53
BRASÍLIA -DF. PROBLEMAS FENOMENOLÓGICOS  E HERMENÊUTICOS

Problemas Fenomenologicos e Her - Jean Lacoste

Embed Size (px)

Citation preview

  • Braslia-DF.

    Problemas Fenomenolgicos e Hermenuticos

  • Elaborao

    Aline Sabbi Essenburg

    Produo

    Equipe Tcnica de Avaliao, Reviso Lingustica e Editorao

  • Sumrio

    APRESENTAO .................................................................................................................................. 4

    ORGANIZAO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA ..................................................................... 5

    INTRODUO ..................................................................................................................................... 7

    UNIDADE NICA

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS ....................................................................................................... 9

    E HERMENUTICOS .............................................................................................................................. 9

    CAPTULO 1

    A GNESE DA FENOMENOLOGIA E DA HERMENUTICA ............................................................ 9

    CAPTULO 2

    A TEORIA DA INTERPRETAO E A TEORIA DA COMPREENSO EXISTENCIAL ............................. 15

    CAPTULO 3

    A VIRADA HERMENUTICA DA FENOMENOLOGIA ................................................................... 34

    CAPTULO 4

    A HERMENUTICA COMO FUNDAMENTO ONTOLGICO ........................................................ 42

    CAPTULO 5

    TEORIA GERAL DA INTERPRETAO ........................................................................................ 45

    CAPTULO 6

    TEMPO E HISTRIA NA FENOMENOLOGIA HERMENUTICA ...................................................... 48

    PARA (NO) FINALIZAR ...................................................................................................................... 51

    REFERNCIAS .................................................................................................................................... 52

  • 4Apresentao

    Caro aluno

    A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa rene elementos que se entendem necessrios para o desenvolvimento do estudo com segurana e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinmica e pertinncia de seu contedo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas metodologia da Educao a Distncia EaD.

    Pretende-se, com este material, lev-lo reflexo e compreenso da pluralidade dos conhecimentos

    a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos especficos da rea e atuar de forma

    competente e conscienciosa, como convm ao profissional que busca a formao continuada para

    vencer os desafios que a evoluo cientfico-tecnolgica impe ao mundo contemporneo.

    Elaborou-se a presente publicao com a inteno de torn-la subsdio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetria a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a

    como instrumento para seu sucesso na carreira.

    Conselho Editorial

  • 5Organizao do Caderno de Estudos e Pesquisa

    Para facilitar seu estudo, os contedos so organizados em unidades, subdivididas em captulos, de forma didtica, objetiva e coerente. Eles sero abordados por meio de textos bsicos, com questes

    para reflexo, entre outros recursos editoriais que visam a tornar sua leitura mais agradvel. Ao

    final, sero indicadas, tambm, fontes de consulta, para aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares.

    A seguir, uma breve descrio dos cones utilizados na organizao dos Cadernos de Estudos e Pesquisa.

    Provocao

    Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes

    mesmo de iniciar sua leitura ou aps algum trecho pertinente para o autor

    conteudista.

    Para refletir

    Questes inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faa uma pausa e reflita

    sobre o contedo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocnio. importante

    que ele verifique seus conhecimentos, suas experincias e seus sentimentos. As

    reflexes so o ponto de partida para a construo de suas concluses.

    Sugesto de estudo complementar

    Sugestes de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,

    discusses em fruns ou encontros presenciais quando for o caso.

    Praticando

    Sugesto de atividades, no decorrer das leituras, com o objetivo didtico de fortalecer

    o processo de aprendizagem do aluno.

    Ateno

    Chamadas para alertar detalhes/tpicos importantes que contribuam para a

    sntese/concluso do assunto abordado.

  • 6Saiba mais

    Informaes complementares para elucidar a construo das snteses/concluses

    sobre o assunto abordado.

    Sintetizando

    Trecho que busca resumir informaes relevantes do contedo, facilitando o

    entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

    Exerccio de fixao

    Atividades que buscam reforar a assimilao e fixao dos perodos que o autor/

    conteudista achar mais relevante em relao a aprendizagem de seu mdulo (no

    h registro de meno).

    Avaliao Final

    Questionrio com 10 questes objetivas, baseadas nos objetivos do curso,

    que visam verificar a aprendizagem do curso (h registro de meno). a nica

    atividade do curso que vale nota, ou seja, a atividade que o aluno far para saber

    se pode ou no receber a certificao.

    Para (no) finalizar

    Texto integrador, ao final do mdulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem

    ou estimula ponderaes complementares sobre o mdulo estudado.

  • 7Introduo

    Pautada nas experincias humanas, a fenomenologia interpreta o mundo por meio da conscincia.

    Consiste em apontar o que apresentado e tornar claro este fenmeno, mostrando um objeto tal

    como ele percebido pelo sujeito, estudando o que aparece, sem interferncia alguma, assim como

    dado para o espectador. Estuda no somente objetos, mas tambm sensaes, recordaes etc.;

    uma cincia do subjetivo.

    A hermenutica estabelece os princpios, as leis e os mtodos de uma interpretao, seja de sinais,

    smbolos culturais ou leis. Pode aplicar-se a obras escritas, mas tambm, de maneira especfica, a

    poesias, histrias, profecias.

    Este Caderno, portanto, tem o objetivo de proporcionar informaes acerca dos problemas

    fenomenolgicos e hermenuticos, com o compromisso de orientar os profissionais da rea de

    filosofia para que possam desempenhar suas atividades com eficincia e eficcia.

    Objetivos

    Conhecer a gnese da fenomenologia e da hermenutica.

    Identificar aspectos relevantes sobre a teoria da interpretao e a teoria da compreenso existencial.

    Identificar aspectos relevantes da hermenutica como fundamento ontolgico.

  • 8

  • 9UNIDADE NICAPROBLEMAS

    FENOMENOLGICOSE HERMENUTICOS

    CAPTULO 1A gnese da fenomenologia e da hermenutica

    A derivao da palavra fenomenologia vem do grego phainesthai, que significa aquilo que se mostra, e logos estudo, ou seja, estudo do que se mostra. A fenomenologia se debrua acerca dos fenmenos, de modo a analisar as coisas como elas so, e no sobre o que falam a seu respeito.

    Os expoentes responsveis pela concepo da fenomenologia em sua origem, especificamente,

    so: Franz Brentano, Karl Stumpf e Edmund Husserl, mas foi este ltimo que realmente iniciou o movimento fenomenolgico. Este movimento surgiu da preocupao de Husserl (1859-1938) em fundamentar o conhecimento de maneira rigorosa. Aps assistir a vrias aulas de Franz Brentano,

    em busca de respostas para a fundamentao da matemtica, aproximou-se da filosofia, formando

    posteriormente seguidores em vrias partes do mundo. Tomaram partido de suas ideias pensadores vindos de diversas reas, todos procura do conhecimento dos seus objetos de estudo a partir de

    uma nova atitude.

    Essa atitude fenomenolgica e a maneira pela qual ela pode unir pensadores e pesquisadores so

    comentadas por Emmanuel Lvinas em Descobrindo a Existncia com Husserl e Heidegger (1997).

    A fenomenologia une filsofos, sem que isso se processe da forma como

    o kantismo unia os kantianos ou o espinosismo, os espinosistas. Os

    fenomenlogos no se ligam a teses formalmente enunciadas por Husserl,

    no se consagram exclusivamente exegese ou histria dos seus escritos. H

    uma certa forma de proceder que os aproxima. Mais do que aderir a um certo

    nmero de proposies fixas, eles concordam em abordar as questes de uma

    certa forma1.

    Todavia, em relao filosofia, a utilizao do termo fenomenologia anterior a Husserl e percorre

    as obras de outros pensadores.

    A expresso fenomenologia aparece pela primeira vez no sculo XVIII na

    escola de Christian Wolff, no Neues Oragnon de Lambert, diretamente ligada

    desenvolvimentos anlogos populares naquela poca, tais como dianologia e

    1 LVINAS, E. Descobrindo a existncia com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 135.

  • 10

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    alethiologia, e significava a prpria teoria da iluso, uma doutrina para evitar

    as iluses. Algo parecido aparece em Kant. Em uma carta Johann Heinrich

    Lambert, ele escreve: Isso [a fenomenologia] aparece de um modo bastante

    particular, como uma disciplina propedutica que deve preceder a metafsica,

    onde os valores e limites do princpio da sensibilidade so determinados. Mais

    tarde, fenomenologia ttulo da maior obra de Hegel. [...] Fenomenologia

    aparece tambm nas conferncias de Franz Bretano acerca da metafsica2.

    Atravessando mudanas desde a sua criao, o termo fenomenologia, sem descartar outros conceitos ou substituies, procurava evitar as iluses e tambm driblar a superficialidade da metafsica em

    relao compreenso do saber pelos sentidos.

    Para Husserl, refere-se ao mtodo de apreenso da essncia absoluta das coisas. Ele apresenta o conceito de fenomenologia como um contraponto crise das cincias modernas, como o naturalismo e o psicologismo de carter empirista que ora predominavam. Diferentemente de Kant e Hegel, a fenomenologia de Husserl tem uma estrutura que leva questo do ser ou, ainda, a uma teoria do ser absoluto ou ontologia.

    Se, no entanto, compararmos Husserl a Kant e a Hegel, com os quais seria

    permitido aproxim-lo quanto aos vrios pontos particulares, podemos notar

    que, com respeito ao problema ontolgico, sua tentativa representa algo como

    uma terceira via: enquanto a fenomenologia de tipo kantiana concebe o ser

    como o que limita a pretenso do fenmeno ao mesmo tempo em que ele

    prprio permanece fora de alcance, enquanto inversamente, na fenomenologia

    hegeliana, o fenmeno reabsorvido num conhecimento sistemtico do ser, a

    fenomenologia husserliana se prope como fazendo ela prpria, as vezes, de

    ontologia pois, segundo Husserl, o sentido do ser e o fenmeno no podem

    ser dissociados. Husserl procura substituir uma fenomenologia limitada por

    uma ontologia impossvel e outra que absorve e ultrapassa a fenomenologia

    por uma fenomenologia que dispenda a ontologia como disciplina distinta, que

    seja, pois, a sua maneira, ontologia cincia do ser3.

    Husserl, no estando satisfeito com a tradio metafsica e o pouco fundamento das cincias modernas, desafiando toda a tradio filosfica, prope seu mtodo investigativo pautado na

    extino do dualismo tradicional que cristaliza e segmenta os entes como coisas e o ser destes como

    um ente tambm. Seu mtodo concebe a fenomenologia como uma filosofia rigorosa, propondo

    a observao e as prvias descries dos fenmenos, sem que o sujeito para quem o fenmeno se

    mostra esteja inserido em pr-juzos e pr-conceitos. Pelo seu mtodo, fica evidenciado que no se

    pode chegar ao ser dos entes sem compreend-los como fenmenos, como aquilo que se mostra e se

    faz ver nele mesmo. A proposta primeira da ontologia a via de acesso ao ser.

