que refletiram aderindo a esta linha de pensamento “socrática”, do estoicismo até Montaigne e Pascal, Gilson afirma que “o seu antifisicismo não prepara a via para um psicologismo, [ele] é, antes, o reverso de um moralismo. Ora, nestes dois aspectos é que os cristãos eram seduzidos: que serve ao homem conquistar o universo, se perde a sua alma? Mas não podiam seduzi-lo senão por sua vez fazendo-o aceitar sujeitar-se a uma profunda transformação. Quando Sócrates aconselha alguém a procurar conhecer-se a si mesmo, este preceito para eles significa imediatamente que devem conhecer a natureza a eles conferida por Deus e o posto que Ele lhes assinalou na ordem universal, para ordenarem-se por sua vez conforme Deus”: ibidem, p. 273. Esta hierarquia de valores – o conhecimento do mundo subordinada à penetração consciente de si da parte do pensamento criado – surge como verdadeiro e próprio paraque no Cusano, nas obras latinas de Petrarca (em particular no De ignorantia, no Secretum e no Contra medicos).

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ortant

da vida que, com efeito, “é desconhecido por todos os mestres ricos de e

p o, o sentido do “conhecer-se assim como eu sou conhecido por Deus”.43 A noção de douta ignorância, por sua vez, é estritamente conexa no Cusano no papel central assumido pela figura do Idiota na obra homônima a esse dedicado (O idiota): o homem leigo e “simples de espírito”, ou aquele que, perfeitamente consciente dos próprios limites, se confessa sem reserva idiota e ignorante (cum me ignorantem fatear idiotam) (Id. De men. c.I, 89; 108). A sua competência, todavia, consistindo em um mero saber técnico adquirido com a simples experiência (cognitio experimentalis), revela-se enfim, superior à ciência terrena possuída pelo pedante filósofo aristotélico, pelo grande doutor e pelo mestre de Paris, nutridos somente pela erudição do saber livresco e que, como afirma o místico alemão Johannes Tauler, ignoram o livro

rudição e por todos os sapientes”44 O idiota, afirma o Cusano, está

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43 “Afim que isso possa ser dito dele, mais tarde, na glória, é necessário que antes possa ser dito na sua miséria; e isso se pode dizer do homem que se humilha, e dele somente. Julgando-se miserável como Deus o julga miserável, conhece a enormidade do próprio crime e sabe que merece ser punido”: E. Gilson, La teologia mistica di San Bernardo, cit., p. 81. 4 J. Tauler, Die Predigten, traduzido por F. Vetter, Dublim-Zurique, Weidmann, 1968, n. 78 (Domus mea domus oracionis vocabitur), p. 421; in Opere, trad. it. di B. de Blasio, Edições Paulinas, 1977, p. 542. Na atmosfera dos Gottesfreunde, comunidade religiosa do século XIV-XV, aparecida entre Estrasburgo e Basiléia e inspirada por Tauler – místico seguidor de Eckhart que não deixou de próprio punho nenhum escrito –, é encontrado um texto anônimo chamado Liber magistri (ou Lebens-Beschreibung), no qual se narra o seguinte episódio: “Um grande pregador, homem muito douto [...], encontra o ‘amigo de Deus’ (Gottesfreund) dos Países Baixos, um tipo de eremita que lhe mostra a inutilidade do seu ensinamento livresco, submetendo-o a toda uma série de provas a fim de provocar-lhe uma ‘conversão’, a qual, todavia, resulta ainda incompleta; motivo pelo qual, à sua morte, o pregador deverá padecer ainda seis dias de sofrimento assustador no Purgatório. Hoje se sabe que este curioso texto é oriundo, se não das suas próprias mãos [= de Tauler], pelo menos do círculo mais próximo ao banqueiro Merswin, de quem Tauler foi por algum tempo confessor. O Liber magistri contém toda uma série de histórias edificantes na qual o profano (o idiota) faz a pregação ao seu cuidado”: in M. De Gandillac, Genèses de la modernité, cit., p. 367. Para o Liber magistri veja Joannis Tauler, Opera Omnia, Colônia, ex Officina Ioannis Quentel, 1668, p. IX-XL. Também o idiota, entendido como “leigo devoto” (frommer Laie: cf. M. De

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junto à ciência da sua ignorância não em virtude dos livros que fazem o saber dos oradores e dos eruditos, mas sim daquele de Deus (ex Dei libris), que ele “escreveu com o seu dedo” (suo digito scripsit) e se encontra em toda a parte.

