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Problemas da obra/criação artística de Dostoiévski – “Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo” – 1929 Problemas da poética de Dostoiévski - “Probliémy poétiki Dostoiévskogo” – 1929

Problemas da obra/criação artística de Dostoiévski

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Page 1: Problemas da obra/criação artística de Dostoiévski

Problemas da obra/criação artística de Dostoiévski – “Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo” – 1929 Problemas da poética de Dostoiévski - “Probliémy poétiki Dostoiévskogo” – 1929

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Tese e objetivos em 1929 e 1963 “O presente livro limita-se somente aos problemas teóricos da obra/criação literária de Dostoiévski. Devemos excluir todos os problemas históricos. Isso não significa, no entanto, que consideramos correto e normal tal modo de análise. Ao contrário, pensamos que cada problema teórico deve ser orientado sempre historicamente. Entre a abordagem sincrônica e diacrônica à obra literária deve haver uma ligação ininterrupta e um forte condicionamento mútuo. Mas esse é um ideal metodológico. Na prática ele nem sempre se realiza. Aqui uma compreensão puramente técnica obriga às vezes de modo abstrato a separar um problema teórico e sincrônico e desenvolver sua autonomia. Foi isso que fizemos. No entanto, o ponto de vista histórico nos orientou o tempo todo; mais do que isso, ele serviu como base, na qual percebemos cada fenômeno escolhido. Mas essa base não entrou no livro. (Obras reunidas, 2000, p. 7)

Dosto iévsk i “cr iou um t ipo inteiramente novo de pensamento a r t í s t i c o , a q u e c h a m a m o s convenc iona lmen te de t i po polifônico” (...) “criou uma espécie de novo modelo artístico do mundo, no qual muitos momentos basilares da velha forma artística sofreram transformação radical. Descobrir essa inovação fundamental de Dostoiévski por meio da análise teórico-literária é o que constitui a tarefa do trabalho que oferecemos ao leitor” (p. 1)

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Método sociológico em 1929 “Na base da presente análise está a certeza de que cada obra literária é interna e imanentemente sociológica. Nela cruzam-se forças sociais vivas, cada elemento da sua forma é atravessado por avaliações sociais vivas. Por isso a análise formal pura deve tomar cada elemento da estrutura artística como um ponto de refração das forças sociais vivas, como um cristal artificial, no limite do qual são construídos e lapidados a fim de refratar determinados raios das avaliações sociais e refratá-los sob determinado ângulo(…) Na segunda parte detalharemos nossa tese em análises concretas do discurso e suas funções socio-a r t í s t i c a s n a s o b r a s d e Dostoiévski” (Obras reunidas, 2000, p. 7-8)

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MFL -1929 POD -1929 A última parte do trabalho apresenta um estudo concreto de uma questão de sintaxe. A ideia principal de todo o nosso trabalho - o papel produtivo e a natureza social do enunciado – precisa ser concretizada: é necessário mostrar o seu significado não apenas no que se refere à visão de mundo geral e às questões fundamentais da filosofia da linguagem, como também às questões particulares e mais específicas dos estudos linguísticos. Pois se uma ideia for verdadeira e produtiva a sua produtividade deve revelar-se em todos os seus aspectos. Além disso, o tema da terceira parte – o problema do enunciado alheio – possui por si só um grande significado que transborda os limites da sintaxe. Um série dos mais importantes fenômenos literários – o discurso do personagem (e em geral o modo como o personagem é construído), o skaz, a estilização, a paródia – são apenas as refrações diferentes do “discurso alheio”. A compreensão desse discurso bem como da lei sociológica que o rege é uma condição necessária para uma análise produtiva de todos os fenômenos literários enumerados por nós. Skaz é um tipo de narrativa literária em que o narrador não coincide com o autor e a sua fala é diferente da norma literária. O discurso do narrador de skaz reproduz a linguagem popular ou folclórica. A separação do skaz como um gênero isolado é próprio dos estudos russos e soviéticos, sendo pouco utilizado na teoria literária ocidental (N. das T.). (Introdução)

“Existe um grupo de fenômenos a r t í s t i co -d i s cu r s i vo s que na atualidade começa a chamar a atenção dos pesquisadores. Esse fenômenos é a estilização, a paródia, o skaz e o diálogo. Apesar da diferença essencial entre eles, todos esses fenômenos têm um traço geral em comum: o discurso tem aqui um orientação dupla: ao objeto do discurso, como palavra habitual, e a outra palavra, para o discurso alheio.” (Obras reunidas, 2000, p. 81)

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Polifonia Em uma entrevista concedida em 1971 ao jornalista polonês Zbugnev Podgujets à qual tivemos acesso no volume 6 das “Obras reunidas de M. M. Bakhtin”, Bakhtin faz as seguinte declarações esclarecedoras sobre o romance polifônico” Qual é, na sua opinião, o sentido fundamental da obra de Dostoiévski? Para Dostoiévski, a verdade no campo das questões mundiais últimas, não pode ser fechada nos limites de uma consciência individual. Ela não cabe em uma consciência. Ela abre-se, aliás sempre somente em parte, no processo de relação dialógica de muitas consciências igualitárias. Esse diálogo, segundo as últimas questões, não pode ser acabado, nem terminado, enquanto existir uma verdade humana pensante e em busca. O fim do diálogo seria igualmente a morte do ser humano. (2002, p. 458)