    O entendimento das investigaes de Husserl foi lento e despertava ceticismo por sua maneira

    abstrata e especulativa, o que tambm dificultava a leitura e compreenso de suas publicaes,

    fato que contribuiu para a negao de seu pleito ao cargo de professor titular pelo Conselho da

    2 HEIDEGGER, M. Introduction to phenomenological research. Indiana: Indiana University Press, 2005, p. 3.3 DARTIGUES, A. O que a fenomenologia? Traduo de Maria Jos J. G. de Almeida. So Paulo: Moraes, 1992, p. 4.

  • 11

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    Universidade de Gottingen; o Conselho no entendeu o interesse cientfico de Husserl, que obteve

    o cargo apenas no ano seguinte. Sua principal preocupao era com a questo do fundamento absoluto das cincias e com o ideal da filosofia como cincia rigorosa, capaz de cumprir a tarefa de

    fundamentao das cincias.

    Fenomenologia a cincia do fenmeno, mas qual o significado da palavra fenmeno e qual seria o

    seu sentido fenomenolgico? Phainmenon aquilo que aparece e deriva da forma phainomenai, eu apareo, ou seja, aquilo que se mostra luz. A palavra tambm utilizada para indicar o prprio

    aparecer, o fenmeno da conscincia ou, de acordo com Husserl, o fenmeno subjetivo.

    Posteriores a Husserl, outros pensadores evidenciaram seu processo de modo claro e objetivo. Um

    deles, Merleau-Ponty, apresentou as razes de Husserl e elucidou o conceito de fenomenologia.

    Desde seus primrdios, a fenomenologia se apresentou como uma tentativa

    para resolver um problema, no de uma seita, mas talvez o problema do sculo:

    problema que se punha desde 1900 para todo o mundo e que ainda hoje

    colocado. Com efeito, o esforo filosfico de Husserl, em seu esprito, destinou-

    se a resolver, simultaneamente, uma crise das cincias do homem e uma crise

    das cincias simplesmente, da qual ainda no escapamos4.

    Outro nome de destaque Martin Heidegger, primeiro discpulo de Husserl. Ele emprega os

    mtodos fenomenolgicos em suas pesquisas, inclusive redefinindo a fenomenologia como a cincia

    dos fenmenos, a qual deve apreender os objetos.

    Ganhando novos significados desde a sua primeira aplicao, at mesmo pelo seu criador, e

    acrescentando contribuies de seus seguidores contemporneos, a fenomenologia recebeu

    atualizaes que a levaram ao universo psicolgico, no sentido de ter proporcionado o estabelecimento

    da ligao entre a filosofia da existncia e a psicologia, ou seja, uma comunicao, um elo entre

    duas reas do conhecimento. Mesmo com essas atualizaes, esses novos conceitos e estudos, a

    fenomenologia no deixa de lado as suas prprias coisas mesmas.

    As cincias humanas tambm contriburam para o pensamento fenomenolgico e vice-versa.

    Husserl empreende a tentativa de restituir a validade cincia em geral e s cincias humanas a

    partir da crise do psicologismo, do sociologismo e tambm do historicismo.

    Sempre despertando interesse e reconhecida como uma das manifestaes filosficas mais

    notveis deste sculo, a fenomenologia tem constantemente recebido olhares de cientistas sociais e

    educadores, e no somente cientistas. E muitos deles tm buscado suporte na fenomenologia devido sua autorreflexo crtica e suas rigorosas investigaes, decorrentes do projeto fenomenolgico

    husserliano.

    A hermenutica estabelece os princpios, leis e mtodos de uma interpretao, seja de sinais,

    smbolos culturais ou leis. Pode aplicar-se a obras escritas, mas tambm, de maneira especfica, a

    poesias, histrias, profecias.

    4 MERLEAU-PONTY, M. Cincias do homem e fenomenologia. Traduo de Salma Tannus Muchail. So Paulo: Saraiva, 1972, p. 1.

  • 12

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    A palavra derivada do termo grego hermeneuein significa expressar, explicar, traduzir ou interpretar. Ela era vista na Grcia antiga apenas sob um carter lingustico, voltada para a transmisso de uma mensagem, no se tratando de uma cincia, e sim de uma tcnica que esclarece ou traduz algo que no est totalmente claro.

    O primeiro a utiliz-la como termo tcnico foi Plato. Para ele, a hermenutica uma tcnica que

    fica em segundo plano, uma vez que as palavras sozinhas nunca podero nos dar um conhecimento

    verdadeiro sobre o mundo, e somente o pensamento pode alcanar a verdade, entender e conhecer

    o real, ou seja, o intrprete apenas faz uma imitao das ideias por meio da palavra. Isso no gera

    conhecimento, segundo Plato. A hermenutica no poderia ajudar o homem a alcanar aquilo que

    ele coloca como meta de sua vida, o conhecimento do bem.

    Aristteles no continua com o mesmo pensamento. Diferentemente de Plato, ele exibe um estudo

    acerca dos conceitos e proposies que possuem caracterstica de verdade. Entende que o processo

    do conhecimento se faz por abstraes mentais daquilo que adquirido por meio da experincia

    sensvel. Entretanto, a hermenutica aristotlica no trata de juzo de valor, apenas da possibilidade

    de adequar a linguagem e o pensamento. A hermenutica, portanto, possui funo explicativa. Essas

    teorias tambm tiveram grande influncia no meio jurdico sobre os jurisconsultos romanos do alto

    imprio, estudiosos e admiradores de ambos os pensadores.

    Sob a influncia de Martin Heidegger, a hermenutica se tornou tema central na filosofia continental,

    causando diversas controvrsias. Em Ser e Tempo (original de 1927), Heidegger ilustrou uma interpretao do ser humano, o ser que, em si mesmo, compreende e interpreta. Podemos considerar

    este livro como uma hermenutica. Ele explora a prpria compreenso e interpretao do Dasein, descreve suas caractersticas essenciais, assim com tambm interpreta a si mesmo, considerando sua prpria vida de certa maneira.

    A busca pela interpretao produz um crculo hermenutico: no podemos compreender o todo

    sem compreender suas partes e vice-versa. E Heidegger falava de outra circularidade: uma vez que carregamos pressupostos para o objeto interpretado, isso significaria uma arbitrariedade das

    interpretaes?

    Heidegger conectava questes a respeito do significado de textos histricos e acerca do sentido da

    vida. Por isso, ensinava que, para uma interpretao de qualidade, seria essencial a compreenso das vivncias do autor, uma vez que as palavras adquirem novos significados ao longo da histria e

    quando proferidas por pessoas diferentes. As palavras no possuem um significado estanque, mas

    variam e dependem de outras palavras e seu contexto. Se formos interpretar Aristteles sem levar em

    considerao estes fatos e o seu modo de pensar, poderia ser uma interpretao incorreta. Fazem parte do crculo hermenutico, ento, os intrpretes e seus pressupostos, assim como o autor e sua cultura.

    Com a interpretao alegrica como padro durante toda a Idade Mdia, a hermenutica tornou-se

    mais desenvolvida e mais clara com a Reforma.

    A primeira vez que a palavra hermenutica como a arte da interpretao apareceu foi em 1654, na

    obra de J. C. Dannhauer, cujo ttulo era Hermeneutica sacra sive methodus exponendarum sacracum litterarum. Para ir contra o catolicismo, os protestantes buscaram uma melhor interpretao da

  • 13

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    Bblia, abandonando a interpretao alegrica em busca de um sentido mais exato do texto. Assim,

    puderam revelar os significados verdadeiros e no as distores impostas pela Igreja, mas outros

    textos tambm precisavam ser interpretados, como documentos legais e obras clssicas antigas.

    Friedrich Ast e Friedrich August Wolf foram classicistas que fizeram avanos significativos por meio

    de suas obras, descrevendo diferentes nveis da compreenso de um texto: o texto histrico, que

    corresponde hermenutica da letra, e o gramatical, que corresponde a hermenutica do sentido,

    alm do espiritual.

    August Wolf definiu hermenutica como a cincia das regras pelas quais discernido o significado dos

    signos. Todavia, para a interpretao de um texto, no basta apenas o conhecimento da linguagem

    dele, necessrio tambm um conhecimento histrico da vida do autor, assim como da histria e

    da geografia de seu pas. O trabalho de um intrprete tem mais sucesso medida que ele pesquisa e

    conhece o que o autor do texto conhecia. Vrias foram as regras criadas para ajudar na interpretao e seus problemas, mas, para Wolf, mesmo com todas as regras, o intrprete precisava de uma leveza

    na alma, para que pudesse ficar em harmonia com pensamentos estranhos, ou seja, era necessrio

    ter uma habilidade para poder aplicar as leis, mas isso nenhuma delas poderia garantir.

    Nenhum texto pode ser conhecido por completo se o intrprete no conhecer a vida e a obra do autor

    em uma totalidade, o que significa tambm conhecer textos e outros acontecimentos que formam o

    seu viver, a cultura em que est envolvido. O texto s pode ser compreendido por completo caso se

    conhea cada palavra, cada frase, e s possvel compreender cada palavra compreendendo o todo.

    O seguidor mais prximo de Heidegger Gadamer, que tambm afirma que voltamos a captar o

    contexto em que um autor escreveu tendo em considerao a audincia pretendida e as questes a

    que o autor respondia. Aps Heidegger, a hermenutica tem sido explorada tambm por Bultmann,

    Ricoeur e Derrida. Toda interpretao est sujeita a revises. O texto interpretado hoje pode ser corrigido posteriormente, utilizamos oque sabemos de antemo de um texto ao investig-lo, alm de

    ler o texto mesmo, quando podemos verificar nele mais conhecimento, os quais ainda no sabamos.

    A pergunta agora era o que o texto queria nos dizer a ns ou para ns e no o que o autor queria dizer.

    Eruditos religiosos procuraram, durante sculos, mtodos que lhes permitissem desvendar os

    mistrios bblicos e viram nos estudos hermenuticos alguns mtodos:

    analtico: o mtodo para estudar os pormenores, os detalhes, utilizando-se da observao, interpretao, correlao e aplicao;

    sinttico: mtodo que procura identificar cada livro em si e tambm o seu sentido como um todo, buscando o tema central em cada um deles;

    temtico: estuda os livros da Bblia de acordo com o assunto ou tema especfico;

    mtodo biogrfico de estudo da Bblia: estuda a vida das pessoas que so citadas nas escrituras, sendo possvel utilizar o modo bsico, em que se delimita o perodo para no se estender nos personagens com mais informaes, ou o estudo avanado,

    que engloba um estudo mais completo sobre a vida da pessoa, ou ainda o estudo indutivo.