Gandillac, Nikolaus von Cues. Studien zu seiner Philosophie und philosophischen Weltanschauung, cit., p. 48-9), cuja figura assume no Cusano valores ético-religiosos – e, com efeito, falou-se de uma “Teologia do idiota” (Laientheologie) do Cusano, que teria como apropriado precedente histórico J. Ruysbroeck, os Gottesfreunde e, portanto, a Devotio moderna (cf. R. Steiger, Introduzione a Idiota de sapientia/Der Laie über den Geist, cit., p. 21) –, atinge a presença de Deus numa cognitio Dei experimentalis: trata-se de uma experiência espiritual comunicada diretamente por Deus, diante de cuja imediatez o filósofo e o teólogo podem apenas pasmar, reconhecendo, enfim, em que está em grau de elevar-se assim a Deus um “homem quase divino” (o inspirado da graça), “quia instructorem non habuit nisi spiritum sanctum”: cf. Dionigi Certosino, Tractatus 2 De donis spiritus sancti, art. XIII, obra incluída nas traduções latinas organizada por Laurentius Surius das obras de Ruysbroeck: cf. Iohannis Rusbrochius, Opera omnia ex Brabantiae Germanico idiomate reddita Latine, Colônia, ex Officina Haeredum Ioannis Quentel, 1552 (As palavras de Dionísio Certosino referem-se ao mesmo Ruysbroeck), p. 7-8. Ao círculo dos Gottesfreunde, sustenta Gandillac, pertenceria também, além do já recordado banqueiro de Estrasburgo Merswin, que em 1347 fundou em Grünenwörth uma comunidade inteiramente místico-espiritual, Santa Catarina de Siena, Heinrich von Nördlingen, Christine e Margarete Ebner. Todos estes, influenciados pela doutrina eckhartiana segundo a qual, já in hoc saeculo e além de toda ciência erudita, seria alcançável o ápice da ϑεωσις, “com pretensão de uma união perfeita [com Deus] no amor estático acompanhavam, harmonizando-o com essa, o motivo de uma mais íntima forma de vida espiritual”: Nikolaus von Cues. Studien zu seiner Philosophie und philosophischen Weltanschauung, cit., p. 49-50. No Cusano, todavia, a crítica do saber livresco e da erudição, segundo Gandillac, está também enquadrada no interior das afirmações do novo saber matemático (que terá como último êxito o Discours de la méthode de Descartes) reivindicado pelo artesão que, no Idiota propriamente, mostra as suas competências técnico-científícas através da sapiente produção do coclear speculare: ele se apresenta, de fato, “como um reformador do pensamento racional, como um teórico do método, o qual não se contenta em atender, de modo passivo, uma inspiração celeste; ele, diferentemente, exercita mais a sua crítica nos confrontos do princípio de autoridade, mesmo enquanto conhece uma outra fonte do conhecer” (o saber conjetural na base da ciência moderna, cujo precedente é dado nas suppositiones de Ockham) para contrapor ao velho modelo aristotélico: ibidem, p. 58.

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is scientiae, tem até o fervor de prometer uma lucidationem aeternae Sapientiae, enquanto quem sabe que é pequeno, obre e ignorante é consciente que “aquele tesouro resta escondido aos

olhos de todos os sapientes, e não tem outro motivo de glória que saber de ser pobre” (ApDI 4; 209): Doctior igitur est sciens se scire non posse (Pos. 50; 276).

O erudito, bem diversamente, como segundo o Cusano sucede a Wenck, pensando-se mais rico em saber que os outros, ao invés de humilhar-se e regozijar-se daquela “santa ignorância”, consciente de si, que somente conduz retamente a Deus, ensoberbece; ele, inflatus vanitate verbalep

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Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 297-299

RESENHAS

Strawson, P. F. Ceticismo e Naturalismo: algumas variedades. Tradução de Jaimir Conte. São Leopoldo: Editora Unisinos,

2008, 114 páginas

Itamar Luís Gelain* Ceticismo e Naturalismo de Peter F. Strawson é dedicado, sobretudo, ao naturalismo, conforme indica o próprio título. A referida obra, segundo o autor, atende a dois propósitos diferentes, embora, relacionados. O primeiro, no campo da epistemologia, mostra a ineficácia dos argumentos transcendentais, usados primeiramente na obra Indivíduos, para fazer frente ao ceticismo no que diz respeito a determinadas crenças ou pressuposições que integram o esquema conceitual. Esse reconhecimento é motivado pelas críticas que Barry Stroud teceu no artigo Argumentos Transcendentais de 1968, à estratégia transcendental strawsoniana. Strawson reconheceu como legítimas as críticas e propôs o naturalismo como a nova arma para neutralizar o ceticismo. Esse naturalismo está inspirado em Hume e no segundo Wittgenstein. Enquanto o primeiro propõe o naturalismo como refúgio do ceticismo, o segundo pensa que os questionamentos céticos podem ser enfrentados num “campo teórico”. Seguindo, portanto, a argumentação de Wittgenstein, Strawson afirma que as crenças que o ceticismo quer por à prova não carecem de justificação racional, pois, estas possuem um estatuto diferenciado das proposições empíricas que são suscetíveis de verificação. Ou melhor, algumas crenças – como a do mundo externo – integram a estrutura do esquema conceitual, ou seja, definem “o campo de nossa competência racional e crítica”. Desse modo, se o ceticismo coloca em dúvida tais crenças, ele estaria negando “a condição de possibilidade do pensamento em geral”. Nessa perspectiva, o

*Mestre em Filosofia pela UFSM. E-mail: [email protected]. Resenha recebida em 30.10.2008 e aprovada em 12.12.2008.

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naturalismo strawsoniano como resposta aos questionamentos céticos consiste em aceitar certas tendências naturais a crer em determinadas coisas, certos hábitos de pensamento que não podem ser colocados em dúvida, pois se estes são questionados, torna-se impossível não somente de viver, como assinalou Hume, mas impossível de se iniciar qualquer pensamento, como sugere Strawson .

Ainda que Strawson tenha aceitado o criticismo de Stroud em relação aos argumentos transcendentais é importante sublinhar que estes argumentos não são abandonados definitivamente. Valendo-se do lema de Forster – apenas conectar – Strawson atribui aos argumentos transcendentais a função de conectores conceituais. Em outras palavras, esses argumentos não são mais pensados como anticéticos, pois, os mesmos têm por papel, agora, mostrar tão somente as conexões conceituais no interior do esquema conceitual.