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Em primeiro lugar, está o modo particular como Dostoiévski constrói seus personagens e se relaciona com eles: À semelhança do Prometeu de Goethe, Dostoiévski não cria escravos mudos (como Zeus), mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele. A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autênticapolifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. (...) é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante. (BAKHTIN, 2010, p. 5) O modelo artístico de Dostoiévski compreende a criação de personagens independentes que se colocam lado a lado com o autor; a polifonia ocorre porque a voz do autor não impera sobre as das personagens, mas entra no grande diálogo do romance.

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Um segundo aspecto da visão artística polifônica do mundo refere-se ao personalismo do universo de Dostoiévski: O universo dostoievskiano é profundamente personalista. Ele adota e interpreta todo pensamento como posição do homem, razão pela qual, mesmo nos limites de consciências particulares, a série dialética ou antinômica é apenas um momento inseparavelmente entrelaçado com outros momentos de uma consciência concreta integral. Através dessa consciência concreta materializada, na voz viva do homem integral a série lógica se incorpora à unidade do acontecimento a ser representado. (2010, p. 8)

No romance polifônico, as ideias, os pontos de vista são inseparáveis da existência concreta dos sujeitos.

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Um terceiro aspecto é a articulação de materiais heterogêneos no todo do romance polifônico: Dostoiévski coaduna os contrários. Lança um desafio decidido ao cânon fundamental da teoria da arte. Sua meta é superar a maior dificuldade para o artista: criar de materiais heterogêneos, heterovalentes e profundamente estranhos uma obra de arte una e integral. Eis por que o livro de Jó, as Revelações de S. João, os Textos Evangélicos, a Palavra de Simião, Novo Teólogo, tudo o que alimenta as páginas dos seus romances e dá o tom a diversos capítulo combina-se de maneira original com o jornal, a anedota, a paródia, a cena de rua, o grotesco e inclusive o panfleto. (2010, p. 14-15) Esse material extremamente variado ganha unidade ao ser distribuído pelos diversos mundos e várias consciências plenivalentes dos personagens, que se combinam na unidade do romance polifônico.

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Em quarto lugar, no romance polifônico a ideia não é o princípio de representação, mas o objeto de representação: As ideias dos heróis, que servem de base a esse plano do romance são o mesmo objeto da representação, as mesmas “ideias-heroínas” como o são as ideias de Raskólnikov, Ivan Karamázov e outros. Não são, em hipótese alguma, princípios de representação e construção de todo o romance no conjunto, isto é, não são princípios do próprio autor como artista, pois, caso contrário, ter-se-ia um habitual romance filosófico de ideias. (2010, p. 27) O universo pluralista de Dostoiévski não caminha para uma síntese dialética, pois o autor não elimina nem resolve os conflitos colocados pelas suas personagens. A ideia em Dostoiévski é interindividual e intersubj etiva, é “acontecimento humano”(2010, p. 319), sua esfera de existência é a “comunicação dialogada de consciências”. (2010, p. 98)

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Em quinto lugar, as causas e fatores extra-artísticos que possibilitaram o romance polifônico estão no universo social de seu surgimento: Nesse universo social os planos não são etapas, mas estâncias, e as relações contraditórias entre eles não são um caminho ascendente ou descendente do indivíduo, mas um estado da sociedade. A multiplicidade de planos e o caráter contraditório da realidade social eram dados como fato objetivo da época. (2010, p. 30) A relação com o contexto sócio-histórico em que Dostoiévski escreveu seus romances é um fato decisivo na explicação de seu surgimento.

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Em sexto lugar, a essência da visão artística de mundo de Dostoiévski, de sua arquitetônica que orienta a integração de todos os elementos anteriormente descritos, é, segundo Bakhtin, a coexistência e a interação. Dostoiévski procura captar as etapas propriamente ditas em sua simultaneidade, confrontá-las, e contrapô-las dramaticamente, e não estendê-las numa série em formação. Para ele, interpretar o mundo implica pensar todos os seus conteúdos como simultâneos e atinar-lhes as inter-relações em um corte temporal. (2010, p. 31) �    É a capacidade de Dostoiévski de ouvir todas as vozes de uma vez e simultaneamente e a sua materialização nos limites de uma obra que caracteriza a sua percepção artística do mundo e seu romance polifônico.

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Em sétimo lugar, todos os elementos do gênero polifônico foram influenciados pela estrutura da imagem carnavalesca na literatura: A estrutura da imagem carnavalesca (...) tende a abranger e a reunir os dois polos do processo de formação ou os dois membros da antítese (...) Ora, dessa maneira pode-se definir o próprio princípio da obra de Dostoiévski. Tudo em seu mundo vive em plena fronteira com o seu contrário. (2010, p. 204) Esse princípio faz com que tudo deva refletir-se e enfocar-se mutuamente pelo diálogo e que os elementos separados se aproximem em um ponto espaço-temporal.