  • 14

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    Para que o significado das escrituras sagradas no fosse interpretado diferentemente do seu sentido

    original, foram criadas ainda regras fundamentais de interpretao, alm de figuras de retrica para

    um melhor estudo. A hermenutica, em sua origem, tratava da teoria e do mtodo de interpretao

    de textos sagrados, alm de outros textos considerados difceis.

    A hermenutica, na contemporaneidade, ganhou uma grande novidade para o seu estudo, no mbito

    da filosofia, com a obra de Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Para ele, a interpretao deve ter

    em foco a questo do porqu de certas ideias serem expressas de uma maneira e no de outra. O

    foco a particularidade do que proferido, como pensamento de uma pessoa individual, expressado

    de uma forma nica, em um dado momento. Defendia o estudo da linguagem em sua totalidade, incluindo a cultura e a individualidade de quem est dizendo, acreditava tambm na gnese das ideias.

    Posteriormente a Schleiermacher, outro pensador que contribuiu para o desenvolvimento da

    hermenutica filosfica foi Wilhelm Dilthey5, que estendeu a interpretao para as demais criaes

    e atitudes humanas, alm da prpria histria e vida dos sujeitos. Foi o primeiro pensador a formular

    a dualidade de cincia da natureza e cincia do esprito, que se distinguem por um mtodo analtico-esclarecedor e um procedimento de compreenso descritiva. Ele buscou ainda demonstrar como a experincia histrica pode tornar-se cincia, ou seja, como possvel a histria ser considerada uma

    cincia.

    Dilthey estabelece uma interpretao compreensiva que se ope explicitamente interpretao das

    cincias naturais, por si ss esclarecedoras. A natureza pode ser esclarecida, mas quanto vida

    humana, ns apenas podemos compreend-la. Nesse contexto, conhecimento e estruturas objetivas

    do mundo deveriam ser concebidos como um processo histrico.

    O papel da filosofia e das cincias do esprito deveria ser a reflexo dos pressupostos que esto na

    base do desenvolvimento histrico da conscincia, de anlise dos dados da conscincia humana,

    esta que, por um lado, sempre formada por experincias de carter histrico, a vivncia, e, por

    outro lado, toda a cincia, assim como toda filosofia, deve se referir experincia. Portanto, existem

    perspectivas diferentes em relao pergunta pela cientificidade da histria e da cincia natural,

    no necessitando se questionar acerca da razo, pelo menos em princpio, pois o mundo histrico

    produzido e formado pelo esprito humano.

    5 Wilhelm Dilthey (1833-1911), filsofo hermenutico, psiclogo, historiador, socilogo e pedagogo alemo.

  • 15

    CAPTULO 2A teoria da interpretao e a teoria da compreenso existencial

    Teoria da interpretao

    Se pensarmos que a hermenutica orienta-se na interpretao de textos, fato que a teoria da

    interpretao se atenha com o problema da linguagem escrita. Ricoeur, em Teoria da Interpretao6, mostra que a transio da fala para a escrita pautada nas condies de possibilidades na dialtica

    de significao, de evento, inseridas na teoria do discurso. Tambm discorre acerca da exteriorizao

    intencional, a fim de conect-la problemtica da distanciao, prpria da hermenutica. Porm,

    realiza uma crtica dessa exteriorizao do discurso no que tange escrita, crtica que j fazia Plato

    quando a considerava como alienao.

    Ricoeur, por meio deste ensaio constitudo de suas concluses acerca de assuntos hermenuticos

    , procura por uma teoria que seja abrangente e sistemtica, a fim de explicar a unidade da

    linguagem dos homens, ultrapassando seus usos. Aqui, ele concebe certa dialtica do discurso entre

    evento e significao e contrrio dicotomia estruturalista semntica e semitica OU Aqui, ele

    concebe certa dialtica do discurso entre evento e significao, contrria dicotomia estruturalista

    semntica e semitica.

    O discurso analisado como ao da linguagem e a fala e a escrita, como seus modos de atualizao, metfora e smbolo, em suas aproximaes e diferenas. Assim, o discurso teria funo referencial,

    a fim de ligar a linguagem e a verdade. Rocoeur ainda coloca que a explicao no basta para

    interpretar um texto, uma vez que esta necessita da apropriao da significao do que est nas

    pginas pelo seu leitor.

    A tarefa hermenutica

    A fim de pautar a tarefa da hermenutica, Ricoeur efetiva o discurso como texto: Adotarei a seguinte

    definio de trabalho diz: a hermenutica a teoria das operaes da compreenso em sua relao com a interpretao dos textos. Epistemologicamente, o autor busca uma complementao entre

    explicar (erklaeren) e compreender (verstehen), reorientando a hermenutica.

    Para Ricoeur, a hermenutica no neutra, havendo sempre pressuposies. E h preocupaes,

    segundo o filsofo, no que concerne ampliao da categoria, a fim de serem inclusas na hermenutica

    geral as particularidades A isso, ele observa que tal fato no ter sucesso se as preocupaes

    epistemolgicas no forem subordinadas s de cunho ontolgico,

    6 RICOEUR, P. Teoria da interpretao. 1. ed. Lisboa: Edies 70, 1976.

  • 16

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    segundo as quais compreender deixa de aparecer como um simples modo

    de conhecer para tornar-se uma maneira de ser e um modo de relacionar-se

    com os seres e o ser. [...] O movimento de desregionalizao se faz acompanhar

    pois de um movimento de radicalizao pelo qual a hermenutica se torna, no

    somente geral, mas fundamental7.

    Vale aqui destacar o que Ricoeur dispe acerca da origem da hermenutica:

    No intil lembrar diz Ricoeur que o problema hermenutico foi

    colocado primordialmente nos limites da exegese, ou seja, no quadro da

    disciplina que se prope compreender um texto, compreend-lo a partir

    de sua inteno, na base do que ele quis dizer. Se a exegese suscitou um

    problema hermenutico, ou seja, um problema de interpretao, porque

    toda a leitura de texto, ligada ao quid, ao em vista do qual o texto foi

    escrito, se faz sempre no interior de uma comunidade, de uma tradio ou

    de uma corrente viva de pensamento, que desenvolvem pressupostos e

    exigncias. Neste sentido, a leitura dos mitos gregos na escola estica, na

    base de uma fsica e de uma tica afilosficas, implica uma hermenutica

    muito diferente da interpretao rabnica da Thora na Halacha ou Haggada;

    por sua vez, a interpretao do Antigo Testamento luz do acontecimento

    crstico, pela gerao apostlica, d uma outra leitura dos acontecimentos,

    das instituies, dos personagens da Bblia diferente da dos rabinos.

    Em que que estes debates exegticos se relacionam com a filosofia? Na

    medida em que a exegese implica toda uma teoria do signo e da significao,

    como se v pelo exemplo da De doctrina christiana de Santo Agostinho.

    Mais precisamente, se um texto pode ter vrios sentidos, por exemplo um

    sentido histrico e um sentido espiritual, preciso recorrer a uma noo de

    significao muito mais complexa que a dos signos ditos unvocos, o que requer

    uma lgica da argumentao. Enfim, o trabalho mesmo da interpretao

    revela esquema profundo, o de vencer uma distncia, um afastamento

    cultural, de igualar o leitor a um texto estranho e desta feita incorporar o seu

    sentido compreenso presente que um homem pode captar dele mesmo.

    Desta forma, a hermenutica no pode permanecer apenas como uma tcnica

    de especialistas techn hermeneutik dos intrpretes de orculos, de

    prodgios; ela pe em jogo o problema geral da compreenso. Assim, nenhuma

    interpretao marcante pde constituir-se sem recorrer aos modos de

    compreenso disponveis numa determinada poca: mito, alegoria, metfora,

    analogia, etc. Esta ligao da interpretao no sentido preciso da exegese

    textual com a compreenso (no sentido amplo de entendimento dos signos)

    atestada por um dos sentidos tradicionais da palavra hermenutica, o que

    nos vem do Per hermeneias de Aristteles; interessante que em Aristteles

    a hermeneia no se limita alegoria, mas diz respeito a todo o discurso

    significante. Mais: o discurso significante que a hermeneia, que interpreta

    a realidade, na medida em que diz algo de alguma coisa; h hermeneia

    7 RICOEUR, P. Interpretao e ideologias. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 18.

  • 17

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    porque a enunciao uma tomada do real atravs de expresses significantes,

    e no um extrato de significaes que se dizem provenientes das prprias coisas.

    Esta a primeira e a mais original relao entre o conceito de interpretao

    e o de compreenso; ela consegue comunicar os problemas tcnicos da

    exegese textual aos problemas mais gerais da significao e da linguagem.

    Mas a exegese no deveria suscitar uma hermenutica geral a no ser

    atravs de um segundo desenvolvimento, que o da filologia clssica e das

    cincias histricas do final do sculo XVIII e do incio do sculo XIX. com

    Schleiermacher e Dilthey que o problema hermenutico se torna um problema

    filosfico. Quando falamos de origem da hermenutica queremos fazer uma

    aluso expressa ao clebre ensaio de Dilthey publicado em 1900; O problema

    de Dilthey era o de dar s Cincias do Esprito (Geisteswissenschaften) uma

    validade comparvel das Cincias da Natureza, em plena poca da filosofia

    positivista. Posto nestes termos, o problema seria epistemolgico. Haveria

    que elaborar uma crtica do conhecimento histrico, to forte quanto a

    crtica kantiana do conhecimento da natureza e subordinar a esta crtica

    procedimentos esparsos da hermenutica clssica: lei do encadeamento

    interno do texto, lei do contexto, lei do contexto geogrfico, tnico, social, etc.

    Mas a soluo do problema excedia as fontes de uma simples epistemologia:

    a interpretao que para Dilthey est ligada a documentos fixados pela

    escritura, somente uma provncia do domnio mais vasto da compreenso,

    que vai de uma vida psquica a uma vida psquica estranha. O problema

    hermenutico acha-se assim puxado pelo lado da psicologia: compreender ,

    para um ser finito, transportar-se a uma outra vida; a compreenso histrica

    pe em jogo todos os paradoxos da historicidade: como que um ser histrico

    pode compreender historicamente a histria? Por sua vez, estes paradoxos

    reenviam a uma problemtica muito mais fundamental: como que a vida

    ao exprimir-se pode objetivar-se? E como que objetivando-se, ela conduz

    luz das significaes susceptveis de ser retomadas e compreendidas por

    um outro ser histrico, que ultrapassa a sua prpria situao histrica?