O segundo propósito da obra, posto no campo da moralidade, da filosofia da mente e da teoria do significado, visa mostrar as limitações de posições reducionistas no que concerne ao estudo da realidade. Esse tipo de posição é assumida pelo naturalismo estrito ou reducionista, o qual acaba deixando fora da explicação teórica campos inteligíveis da linguagem, como é o caso da moral, das qualidades secundárias e das entidades intencionais, que por sua vez são relegadas ao âmbito do “meramente subjetivo”. Contra o naturalismo estrito ou reducionista, propõe-se um naturalismo “católico” ou “liberal” no intuito de frear o imperialismo intelectual tão característico de disciplinas particulares e, sobretudo, da ciência. O naturalismo liberal strawsoniano busca integrar ao tratamento teórico “certos tipos de entidades” que “nos referimos na linguagem cotidiana” e que são descartadas pelo naturalismo reducionista.

Para resolver aparentes conflitos entre perspectivas distintas (naturalismo liberal e reducionista) que se pode adotar no que diz respeito à moralidade e às entidades intencionais, Strawson propõe o “movimento relativizador”. O “movimento relativizador” busca atenuar o conflito entre a visão do cientificismo e a do “senso comum” (linguagem ordinária ou cotidiana)”. Dito de outra maneira, de modo mais preciso, tal movimento tenta mostrar que de fato não existe conflito algum entre ambas as posições, pois, não há “um ponto de

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vista metafísico absoluto a partir do qual podemos julgar entre os dois ponto de vistas”. Essa posição strawsoniana está sedimentada no seu projeto de metafísica descritiva, o qual visa descrever a “estrutura de nosso pensamento sobre o mundo”, ou seja, elucidar os conceitos mais gerais que constituem o esquema conceitual e, que são pressupostos consciente ou inconscientemente pelas disciplinas particulares e pela “ciência” em suas investigações.

Por fim, queremos apontar aqui duas observações acerca da tradução realizada pelo professor Jaimir Conte. Antes disso, no que concerne a tradução em geral, deve-se dizer que a mesma cumpriu o requisito primordial, ou seja, mais que traduzir palavras traduz-se idéias e conceitos. E isso foi seguido rigorosamente pelo professor Conte, e por isso temos uma excelente tradução em língua portuguesa da obra Ceticismo e Naturalismo.

As observações acerca da tradução são as seguintes. A primeira se refere à tradução da expressão “only connect”. O professor Conte acabou traduzindo a mesma pela expressão “apenas relacionar”. Esta tradução não é a mais apropriada. Como alternativa proponho a expressão “apenas conectar”. Pois Strawson, quando usa esta expressão, está se referindo ao novo papel dos argumentos transcendentais em virtude das críticas de Stroud. E ele diz que os argumentos transcendentais têm a função de mostrar as conexões conceituais, ou melhor, os argumentos transcendentais são conectores conceituais no interior do esquema conceitual. A segunda observação diz respeito à tradução da palavra “parallel” por analogia e paralelo. Strawson, quando usa a palavra “parallel”, não está pensando em falar por meio duma analogia. Na verdade, ele está querendo falar a partir de um paralelo ou um paralelismo entre dois casos ou pontos de vista. Nesse caso, o pararelismo é posto com o “movimento relativizador” que busca “reconciliar” duas posições teóricas aparentemente conflitantes. Portanto, traduzir “parallel” por analogia pode ser um pouco perigoso. Considerando isso, proponho que a tradução mais apropriada para “parallel” seja paralelo ou paralelismo em vez de analogia.

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McGinn, Colin. Shakespeare’s Philosophy: Discovering the meaning Behind the Plays [A filosofia de Shakespeare: descobrindo o significado atrás das peças]. New York: Harper, 2008. 230 páginas

Sandra S. F. Erickson* Graduado em Oxford University, Colin MaGinn (1950-) é professor titular de Filosofia em University of Miami, tendo lecionado previamente em University College of London, Oxford e Rutgers University. Ele publicou vários livros sobre Ética, Filosofia da Linguagem e Estética e também um romance (The Space Trap, London, Duckworth, 1992). O título me chamou a atenção porque, ainda que Shakespeare não tenha sido um filósofo, suas peças merecem um tratamento filosófico a rigor, ou seja, leituras sob perspectivas e metodologias filosóficas. Li, na livraria, o prefácio onde o autor observa que “um estudo filosófico de Shakespeare valeria a pena” e que, estando em sabático (espécie de estágio pós-doutoral nos Estados Unidos) ele fez tema seu projeto de pesquisa (p. vii). Interessei-me por duas razões: sempre pensei que um estudo rigoroso das peças de Shakespeare sob o escrutínio de conceitos e metodologias filosóficas seria uma adição bem vinda na vasta fortuna crítica do assunto e, segundo, um comentário do autor, logo no primeiro capítulo, de que “Estudos críticos tendem a focar nas questões de personagens, trama e dicção, bem como nos contextos sociais e políticos das peças, mas as idéias filosóficas ao redor delas recebem apenas menção” (p.1) atraiu minha atenção. O autor continua explicando que “isso, sem dúvida, acontece porque aqueles profissionalmente envolvidos com os estudos shakespeareanos não são, geralmente, filosófos por treino [educação formal] ou inclinação [gosto,

* Professora adjunta do Departamento de Letras da UFRN. E-mail:

[email protected] . Resenha recebida em 20.10.2008, aprovada em 12.12.2008.

