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São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos nas conferências aqui publicadas. Setembro 2010 666 Sumário O estadista da Abolição ............................................. 3 Arnaldo Niskier Clovis Bevilaqua – Filósofo do direito, comparatista e publicista (1859-2009) ................... 30 Célio Borja Admirável mundo velho! ......................................... 42 Olga Cortes Rabelo Leão Simvbalista A traição de Nabuco ............................................... 67 José Arthur Rios Síntese da Conjuntura As fases da crise ...................................................... 84 Ernane Galvêas Problemas Nacionais Conferências pronunciadas nas reuniões semanais do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

Problemas Nacionais

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São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos nas conferências aqui publicadas.

Setembro2010

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Sumário

O estadista da Abolição ............................................. 3Arnaldo Niskier

Clovis Bevilaqua – Filósofo do direito, comparatista e publicista (1859-2009) ................... 30Célio Borja

Admirável mundo velho! ......................................... 42Olga Cortes Rabelo Leão Simvbalista

A traição de Nabuco ............................................... 67José Arthur Rios

Síntese da ConjunturaAs fases da crise ...................................................... 84Ernane Galvêas

Problemas NacionaisConferências pronunciadas nas reuniões semanais do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

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Publicação MensalEditor-Responsável: Gilberto PaimProjeto Gráfico: Assessoria de Comunicação/Programação VisualImpressão: Gráfica Ultraset

Carta Mensal |Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo – v. 1, n. 1 (1955) – Rio de Janeiro: CNC, 1955-

100 p. MensalISSN 0101-4315

1. Problemas Brasileiros – Periódicos. I. Confederação Nacional do Co-mércio de Bens, Serviços e Turismo. Conselho Técnico.

Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

Setembro 2010, n. 666

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Arnaldo NiskierPresidente do Conselho de Administração do CIEE/RJ e membro da Academia Brasileira de Letras

O estadista da Abolição

“A abolição teria sido uma obra de outro alcance moral, se tivesse sido feita do altar, pregada do púlpito, prosseguida de geração em geração pelo clero e pelos educadores da consciência. Infelizmente, o espírito revolucionário teve que executar em poucos anos uma tarefa que havia sido desprezada durante um século.”

Ainda criança, quando seus pais viajaram para a Corte, no Rio de Janeiro, Joaquim Nabuco foi entregue para ser criado por

seus padrinhos, os senhores do Engenho de Massangana, Joaquim Aurélio Pereira de Carvalho e Ana Rosa Falcão de Carvalho. Foi neste ambiente que conviveu profundamente com a escravidão, formando então suas opiniões acerca do tema. O próprio Joaquim Nabuco relata no livro Minha Formação que, certa vez, ele viu a casa onde residia ser invadida subitamente por um escravo de cerca de 18 anos, que se ajoelhou e segurou seus pés, e pediu desesperadamente

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que convencesse a sua madrinha a comprá-lo do seu senhor para que então passasse a servi-lo. O escravo havia fugido da fazenda vizinha porque o seu patrão o castigava periodicamente. Aquilo ficou marcado para sempre em sua memória.

Aos 8 anos, com a morte da madrinha, já viúva, transferiu-se para a casa dos pais no Rio de Janeiro, onde estudou no Colégio do Ba-rão de Tautphoeus e no Colégio Pedro II. Em, 1866, com 17 anos, frequentou a Faculdade de Direito de São Paulo, e já se destacava como grande orador. Um fato importante ocorrido neste período realça como Joaquim Nabuco progredia e antecipava o que o Brasil ganharia com o seu talento: com a queda do Gabinete Zacarias, José Bonifácio, chamado de “O Moço”, perdeu o cargo de ministro do Império e teve que regressar a São Paulo. O orador escolhido para recebê-lo na volta à cidade foi o estudante Joaquim Nabuco.

Em 1869, transferindo-se para a Faculdade de Direito do Recife, a chama acesa contra a escravidão não arrefeceu, ao contrário, ficou ainda mais forte, chamando cada vez mais a atenção do povo. Ele chocou a elite da cidade com o seu comportamento revolucionário em todos os sentidos: como advogado, quando assumiu a defesa de um escravo que havia assassinado o seu senhor, e como parlamentar, ao defender ardorosamente a libertação dos escravos.

Avaliando sua atuação como deputado nas diversas legislaturas, a partir de 1878, podemos considerá-la como um marco da campanha contra a escravidão no Brasil. Devido aos seus discursos e às suas iniciativas o tema acabou ganhando projeção nacional e fez com que muitos parlamentares e intelectuais abraçassem a causa.

Para coroar esse seu posicionamento, Joaquim Nabuco fundou, em 1880, em sua própria residência, a Sociedade Brasileira Contra a

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Escravidão, comprando briga feia com os conservadores locais, que defendiam a manutenção daquele sistema. Ele contou que, certa vez, quando era candidato, soube que um escravo suicidou-se em Can-tagalo sem nenhum motivo aparente. Depois, a verdadeira causa do ato extremo foi revelada: os donos da fazenda informaram que ele atentou contra a própria vida porque Joaquim Nabuco havia perdi-do a eleição. Fatos como este reforçavam o seu ideal abolicionista. Tornou-se o estadista da Abolição.

Entre 1882 e 1884, sem mandato, Nabuco partiu para um autoexílio na Europa, quando inclusive se tornou colaborador do Jornal do Com-mercio, em Londres. Em 1884, ele escreveu O Abolicionista, considerado pelo jurista Raymundo Faoro um livro tão importante, que talvez tenha aberto as portas da sociologia brasileira, por desmentir muitas teorias que eram disseminadas, em contrastes entre uma classe e outra.

O livro clássico de Faoro, Os Donos do Poder, é farto em citações do autor de Um Estadista do Império, o que denota a influência do pensa-mento do escritor e diplomata na obra do jurista, falecido em 2003, e que também fez parte da Academia Brasileira de Letras, embora por pouco tempo.

O pai, um estadista do império

Joaquim Nabuco só veio a conhecer o seu pai, José Tomás Nabuco de Araújo, quando tinha exatos 8 anos, após o falecimento de sua madrinha. Foi quando passou a conviver com aquele que era consi-derado um intelectual influente, com grande prestígio no Império. Além de deputado geral, ele também foi presidente de província, ministro da Justiça e senador do Império, no período de 1858 a 1878. Para Joaquim Nabuco, a principal qualidade política do seu pai era

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“adaptar os meios aos fins e não deixar periclitar o interesse social maior por causa de uma doutrina ou de uma aspiração”.

Com um misto de admiração e respeito, Joaquim Nabuco publicou uma das principais obras da literatura brasileira, Um Estadista do Im-pério, usada até hoje como referência quando se fala em história do Brasil. A tarefa não foi das mais fáceis, visto que tanto o pai quanto o filho tiveram suas vidas atribuladas de compromissos, sociais e polí-ticos. Hoje, o livro é reconhecido como um dos mais representativos da historiografia imperial.

Foram necessárias muitas pesquisas para a produção da obra, como diria Joaquim Nabuco: “Muitos anos depois de sua morte, estudando--lhe a vida, meditando sobre o que ele deixou do seu pensamento, compulsando o vasto arquivo por ele acumulado, a sua correspon-dência política, os testemunhos, as controvérsias, suscitadas pela sua ação individual e as consequências a ela atribuídas por amigos e adversários, que abrangi a personalidade política de meu pai”.

A trajetória de Joaquim Nabuco e a de seu pai, José Tomás Nabuco de Araújo, no campo político, se assemelha um pouco com a vida do Visconde do Rio Branco, que foi chanceler na época da Guerra do Paraguai, e a de seu filho, Barão do Rio Branco, ambos diplomatas, com amplos serviços prestados ao Brasil em contendas territoriais. Lembra a velha história do pai que deixa o legado para o filho. Só que Joaquim Nabuco, além de dar seguimento à trajetória do pai no campo político, também se destacou no campo diplomático, superando-o, inclusive, em termos de reconhecimento nacional.