    Um problema maior que voltaremos a encontrar no fim da nossa pesquisa o

    da relao entre a fora e o sentido, entre a vida cheia de significao e o esprito

    capaz de os encadear numa continuidade coerente. Se a vida originariamente

    no significante, a compreenso ser sempre impossvel; mas para que esta

    compreenso possa ser fixada, no ser necessrio introduzir na prpria vida

    esta lgica do desenvolvimento imanente que Hegel chamou de conceito?

    No ser necessrio tambm tornar disponveis todos os recursos de

    uma filosofia do esprito no momento em que se faz uma filosofia da vida?

    Esta a dificuldade maior que pode justificar que se pesquise pelo lado da

    fenomenologia a estrutura da recepo, ou segundo nossa imagem inicial, a

    jovem planta sobre a qual ser possvel introduzir o enxerto hermenutico8.

    8 RICOEUR, P. O conflito das interpretaes. Ensaios de hermenutica. Seuil: Ed. Francesa, 1969, p. 7.

  • 18

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    Ricoeur e a hermenutica contempornea

    Ricoeur mostrou-se preocupado em elaborar sua teoria de maneira moderna, crtica e epistemologicamente atual, assim, a hermenutica colocada em relao linguagem e suas

    questes, entre elas, a polissemia das palavras em diferentes contextos. Quando isso se d, ou seja,

    a mobilidade contextual, ocorre a permuta de mensagens entre os falantes. Produzir um discurso

    relativamente unvoco com palavras polissmicas, identificar essa inteno de univocidade na

    recepo das mensagens, eis o primeiro e o mais elementar trabalho da interpretao.9

    No devemos deixar de ressaltar que foram extremamente importantes para a teoria hermenutica

    de Ricoeur os escritos de Dilthey e Schleiermarcher, a teoria lingustica e epistemolgica, a

    fenomenologia husserliana, a ontologia de Martin Heidegger, as ideias de Freud e a metodologia de

    Gadamer. Desse modo, a colocao da hermenutica na fenomenologia foi tratada com ateno por

    Ricoeur em O Conflito das Interpretaes.

    Segundo o filsofo, existem duas maneiras de fundamentar a hermenutica na fenomenologia: a

    de uma ontologia da compreenso pautada em Heidegger e a de uma semntica seguida de

    reflexo.

    A ontologia da compreenso adentra uma ontologia do ser finito, a fim de encontrar a compreenso

    como uma maneira de ser, no de conhecer10. A questo em que condies um sujeito conhecente

    pode conhecer um texto ou a histria? transpassada por o que um ser cujo ser consiste em

    compreender?, de modo que o autor analisa o territrio hermenutico do Dasein, que existe no ato da compreenso, compreendendo.

    A segunda maneira caminha, tambm, para uma ontologia, seguindo por etapas sucessivas da

    semntica.

    A dvida que eu tenho, diz, a de se possvel fazer uma ontologia direta,

    sem a intermediao da exigncia metodolgica e sem o auxlio do crculo da

    interpretao de que ela fundamento para a teoria. Mas o desejo desta

    ontologia que induz ao objetivo acima proposto e que lhe permite no se

    envolver seja com uma filosofia lingustica maneira de Wittgenstein seja com

    uma filosofia reflexiva de tipo neokantiano. Meu problema ser precisamente

    este: o que acontece com uma epistemologia da interpretao nascida de uma

    reflexo sobre a exegese, sobre o mtodo da histria, sobre a psicanlise, sobre

    a fenomenologia da religio, etc., quando ela tocada, animada e, se assim se

    pode dizer, aspirada por uma ontologia da compreenso?11

    A ontologia da compreenso desenvolve-se desde os termos da Logische Untersuchungen, de Husserl, at ao Sein und Zeit, de Heidegger. Notamos que, ao invs de um pensamento epistemolgico, se d uma ontologia da compreenso. H, portanto, quatro questes na hermenutica ricoeuriana que

    culminam na sua teoria: a linguagem como discurso; a fala e a escrita; a metfora e o smbolo; a

    explicao e a compreenso.

    9 RICOEUR, P. Interpretao e Ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora S.A., 1977, p.19.10 RICOEUR, P. O conflito das interpretaes. Ensaios de hermenutica. Seuil: Ed. Francesa, 1969, p. 10. 11 RICOEUR, P. O conflito das interpretaes. Ensaios de hermenutica. Seuil: Ed. Francesa, 1969, p. 10-11.

  • 19

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    Linguagem como discurso

    Aqui, o autor afirma a existncia, na escrita, da separao entre o significado relacionado e o evento,

    o que no anula a estrutura fundamental do discurso.

    Fala e escrita

    O discurso da exteriorizao intencional ganha notoriedade com Ricoeur. Aquele sempre um

    discurso de e sobre algo, mesmo quando parece este algo se ausentar; a referncia, portanto, nunca

    est negativa. O mundo dado a ns por meio dele, e este mundo

    o conjunto de referncias desvendadas por todo o tipo de texto, descritivo

    ou potico que lemos, compreendemos ou amamos. Compreender um texto

    interpolar entre os predicados da nossa situao todas as significaes que

    constituem um Welt (mundo) a partir da nossa Umwelt (circunstncia)12.

    No espao processual da escrita, ocorre a dialtica da distanciao e da apropriao. Isso se d pelo

    fato de que, na passagem pela mediao da leitura, a escrita necessita da hermenutica, assim, a

    leitura tambm passa a ser um problema hermenutico13.

    A apropriao seria a autonomia semntica, na separao entre o texto e o autor. Nesse apropriar-

    se, o que era de posse exclusiva do autor passa a ser tambm do leitor14. O fato de fazermos nosso o que era de outro, o que era alheio, o distanciamento ou, nas palavras de Ricoeur, distanciao.

    A distanciao dialtica, que demonstra que h uma alteridade, mas, em contrapartida, uma ipseidade. Assim, no o hiato espao-temporal entre quem l e o surgimento de uma obra, seja artstica, seja literria.

    Uma vez que o texto diferencia-se do leitor, e vice-versa, quem l precisa de uma compreenso, a fim

    de transpassar a alienao cultural dos termos dialticos. E o processo dialtico completo quando um leitor resolve se debruar sobre um texto significante de certo autor. Assim, a leitura torna-se

    um phrmacon, em que o sujeito leitor termina o distanciamento, desfazendo seu estranhamento, aproximando-o no momento em que busca as significaes.

    A distncia cultural suprimida quando o leitor inclui a alteridade na ipseidade, mantendo o escrito como outra realidade, enfatizando o ser do outro ultrapassando as aes hermenuticas. O autor

    observa que o problema da dialtica da hermenutica enraza-se na histria do pensamento do

    homem e na sua situao ontolgica como ser-no-mundo15.

    Metfora e smbolo

    Ricoeur ensina que, nas obras cientficas, as significaes devem ser tomadas de maneira literal,

    enquanto nas obras de literatura h um excesso de sentido, que transpassa o signo lingustico.

    12 RICOEUR, P. Teoria da interpretao. Lisboa: Edies 70, 1976, p. 49.13 RICOEUR, P. Teoria da interpretao. Lisboa: Edies 70, 1976, p. 54. 14 RICOEUR, P. Teoria da interpretao. Lisboa: Edies 70, 1976, p. 54.15 RICOEUR, P. Teoria da interpretao. Lisboa: Edies 70, 1976, p. 55.

  • 20

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    O que excede deve ser entendido como participante da significao ou como algo externo, no

    cognitivo?

    Aqui, incorporar o excesso de sentido das metforas no domnio da semntica seria estender a

    teoria de significao verbal.

    Quando Ricoeur falava da variao de significaes, a metfora se dava na retrica clssica de

    maneira ornamental, tornando o texto mais agradvel e persuasivo; era uma extenso de sentido.

    Ela aparecia como funo emotiva proporcionando prazer no classicismo.

    Interessante que a nfase da metfora, na teoria ricoeuriana, no se d somente nas palavras, mas em toda a frase, uma vez que ela relaciona-se com a semntica da frase, recebendo sentido na enunciao, funcionando como predicao, no como denominao. Por isso caberia falar de enunciao metafrica, ao invs de metfora de uma palavra. E a metfora existe na interpretao,

    no em si mesma, por isso que no se analisa a nomenclatura imagtica. O que aparece uma relao de parentesco em que a viso ordinria no tem a percepo de qualquer relao.

    A substituio de uma palavra por outra se dava na retrica clssica, j na hermenutica da metfora

    ocorre uma oposio concepo somente retrica da metfora. Ela s se tornar vivaz quando a

    tenso entre os dois pontos literal e metafrico denuncia a criao de sentido, inexplicvel pela

    retrica clssica.

    [...] a metfora uma criao instantnea, uma inovao semntica que no

    tem estatuto na linguagem j estabelecida e que apenas existe em funo

    da atribuio de um predicado inabitual ou inesperado. Por conseguinte,

    a metfora assemelha-se mais resoluo de um enigma do que a uma

    associao simples baseada na semelhana: constituda pela resoluo de

    uma dissonncia semntica16.

    De fato, as metforas no so ornamentos, tambm no podem ser traduzidas, mas so extenses

    de sentido.

    Explicao e compreenso

    Na tentativa de responder questo do que consistiria compreender uma obra literria, Ricoeur

    tece algumas consideraes:

    Na medida em que o ato de ler a contrapartida do ato de escrever, a dialtica

    do evento e da significao, to essencial estrutura do discurso, gera uma

    dialtica correlativa na leitura entre a compreenso (o verstehen da tradio

    hermenutica alem) e a explicao (o erklaeren da mesma tradio). [...] A

    compreenso para a leitura o que o evento do discurso para a enunciao

    do discurso e a explicao para a leitura o que a autonomia verbal e textual

    para o sentido objetivo do discurso17.

    16 RICOEUR, P. Teoria da interpretao. Lisboa: Edies 70, 1976, p. 63-64.17 RICOEUR, P. Teoria da interpretao. Lisboa: Edies 70, 1976, p. 83.

  • 21

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    A hermenutica filosfica de Ricoeur

    [...] o filsofo no comea do nada. E mesmo no comea a partir da filosofia,

    comea a partir da poesia. absolutamente notvel, alis, que a poesia seja

    representada pelo poeta, como a filosofia representada pelo filsofo, mas

    o poeta que erigido em esttua, ao passo que o filsofo est vivo, ou seja,

    continua sempre a interpretar18.

    Nessa perspectiva, de se notar que a atividade filosfica hermenutica e interpreta escritos

    poticos, atividade rdua, uma vez que h inmeros fatores que influenciam essa ao, como os atos

    da linguagem.