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interesse]; eles são [alás!] pesquisadores literários” e, leitores, chequem a conclusão radical: “Filosofia, talvez, os faz [aos críticos literários] nervosos” (p.1). Sendo eu membro da tribo desses profissionais do campo literário, entre curiosa e nervosa resolvi resenhar um livro que prometia tanto. Eis o resultado de minha leitura. As traduções das citações são todas minhas. Além do Prefácio, o livro tem doze capítulos, uma sessão de Notas, a Bibliografia e um Índice. O primeiro capítulo, “General Themes” [Temas Gerais], trata, conforme o próprio título, dos temas gerais do livro e introduz uma discussão sobre os temas gerais da obra de William Shakespeare, alguns dos quais são tratados mais detalhadamente nos capítulos nove a onze, quais sejam: “Shakespeare and Gender” [Shakespeare e gênero), “Shakespeare and Psychology” [Shakespeare e a Psicologia], “Shakespeare and Ethics” [Shakespeare e a Ética] e “Shakespeare and Tragedy” [Shakespeare e a tragédia]. O capítulo dois trata de Um sonho de uma noite de verão, o três de Hamlet, o quatro de Otelo, o cinco de Mcbeth, o seis de Rei Lear, o sete de A tempestade; e o doze da questão – que nunca foi uma questão – do gênio de Shakespare. No Prefácio o autor comenta que começou sua pesquisa assistindo às versões fílmicas das peças e estudando carefully [cuidadosamente] os comentários críticos. No final ele garante que “está abordando Shakespeare de uma perspectiva especificamente filosófica” (p. viii). Esse comentário é intrigante porque segue-se a uma citação de William Hazlitt (1778-1830), filósofo inglês que ficou conhecido como crítico literário especialmente por seus comentários sobre Shakespeare publicados como Lectures on the Literature of the Age of Elizabeth and Characters of Shakespear's Plays (1817), ainda hoje reconhecido como relevante pelos críticos shakespereanos. Mas, nenhum crítico shakespeareano que se preze começaria uma pesquisa assistindo versões fílmicas das peças, porque elas raramente , reproduzem o texto integral, e, quando o fazem sempre introduzem mudanças que, ainda que pequenas, afetam o argumento da peça (como o Otello de Oliver Parker, 1995; o Hamlet de Kenneth Branagh e o Romeu e Julieta de Baz Luhrmann, ambos em 1996), atrapalhando,

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assim, a análise dos textos, especialmente quando se pretende uma abordagem filosófica dos mesmos. É estranho constatar que o autor discute a pertinência de estudos filosóficos sobre Shakespeare como se nenhum outro filósofo nos quatrocentos anos de escritura shakespereana tivesse se interessado pelo assunto, dando a entender ao leitor desavisado – que certamente não está entre os estudiosos e pesquisadores dos estudos shakespereanos na área de literatura – que seu estudo é pioneiro. A bibliografia não é seletiva. Conforme o autor faz questão de notar é uma “lista que contém tanto os livros que são citados no texto como os que eu consultei enquanto preparava esse livro” (p. 211). Assim, é igualmente estranho que tal bibliografia seja tão restrita (trinta itens) em se tratando de um assunto que possui uma fortuna crítica quilométrica. Tal insuficiência e falta de representatividade bibliográfica demonstra a familiaridade apenas superficial do autor com o tema que também caracteriza suas análises e a omissão, inclusive nessa parte do livro, dos powerhouses de Sophia que já trataram em um nível ou outro de profundidade do bardo inglês como G.W.F. Hegel (mencionado apenas de passagem nas páginas 47 e 96, mas sem constar na bibliografia). Estranho ainda é a ausência dos tratamentos contemporâneos do mesmo assunto: Shakespeare e a filosofia, a filosofia e Shakespeare sobre o qual existe um considerável número de importantes publicações como a do filósofo profissional (quer dizer por formação e exercício profissional) Walter Arnold Kaufmann, Shakespeare to Existentialism: An Original Study; Essays on Shakespeare and Goethe, Hegel and Kierkegaard, Nietzsche, Rilke, and Freud, Jaspers, Heidegger, and Toynbee (Princeton University Press, 1980), cuja obra Tragedy and Philosophy (1968), alas, consta na parca bibliografia do autor e de Philosophy and Shakespearean Drama, de Tzachi Zamir (Princeton University Press, 2006). Professor tanto de filosofia quanto de Literatura Inglesa na Universidade de Tel Aviv, Zamir escreveu vários ensaios sobre o assunto, especialmente ceticismo, niilismo e ética em Hamlet, Otelo e Mcbeth, peças que interessam particularmente a MacGinn. Estranho também é o fato de que, McGinn atribui a falta de rigor filosófico nas exegeses de textos shakespereanos ao fato de que tal

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exercício é executado por profissionais sem treino e sem apreciação filosófica, porém, na vasta fortuna crítica do bardo, uma percentagem grande de comentadores são filósofos estrito senso (René Descartes, Voltaire, Montaigne, Kant, Schopenhauer, Giocomo Leopardi, Hegel, Nietzsche, Kierkegaard, Ortega y Gasset, Hume, J. Stuart Mill, Wilhelm & Friedrich Schlegel) ou pensadores (intelectuais com formação filosófica, mas em exercício em outras áreas) respeitados na tradição ocidental (Freud, Thomas Carlyle, Goethe, Victor Hugo, Leo Tolstoy, Gustave Flaubert, Shilling, Coleridge, Stendhal, Tennyson, Mathew Arnold, Waldo Emerson, Henry David Thoreau, Oscar Wilde). Entre comentaristas ou escritores mais contemporâneos cite-se, no primeiro grupo, Jean Paul Sartre, Ludwig Wittgenstein, T.S. Eliot, George Santayana, Benedetto Croce, George Steiner e no segundo Gustave Flaubert, Albert Camus, Dostoevsky, W.H. Auden, Thomas Mann, Jorge Luis Borges, Jaques Derrida, Terry Eagleaton e Stanley Cavell. As teses mais importantes e os melhores momentos argumentativos do livro são construídos a partir das associações que ele faz entre Shakespeare e Montaigne. Todavia, o próprio autor ressalta, logo na página 6, que “já foi estabelecido por estudiosos que Shakespeare estudou e absorveu os escritos de Montaigne”; mas essa importante informação aparece no texto como um parêntesis e não como uma referência bibliográfica já constituída e, portanto, devendo ser citada e revisada antes de se ressaltar as diferenças e acréscimos. Na bibliografia nada consta, além de uma coleção dos ensaios de Montaigne. O leitor não pode avaliar a importância ou a utilidade dos argumentos do autor desde que ele não menciona quem e onde estabeleceu, na historiografia shakespeareana, a influência do pensador francês já assinalada desde 1897 em Montaigne and Shakespeare and Other Essays on Cognate Questions, de John M. Robertson e Shakespeare’s Debt to Montaigne [A dívida de Shakespeare para com Montaigne], de George Taylor (Cambridge: Harvard UP, 1925). Em termos de artigos em jornais acadêmicos há vários precedentes para McGinn. Cite-se pela “precedência temporal”, o artigo de Elizabeth Hooker em “The Relation of Shakespeare to Montaigne” [A relação de