O diplomata Nabuco

O início da atuação de Joaquim Nabuco, na diplomacia brasileira, data de 1876, aos 27 anos. Foi quando ocorreu o convite para ser

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adido nos Estados Unidos. Manteve uma boa rede de conhecimentos naquele país, onde também estudou em Nova York e em Washing-ton. A experiência foi tão positiva que ele passou a admirar o país de forma velada, chegando a afirmar: “Durante mais de um ano fui um verdadeiro americano nos Estados Unidos, como o provérbio manda ser romano em Roma. Era o meio de penetrar, de compreender, de sentir a vida política do país, se eu o queria, e este fora o meu motivo ao desejar ir para os Estados Unidos”.

Mesmo sendo um monarquista convicto, Joaquim Nabuco se rendeu aos apelos do governo republicano, em 1899, para atuar na solução de um conflito do Brasil com a Guiana Inglesa relacionado a limites territoriais. O árbitro da questão foi o rei da Itália, Victor Emanuel. Data deste período o processo de aproximação de Nabuco com os republicanos. Ele perdeu a causa.

No ano seguinte, com a morte do ministro brasileiro na Inglaterra, Sousa Correia, mais uma vez Nabuco foi convidado pelo governo a assumir o cargo. A princípio, ele aceitou em parte: concordou em ser apenas plenipotenciário em missão especial, deixando o cargo principal para o encarregado de negócios que já se encontrava em Londres. Meses depois, assumiu oficialmente o posto.

Mas a paixão de Joaquim Nabuco era mesmo os Estados Unidos. Por isso, em 1905, quando foi criada a embaixada brasileira em Washing-ton, a sua nomeação foi algo já esperado. As suas credenciais foram apresentadas ao Presidente Theodore Roosevelt, no dia 25 de maio de 1905. Foi uma fase profícua para o escritor e diplomata brasileiro, que aumentou em muito sua produção intelectual neste período. Foi quando travou contato com as ideias do panamericanismo, baseado na doutrina de Monroe. Ele também ficou famoso por suas palestras em universidades americanas.

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O reconhecimento pela boa acolhida recebida dos americanos está marcado nas palavras de Joaquim Nabuco: “Nenhuma das minhas ideias políticas se alterou nos Estados Unidos, mas ninguém aspira o ar americano sem achá-lo mais vivo, mais leve, mais elástico do que os outros saturados de tradição e autoridade, de convencionalismo e cerimonial. Essa impressão não se apaga na vida. Aquele ar, quem o aspirou uma vez, prolongadamente, não o confundirá com o de nenhuma outra parte; sua composição é diferente da de todos”.

No dia 17 de janeiro de 1910, Joaquim Nabuco faleceu em Washing-ton, com 60 anos de idade.

O contato com grandes personalidades

Uma pequena análise das pessoas com as quais se relacionou no Brasil e no exterior dá uma ideia dos conceitos que sedimentaram a per-sonalidade de Joaquim Nabuco. Os ensinamentos de Ernest Renan, por exemplo, tiveram grande aceitação entre intelectuais brasileiros, e Joaquim Nabuco foi um deles, como ele próprio destacou no livro Minha Formação. Tudo começou quando Nabuco escreveu uma carta a Renan, em francês – Le droit au Meurtre – onde analisava um livro de Alexandre Dumas Filho. Logo depois, quando se encontrava em Paris, Nabuco visitou o historiador e filósofo francês, sendo muito bem recebido. Quando publicou o livro Amour et Dieu, também a receptividade de Renan foi surpreendente, tendo elogiado a obra e se comprometido a abrir caminhos ao escritor brasileiro. E realmente isso aconteceu: o brasileiro conheceu e manteve contatos com Émile Littré, lexicógrafo e positivista, discípulo de Auguste Comte; Auguste Thiers, político e historiador, presidente da França e George Sand, escritora francesa famosa por suas obras polêmicas e marcantes, entre outros.

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Mas tudo começou com Renan e o reconhecimento de Joaquim Nabuco foi público e notório. Segundo ele, “a grande influência literária que experimentei na vida, a embriaguez do espírito mais perfeita que se podia dar, pelo narcótico de um estilo de timbre sem igual em nenhuma literatura, o meu coup de foudre intelectual, foi a influência de Renan”.

Em uma obra publicada alguns anos depois, Souvenirs d’Enfance et de Jeunesse, Renan disse que, para não ferir suscetibilidades, costumava dizer inverdades para os jovens escritores. Joaquim Nabuco teria ficado um pouco decepcionado quando leu esta afirmação no livro. Mas é inegável que as primeiras impressões são as que devem ter ficado e influenciado o seu pensamento.

Quem também teve ampla influência junto a Joaquim Nabuco foi o barão de Tautphoeus, mestre que se exilou no Brasil, vindo da Baviera, e foi seu orientador no colégio em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Foi com ele que o escritor brasileiro desenvolveu principalmente a sua formação humanística: “A abundância de ideias gerais, de pontos de vista sugestivos, de matéria para reflexão em sua conversa, era notável. Pode-se dizer que esse homem que não escreveu nunca, pelo menos no Brasil, publicou o maior número de ensaios, de teses históricas e outras, do que todos os nossos escritores juntos: unicamente suas con-tínuas edições tiradas a pequeno número de exemplares dissipavam-se como a palavra, quando não eram convertidas em trabalho alheio. Que lhe importava isto? Ele era destituído de ambição”.

Um parlamentar exigente

Eleito deputado pela província de Pernambuco, em 1878, Joaquim Nabuco destacou-se na tribuna como o líder da campanha pela

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abolição dos escravos. Nos anos seguintes, sua vida parlamentar em Pernambuco foi intensa. Em 1882, foi derrotado nas urnas quando tentava a reeleição, e em 1884, ganhou mas não levou: sua candidatura foi expurgada pela Câmara daquela província. Revoltados, os candi-datos liberais do chamado 5º Distrito, formado pelos municípios de Nazaré e Bom Jardim, renunciaram à disputa e com isso Joaquim Nabuco foi eleito.

Em 1886, mais uma vez foi derrotado em Recife, na disputa para a Câmara dos Deputados. O troco veio em dose dupla: no ano seguin-te, derrotou o candidato Machado Portela, ministro do Império, e em 1889 se elegeu para a última legislatura do Império. Um detalhe importante em relação ao último pleito é que Joaquim Nabuco não fez nenhum esforço para ser eleito. Não há registro de discursos ou pedidos de apoio ao povo recifense. Venceu pelo prestígio adquirido nos seus mandatos anteriores.

Após a Proclamação da República, optou pelo afastamento da vida pública. É deste período a sua ligação mais estreita com os escritores brasileiros, o que acabou levando aos debates em torno da criação da Academia Brasileira de Letras, fato este que acabou ocorrendo, em 1897, tornando-se ele um dos seus membros fundadores e o primeiro secretário-geral da instituição.

Luís de Camões maior que Dante?

Em Camões e os Lusíadas, Joaquim Nabuco traçou um retrato emo-cionado e romântico da vida do poeta português, cujas aventuras e dissabores são relatados de forma eloquente e com muito entusiasmo e devoção. Essa paixão pela obra de Camões o levou a fazer uma analogia entre a epopeia do autor português e a principal de Dante Alighieri, Divina Comédia. Ele concluiu que a obra Os Lusíadas era

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superior, acrescentando inclusive que ela foi escrita com os mesmos ingredientes das obras clássicas de Homero e Virgílio.