    A linguagem, como discurso, um evento, pois se realiza temporalmente, no presente, de um sujeito para outro, a respeito de algo. Muitos a tratavam como fenmeno transitrio que se esvaa,

    aproximando-se da noo de parole em oposio langue, de Ferdinand Saussure. J Ricoeur ensina que, na qualidade de evento, o discurso tambm significao, e se apropria da teoria do

    Speech-Act, de J. L. Austin, desenvolvida por Searle. Aqui, o indivduo atua de maneira locucionria, ilocucionria e perlocucionria.

    atos locucionrios: ato de dizer, articulao, combinao e organizao de sons de acordo com a gramtica e refere-se a algo;

    atos ilocucionrios: atos executados pela ao de falar, ou seja, fazem alguma coisa quando so ditos, como o sujeito que pronuncia os ditos de uma promessa, de uma

    ordem ou seus desejos;

    atos perlocucionrios: ao serem pronunciados, acabam por produzir certos efeitos, como a ordem que um indivduo d ao seu subordinado.

    H tambm os atos interlocucionrios, que ocorrem em detrimento da presena do locutor e do ouvinte, que utilizam a linguagem para se comunicar. O cdigo, o contexto e o contato tambm

    podem influenciar o dilogo e a interpretao de escritos.

    Ricoeur aponta duas grandes conquistas a partir dos conceitos de ato locutrio e ilocutrio. Eles

    no so enunciados nem as criaes a que referem, mas os sujeitos falantes, e somente quando seus

    autores so colocados em cena que a situao de interlocuo tem valor de acontecimento.

    O autor ainda destaca a relao entre os atos de linguagem; a interpretao de textos e a comunicao,

    que seriam o cdigo, o contexto e o contato. O cdigo nada mais que a lngua usada na mensagem.

    O contexto refere-se ao significado das palavras quando usadas de certo modo. O contato seria

    a relao entre o ouvinte ou leitor englobando toda a sua formao histrica e ideolgica e a

    linguagem, sendo que esta relao se d de maneira direta, ou seja, o ser da linguagem se mostra ao

    receptor.

    18 Entrevista publicada sob o ttulo O nico e o Singular, acerca da atividade do filsofo (RICOEUR, P. O nico e o singular. So Paulo: UNESP, 2002, p. 51).

  • 22

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    Com relao ao dilogo entre os homens, destacamos a falha na comunicao, por ser ela detentora

    de obstculos, uma vez que O dilogo no pertence somente experincia, mas significao. Ele

    trata de uma troca intersubjetiva e no somente experincia comunicada e expressa.

    Ricoeur ainda discorre sobre ao e inteno; aquela no se caracteriza como um acontecimento,

    mas justifica-se por uma inteno.

    Em O Discurso da Aco, Ricoeur discorre acerca do discurso que expressa a ao e dispe que pode atribuir se a uma ao a inveno das sensaes sinestsicas que, como se julga, nos informa

    sobre o estado do movimento19. A ao nega a teoria de que a inteno, conceitualmente falando, funda-se na ideia de que toda a ascenso verificvel por observveis, uma vez que o agente de um

    ato valida uma proposio em que pode constatar o resultado.

    O conceito ricoeuriano de ao pode relacionar-se com a anlise que ele prprio faz de Arthur Danto

    (1924), que se debrua na inteno de isolar as aes, como se faz com as proposies, de modo a

    permitir as diversas interpretaes de uma mesma ao. E Ricoeur ainda conceitua o que seria a

    ao de base.

    possvel agora definir ao de Base. O conceito introduzido por um

    argumento puramente lgico, e no por uma descrio fenomenolgica.

    Nenhuma ao se identifica como pertencente intrinsecamente base. O

    argumento da forma: se algo se faz atravs de outra coisa distinta, ento deve

    haver uma ao que se faz pura e simplesmente. [...] A tese de Danto que no

    h um exemplo incondicional, isto , vlido em todas as circunstncias, que

    faa de tal ao uma ao de base pode conceber-se, pelo menos teoricamente,

    que a mesma expresso M- ri-se pertence a quatro configuraes de sentido

    de que s uma, a quarta, uma ao de base20.

    Ricoeur, em O si-mesmo como um outro, trata da ao e do agente como inseridos em um esquema conceitual juntamente com as ideias de circunstncias, intenes, motivos, deliberaes, noes

    voluntrias ou involuntrias, passividade etc. No importa, contudo, a ordem destes conceitos, mas sim a percepo da dependncia que estes possuem da mesma rede conceitual. Apresentando uma maneira eficaz de proceder determinao das noes pertencentes a essa rede da ao, Ricoeur

    busca identificar a cadeia das questes suscetveis de serem colocadas ao sujeito.

    possvel, seguindo o caminho desta rede nacional, identificar dois universos do discurso: um que faz

    a contraposio entre ao e acontecimento e outro que faz o mesmo com o motivo e a causa. A respeito do primeiro universo, Ricoeur diz que surpreendente que a teoria da ao acreditou preservar a

    especificidade do agir humano tomando j por termo de referncia a noo de acontecimento. H um certo abismo lgico entre o acontecimento que se d, simplesmente e a ao que age,

    que torna possvel este chegar.

    Chegar e fazer chegar constituem uma relao que se aproxima dos conceitos de saber como e saber

    que, elaborados por Elizabeth Margaret Anscombe (19192001).

    19 RICOEUR, P. O discurso da aco. Lisboa: Edies 70, 1988.20 RICOEUR, P. Teoria da interpretao. 1. ed. Lisboa: Edies 70, 2000.

  • 23

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    O primeiro est ligado aos acontecimentos que so conhecidos sem observao, j o segundo, aos

    que so conhecidos pela observao. O problema desta oposio o que da ao, concentrar-se

    nele sem tematizar sua relao com o quem. Esta dissociao entre dois universos do discurso no deveria resistir a uma anlise conceitual mais atenta s variaes de sentido dos termos.

    Outro conceito sobre a rede conceitual da ao o de inteno, tambm proposto por Anscombe e adotado por Ricoeur, que, juntamente com os conceitos de motivo e agente, torna-se um conceito-

    chave. Porm, para Anscombe, a palavra inteno possui trs usos, a saber: tenho a inteno de

    fazer tal ou tal coisa; fiz isto intencionalmente; esta coisa foi feita com tal ou tal inteno. Nas

    proposies em que no so mencionadas as aes, este conceito prope uma busca pelo sentido da

    palavra inteno no primeiro uso, uma vez que a segunda utilizao d qualidade ao intencional e o terceiro uso o mais significativo relaciona-se com os demais.

    Apesar desses conceitos, Anscombe reconhece que, por vezes, apenas um sujeito poder dizer

    qual seria a sua inteno. E os conceitos de inteno so fundamentais para o entendimento e a compreenso da ao, pois este conceito que diferencia a ao de todos os outros acontecimentos.

    A interpretao de textos influenciada diretamente pela ao e inteno, uma vez que, com a ao

    de escrever, o autor possui inteno de chegar a um determinado significado. Porm, poder no

    haver coincidncia entre este significado e aquele em detrimento da interpretao do leitor, devido

    existncia de uma dialtica entre sentido e referncia.

    H outro fator capaz de influenciar de maneira direta a interpretao de um texto:

    [...] nesse nvel, do carter significante, mutuamente orientado e socialmente

    aparece em toda sua originalidade. Est ligado necessidade, para um grupo

    social, de conferir-se, uma imagem de si mesmo, de representar-se no sentido

    teatral do termo de representar e encenar21.

    A ideologia, ento, depende de uma teoria da motivao social. Seu surgimento e sustentao so pelo sentido de demonstrar que um determinado grupo tem razo de ser o que . Todavia, a ideologia ainda simplificadora e possui duas funes: de dominao, que tem relao com autoridade, e

    deformao, que est ligada ao fato de ela ser definida pelo seu contedo. Ela um cdigo ideolgico

    para dar a viso do conjunto, e este cdigo mais algo em que os homens habitam e pensam do

    que uma concepo que consigam expressar. Ricoeur considera a ideologia como de fundamental

    importncia social, um fenmeno insupervel da existncia humana.

    A fim de proporcionar uma compreenso mais qualificada entre ideologia e interpretao, h o

    estudo ricoeuriano a respeito da metfora. Esta se constitui no emprstimo de significado, com

    expresses vivazes artisticamente, culminando em emoes. E o leitor as interpreta segundo as suas

    crenas, a sua ideologia e a sua histria.

    Ao considerar os fatores que influenciam na interpretao, nos deparamos com duas questes

    referentes filosofia de Ricoeur: o grau participativo do senso comum nas leituras de textos e se esse

    mesmo senso comum poderia ocasionar inmeras interpretaes de uma mesma obra. Gadamer

    21 RICOEUR, P. Interpretao e ideologias. Organizao, traduo e apresentao de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1977, p. 68.

  • 24

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    discorre sobre essa questo em Verdade e Mtodo, contribuindo para melhor compreender os problemas da hermenutica filosfica, uma vez que a produo literria, filosfica e cientfica

    adentra a cultura do senso comum.

    A teoria da interpretao de Ricoeur abarca a teoria do discurso, do texto e da leitura do texto todas

    interagindo de maneira dialtica , com o propsito de acessar a tarefa da compreenso. Notamos

    que a teoria da leitura pressupe as outras, uma vez que ocorre um crculo hermenutico.

    TEORIA DO DISCURSO TEORIA DO TEXTO TEORIA DA LEITURADialtica Dialtica DialticaEvento/significao Compreenso/explicao Sentido/refernciaAtos de linguagem: Locucionrios

    Ilocucionrios

    Perlocucionrios

    Interlocucionrios

    Propriedades diferenciais da escrita. Compreender

    Explicar

    Apropriar-se

    A compreenso de um texto seria a apreenso de seu sentido na totalidade. Nas palavras de Ricoeur,

    compreendemos quando apreendemos como um todo a cadeia de sentidos parciais num nico

    ato de sntese22. Este ato implica a compreenso de certa obra como expresso que fora realizada

    e que porta um projeto, o que culmina na elaborao deste texto como uma conjectura em termos

    arquitetnicos [...] no reconhecimento das partes est implicada a pressuposio de uma espcie

    de todo. E, reciprocamente, construindo os pormenores que construmos o todo23 e em termos de uma totalidade particular, ou seja, seu gnero e estilo.

    A organizao e a estrutura de uma obra permitem novas possibilidades para a hermenutica, que

    seria conceber a explicao como um caminho para a compreenso, e a compreenso mediaria a

    explicao. A hermenutica [...] permanece a arte de discernir o discurso na obra. Mas este discurso

    no se d alhures: ele se verifica nas estruturas das obras e por elas24.