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Shakespeare com Montaigne] (PMLA 17, 1902, p. 313-366), o de Alice Harmon “How Great was Shakespeare’s Debt to Montaigne?” [Qual é o tamanho da dívida de Shakespeare para com Montaigne?] (PMLA 57; 1942, p. 988-1008) e Margareth Hodgen “Montaigne and Shakespeare Again” [Montaigne e Shakespare novamente], Huntington Library Quarterly, 16, 1952, p.23-42), onde, no próprio “novamente” do título existe a indicação da recorrência do assunto há mais de um século atrás. Há muitos outros, mas esses pioneiros são suficientes para se concluir que as teses de McGinn não são novidades. A omissão da fortuna crítica se faz especialmente relevante quando o autor elogia Shakespeare por sua “honestidade brutal” (p. 6). Muitos comentários são difíceis de qualificar e de avaliar, como, por exemplo, quando o autor diz que “acredito que Shakespeare estava muito interessado na questão do ser e sua persistência através dos tempos, particularmente em Hamlet” (p. 9) e a tese de que “loucura é uma preocupação conspícua de Shakespare” (p. 9). Os dois pontos são pacíficos na literatura shakespeareana. A parte mais interessante da discussão de McGinn é a que ele, emprestando idéias de Sartre em Ser e nada, que ele cita longamente na página 47 mas não tem o cuidado de incluir na bibliografia, e sua ponderação sobre o que é, em sua opinião, o quebra-cabeça central da peça, a saber, a causa da demora de Hamlet de agir. Mas, infelizmente, para o autor, os dois temas-problemas também possuem uma longa lista de referências, não apresentando novidade ou mesmo insight importante. Fica ainda mais difícil levar o autor à sério quando ele afirma como se estivesse descobrindo a roda, que Shakespeare estava muito interessado na “questão da natureza do ser [self] e sua persistência [do ser] no tempo” (p. 9). No capítulo 2, dedicado a análise de Um sonho de uma noite de verão, ele contenda que “sonho é precisamente um tipo de exposição do sono – uma estória contada pela mente adormecida” (p. 26) quando a mente opera num modo imaginativo (p. 29). Aqui, a análise do autor seria enriquecida e melhor articulada se conceitos neoplatônicos fossem acionados. Em vez, ele prefere a rota mais curta do conceito de imaginative seeing [visão imaginativa] de Wittgenstein que ele não consegue aplicar (ou mesmo articular) de forma satisfatória. A discussão

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retorna no capítulo sobre Hamlet, onde ele comenta as reflexões de Shakespeare sobre a natureza da associação entre sono, sonho e loucura, nesse caso, fuga da realidade exterior à mente. Esses temas, sabem os estudiosos de Will, são tão recorrentes na fortuna crítica do bardo que se tornaram lugares-comuns e, por isso, a bandeira de qualquer um pode ser hasteada nesse território. Sua discussão da etimologia da palavra mysterian (p. 57) que aparece em uma das falas de Hamlet reverte a uma doutrina, “mysterianismo,” para a qual o autor oferece apenas uma nota onde indica, ao leitor, outra obra sua. Do grego Gr mystērion, mystery (mistério) significa um rito secreto, divino ou sagrado mystēs. É uma palavra diretamente ligada ao orfismo e as religiões de mistério antigas. A citação aparece no Ato III, cena 2 e é a seguinte:

[Hamlet] Why, look you now, how unworthy a thing you make of me! You would play upon me; you would seem to know my stops; you would pluck out the heart of my mystery; you would sound me from my lowest note to the top of my compass: and there is much music, excellent voice, in this little organ; yet cannot you make it speak. 'Sblood, do you think I am easier to be played on than a pipe? Call me what instrument you will, though you can fret me, yet you cannot play upon me. (Hamlet, Act 3, Scene 2).

Cuja tradução literal é:

Bem se vê como vocês fazem de mim uma coisa sem mérito! Vocês fariam troça de mim; vocês parecem conhecer minhas paradas; vocês arrancariam fora o coração do meu mistério; vocês me soariam das minhas notas mais baixas ao topo do meu compasso: e existe tanta música, excelente voz, nesse pequeno órgão; todavia vocês não podem fazê-lo falar. Pelo sangue de Jesus, vocês acham que eu sou mais fácil de tocar do que uma flauta? Me chame por qualquer instrumento que quiserem, ainda que vocês não possam tocar meus trastes,1 ainda vocês não podem tocar/jogar sobre mim.