Neste pequeno trecho dá para depreender o porquê da opinião de Joaquim Nabuco: “A Divina Comédia não é propriamente um poema épico; é um poema fantástico, é o sonho de uma imaginação tão grande quanto melancólica. Nada há de real; são espectros que fogem e se evaporam”.

Apesar do respeito que todos lhe dedicavam, não conseguiu angariar unanimidade nessa comparação. As duas obras são clássicas, e ambas têm a sua importância histórica no âmbito da literatura universal.

Balmaceda, um livro premonitório?

O livro Balmaceda, de Joaquim Nabuco, sobre a guerra civil chilena, é resultado de artigos publicados no Jornal do Commercio. Com muito cuidado e precisão de argumentos, ele analisa a crise do Governo do Presidente José Manuel Balmaceda, que culminou com o seu suicídio. Uma verdadeira aula de Joaquim Nabuco sobre os diversos sistemas políticos e as relações entre os países, em que são destacados seus vícios, suas fraquezas, suas dificuldades e também suas virtudes. De-vido à atualidade do tema, o livro não parece ter sido escrito em pleno século XIX. Segundo Celso Lafer, “a obra transcende os embates da época não só pela qualidade da escrita de Nabuco, que o diferencia dos seus contemporâneos, inclusive os mais eminentes como Eduardo Prado, Rui Barbosa, e Rio Branco, como também pela substantiva atualidade dos seus comentários e da sua exegese política”.

Um fato que nos chama a atenção é o alerta dado por ele de que acontecimentos como estes mereciam uma atenção maior por parte

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das nossas autoridades, para que futuramente não viessem a acontecer aqui no Brasil. Todos recordam da crise política brasileira que levou o Presidente Getúlio Vargas a se suicidar, no dia 24 de agosto de 1954. Estaria Joaquim Nabuco prevendo que poderíamos chegar também a um ato extremo como este? Premonitório ou não, a tragédia brasileira ocorreu algumas décadas depois da publicação do livro e hoje faz parte da nossa história.

Até um Papa se rendeu aos seus argumentos

A importância de Joaquim Nabuco atravessou as fronteiras e chegou até o Vaticano. Em 1888, com o objetivo de conseguir a manifestação do papa Leão XIII contra a escravidão no Brasil, dirigiu-se a Roma. A campanha contra a escravidão estava intensa no Brasil e ele achava que um pronunciamento oficial do papa talvez pudesse sensibilizar o príncipe regente. Era uma luta que ele travava há 10 anos, sempre pedindo apoio a outros países, como ele mesmo relata:

“A opinião pública do mundo parecia-me uma arma legítima de usar em uma questão que era da humanidade toda e não somente nossa. Para adquirir aquela arma fui a Lisboa, a Madri, a Paris, a Londres, a Milão, ia agora a Roma, e se a escravidão tivesse tardado ainda a desaparecer, teria ido a Washington, a Nova York, a Buenos Aires, a Santiago, a toda a parte onde uma simpatia nova por nossa causa pudesse aparecer, trazendo-lhe o prestígio da civilização”.

Durante a audiência, em fevereiro de 1888, com a conversa toda em francês, Joaquim Nabuco pediu apoio do Sumo Pontífice para a con-denação da escravidão no Brasil. Após o encontro, houve a promessa da publicação de uma encíclica sobre o assunto, já que, segundo o papa, a causa era tanto do Vaticano quanto do Brasil. Infelizmente,

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por outros motivos, a publicação da encíclica demorou um pouco, e ela só veio a público após o dia 13 de maio de 1888, quando a escra-vidão já havia sido abolida entre nós.

A presença na Academia Brasileira de Letras

Um dos fundadores da ABL, Joaquim Nabuco assumiu a Cadeira nº 27, cujo patrono é o médico pernambucano Maciel Monteiro. Foi sucedido por Dantas Barreto, Gregório Fonseca, Levi Carneiro e Octávio de Faria. Atualmente, o ocupante da cadeira é o escritor Eduardo Portella, nosso segundo decano.

Em seu discurso de posse, como o primeiro Secretário Geral, Joaquim Nabuco já demonstrava o seu estilo, quando assim se expressou: “Nós, os primeiros, seremos os únicos acadêmicos que não tiveram mérito em sê-lo, quase todos entramos por indicação singular, poucos foram eleitos pela Academia ainda incompleta, e nessas escolhas cada um de nós como que teve em vista corrigir a sua elevação isolada, completar a distinção que recebera; só dora em diante, depois que a Academia existir, depois de termos uma regra, tradições, emulação, e em torno de nós o interesse, a fiscalização da opinião, a consagração do sucesso, é que a escolha poderá parecer um plebiscito literário. Nós de fato constituímos apenas um primeiro eleitorado”.

Mais adiante, Nabuco comenta, em forma de questionamento, se no fato de se fundar a Academia Brasileira de Letras não estaria embu-tida a tendência a uma unidade literária com Portugal. Ele próprio mostra que isto não seria necessário, já que, mesmo falando a mes-ma língua, os dois países tinham os futuros destinos tanto literários quanto nacionais profundamente divididos. E no final do discurso afirmou: “A formação da Academia Brasileira de Letras é a afirmação

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de que literária, como politicamente, somos uma nação que tem o seu destino, seu caráter distinto, e só pode ser dirigida por si mesma, desenvolvendo sua originalidade com os seus recursos próprios, só querendo, só aspirando a glória que possa vir de seu gênio”.

Caetano Veloso e Joaquim Nabuco

Em 2000, Caetano Veloso estava preparando o seu próximo CD e leu o livro Minha Formação, de Joaquim Nabuco. O impacto foi tão forte que acabou influenciando todo o projeto do disco e tornou possível a parceria histórica do compositor e cantor baiano com o político e diplomata pernambucano na música Noites do Norte, que também deu nome ao CD.

Caetano Veloso, durante a leitura do livro, se emocionou com uma conclusão de Joaquim Nabuco, que denominou de sublime: o servilis-mo dos escravos representava uma superioridade humana e moral. Ao mesmo tempo, ao detectar a preocupação do escritor com os reflexos da escravidão na vida dos brasileiros, ele localizou na favelização, que hoje marca, nos grandes centros urbanos do País, uma das heranças preconizadas no livro.

A seguir, a parte do livro que foi musicada por Caetano Veloso e mostrou, em pleno século XXI, a atualidade e modernidade de um pensamento emitido no século XIX:

Noites do Norte(Joaquim Nabuco/Caetano Veloso)

A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.Ela espalhou por nossas vastas solidões

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uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas,seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte...É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.

Uma obra que não carece de estilo

A figura do escritor Joaquim Nabuco transcende questões como escolas e estilos literários. Ele viveu no período em que o parnasianis-mo e o realismo prevaleciam, mas isto não quer dizer que suas obras necessariamente pudessem ser classificadas como pertencentes a tais gêneros literários. Nem tampouco podemos descartar que, em alguns casos, elas também tenham tido alguma influência nos escritos do grande orador. Como afirmou certa vez Afrânio Coutinho, Joaquim Nabuco era uma “figura à parte, independente de escolas”.

No livro Minha Formação, Nabuco parece mostrar a existência dessa particularidade em seus escritos:

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“Acredito ter recebido, como escritor, tudo é relativo, um pouco de sentimento, um pouco de pensamento, um pouco de poesia, o que tudo junto pode dar, em quem não teve o verso, uma certa medida de prosa rítmica; mas da arte não recebi senão a aspiração por ela, a sensação do órgão incompleto e não formado, o pesar de que a natu-reza me esquecesse no seu coro, o vácuo da inspiração que me falta...”