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Por fim, a passagem de um tema por muitas vozes nas quais recebe entonações e sentidos distintos é o princípio de construção do diálogo em estreita relação com o microdiálogo: Em todo parte é o cruzamento, a consonância ou a dissonância de réplicas do diálogo aberto com as réplicas do diálogo interior dos heróis. Em toda parte um determinado conjunto de ideias, pensamentos e palavras passa por várias vozes imiscíveis, soando em cada uma de modo diferente. (2010, p. 309-310) �   

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OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS

PRÉVIAS:

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Problemas da poética de Dostoiévski

� Capítulo amplamente alterado em 1963. Fragmentos do texto de 1929 sinalizam a mudança de enfoque de um método sociológico para um método dialógico.

� A palavra “discurso” do título é tradução do

termo russo “slovo”, que significa: “1. palavra, vocábulo, termo... 2. discurso, oração...”. A tradução espanhola traz o título “La palavra en Dostoievski”, a americana “Discourse in Dostoevsky” e a francesa “Le mot chez Dostoïevski”.

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Concepção de discurso/linguagem/palavra (slovo) �  Metalinguística: a

língua (iazyk) em sua integridade concreta e viva

�  Objeto: relações dialógica e relações dialógicas do falante com sua própria fala(p. 182)

�  Linguística: língua (iazyk) abstraída de a l g u n s a s p e c t o s concretos da vida do d i s cur so /pa l av r a /linguagem (slovo)

�  I n c a p a z d e i n d e n t i f i c a r a p o l i f o n i a e m Dostoiévski

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Texto x enunciado

� Relações dialógicas ocorrem entre enunciados integrais não entre textos (p. 182)

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Relações dialógicas (p. 183-184) �  Extralinguísticas �  Língua como fenômeno concreto e integral �  Em todas as esferas da língua �  Linguagem/discurso são de natureza

dialógica �  Ocorrem nos enunciados enquanto

diferentes posições de sujeitos/autores-criadores

�  Pressupõem relações lógicas e objetivo/concreto-semânticas

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Microdiálogo

� Duas vozes em choque dentro de um enunciado (184)

� Contraponto de vozes no âmbito de uma consciência desintegrada. (p. 223)

DISCURSO BIVOCAL – objeto principal da metalinguística (p. 184)

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Fenômenos discursivo-literários objeto da metalinguística � Estilização � Paródia �  Skaz � Diálogo

Traço comum: dupla direção – objeto e discurso alheio.

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Discurso bivocal Discurso alheio

Objeto/referente

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Paródia �  Paródia – “Em sentido estrito, a paródia designa

uma obra literária ou artística que transforma uma obra préexistente de maneira cômica, lúdica ou satírica.” “todo discurso que retoma outro discurso com uma intenção cômica, lúdica ou satírica... o objetivo é chamar a atenção do leitor ou ouvinte para uma aliança do familiar e do novo, de provocar nele o duplo prazer do reconhecimento e do prazer.” (Encyclopaedia Universalis, Dictionnaire des genres et notions littéraires, p. 552, 553)

Page 23: Problemas da obra/criação artística de Dostoiévski

Skaz �  Skaz é um tipo de narrativa literária em

que o narrador não coincide com o autor e a sua fala é diferente da norma literária. O discurso do narrador de skaz reproduz a linguagem popular ou folclórica. A separação do skaz como um gênero isolado é característica para os estudos literários russos e soviéticos, porém esse gênero não é empregado pe los pesquisadores ocidentais.

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Estilização

�  Es t i l i z a r : mod i f i c a r, supr im indo, subst i tu indo e/ou acrescentando elementos para obter determinados efeitos estéticos. (Aurélio)

�  Estilística é ligada historicamente à retórica aristotélica

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3 tipos de discurso

I)  Discurso direto

II)  Discurso objetificado

III)  Discurso bivocal

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� Discurso monovocal/monológico: discurso direto do autor centrado no referente . (p. 201,241)

� Discurso bivocal: discurso do autor voltado para o referente e para os outros discursos sobre o referente

Page 27: Problemas da obra/criação artística de Dostoiévski

� Romance monológico: a voz do autor domina as demais, há um centro do discurso, uma consciência que submete as demais. (p. 205)

� Romance polifônico: a multiplicidade de vozes triunfa, o autor fala ao lado de outras vozes (p. 257,258).

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Tipos de romance polifônico �  Polifonia de vozes conciliadas

�  Polifonia de vozes em luta e interiormente cindidas (p. 254)

�  “a própria polifonia enquanto ocorrência da interação de consciências isônomas e interiormente inacabadas.” (p. 178)

�  Vozes nos limites de uma consciência que se decompôs (p. 222) – ainda não é polifonia

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Possíveis extrapolações: �  “Parece -nos que se pode f a l a r

francamente de um pensamento artístico polifônico de tipo especial, que ultrapassa os limites do gênero romanesco. Este pensamento aginte facetas do homem e, acima de tudo, a consciência pensante do homem e o campo dialógico do ser, que não se prestam ao domínio artístico se enfocados de posições monológicas.” (p. 273)