1 Do inglês medieval, freten, fret (trastes/trasto) significa devorar, mas se refere àquela

parte no braço do violão (e outros instrumentos de cordas afins) que separa as casas; significa ainda pressionar (as cordas de um instrumento contra os trastes) e,

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A passagem é repleta de referências neoplatônicas, as quais negritamos no texto. Além do conceito de “mistério” que, na citação, tem o significado de algo escondido o qual Hamlet merece, mas é considerado indigno (sem mérito) por seus interlocutores, veja-se as referências à música, ao compasso, o jogo de palavras (mais evidente no inglês) entre fala/conhecimento aberto e fechado, e, no final a conclusão irônica de Hamlet de que, mesmo estando falando abertamente sobre seu estado de iniciado, ele não é entendido por seus interlocutores (não iniciados). Assim, MacGinn perde uma oportunidade ímpar de, juntando os ingredientes, propor uma leitura da peça em termos neoplatônicos, existencialista ou fenomenologista: ser (ou não ser), estar ou não estar no mundo, tempo, sono, sonho, mistério, a vida fenomenal como estado de doença da qual escapamos (nos curamos) quando morremos (deixamos de ser e de estar no mundo e no tempo), melancolia. Em várias partes do livro, McGinn se refere a relação entre sono, sonho e loucura (p. 10) que tanto interessou ao bardo, chegando a citar uma passagem longa das Meditações de Descartes sobre o tema (p. 18). Se referindo à Sonho de uma noite de verão, o autor argumenta que “o sonho é precisamente um tipo de exposição do sono – uma estória contada pela mente adormecida” (p. 26). Todavia, ele não percebe o tratamento platônico – melhor ainda – neoplatônico que Shakespare dá ao tema em várias peças onde morrer e estar dormindo são estados de ser que podem ser cambiáveis, e ainda as diversas especulações sobre a pedagogia do sono e do sonho que aparecem em Hamlet, Romeu e Julieta, Rei Lear, Antônio e Cleópatra, muitas vezes exatamente nesse sentido em que a mente (adormecida) conta a si mesma uma estória ou em que o sono aparece como uma terapia. Por isso, é relevante que o fantasma do pai de Hamlet lhes aparece enquanto ele está desperto e não em sonho ou em estado de sono. No capítulo sobre Otelo, encontramos, finalmente um insight à altura de um filósofo: “ciúme é uma emoção, não um estado de conhecimento, mas tem relações interessantes com estados cognitivos”

coloquialmente irritação/agitação da mente. Todos esses sentidos são contemplados no emprego da palavra, que é um pun (jogo de palavras) na citação acima.

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porque “carrega um poderoso desejo de se conhecer junto com evidências distorcidas pelos sentidos,” que inspira o autor a caracterizar as relações dos personagens com a linguagem e com suas interioridades como “estado de ansiedade epistemológica” (p. 82). Todavia ele não desenvolve as teses, que são lançadas junto com sua preocupação de lecionar o leitor sobre ceticismo e revisitar os ensaios de Montaigne “Sobre a crueldade”, de Hazlitt sobre Otelo e comentários sobre a natureza do bem e do mal de Agostinho (não constante na bibliografia) que servem de paradigmas para sua leitura da peça. Porém a frase “estado de ansiedade epistemológica” é “quite” (bacaninha). No capítulo sobre McBeth, McGinn, como todo estudante de literatura, compara a peça com Otelo. Mas, aqui (p. 96) ele cita Hegel (apud o não filósofo em exercício ou formação, Harold Bloom), mas sem muito efeito, desde que nenhuma consideração é tecida e a citação é simplesmente pendurada no texto. Ainda o fato de que um filósofo cite outro apud um crítico literário sem formação filosófica faz a gente balançar a cabeça em desânimo e em estado de ansiedade epistemológica. McGinn apresenta – novamente sem desenvolver – a tese de que “Shakespeare insiste na centralidade da imaginação na mente humana” (p. 99). Aqui, ele poderia explorar a possibilidade de Shakespeare ter concebido, antes do Romantismo, a imaginação (assim como o ciúme) como um modo de conhecer. Ele cita (provavelmente por Shakespearean Tragedy que explora as relações do conceito hegeliano de tragédia e Shakespeare) o não filósofo e crítico favorito de Harold Bloom, A.C. Bradley (1851–1935) como “o comentador de Shakespare mais perspicaz” [sic] (p. 101) e disserta sobre os poderes deceptivos da imaginação e a autencidade como um modo de vivência. Esses temas poderiam ter sido analisados sob a ótica da fenomenologia de Hursserl e Heidegger – ou o autor poderia remeter o leitor à Kaufman... Tendo como ponto de partida o símile de que o universo é como um relógio desenhado por um ser racional (apropriada do determinismo matemático de Newton), as formulações de Hume sobre causalidade, e algumas considerações de Ser e nada retomadas da discussão de Hamlet, a análise supostamente filosófica de Rei Lear é,