Para reforçar a grande personalidade que foi Joaquim Nabuco, pode-mos reproduzir a opinião do acadêmico Alfredo Bosi, que preferiu destacar a sua figura humana como uma das mais belas do segundo Reinado, pelo desapego que sempre demonstrou em sua vida pública. Segundo Bosi, ele foi o “último grande romântico liberal do século XIX”.

Para uma análise imparcial da personalidade de Joaquim Nabuco é preciso entender que ele conviveu com homens ilustres como Castro Alves (patrono do romantismo), Tavares Bastos, Saldanha Marinho, Teófilo Ottoni, Rui Barbosa, Afonso Pena e Rodrigues Alves (os dois últimos tornaram-se presidentes da República) e conhecia tanto o inglês e o francês quanto o próprio português. As suas constantes viagens eram sempre recheadas de leituras interessantes, que ele bus-cava nas melhores livrarias e bibliotecas dos países visitados. Além do francês e do inglês, também dominava outras línguas, como latim, italiano, espanhol e alemão.

Além das obras já citadas, Joaquim Nabuco também é autor dos seguintes livros: A escravidão, Minha Fé, O dever dos monarquistas, A Campanha Abolicionista, O erro do Imperador, O eclipse do Abolicionismo, Eleições liberais e eleições conservadoras, O dever do momento, Por que sou mo-narquista, A intervenção estrangeira na Revolta de 1893 e O Direito do Brasil.

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Joaquim Nabuco deixou, na história do Brasil, a marca de uma notável personalidade, como se expressa nos seguintes pensamentos:

“Como pode ser criado para a democracia um povo que pratica a igualdade com a escravidão, a liberdade com a escravidão, a fraterni-dade com a escravidão?”

Ou

“Haverá indiferença mais criminosa do que a indiferença com que a classe única que dirige os destinos deste País tem assistido ao cresci-mento desamparado da nossa população, à promiscuidade de nosso povo, à miséria que se espalha por todo o País, à degradação dos nossos costumes, só se preocupando dos seus interesses de classe, de manter o jugo férreo dos seus monopólios desumanos e atentatórios da civilização universal?”

As palavras do grande tribuno ecoam até hoje na consciência nacional.

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entre os quais Machado de Assis.,

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Palestra pronunciada em 27 de abril de 2010

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Célio BorjaMinistro aposentado do Supremo Tribunal Federal e Presidente do Forum Permanente de Direito Constitucional da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ

Clovis Bevilaqua Filósofo do Direito, Comparatista e Publicista (1859-2009)

Autor do Código Civil Brasileiro de 1916, maior monumento legis-lativo do País, notável pelo domínio da palavra pela ideia e das

disposições pelo sistema que lhes dá unidade,1 Clovis Bevilaqua não foi apenas o êmulo de Teixeira de Freitas no direito civil, porém, o sabedor de todo o direito em tal extensão como poucos logram co-nhecer . Mais ainda, nas palavras de Beni Carvalho, ele é “o filósofo e jurista que sente”.2 Além da sua Teoria Geral do Direito Civil, do Código Civil Comentado e do Direito Internacional Privado e de conferências e estudos – Terras Devolutas, Evolução da Teoria dos Contratos em Nossos Dias, Problemas do Divórcio, Spengler e o Direito Romano, a Constituição e o Código Civil, todos recolhidos no seu Opúsculos – o Mestre cujo sesqui-centenário o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro hoje celebra foi fecundo publicista e comparatista, como se vê em suas Lições de Legislação Comparada, compêndio do que professou, na Faculdade de Direito do Recife, como Lente Catedrático, ainda no século XIX.

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Nessa obra, afirma a sua convicção de que “a sociologia do futuro há de encontrar seu principal apoio na etnologia comparada, assim como a jurisprudência do futuro levantará sua construção sobre a sociologia geral assim constituída”.3 Tal visão do direito se o afasta das correntes normativistas, dominantes depois da obra de Hans Kelsen, confere-lhe uma posição singular entre os nossos juristas, mesmo entre os muitos que adotaram a concepção sociológica do direito, pois Clovis interpretou as leis segundo os cânones racionais da hermenêutica tradicional, guardando-se dos métodos heterodo-xos de interpretação, tais como os da livre busca do direito, e os de aplicação da lei segundo os fatos sociais. O pendor filosófico livrou-o do positivismo e do sociologismo estreitos, como dele disse Macário Picanço, seu devotado amigo: “O jurista e o sociólogo se confundem sob as vestes tutelares do filósofo, que a tudo preside, fazendo-o ter uma noção exata dos fatos culturais, preparando-lhe a inteligência para a compreensão do mundo, iluminando-lhe a alma para o fascínio da verdade.” “... E ele estuda os fatos com paciência de beneditino, investiga as necessidades com a coragem e a dúvida do sábio”.4 Ao rigor do método técnico-jurídico Clovis acrescentou o rigor dos processos intelectivos das ciências do homem e da natureza de tal modo que, no seu pensamento, a unidade do direito funde-se com a do cosmos; sua compreensão dos fenômenos a nenhum deles ex-clui, mas a todos inclui. Embora cético quanto à existência do Deus dos filhos de Abraão, sua objetividade de investigador e de scholar permitiam-lhe discorrer sobre as verdades religiosas com conheci-mento e fidelidade, ainda que as rejeitasse. Assim foi em contestação a Farias Brito que escrevera – “Eis, pois, a mais alta verdade: Deus é a Suprema Inteligência. Isto significa, em outros termos: Deus é a luz. Mas a luz e toda a luz, a luz externa e a luz interior, identificada numa só e mesma unidade, envolvendo todo o ser e toda a realida-

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de”.5 Em a Finalidade do Mundo, Farias Brito, que Clovis considerava o maior dos nossos filósofos,6 depois de discutir as doutrinas filosóficas mais notáveis, voltou ao tema: “Deus é a luz. Quer dizer: Dentro da luz nos movemos, agimos e estamos – para empregar a expressão vigorosa de São Paulo. É dentro dela que tudo se passa; é pela luz que tudo se explica.” Clovis, discorrendo sobre o Conceito Antigo e Moderno de Metafísica, lhe retrucou: “Não, não pode ser: a luz é efeito e Deus deve ser causa e não efeito. Sim, porque, mesmo pelo ponto de vista religioso, foi Deus quem criou a luz e, portanto, não pode ser criação de si mesmo. Ainda mais: dizem os Teólogos que Deus não tem começo nem fim. Deus foi incriado. Ora, a luz não existia, logo foi criada. E quem a criou? E disse Deus: faça-se a luz e a luz foi feita (Gen. Cap. I). Deus é indivisível e, no entanto, reza a Bíblia: E Deus viu que a luz era boa; e dividiu a luz das trevas. E chamou à luz Dia e às trevas Noite”.7 A probidade intelectual não permitia a Clovis Bevilaqua contestar uma afirmação se não com os antecedentes e princípios que a fundamentaram, não com os de outra doutrina ou ciência.

Os seus pareceres corroboram essa diretriz do seu espírito. Não eram arrazoados obedientes ao interesse do Consulente, pois ao contrário, dominava-os “o espírito de justiça, do qual não me poderia afastar sem mentir à minha função social, porque os pareceres jurídicos são sentenças de ordem privada, ou conselhos dados no exercício de um sacerdócio; e a intenção de esclarecer a lei pelos princípios quer jurí-dicos propriamente, quer da ciência social, que os envolve e penetra, porque a lei não contém todo o direito, ainda que seja a sua forma preeminente, e não possui a flexibilidade necessária para se amoldar à variedade infinita dos fatos, além de que a palavra, nem sempre traduz, fielmente, o pensamento da lei, ou se torna inadequada para o conter integral, quando a evolução cultural o destende, enriquece

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ou modifica”. Essa honestidade e retidão acompanharam-no toda a vida, principalmente no estudo e ensino das disciplinas jurídicas que versou como doutor e mestre.