    E os textos possuem sentidos metafricos e simblicos, que devem ser compreendidos e colocados

    na conjectura em busca da apreenso do sentido geral. Compreender uma obra seria apreender

    seu sentido semntico e no semntico, por meio da interpretao da linguagem. A linguagem entendida, por Ricoeur, como discurso, seja oral, seja escrito; e nele est contida uma estrutura

    prpria, que permite a investigao cientfica.

    Um evento tambm significao, sempre direcionado para o outro, comunicao. Asserir

    alguma coisa esperar acordo tal como dar uma ordem esperar obedincia. Mesmo o solilquio

    o discurso solitrio um dilogo consigo mesmo [...]25. Dessa maneira, o discurso, como evento e significao, se dimensiona at a troca e o dilogo, por isso notria a significao da enunciao,

    que seria o ato locucionrio, a objetividade do significado, e o significado do locutor, a subjetividade

    da significao. E esta se revela na autorreferncia da frase, no contexto ilocucionrio da ao

    lingustica e na intencionalidade de reconhecer do ouvinte, que seria o mbito perlocucionrio.

    22 RICOEUR, P. Teoria da interpretao. Lisboa: Edies 70, 1987, p. 84.23 RICOEUR, P. Teoria da interpretao. Lisboa: Edies 70, 1987, p. 88-89.24 RICOEUR, P. Interpretao e ideologias. Organizao, traduo e apresentao de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro:

    Francisco Alves, 1977, p. 52.25 RICOEUR, P. Interpretao e ideologias. Organizao, traduo e apresentao de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro:

    Francisco Alves, 1977, p. 26-27.

  • 25

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    A objetividade do discurso inclui um sentido e uma referncia, uma vez que se refere ao mundo

    e transcende a ela prpria. Na oralidade, existem os indicadores ostensivos que ajudam nas

    referncias, que dependem da situao que percebida pelos sujeitos; so referncias, portanto,

    situacionais. Na escrita, como no h qualquer situao comum, se d um hiato entre a identificao

    e o que mostrado, de modo que a linguagem deixa de ter seu carter referencial ostensivo. Graas

    escrita, o homem e s o homem tem um mundo e no apenas uma situao26.

    A teoria da compreenso existencial

    Leonel Correia Pinto27 afirmou seu desejo profundo de levar aos educadores as ideias de uma

    pedagogia humanista, com motivao e prticas educacionais no ambiente de ensino, utilizando

    como estrutura os pressupostos da filosofia fenomenolgica de Husserl, da fenomenologia

    existencial de Heidegger, da psicologia humanista e da psicologia da percepo e da forma. Pinto

    intitulou sua tecnologia educacional para o modo-ser e no ensino-aprendizagem de metodologia

    da compreenso existencial.

    Esta metodologia se insere no universo reflexivo pedaggico e sugere aos educadores parmetros

    de desenvolvimento, em que a totalidade indivisvel mostre-se como processo de unificao das

    instncias: 1 conhecimento; 2 sensibilidade e 3 ao. O educador deve construir uma base

    compreensiva existencial que seja slida para transportar significado s suas reas de atuao.

    Isso posto, pode-se traduzir pela necessidade premente de manter um estado de recepo e assim

    se conquistar uma postura pedaggica baseada na saudvel relao entre os sujeitos, por meio de

    um relacionamento dialgico que vise revelar o fenmeno da vida. Esse estado de recepo est

    alicerado em cinco pontos: 1 conhecimento de si; 2 habilidade de reduo; 3 disposio para

    o cuidar; 4 repouso e alerta para o cotidiano e 5 referncia absoluta compreenso.

    Vamos abordar, isoladamente, cada ponto em questo. O conhecimento de si j era considerado

    princpio desde a antiga Grcia. Neste primeiro marco, encontra-se o convite ao educador a

    desenvolver uma conscincia analisando escolhas, posturas e sentimentos relacionados sua

    existncia como sujeito. Pinto afirma que o ser que educa tem necessidade de ter conscincia do que

    conhece e do caminho percorrido at atingir esse conhecimento; deve, ainda, saber com clareza o seu

    sentimento em relao a si mesmo e em relao aos outros e as consequncias desses sentimentos

    para si e para os demais. Ao educador cabe tambm saber o que, como e por que faz determinadas

    coisas. O caminho para alcanar esse autoconhecimento abrange: consultar os prprios sonhos;

    observar suas utopias, manter sob sua vista as intenes que o alimentam e o que efetivamente tem

    executado para se dirigir a elas. O ser humano individual considerado hlon, que quer dizer um

    todo, constitudo de corpo, mente, sentimento e esprito. Em suas palavras: o ideal conhecer a si

    mesmo, ser si mesmo e, portanto, gostar de si mesmo.

    26 RICOEUR, P. Teoria da interpretao: o discurso e o excesso de significao. Traduo de Artur Moro. Lisboa: Edies 70, 1987, p. 47.

    27 Leonel Correia Pinto, educador portugus radicado no Brasil, mestre em psicologia e doutor em pedagogia, desenvolveu a pedagogia da compreenso existencial, publicada em dez volumes, entre 1989 e 1993.

  • 26

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    O segundo ponto do estado de recepo a habilidade de reduo. Reduzir, aqui, vai ser interpretado

    como despoluir o espao dos fenmenos dos preconceitos, crenas e pressupostos sobre todos que participam do contexto dos educadores. Colocar de lado sentimentos negativos que geram desagrado

    promovem a edificao de um relacionamento genuno entre educando e educador. fundamental

    e urgente praticar a reduo entre o que o aluno faz e o que ele para no prejudicar a relao.

    possvel, ainda que difcil, o ato de amar o educando ou, ao menos, possvel o gesto de visar e ser visado at nascer a significao. Uma reflexo constante acerca de nossos preconceitos e sobre a

    maneira que eles modificam nossa percepo dos sujeitos com quem lidamos tarefa primeira para

    os que tratam com as massas excludas.

    A mquina capitalista funciona seduzindo imperceptivelmente, portanto, o esforo mencionado deve exigir do educador uma viso crtica e autocrtica ininterrupta. A reduo fenomenolgica

    pressupe que o educador perceba que este trabalho demonstra uma relao compreensiva com o

    outro e tambm que o educando se sinta livre para apreender ou no o objeto de ensino. dessa

    forma que os dois juntos caminham em parceria para o entendimento essencial das coisas em geral.

    O prximo ponto bsico em destaque a disposio para o cuidar. Heidegger declarou que o

    fenmeno do cuidado tem a envergadura que subministra preliminarmente o solo em que toda

    interpretao da presena se move, baseada numa concepo ntica do mundo, quer se compreenda a presena como cuidado com a vida e necessidade ou ao cotidiano28. Nesse ponto, a metodologia da

    compreenso existencial entende que revigora a atitude do profissional compreensivo. Esse cuidado

    desvelado na maneira como se conduz o relacionamento com o outro. O educador cuidadoso se coloca, de alguma maneira, prximo e usa sua experincia no relacionamento, tambm cuida para

    que o educando mantenha e desenvolva sua criatividade e no permite que este se determine pelo

    professor.

    Outro modo de cuidar por meio das atitudes, mais do que por palavras, transparecer ao educando que o melhor quando ele se manifesta. O educador deve cuidar sem ansiedade para evitar tenses

    e no permitir que se prenda a energia espontnea que alimenta e enriquece os contatos. Boff afirma

    categoricamente que o cuidado e o enternecimento pela inalienvel dignidade da vida que move

    pessoas e os movimentos a protestar, a resistir e a mobilizar-se para mudar a histria29.

    O ponto seguinte o repouso e alerta sobre o cotidiano. A cotidianidade aqui aquela observada por Heidegger, quando ele diz que o ser humano que nasce j possui histria e toda a impessoalidade

    pblica. esse modo de ser impessoal da vida cotidiana que nos interessa. A individualidade se constri subjetivamente quando o homem se conscientiza do fazer parte neste mundo e aceita o papel

    de desvelar o emaranhado que a vida oferece. Nessa constante busca sobre estar-no-mundo, emerge

    a subjetividade do sujeito no cotidiano, que vai se consolidar na permanente abertura ao novo.

    Acerca deste quarto ponto, a metodologia em questo prope aos educadores uma tarefa contnua de

    reflexo, em estado de alerta para suplantar a impessoalidade e se lanar no embate com suas dvidas

    e suas crenas. Para obter xito nesse empreendimento, preciso coragem para refletir acerca do

    que seja um comportamento denominado como normal, dos comportamentos estabelecidos pelo

    cotidiano. O professor dever ajudar o aluno a ver um caminho para sua prpria dignidade.

    28 HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrpolis: Vozes, 1988, p. 265.29 BOFF, L. Saber cuidar: tica do humano Compaixo pela Terra. Petrpolis: Vozes, 1999, p. 141.

  • 27

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    Outra nfase de Pinto o estado de repouso para manter o equilbrio entre os polos e impossibilitar posturas radicais. uma prtica muito usual no universo do relacionamento entre pessoas as exibies de rebeldia, o exibicionismo travestido de excentricidade, as contradies. O professor, e

    o educador tambm, claro, precisa expandir o pensamento de refletir sobre a prtica, mantendo

    a certeza da nossa existncia como sendo inacabada e o quanto nos falta para descobrirmos nosso

    genuno modo de ser.

    O quinto e ltimo ponto bsico da metodologia da compreenso existencial a referncia absoluta

    compreenso relativa ao estado de recepo. um movimento para receber a inteno do outro ser. Com essa viso o profissional educador deve firmar-se como intermediador da relao entre as

    pessoas. Ele deve permitir, e mesmo incentivar, a busca pelo que essencial no comportamento, levando o outro ser a se expor e demonstrar o que est acontecendo em seu interior. O professor

    deve abordar com tranquilidade o que conhece, como se sente, o modo como executa determinadas

    coisas. O ncleo da compreenso reside na relao subjetiva, na abertura para o contato e o encontro,

    que suscita superao, mas pode ser conseguida quando mediada pelo profissional de educao.

    Poderamos usar um pequeno trecho da orao que ficou conhecida como a Orao de So

    Francisco: compreendendo que se compreendido. Isso exige um esforo tremendo, pois no

    h que se esperar reciprocidade. Compreendendo o outro me compreendo a mim tambm, e temos

    que a tica da compreenso solicita o entendimento da incompreenso. um ato entre sujeitos,

    intencionalmente vivenciado para a edificao da relao dialgica.

    Percebemos a ausncia de autoritarismo enquanto reconhecemos uma verdadeira autoridade.