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igualmente pobre e mal formulada, apesar de pincelar (sem nomear e sem desenvolver) as teses Heideggerianas de que a morte é um tipo de nada que é vital, enquanto que o medo é um tipo de nada que é “morto” que são, realmente, pertinentes à peça e que, se desenvolvidas, resultariam em uma contribuição substancial para sua fortuna crítica. Porém o autor chegou nessas teses via o ensaio “Uma apologia para Raymond Sebond”, de seu “pai poético” (para usarmos uma terminologia de Harold Bloom) Montaigne. Acrescente-se ainda que o autor faz uma observação preciosa sobre a recorrência de números na peça, comentando que “Shakespeare está trabalhando com a matemática básica do universo, notando nossa submissão à suas leis.” A conclusão do autor: “apesar de que muitos anos se passariam até que Newton submetesse o universo à uma série de equações matemáticas” (p. 117). Aqui, mais uma vez, o autor perdeu o bonde da história, pois esse interesse de Shakespeare em retratar a arquitetura do universo em termos de simbologias e analogias matemáticas vem do neoplatonismo e não de um senso profético, como McGinn parece indicar. Outro valioso tiro n’água é a observação do tema do desabrigamento, do “sem lar” (que em inglês, homelessness, soa mais substancial) e sua co-relação com o nada e o nadir que dariam supimpas rodadas de Heidegger regadas de neoplatonismo, mas, ao invés ficaram perdidas nos lugares comuns de que “a natureza humana é parte da natureza” (p. 124), a peça é naturalística e “Shakespeare organizou uma representação de oposição formal entre bem e mal como se cada força tivesse seus próprios batalhões” (p. 126). Frase deveras bonita, alas, fosse novidade! Alas fosse uma tirada filosófica que ninguém mais tivesse tirado da peça! A análise de A tempestade começa com a bela citação das Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, constante na bibliografia, de que filosofia é “‘a batalha contra o enfeitiçamento de nossa inteligência através dos meios da linguagem’” (p. 135) que o autor complementa com dizeres do tipo “o poder da linguagem é misterioso” (p. 136) e, assim, “não é inapropriado para Shakespeare associar a fala com bruxaria” (136-137), que, registre-se, só acontece em MacBeth e em nenhuma outra peça. Segue-se uma brevíssima discussão do que é significado que acaba numa referência à teoria de Platão de que o

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significado reside fora da coisa/ser (significante) propriamente, no domínio dos números e das formas geométricas. Para referendar sua proposição, o autor remete o leitor à uma pequena nota onde se lê que “em adição a Frege, Karl Popper adotou tal visão” e recomenda “ver Objective Knowledge (Oxford: Oxford University Press, 1972).” Complementando que “não nos surpreende que oponentes dessas idéias acusaram os platonistas de traficar em mágica,” ele, então, assegura que “não precisamos entrar nesse debate aqui” (p. 137). Seguem-se comentários confusos sobre os poderes e limites da linguagem, concluindo o capítulo com assertivas que já não têm mais a ver com significado ou significante ou nada do gênero, tipo: “o Grande Sono cerca a vida dos dois lados” e perguntas sobre se é melhor ou pior não existir para a eternidade depois [da vida] do que não ter existido antes e tal e tal e tal... (p. 152). Assim, o leitor verdadeiramente interessado nas promessas do subtítulo do livro de McGinn, a saber, descobrir o significando filosófico atrás das peças, fica, além de a ver navios na beira do cais, ludibriado. As discussões sobre gênero, ética e psicologia em Shakespeare possuem uma fortuna crítica monstruosa, especialmente, na contemporaneidade. Sobre a questão de gênero sua discussão já começa empobrecida porque ele não trata de O mercador de Veneza, sendo o locus classicus na literatura do assunto Shakspeare's Heroines: Characteristics of Women, Moral, Poetical and Historical, de Anna Jameson (London: George Bell and Sons, 1891), a coletânea de Deborah E. Barker e Ivo Kamps, Shakespeare and Gender: A History (London: Verso, 1995) e Shakespeare and the Nature of Women, de Juliet Dusinberre (London: Macmillan, 1996) preferíveis ao tratamento que McGinn dá ao tema. A questão da Ética em Shakespare é um campo minado, mas com uma literatura fascinante, uns defendendo a eticidade do bardo, outros a dos personagens, outros como Bloom, a perspectiva amoral de peças, de seus personagens e do próprio autor. McGinn concorda com a visão mais ortodoxa promovida por Bloom, de que Shakespare não se interessa em atingir nenhum fim político ou moral, mas trata a moralidade como parte da natureza (humana), muito embora ele contende que os “personagens shakespeareanos são acima de tudo, seres

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éticos, definidos por suas qualidades morais, suas virtudes e vícios” (p. 178), ficando sua posição comprometida. Nada demais ele acrescenta e, como nas demais considerações, muito de menos, pois falta sempre a substância “sofial” que supostamente é o cerne do livro. “Shakespare e a tragédia” (capítulo onze) é deveras pobre. O autor discorre – melhor, corre – sobre o conceito de drama e tragédia e sobre a natureza do trágico com a insuportável leveza da superficialidade em assunto que interessa, cada vez mais, tanto a tantos. É difícil de entender como é que num livro que pretende revelar a relação de Shakespeare com a filosofia e fazê-lo filosoficamente, A poética, de Aristóteles nem tenha sido mencionada, especialmente porque, enquanto Dr. Samuel Johnson, no famoso Preface to Shakespeare (1765) desculpa o bardo pela não observância das prescrições da Poética, T.S. Eliot não “amansa,” considerando Hamlet uma peça ruim, do ponto de vista formal exatamente pela falta de rigor aristótelico do ponto de vista estrutural. Aliás nenhum conceito das duas categorias (tragédia e trágico) é oferecido ao leitor, apenas comentários aqui e ali sobre algumas categorias trágicas mal alinhavados e breves, como “a arte de Shakespeare é imitativa ou mimética” (p. 202, ênfase do autor). As seis páginas que ele dedicou ao assunto poderiam ter sido omitidas porque, francamente, não fazem a menor diferença. Existem algumas outras frases de efeito, ainda no prefácio, como “Shakespeare mantinha uma visão do homem e do universo que não tem uma denominação própria, mas que é aproximada a denominações como ‘pessimismo’, ‘niilismo’, ‘ceticismo’” (p. 15). Acontece que também aí, os bois já foram nomeados antes de McGinn e discussão de peças, temas e imaginário shakespeareano dentro e a partir dessas perspectivas filosóficas são comuns até nos textos escritos para introduzir às peças para um público mais geral nas edições das obras completas do autor como a editada por D. Bevington, (The Complete Works of Shakespeare, 3rd ed. Glenview: Foresman, 1980). Encontramos frases de uma ingenuidade pristina, como: “às vezes se supõe que o desenlace trágico numa tragédia shakespereana é inevitável – que, realmente, as coisas não poderiam ser de outro modo. Quando a gente vê os personagens e as situações nas quais eles estão envolvidos,