No Direito Internacional Privado,8 cuja primeira edição data de 1906, Clovis renova os estudos que, eximiamente, Pimenta Bueno9 intro-duzira em nosso País e confessa que o universalismo dessa disciplina animara-o a estudá-la: “O direito internacional privado é no dizer de Wheaton, a fase cosmopolita da jurisprudência – cosmopolitan phase of jurisprudence”. “É o direito privado dilatando-se e despojando-se das prevenções mesquinhas, que ainda o maculam, para colher, nas suas malhas, o interesse da humanidade. É o direito privado rompendo o tegumento nacional, onde nasceu e se desenvolveu, para viver no vasto ambiente da sociedade internacional’.10 Esse idealismo jurídico, ou melhor, essa alta visada, que alcança tudo o que é humano, explica as constantes referências aos valores espirituais presentes em seus escritos, induzindo-nos a crer que ele pressentia um sentido religioso do homem e da vida. Possivelmente, tal pressentimento terá sido o que levou Silvio Meira a concluir o capítulo 20 da biografia de Clovis com essa afirmação aparentemente distante do ceticismo religioso do biografado – “Clovis foi um servo de Deus. E assim morreu”.11

A obra civilística de Clovis Bevilaqua é mais compulsada do que a do publicista: constitucionalista, internacionalista, mestre respeitado em outras disciplinas do direito público, como o penal e o administra-tivo. Sem embargo de sua adesão à unidade conceptual e teórica do direito, Clovis manteve a distinção romana do público e do privado, postulado da ética política que fundamenta a ordenação das relações dos entes públicos pela norma objetiva, assegura tratamento peculiar aos interesses dos particulares e proíbe a apropriação privada daquilo que a todos pertence, assim como garante a liberdade e a autonomia

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dos indivíduos. Exemplo do apego a essa distinção está no volume segundo das Soluções Práticas do Direito. Abordando “alguns aspectos do direito constitucional”, assenta que “a ordem política e administrativa apresenta caracteres diferentes dos que oferece a atividade regulada pelo direito civil, ainda que os princípios fundamentais, diretores de uma e outra, sejam os mesmos, porque o direito é um só, enquanto organiza a vida social, variando as suas aplicações, para amoldar-se às diferentes faces, pelos quais a vida social se manifesta”.12 Na obra agora citada, na qual reuniu “pareceres solicitados por interessados, versando a matéria jurídica sob variados aspectos”, Clovis faz o elogio da Constituição de 1891 – “uma dessas criações, de que um povo culto pode, legitimamente, orgulhar-se” – mas censura-lhe a dualidade da magistratura e a multiplicidade das leis processuais, exatamente os institutos que os liberais mais haviam exaltado por serem essenciais à descentralização federativa. Destarte, Clovis tributava à corrente positivista, centralista e unitarista, vencida na Constituinte de 1891, à qual teoricamente se vinculava, a homenagem devida aos que tombam galantemente. Em outra passagem, desacredita a reforma constitucio-nal de 1926 por inoportuna, à vista das graves perturbações políticas do momento. Ela o desagrada porque teria vindo a destempo. Exalta a Constituição de 1934, porque, com ela, “conseguimos, renovando o nosso aparelho constitucional, manter a democracia liberal, hostili-zada por várias correntes. Venceu a força de nossa formação liberal, o ambiente americano. Contra uns, o bom-senso opôs que não há organização social possível sem o equilíbrio das energias divergentes, sob a ação do princípio da autoridade. A outros a razão opôs que a autoridade não deve ir além do necessário para conter, dentro das respectivas esferas, as forças sociais diferentes, afim de que se possam desenvolver, natural e utilmente, no interesse comum, sob pena de se tornar elemento perturbador da normalidade da vida social”.13 Ao

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discorrer sobre as repercussões da Constituição de 16 de julho de 1934, no Código Civil de 1916, Clovis destaca a garantia dos direitos adquiridos, que vinha de 1891, o julgamento por equidade, a unidade e universalidade da sucessão por morte, o nacionalismo econômico – do qual discorda – a maioridade política aos 18 anos, em contraste com a capacidade civil plena aos 21, do Código Civil; a responsabi-lidade civil do Estado, a ação popular, cujos inconvenientes ressalta, a doutrina social da propriedade, que aplaude, o domínio fluvial e lacustre, o usucapião rural pelo cultivo e morada, que louva, o direito do trabalho, a punibilidade da usura. Conclui admitindo repercussões outras “que a doutrina e a jurisprudência irão revelando”.14

No segundo volume das Soluções Práticas de Direito, Clovis Bevilaqua retorna a uma questão sobre a qual versara no primeiro tomo, a dos rios federais. Afirma que, nessa classe, estão incluídos os internacio-nais contíguos ou sucessivos, pois somente a União tem personalidade internacional. Quanto aos rios interiores, filia-se à corrente dos que sustentam serem federais os que banham mais de um Estado, uma vez que “os Estados cujos territórios se dividem por um curso d’água navegável, não podem ter jurisdição sobre a totalidade das águas, ainda excluindo a navegação”, pois tê-la-iam apenas “sobre a parte que banha a margem dos seus territórios, até a linha mediana, ou até o eixo do thalweg”.15 Para distinguir os rios públicos dos particulares adota a antiga definição das Ordenações do Reino, Livro 2, Título 26, § 8°: “E as estradas e ruas públicas, antigamente usadas, e os rios navegáveis, e os de que se fazem os navegáveis, se são caudais, que corram em todo o tempo. E posto que o uso das estradas e ruas públicas, e os rios seja igualmente comum a toda gente, e ainda a todos os animais, sempre a propriedade delas fica no Patrimônio Real.”16 E completa Clovis: “Particulares serão os inavegáveis, os de águas escassas, os riachos e córregos”.17 Aclara uma vexata quaestio

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distinguindo, do domínio fluvial, a jurisdição ao asserir que “O rio público é de uso comum e não patrimonial. Quer isto dizer: Pertence a todos e não à pessoa jurídica de direito público, a quem compete administrá-lo”, filiando-se à opinião de Aurelino Leal que sustentara tal alvitre.18 A questão atinente à jurisdição dos rios comuns a mais de um Estado, vinha atormentando a exegese constitucional, enten-dendo Clovis que, embora constituam partes do território estadual,19 jurisdiciona-os a União. E ajunta: “Os próprios rios internacionais correm em territórios de estados: Mas não podem estar sob a exclu-siva administração destes”.

Constitucionalista e internacionalista, nessa dupla qualidade estuda a Retirada do Brasil da Sociedade das Nações em face da Constituição, em resposta a consulta oficial sobre se isto seria atribuição do Executivo; conclui que, tal como nos atos internacionais, “se a função do Con-gresso, segundo a Constituição, é aprová-los ou rejeitá-los, forçoso é reconhecer que a denúncia é ato estranho à sua esfera de ação, salvo naturalmente, o seu direito de exame dos atos do Executivo, em geral”.20

Esses são exemplos de sua copiosa semeadura nas lindes do direito constitucional. Nas do direito administrativo, ressaltam os trabalhos sobre desapropriação, o montepio e os contratos do Estado; e, no tocante ao tema da acumulação de cargos públicos, Clovis, reco-nhecendo embora que a Constituição a proibia, opina por dever-se ressalvar os cargos vitalícios dessa vedação.21

Sem embargo do tempo do qual estou a abusar, não devo encerrar sem referir o intenso e profícuo labor de Clovis Bevilaqua, assim na exposição sistemática do Direito Internacional Público, como nos pareceres que emitiu como Consultor Jurídico do Ministério