    Transpor os obstculos cotidianos a referncia absoluta compreenso. E no se pode deixar de

    observar que o entendimento no se esgota, pois o homem est em uma eterna busca e descoberta.

    A teoria acerca da compreenso existencial possui um mtodo proposto elaborado em torno de

    dez movimentos intencionais da mente que objetivam a compreenso do ser, por meio de sua

    experincia no conhecer, sentir e fazer. So aberturas da conscincia, segundo Pinto. O mtodo

    um instrumento ao educador para reflexo no processo de ensino-aprendizagem e tambm

    nos momentos cotidianos. Quando o formador e o formando experimentam juntos o mtodo, a

    conscincia de ambos se expande e o conhecimento dos fenmenos aumenta, como aumenta seu

    poder de ao no mundo. Abaixo elencamos os dez movimentos do mtodo para compreenso

    existencial e depois abordaremos um a um para uma explicao mais detalhada sobre eles:

    1. ativar a experincia prvia, surpreender e testar as retenes individuais;

    2. exercer constantemente o dar-se conta para assumir a ansiedade;

    3. ir s coisas mesmas, ao essencial, significao, clareza;

    4. variar sistematicamente e pela imaginao todos os aspectos das noes at o significado originrio;

    5. retomar e fazer retomar as representaes;

    6. visar integrao do conhecimento, da sensibilidade e da ao;

  • 28

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    7. elaborar as situaes difceis at positiv-las;

    8. insinuar a manifestao pblica das descobertas pessoais e operar sempre alguma anlise da linguagem;

    9. Trabalhar sempre em situao aqui-agora, enfatizando o como e o para qu;

    10. Aproveitar o repouso, deixar fruir espontaneidade nas situaes acabadas.

    A seguir explicitaremos cada movimento intencional da mente, que, por sua natureza dialgica,

    supe a participao de mediador exercida pelo educador, tanto nos acontecimentos cotidianos

    quanto nos momentos de ensino-aprendizagem.

    Ativar a experincia prvia, surpreender e testar as retenes individuais

    Uma relao compreensiva se desenvolve quando o profissional da educao, atuando como

    mediador, se mostra disposto a se envolver nas vivncias do educando. Fazer com que a experincia

    prvia esteja ativa oferta ao aluno a oportunidade de externar o que sabe sobre algo ou sobre suas

    potencialidades sem que seja interrompido em sua manifestao. Cabe ao professor dar prioridade

    expresso dos alunos antes mesmo da sua fala, construindo com isso um ambiente propcio para a

    mobilizao dos conhecimentos e preconceitos dos alunos. Funciona como um aquecimento, em que

    se originam conflitos de conhecimentos nascidos do confronto das ideias. O professor deve manter-

    se atento a todas as expresses desveladas pelos alunos para ajud-los a superar suas resistncias.

    Pinto acredita que ativar a experincia prvia diminui a rigidez afetiva, clareia a percepo do

    educando e convida sua intuio a participar deste processo. Revelado em sua totalidade, o aluno passa a ser sujeito participante do processo e a sua aprendizagem edificada significativamente.

    Exercer constantemente o dar-se conta para assumir a ansiedade

    Entende-se que o ser humano o nico ser dotado de capacidade de saber o que acontece ao seu

    redor e no seu interior concomitantemente. esse movimento de observao da energia interna e externa que proporciona o dar-se conta do real e, por conta disso, exercer uma ao condizente

    e mesmo a transformao dessa realidade. O exerccio desse item da metodologia apresentada

    pela compreenso existencial autoriza a regulao interior no mundo captado. um processo que

    liberta. Sabemos que situaes conflitantes so uma constante na realidade do relacionamento

    entre educador-educando e cabe ao professor mediar para trazer alegria, motivao e despertar curiosidade, a fim de construir um ambiente propcio ao ensino.

    O aluno tambm deve ser direcionado a praticar o dar-se conta e se pode ser conduzido a isso por

    meio de perguntas sobre como ele sente determinado assunto e determinada situao, levando a uma reflexo sobre si mesmo. Depois, e somente depois de ser conduzido no caminho em direo

    ao seu interior, o aluno chamado a perceber o que est fora, com expresses do tipo observe isto.

  • 29

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    Pinto entendia que, para uma aprendizagem elevada, essa dupla orientao (o dentro e o fora) se faz necessria. Isso conduz o aluno ao momento presente, ao aqui e agora, e assim possibilita a libertao da ansiedade, e o aluno pode tornar-se sujeito da situao. Utilizando as palavras de Pinto:

    [...] inclui conhecer originalmente algo, sentir primariamente algo e,

    juntamente com isso, ser capaz de alguma ao transformadora desse algo.

    Porque me dou conta, sou capaz de modificar a realidade. No h aprendizagem

    do tipo superior sem a aprendizagem do tipo superior sem a ampliao da

    capacidade de se dar conta. O dar-se conta visa auto-regular o organismo no

    mundo percebido (campo perceptivo). A ansiedade, a confuso, o desagrado

    assumido pelo dar-se conta. Se algum se d conta de como a dor di, a dor no

    mais aquela dor. Se o aluno se d conta de que pronuncia mermo em vez

    de mesmo, sua pronncia vai mudar.

    Ir s coisas mesmas, ao essencial, significao, clareza

    Em um mundo permeado de constantes mudanas imprevistas, papel fundamental do professor formar o indivduo para que ele conviva de forma benfica consigo mesmo e com a sociedade. O

    educador compreensivo tem sua disposio esse psicomovimento para ajudar a traduzir a realidade,

    separando o principal do secundrio. O mundo atual exerce enorme seduo e encanto sobre todas

    as faixas etrias e sociais, e ir s coisas mesmas adquirir a realidade integral, avaliando sua

    dificuldade, percebendo com clareza o principal e separando os secundrios. Aqui, ao educador,

    obrigatrio fomentar a reflexo e explorao da realidade sobre a forma que se apresenta para ns

    e como se estrutura. Como chegar s coisas mesmas? Para Pinto, pela intuio, pela percepo e

    pelo sentir; em um segundo momento, pela reflexo.

    Em algumas situaes, os profissionais da educao e da sade havero de interferir nos momentos

    que os educandos escondem a realidade, seja por motivo de falta de informao, seja porque a

    reflexo demanda comprometimento. Ir s coisas mesmas serve para separar do essencial o

    secundrio, ainda que em outros momentos o secundrio seja principal, portanto o secundrio,

    quando secundrio, deve ser posto de lado, pois que se pode fingir que nesta situao em questo

    ele no existe.

    A viso crtica de educando e educador despertada por essa prtica que conduz ao desenvolvimento do esprito explorador e ao prazer pelo trabalho coletivo. No entanto, deve-se manter atento ao

    perigo de serem estabelecidas verdades absolutas na busca pelo essencial. A melhora e aumento da

    compreenso da realidade presente o objetivo pretendido para o sujeito.

    Variar sistematicamente e pela imaginao todos os aspectos das noes at o significado originrio

    Quem se dispe a ensinar qualquer coisa a outro busca recursos didticos capazes de auxiliar a

    alcanar o objetivo, que a transmisso do conhecimento. O estudante percebe a diferena entre o

  • 30

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    que fundamental e o que secundrio no objeto de estudo, relacionando-se com os elementos e

    assumindo o papel de sujeito ativo no processo. Nesse momento, o movimento mental intencional

    vai variar sistematicamente.

    A compreenso se inicia na imaginao, que onde recebemos o objeto e por onde vamos analis-

    los em todos os ngulos para chegarmos sua essncia aps vasculhar todos os ngulos existentes.

    A criatividade pode ser entendida como oriunda da prtica de diversificar as maneiras de observar

    um objeto deliberado ou uma situao especfica.

    Variar sistematicamente e pela imaginao todas as noes at o significado originrio exige do

    professor capacidade de proporcionar situaes distintas na abordagem de um assunto em que os alunos

    tero a oportunidade de vivenciar a decomposio do objeto em elementos essenciais e acessrios e,

    com isso, de expressar-se com tranquilidade sobre as representaes mentais que desenvolveram e

    expandiram sua capacidade criativa. Essa prtica pode causar surpresa nos educadores que pensam

    ser os donos do conhecimento e tm na sua prtica expositiva a nica possvel. J o educador

    compreensivo existencial deve desenvolver a habilidade de constituir momentos em que seus alunos se

    inter-relacionem com determinado objeto de conhecimento de maneira diversificada, possibilitando-

    lhes uma aprendizagem expressiva, baseada em experincias anteriores.

    Retomar e fazer retomar as representaes (trabalhar com o aluno num esforo vlido, com vistas a preencher a sua intuio)

    O ser humano, naturalmente, reflete suas vivncias utilizando seu passado em pontos que podem

    ser recuperados hoje. E, baseado nessa recuperao, ele pode arquitetar um futuro idealizado.

    Nessa conjuntura, o indivduo expande e aprofunda seu entendimento. Esse quinto item da

    prtica metodolgica abordada reflete o anterior. Retomar e fazer retomar as representaes

    uma necessidade inerente do sujeito ativo na criao do seu conhecimento e de suas habilidades.

    Retomar se refere aceitao espontnea dos equvocos como oportunidades para acertos.

    Retomar e fazer retomar as representaes significa o entendimento de que no agora que se

    alimentam circunstncias criadoras de aprendizagem, a partir da contnua investigao dos planos mentais organizados ou incompletos.

    Vale a pena errar no ambiente de aprendizagem! Essa exclamao deve ser a disposio do educador

    compreensivo existencial, que deve fomentar essa verdade nos alunos. Quando um sujeito se d

    conta do erro, este j no pode subsistir, a no ser que tenha havido m vontade ou tenha sido

    por mero acaso. Mediando, o educador traz esses movimentos de retomar para proporcionar ao

    educando a vivncia de governar seus conflitos de compreenso.

    Visar integrao do conhecimento, da sensibilidade e da ao

    Esse mtodo tem uma premissa bsica: cognio, sensibilidade, a atividade do indivduo uma espiral hermenutica assim entendida como um sistema aberto que amplifica o entendimento

    dos significados. Para construir o saber construtivo, temos a reunio entre os elementos do

  • 31

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    conhecimento, os da intuio e os da sensibilidade e a atividade do sujeito. As conscincias

    movimentam-se em direo integrao e, portanto, o educador compreensivo deve facilitar para o aluno perceber esse fato.

    O saber compreensivo se desenvolve nesse universo integrado dos elementos do conhecimento,

    sensibilidade e ao, e toda vez que o ambiente escolar diminui a importncia desses processos do sujeito e o desenvolvimento das habilidades acontece o perigo de provocar uma deformao

    educacional. O correto e integral desenvolvimento subjetivo acontecem na diversidade das

    intermediaes do sistema. funo do educador compreensivo existencial realizar essas prticas

    psicolgicas objetivando um ensino superior e a meditao acerca do real.