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podemos antecipar com certeza que as coisas vão acabar mal” (p. 197). É de se perguntar: o autor realmente compreende a definição de tragédia? De trágico? A inserção do projeto de Shakespeare na tradição dramatúrgica? Poupemo-lo da falta que faz a Poética, no tratamento do autor de drama (como gênero), oposto à espetáculo, como ele fez questão de notar (p. 9) e do self como entidade teatral e interativa (p. 10) que não vem de Shakespeare, tanto quanto do velho Ari. Mas, como desculpar a omissão de Hegel, Nietzsche, Walter Benjamim, Gilles Deleuze, Karl Jaspers? A distinção entre tragédia e trágico é um banquete de falas dos mais sensacionais na filosofia contemporânea. Não se pode entender como é que um estudo com a pretensão de revelar a filosofia atrás do trágico nas peças de Shakespeare se furte de sequer revisar e interagir com as teorias e a literatura do tema. A pergunta é: tem McGinn alguma contribuição e oferece ele um estudo realmente filosófico do assunto? Na página 15, ele reinventa a roda dizendo que “Shakespeare possuiu uma visão do homem e do universo que não tem um nome estabelecido, mas que se aproxima de rótulos como ‘pessimismo’, ‘nihilismo’ceticismo’” (p.15). O comentário do autor de que “Hamlet se descobre [revela] durante a ação dramática” (p.48) e “sofre de fraqueza da vontade” (p.49) é “emprestado” do, deveras nervoso, Harold Bloom. Ah! A velha discussão do caráter indecidido de Hamlet! Não aguento mais essa proposição (que Bloom também suporta), tão corrente quanto bem aceita na fortuna crítica da peça, que apresenta o protagonista – portador do agon – como um garoto mimado, trapalhão e indeciso e um tipo de intelectual sem adrenalina, quando o cara, que na verdade é um militar da tropa de elite do reino, mata em contextos diferentes, incluindo duelo a rigor, nove pessoas; está sempre ativo nos corredores dos podres e perigosos poderes do palácio, é exilado, e tenta, investigar um regídio que o faz sucessor de um trono usurpado não apenas por seu próprio tio, mas com a cumplicidade da própria rainha-mãe! Em suma, um cara com uma agenda e uma herança terrível, numa situação política de quase total isolamento, onde o mais sensato é mandar a namorada querida que o atraiçou para o convento e dar uma de doido e para quem o lugar mais seguro, é mesmo as vias mais

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públicas dos corredores e não as escondidas alcovas. Não, o doce príncipe não sofre de ataraxia, mas de um senso agudo de realismo e sua melancolia é bem mais fundada na análise fria e lógica de sua situação, do que numa carga exagerada de bílis negra ou na falta de um objeto específico de desejo. Finalmente, o livro é um espetáculo triste de argumentos e comentários pobres, mal formulados. Resultado de uma pesquisa mal feita, foi, evidentemente apressadamente composto. Teria sido mais interessante se o autor tivesse feito um levantamento da literatura do assunto – Shakespeare e a filosofia – listando e distinguindo as referências bibliográficas dos escritos dos filósofos e dos críticos com formação filosófica que já escreveram sobre o assunto, porque tal lista é enorme e para pesquisadores, como ele, que se interessam, seria deveras útil começar, como todo projeto de pesquisa que se preze, por um levantamento cabal e uma avaliação dos que já trilharam o mesmo caminho. Desse modo, ainda que sem teses originais, o livro poderia oferecer uma revisão criativa do assunto. Como postula Harold Bloom, todo escritor, seja filósofo, poeta ou apenas mero escriba da tradição escreve sob o signo do agon e sob a batuta da inveja criativa daqueles que os precederam. Todavia, antes de se proceder a remoção das pedras de qualquer caminho, é preciso, primeiro, o exercício humilde de avistá-las, mapeá-las e, se possível, como disse Braúlio Tavares em Sai da frente que lá vem o filósofo, atirá-las na cara dos adversários. A pobreza do texto de McGinn é indicativa de que ele sequer avistou o imenso território vastamente povoado de seu objeto agônico. O livro é um desses que poderiam não ter sido escrito e, não fosse o fenômeno de falta de leitura dos clássicos que afeta mais ainda a leitura dos textos dos comentaristas dos clássicos, provavelmente não seria sequer recomendado para publicação. Não acredite, leitor, na apreciação anônima na contra-capa do livro apresentando-o como “inovativo, provocador do pensamento” e como “uma experiência excitante.” Se você deseja esse tipo de aventura literária, leia Shakespeare the Thinker, de A. D. Nuttall (1937-2007). Orientando de Iris Murdoch, Nutall foi apenas um professor de literatura inglesa. Como Murdoch, ele não tem talvez o cacife de um

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filósofo, mas, sua leitura bem qualificada, possui um lugar destacado entre os exigentes comentadores shakespeareanos contemporâneos, quer sejam eles formalmente filósofos ou “nervosos” que não fazem da filosofia sua profissão, mas que sabem reconhecer a contribuição que a filosofia pode dar ao estudo da literatura e à prática da crítica literária.