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das Relações Exteriores,22 função na qual rivaliza com Hildebrando Accioly. O seu Direito Internacional Público,23 tem a singularidade de iniciar a exposição da matéria com um capítulo sobre a “Sociedade dos Estados”, revelando o viés universalista já manifestado em pá-gina do Opúsculos sobre a Continuidade da Civilização. Professa, aí, que o “desconcerto produzido na organização da vida, tanto na ordem internacional quanto na interna [pelo pós-guerra de 1914-1918], por mais duramente que fira os nossos sentimentos e os princípios, que se nos afiguravam fundamentos indestrutíveis da civilização humana, há de ser dominado. O vendaval em fúria devasta as florestas, mas é, por natureza, transitório”.24

Clovis fazia remontar esse universalismo a Aristóteles que distinguia a justiça legal da justiça natural, atribuindo a esta última, força igual em toda parte, destarte realçando “no conceito do direito esse aspecto universal, que foi a origem da escola do direito natural, que passou por não se fundar na observação dos fatos, porém que foi a tentativa de exprimir uma realidade mal concebida. Entre os juristas espanhóis”, conclui, “encontram-se expressões mais positivas do conceito de hu-manidade no ponto de vista do direito”.25 Em suas lições, timbrando sempre em respeitar os princípios que professava, Clovis, no Direito Internacional Público, mantém estrita obediência à organização didática dos temas, com vistas “aos princípios essenciais do direito interna-cional, segundo o ensino dos mestres”, à ordem de apresentação desses princípios, “a classificação das regras e das relações do direito internacional”, atento ao fato de refletirem-se “na atividade funcional do Brasil, como Estado soberano em contato com outras Nações”.26 Prolífico como Consultor Jurídico do Itamaraty, é difícil destacar os pareceres nos quais sua sabedoria e ciência combinaram-se para dar ao Governo o aviso certo e oportuno nas sempre delicadas questões da vida internacional.

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Esses trabalhos jurídicos, tal como suas conferências e discursos, sem dúvida contidos, não abusam das palavras, não incorrem em introduções e explicações desnecessárias, antes limitam-se à exposi-ção rigorosa e suficiente das ideias, evitando as dúvidas provindas da exibição inoportuna de conhecimento e firmando a certeza que brota naturalmente da concisão da frase e da clareza do pensamento. Ele justificou essas características do estilo, que refletem o seu espírito: “Os meus pareceres são sintéticos. Estão, certamente, muito dis-tanciados da inigualável concisão dos romanos, que, elegantemente, resumiam, numa frase luminosa, a resolução de complicadíssimos problemas jurídicos, e com o simples emprego de uma palavra técnica, projetavam a claridade da ciência nos obscuros enovelamentos dos princípios da legislação com as pretensões individuais; mas não são dissertações, que, ainda quando têm por objeto questões práticas, são, por seu desenvolvimento e por índole, formas doutrinais. Com isto, quero dizer que, não podendo reduzir os meus pareceres a simples afirmações desacompanhadas de elementos justificativos, foi, sempre, meu propósito ser breve, para ser preciso e claro”.

Frusta-me a impossibilidade de falar de outras obras do mais completo jurista brasileiro. Mas é de justiça, ao concluir, lembrar-lhe a fisionomia moral: a sabedoria sem jactância, a ciência integral do direito, a consci-ência da humilde condição humana, o deslumbramento curioso diante do cosmo misterioso que incita o espírito a indagar-lhe a origem e o destino, o ceticismo sequioso do Absoluto, a esperança na vocação do homem para a perfeição e na da humanidade para a fraternidade e a paz, eis Clovis Bevilaqua e o sentido da sua vida e da sua obra.

Notas

1 Clovis Bevilaqua, Em defesa do Projeto de Código Civil Brasileiro, Liv. Francisco Alves, 1906: “Por um lamentável desvio da crítica, ver-

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sou a discussão muitas vezes entre nós, sobre questões de estilo e gramática”... “Desejariam os antagonistas do Proieto, vazá-la numa língua hierática, impecável, que jamais existiu na realidade da vida, que jamais foi falada pelo povo, e que eles supõem idealmente criada pelos escritores de sua predileção.” (p. X)... “A língua que usamos deve merecer-nos afetuoso cuidado, mas, como observou um escritor espanhol, as línguas vivem de heresias, a ortodoxia condu-las à morte. Muitas ideias dificilmente se exprimiriam com as frases usadas pelos clássicos e é absurdo que mutilemos as ideias porque no guarda-roupa dos séculos passados não encontramos um traje talhado para elas” (p. XI).

2 Beni Carvalho, Clovis Bevilaqua e o Sentimento do Direito, 1935. Saudação a Clovis Bevilaqua, em nome da Faculdade de Direito do Ceará, representada por Beni Carvalho, na sessão solene, realizada na noite de 14 de janeiro de 1935, no Teatro José de Alencar, em Fortaleza. (p. 10).

3 Lições de Legislação Comparada, 28ª edição, 1897, p. 24.

4 Macário de Lemos Picanço, Clovis Bevilaqua. Livraria Educadora, Braga e Valverde, p. 43.

5 Obras Completas de Farias Brito, 23ª edição, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1951, Introdução de Barreto Filho, p. XXX.

6 Clovis Bevilaqua, A Constituição e o Código Civil. In: Opúsculos, II, cit., p. 22.

7 Macário Lemos Picanço, op. cit., p. 42-43. V. ainda, a Introdução de Barreto Filho às Obras Completas de Farias Brito, Instituto Nacional do Livro, 23ª edição, 1951, p. XXX: “uma elaboração intelectual

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demorada o leva [Farias Brito] a reencontrar em 1914 as afirmações simples da tradição teológica.” ... “A formulação Deus é a luz” – depuram-se de seres impurezas materiais, pois o conceito de matéria acabou dissolvido no imaterial: “Eis, pois, a mais alta verdade: Deus é a Suprema Inteligência. Isto significa, e a outros termos: Deus é a luz. Mas a luz e toda a luz, a luz externa e a luz interior, identificados numa só a mesma unidade, envolvendo todo o ser e toda a realidade”.

8 Clovis Bevilaqua, Princípios Elementares do Direito Internacional Privado. 33ª edição. Liv. Edit. Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1938.

9 Dr. José Antonio Pimenta Bueno, Direito Internacional Privado com referência às Leis Particulares do Brasil, Rio de Janeiro, Tip. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Cia., 1863.

10 Clovis Bevilaqua, Direito Internacional Privado, cit., p. VIII.

11 Sílvio Meira, Clovis Bevilaqua Sua Vida e Obra, Edição Universidade federal do Ceará, Fortaleza, 1990, p. 410.

12 Clovis Bevilaqua, Soluções Práticas de Direito, cit., vol. II, Livraria Editora Leite Ribeiro, Freitas Bastos & Cia., 1929, Prefácio.

13 Idem, II, p. 35-36.

14 Clovis Bevilaqua, Opúsculos, cit., 11, p. 27-35.

15 Idem, p. 111-112.

16 Ordenações Filipinas, Livros 2 e 3, Título 26, § 8°, Fundação Calouste Gulbenkian, reprodução fac-simile da edição de Cândido Mendes, Lisboa, p. 441.

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17 Idem, p. 109-110

18 Idem, vol. 11, p. 113-114.

19 Idem, vol. II, p. 113-114.

20 Idem, vol. II, p. 128

21 Idem, vol. II, p. 137.

22 Pareceres dos Consultores Jurídicos do Itamaraty, Organização de Antonio Paulo Cachapuz de Medeiros, Senado Federal, Edição fac-similar, Brasília, 2000, vol. II, pareceres de Clovis Bevilaqua, Consultor Jurí-dico do Min. Relações Exteriores de 1906 a 1934.