    Elaborar as situaes difceis at positiv-las

    Este um desafio lanado ao professor, porque a ele cabe conviver com circunstncia complexas,

    com as dificuldades inerentes ao cotidiano, convertendo para si o princpio de fomentar os alunos a

    vencer suas barreiras e seus obstculos. Essa parte do mtodo da compreenso existencial considera

    o movimento mental intencional (psicomovimento) um instrumento fundamental na atividade profissional do educador, especialmente porque, dentro do universo educacional, na escola, a sua

    mais fecunda expresso. E existem diversos mecanismos criadores de relaes de contenda, e ainda

    possvel acrescentar os conflitos afetivos originados no universo familiar e os evidentes conflitos

    da relao professor-aluno e aluno-aluno.

    Toda vez que de uma determinada circunstncia deriva sofrimento h um impulso natural em

    direo fuga. O educador precisa ter em mente que a dificuldade momentnea no deve ser

    ignorada, tampouco esquecida ou rechaada, e, munido dessa convico, deve manter-se junto ao

    educando, dando-lhe coragem para, persistindo, visualizar uma sada compensatria. E, depois,

    ainda o educador deve participar apoiando e observando o caminho encontrado pelo educando.

    O educador precisa ter em mente que a dificuldade momentnea no deve ser ignorada (elaborar

    situaes difceis at positiv-las):

    garantir ao aluno sua presena e elaborar simpaticamente o dar-se conta da situao, para rebaixar o nvel de ansiedade;

    buscar o entendimento do caso em si na sua totalidade, identificando os elementos que desencadearam o impasse, na fala do educando, em seus gestos, em sua inteno;

    atentar para a tendncia negativa que se manifesta na situao: agressividade, fuga, choro, assuno de posio de vtima ou de culpado;

    convidar o aluno a expressar de outra forma aquele mal-estar, a fazer algo em vez de falar sobre algo;

    aps vislumbrar a possibilidade de superao ou chegar situao resolvida, convid-lo a relaxar, repousar a mente, aquietar o corao e, finalmente, elogi-lo

    pelo que foi capaz de elaborar.

  • 32

    UNIDADE NICA PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS

    Elaborar situaes difceis at positiv-las relaciona-se com a prtica de clarear a percepo do

    aluno no instante em que ele est abatido, sem competncia emocional de vislumbrar um caminho

    ou tomar decises que sejam favorveis. Aqui reside uma importncia especial para o educador: no

    fraquejar e continuar incentivando o educando a agir durante a circunstncia, meditando sobre os

    pontos que podem ser alterados e interpretando as consequncias que suas aes promovem.

    Insinuar a manifestao pblica das descobertas pessoais e operar sempre alguma anlise da linguagem

    O mtodo objeto de estudo momentneo de natureza dialgica, pois entende o conhecimento como

    aquele gerado na relao subjetiva, em que os sujeitos dialogam com o mundo, consigo mesmo e

    com os outros sujeitos. Por outro lado, sendo mecanismo de linguagem verbal, encontra-se vulnervel

    s defesas dos indivduos, que podem, aproveitando-se disso, manter escondidos o mago e seus significados. O autoconhecimento fcil de ser alcanado para os que se arriscam na manifestao

    pblica, visto que a fala genuna desvela o que se sente, faz e conhece.

    O psicomovimento em questo deve ser efetuado na conquista do significado em todos os objetos

    do conhecimento e, para tanto, mais outra vez, o educador compreensivo deve mediar o dilogo

    instigando o aluno a refletir acerca de sua fala. Os educandos respondem a indagaes, externam

    suas opinies ou descrevem situaes toda fez que falam e, portanto, devem ficar atentos

    linguagem que usam nessa tarefa para que o que seja dito seja claro para si e para os receptores da

    fala, estabelecendo entre eles uma comunicao.

    Trabalhar sempre em situao aqui-agora, enfatizando o como e o para qu

    No presente, as foras do passado se atualizam e as pretenses do futuro so sintetizadas pelos

    elementos do conhecimento, da sensibilidade e da ao. Assim, entende-se que o presente ativo! E

    no pode ficar parado, trazendo incmodos ou prazeres. Devido a essa realidade urgente ajudar o

    sujeito a permanecer e viver o presente, at porque neste presente est implcita a vida passada e futura.

    Todos os profissionais da educao compreensiva existencial compreendem que executar a tarefa

    das circunstncias no presente obriga a capacidade de fazer uso do movimento mental intencional que objetiva a situao aqui-agora, enfatizando como e para qu, e, para que isso seja possvel, o

    educador precisa ajudar o aluno a permanecer no momento presente por meio de questionamentos

    como: como sente isso?, como est se sentindo?, voc est fazendo assim para qu?.

    Pinto alerta que o porqu, por vezes, no traz tona a clareza do questionamento pelo motivo de

    vir acompanhado da possibilidade de gerar palavras vazias como instrumento de defesa. J o termo

    como questiona o funcionamento de determinado objeto e ainda encaminha o sujeito ao encontro

    de seus sentimentos. Fica clara a necessidade de o profissional da educao, durante sua prtica

    de reflexo, utilizar esse movimento que tem muito a oferecer no planejamento de suas escolhas

    pedaggicas, no sistema de avaliao e na reunio do saber e fazer.

  • 33

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    Aproveitar o repouso, deixar fruir espontaneidade nas situaes acabadas

    Nesse psicomovimento, a ateno deve ser destinada s expresses dos alunos ao fim das atividades,

    depois de finalizadas, para se conhecer os efeitos psicolgicos resultantes da sensao de tarefa

    cumprida com sucesso.

    A educao compreensiva e seu cuidar exigem acompanhamento durante o procedimento de

    reformulao da experincia. Tambm no final do processo, a presena do educador demandada,

    pois exatamente o momento em que os aprendizes permitem a exacerbao dos sentimentos de

    satisfao para mediar e propiciar o prazer como um estado de repouso em que se encontram com o divertido entendimento da vivncia consentida. Esse movimento entende o repouso como parte de qualquer atividade humana em que se impem ateno, esforo e boa vontade.

    Por vezes o sucesso no se apresenta na finalizao de determinada atividade e o educando exterioriza

    seu cansao e insatisfao pela no realizao esperada da tarefa. Esse psicomovimento repousar e

    deixar fruir ainda mais direcionado para estas situaes de desempenho inferior para encontrar

    nesse desempenho qualquer ponto de vista favorvel, agradvel e til para a vida do sujeito que se

    v envolvido com esse sentimento de frustrao. O apoio ao aluno mais outra vez ofertado e agora urge a sugesto de repouso, a fim de que ele restaure as energias para a retomada da tarefa mais

    frente, reafirmando a postura de confiana do professor em seu aluno de forma acolhedora.

    Nas palavras de Pinto:

    H satisfao de sentir, mas h tambm a satisfao de conhecer e a satisfao

    de fazer algo bem feito. Isto quer dizer que, alm da teoria e da prtica, h

    a satisfao de ser e de sentir o fruir da prtica e da teoria. E h a satisfao

    maravilhosa de sentir-se seguro, ancorado na prpria experincia. Nada mais

    natural, portanto, que depois da reelaborao, se passe espontaneamente

    fruio. Se passe a viver disso, viver da prpria experincia.

  • 34

    CAPTULO 3A virada hermenutica da fenomenologia

    Pode-se conceituar hermenutica como a arte de interpretar o sentido das palavras, das leis, dos

    textos etc. Usando essa mesma definio para analisar o que vem a ser fenomenologia, podemos

    comear por logia, que oriunda do grego e a habilidade de pensar sobre algo. Portanto, temos um entendimento de que este ramo filosfico uma habilidade de pensar os fenmenos.

    Alguns filsofos deram importantes contribuies para a fenomenologia, como o entendimento

    de Martin Heidegger, um dos principais pensadores do sculo passado. Heidegger principia pela

    questo do sentido do ser, no que seria mister conseguir o correto entendimento pelo seu sentido. Na metafsica, o ser o ente, j na fenomenologia o ser no mais fundante. Sua filosofia existencial

    encontra-se no inacabado Ser e Tempo, expostos em 1927. Ele foi ajudante do filsofo Edmund Husserl, portanto, muito influenciado por este.

    Na filosofia heideggeriana, o prprio ser o sentido do ser, por ele determinado Dasein, pois o homem o nico ente de quem se exige uma soluo para o existir, o nico com esse autoquestionamento

    sobre o sentido do ser, e a essa ontologia o filsofo denominou de hermenutica. Para ele, a pr-

    sena sempre se compreende a si mesma a partir de sua existncia, de uma possibilidade prpria de

    ser ou no ser ela mesma30.

    O Dasein intermedia a relao do ser com o ente, pois um no fundamenta o outro, mas ambos manifestam uma reciprocidade, e no ente que o ser vem revelar-se, portanto, o ser percebido como meio de alcanar o ente.

    Para Heidegger, a existncia simplesmente encontrar-se na realidade do ser, e ele ir ocupar-se,

    principalmente, em estabelecer seu sentido. Os metafsicos analisam o problema do ente por meio do ser, tendo este como fundamento. Heidegger segue em sentido diverso, manifestando a ideia de que somente o Dasein pode levar a pensar o ser do homem, que tem o sentido de estar no mundo, por isso, para ele, o ser visto como possibilidade e no como fundamento, o que passa a ser a virada ontolgica.

    O que vem a ser o Dasein? Ele permite a reflexo sobre o sentido do ser, por isso h uma relao entre quem pensa e o que pensado, entre aquele que faz um questionamento e o que questionado. Podemos dizer que o Dasein um ente compreensivo do ser, por ente entende-se aquele que questiona seu prprio ser. A existncia o processo de interpretar a si mesmo, criticar-se, analisar

    o prprio ser a todo instante, possvel graas ao Dasein.

    Ainda explanando o entendimento filosfico de Heidegger, vamos encontrar a viso de que sem

    o Dasein no poderia haver o homem e que sem o mundo no haveria o sujeito, pois estamos colocados no mundo, e minha existncia no minha apenas porque existe tambm um outro. Em

    30 HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrpolis: Vozes, 1996, p. 39.

  • 35

    PROBLEMAS FENOMENOLGICOS E HERMENUTICOS UNIDADE NICA

    suas palavras: este ser lanado correlativo ao projeto estadeado no compreender, que integra o

    conceito mesmo de existncia, inseparvel de seu poder-ser, e a cada momento de existncia traz

    compreenso de ns mesmos e do mundo. Projetar interpretar-nos a ns aos outros