23 Clovis Bevilaqua, Direito Internacional Público, 2ª edição (em 2 tomos), Livraria Editora Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1939.

24 Opúsculos, cit., p. 8.

25 Clovis Bevilaqua, No Pórtico da Ciência Jurídica, in Opúsculos, cit.,p. 10-11.

26 Clovis Bevilaqua, Direito Internacional Público, cit., p. VII.

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1. Introdução

No “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, uma sociedade do futuro, fazendo uso de recursos tecnológicos sofisticados,

conseguia fornecer a sensação de felicidade e aplacar angústias indi-viduais, através do controle centralizado de um governo, que dividiu a sociedade em castas e, a cada uma delas, destinou aquilo que julgava conveniente a suas necessidades específicas.

Quando, de repente, apareceu um descendente da casta superior, aci-dentalmente criado como um dito “selvagem” e passou a questionar os valores de seus pares, uma breve ameaça quase desequilibrou o sistema, mas sua trágica morte, aparentemente, trouxe tudo ao estado de equilíbrio original.

Hoje, vivemos em um mundo, onde a casta dominante tenta voltar

Olga Côrtes Rabelo Leão SimbalistaEngenheira Nuclear

Admirável mundo velho!

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a um status quo ante, paradoxalmente, na busca da felicidade da hu-manidade, tentando salvar o Planeta e tendo como referência um “Admirável Mundo Velho”.

Essa é a motivação dessa singela palestra que tenta analisar aspectos do presente debate sobre a interferência humana no equilíbrio da vida no Planeta Terra e que poderia estar comprometendo a vida, tal qual a humanidade, por mais de 8.000 anos se acostumou a usufruir. Para isso, vamos voltar no tempo umas poucas décadas, quando podemos identificar de forma muito clara a materialização do tema.

Em 2 de janeiro de 1989, a revista norte-americana Time dedicou sua tradicional edição anual de homenagem à personalidade que mais se destacou no ano anterior ao Planeta Terra, escolhido como Personalidade do Ano.

A matéria, capa da edição começava com a seguinte citação do livro Eclesiastes: “Uma geração vai, outra geração vem, mas a Terra permanece para sempre.”. Não sob o aspecto científico, pois nosso planeta contaria com cerca de 4 bilhões de anos de existência e deverá continuar existindo por um período equivalente, até que, o processo contínuo de fusão do hidrogênio do sol fará com que este se expanda de tal forma que queimará alguns de seus planetas, incluindo a Ter-ra. Mas a menção bíblica diz respeito ao período que compreende a existência de seres vivos ou, em particular, dos humanos, para os quais bilhões de anos adquirem conotação de infinito. Entretanto, recentemente constata-se que o ser humano, ao longo de sua exis-tência, desenvolveu uma capacidade bélica de tal magnitude, através da produção de armas nucleares que, se usada levianamente, poderá resultar na destruição do planeta, muito antes da explosão solar.

Ao longo de sua trajetória de evolução, o ser humano adquiriu a

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capacidade de alterar o presente e o futuro do ambiente à sua volta, para melhor ou para pior, mas, durante centenas de milhares de anos de existência no ambiente terrestre, sua presença passa quase que despercebida.

Em 1800, existiam cerca de um bilhão de seres na Terra e este nú-mero dobrou em 1930 e continua crescendo de forma exponencial, crescimento este que sinaliza um forte sintoma de sucesso do homo sapiens como organismo vivo. Tal exuberância, sob os aspectos de evolução e de crescimento, teria fornecido componentes que estariam comprometendo o equilíbrio da natureza, passando a ser motivo de preocupação em nível mundial e em todos os setores das sociedades. Em novembro de 1988, durante a abertura da Conferência sobre Aquecimento Global, que contou com a participação de 120 países, o Primeiro-Ministro francês Michel Rocard, em seu discurso, dizia que o desafio dos ali presentes seria, tão somente, o de “salvar o nosso Planeta”.

Sob o aspecto místico, grande parte das sociedades dispõe de teorias sobre a origem da Terra e, sobretudo em sociedades ditas pagãs, nosso planeta é visto como “A Mãe Natureza”, adorada, global ou parcialmente como divindade e os mortais a ela sujeitos.

Nesse contexto, a tradição hebraico-cristã agrega um componente incendiário, sob o aspecto ambiental pois o universo é criado por um Deus monoteísta que, após moldá-lo durante cinco dias, ordena, no sexto dia, aos habitantes da Terra, criados à Sua imagem e semelhan-ça: “Crescei e multiplicai-vos e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu e sobre todo animal que se move na Terra. ... e Deus viu tudo que tinha feito, e eis que era muito bom ... e foi a tarde e a manhã do dia sexto”, segundo o

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livro da Gênesis, bem como um cheque em branco para a humanidade usar a natureza.

Todo o desenvolvimento científico, tecnológico e industrial, demar-cado a partir do século XIX, teve a maior parte de seus alicerces plantados nas sociedades ocidentais, com profundas raízes nessa tradição hebraico-cristã, na qual a relação do ser humano com a natureza é muito centrada em sua pessoa. Desde os primórdios da revolução industrial, um grande volume de gases tóxicos vem sendo trazido para atmosfera, fábricas lançam rejeitos nocivos à vida em rios, lagos e mares, e veículos despejam restos de combustíveis e gases na terra e no ar. Em nome do progresso, florestas foram devastadas, lagos e rios envenenados com pesticidas, terras férteis passaram por processo de erosão, adquirindo aparência de desertos, e montanhas de produtos não degradáveis se acumularam, como restos da grande festa da sociedade de consumo. Esse elenco de ações passou, a partir da segunda metade do século XX, a ser visto como uma ameaça a vida da Terra. Chefes de estados chegam a alegar que o aspecto global das questões ambientais indica que devam ser tratadas globalmente e que, “em se tratando de questões relacionadas ao meio ambiente, o conceito de soberania dos povos deva ser revisto”.

O início do denominado movimento ambientalista internacional teve lugar em um momento de peculiar efervescência no pensamento da sociedade ocidental, com o questionamento do envolvimento ame-ricano na Guerra do Vietnam, um repensar sobre o papel e o valor da mulher na sociedade e sobre o uso desordenado pelo ser humano dos recursos naturais e a poluição ambiental.

Porém, um dos maiores desafios no equacionamento das demandas ambientais é o de conciliá-lo com os processos de industrialização

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de países em desenvolvimento, como os de África, Ásia e América Latina, pois tentativas de impor padrões do atual comportamento do denominado Primeiro Mundo exacerbam as dicotomias Norte-Sul, pois as nações que hoje alardeiam uma mudança de postura no uso de recursos naturais foram as que efetivamente causaram a grande devastação do ambiente terrestre. Para aqueles não participantes de tal folia parece, no mínimo questionável, dizer que a festa acabou.

2. Principais ameaças ao meio ambiente

As principais raízes da denominada crise ambiental que aflige as socie-dades teria origem na grande desigualdade entre nações ricas e pobres. Países industrializados (membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE), com 18% da população mundial, controlam 60% da produção de bens e são os principais responsáveis pela maior parte da poluição terrestre. Por outro lado, países em desenvolvimento encontram-se premidos por questões como superpopulação, desnutrição e doenças há muito erradicadas no Primeiro Mundo e, na tentativa de superar tais problemas, através de trajetórias semelhantes a dos vitoriosos, iniciam processos de rápida industrialização, com poluição intensa da atmosfera de suas cidades, com o desmatamento de suas florestas para sustentar uma agricultu-ra competitiva. Na China, a manutenção de índices de crescimento econômico de dois dígitos requer vultosos volumes de eletricidade, com a entrada em operação de duas plantas a carvão por semana (combustível dito campeão de emissões de partículas sólidas e gases).

2.1. A destruição de ecossistemas

De acordo com a referida edição da revista Time, a primeira gran-

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de ameaça ao meio ambiente seria proveniente da destruição de ecossistemas.

No discurso de alerta à proteção ambiental, um dos alvos discutidos é a exploração de manguezais e florestas tropicais que passaram a ser utilizados na agricultura, pecuária, construção de barragens, explo-ração mineral e construção de estradas, que trazem consigo núcleos populacionais com a intensificação do uso de bens naturais. Mais da metade das florestas tropicais teria deixado de existir nos últimos 200 anos, com consequência na extinção de espécies a taxas milhares de vezes superiores à dos últimos 10 milhões de anos. Atualmente, cerca de 85% de nossos alimentos provêm de apenas 20 plantas e 60% de apenas três: o milho, o trigo e o arroz.

2.2. O lixo

A segunda grande ameaça seria proveniente do lixo, subproduto do consumo humano desenfreado durante o último século, pois no processo de industrialização iniciado no século XIX, o modelo de consumo adotado pela sociedade gradativamente introduziu a prática do descarte de produtos finais e restos, cuja armazenagem não estava prevista no ciclo de vida dos produtos, e isto passou a ser um grande problema ambiental. Montanhas de resíduos, muitas vezes venenosos, tóxicos, ou não degradáveis, passaram a constituir cemitérios das almas do consumo industrial. A guarda de tais subprodutos, sem comprometer a saúde humana ou danificar o ambiente passou a ser um desafio, pois quando se incinera o lixo comum, gases tóxicos são lançados à atmosfera. Enterrado, pode-se transformar em ácido letal e tóxico, capaz de contaminar lençóis freáticos e terras agricultáveis.

A sociedade norte-americana passou a ser a grande campeã da mara-

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tona do descarte, jogando fora 17 bilhões de fraldas descartáveis, mais de dois bilhões de lâminas de barbear, outros de canetas descartáveis e quase 300 milhões de pneus. Os restos de alumínio proveniente de descartes seriam suficientes para substituir a frota aérea norte-americana a cada três meses, antes da constatação da viabilidade econômica de sua reciclagem. O envio de tais restos para países em desenvolvimento passou a ser cogitado e praticado, dentro da mesma ótica do colonialismo histórico. Um exemplo disso foi a epopeia, ou melhor, bravata, do navio Pelicano, que saiu da Filadélfia e, por mais de dois anos ficou a busca de local para finalmente lançar mais de 14 mil toneladas de cinzas tóxicas, despejadas, em 1986, em um país cujo nome foi ocultado pelo capitão.

2.3. Superpopulação e pobreza

Dentre os problemas que ameaçam o ambiente terrestre nenhum é de solução mais complexa que o decorrente da pobreza, pois o maior crescimento da população humana ocorre nas regiões mais pobres, onde as taxas de crescimento demográfico superam suas capacidades de prover necessidades básicas: moradia, saneamento, saúde, alimen-tação, combustível e, principalmente, educação. Nesses ambientes, árvores são cortadas para uso em cocção, campos arrasados em agricultura e pecuária sem ordenação, na ânsia de produzir alimentos.

Nos grandes centros urbanos localizados em países com grandes nú-cleos de pobreza, uma ocupação territorial desordenada tem lugar, em condições de vida sem redes de esgoto, o que ocasiona o lançamento de dejetos em valas ou em cursos d’água, o mesmo sendo feito com o lixo e, quando da ocorrência de temporais, os transbordamentos, as inundações arrasam os parcos bens dessas pessoas (motivando a frase politicamente incorreta: “Pobre não tem nada e quando chove perde

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tudo”). Soma-se a tudo isso a sequência de contaminação por doenças há muito erradicadas em países desenvolvidos, mortes prematuras e a formação de um contingente humano sem requisitos mínimos de existência em uma sociedade de fortes e informados cidadãos.

Nas comemorações do Dia Mundial da Água, em abril passado, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e outras agências da ONU lançaram um relatório sobre o estado do saneamento básico, relatando que as águas do planeta estão cada vez mais poluídas e mais pessoas morrem hoje em todo mundo por causa dessa contaminação do que por todas as formas de violência, inclusive as guerras.

De acordo com o estudo, a falta de água limpa mata 1,8 milhão de crianças com menos de cinco anos de idade anualmente, o que re-presenta uma morte a cada 20 segundos. Grande parte do despejo de resíduos acontece nos países em desenvolvimento, que lançam 90% da água de esgoto sem tratamento. No Brasil, uma das maiores causas de morte associada à falta de saneamento é a diarreia. A doença mata cerca de 2,2 milhões de pessoas em todo o mundo anualmente. Mais da metade dos leitos de hospital no planeta, diz o estudo, é ocupada por pessoas com doenças decorrentes da água contaminada.

2.4. Ameaças à atmosfera

E, finalmente, a quarta e a mais debatida das ameaças ao Planeta: a contaminação de sua atmosfera. Isso porque, a partir dos anos 1960, alguns cientistas passaram a divulgar que o processo de desenvolvi-mento humano, através da intensificação da produção industrial, o uso de transporte utilizando derivados do petróleo e a produção de energia estaria lançando à atmosfera quantidades de gases capazes

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de causar grandes problemas, dentre eles a chuva ácida, a criação dos buracos de ozônio e o efeito estufa.

A denominada chuva ácida seria proveniente da queima de combus-tíveis fósseis e a consequente liberação de dióxido de enxofre – SO2 e de óxidos de nitrogênio – NOx que, ao se oxidarem em contato com as nuvens, formam ácidos sulfúrico e nítrico, que ao retornarem à terra através das chuvas, causariam a destruição de ecossistemas aquáticos, de safras agrícolas e de florestas.

Já a formação dos buracos de ozônio teria sua origem na liberação de gases denominados clorofluorcarbonetos – CFCs, produto sintetiza-do no final dos anos 1920 e que significava uma pequena revolução industrial, pois tratava-se de substância não tóxica e inerte e que não se combina com facilidade com outras. Com seu baixo ponto de vaporização era perfeita para o uso em sistemas de refrigeração e como gás propulsor em frascos de spray. Adicionalmente, como bom isolante, é ideal para embalagens e, além do mais, muito barato! Mas era bom demais para ser verdade, pois de acordo com a nova versão dos anos 1980, essa substância, ao ser liberada na atmosfera, entre 10 a 30 milhas da superfície terrestre, destruiria moléculas de ozônio da estratosfera, vitais para o bloqueio da radiação ultravioleta pro-veniente do sol. A radiação ultravioleta é danosa à vida terrestre, em algumas circunstâncias, pois causa queimaduras, induz doenças como a catarata, câncer de pele, enfraquecimento do sistema imunológico e mutações genéticas. De acordo com a teoria de três cientistas reno-mados (Mario Molino, Sherwood Rowland e Paul Crutzen), ganha-dores do Prêmio Nobel de Química em 1995, os CFCs dispersos na atmosfera seriam responsáveis pela destruição da camada de ozônio e causadores de um buraco sobre a Antártida.

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Em 1987, foi instituído o Protocolo de Montreal que, diferentemente do Protocolo de Quioto de 1997, contou com a adesão dos países em desenvolvimento, sob pena de sanções econômicas e comerciais, e então o uso dos CFCs foi banido.

Entretanto existe uma corrente de cientistas que questiona a conde-nação dos CFCs, alegando que as experiências feitas em laboratórios indicando seu efeito destruidor se deram em condições distintas das que ocorrem na alta estratosfera, a cerca de 50 km da superfície terrestre. De acordo com esses questionadores, as concentrações de ozônio seriam, na verdade, controladas pelos fluxos de radiação ultravioleta produzidos pelo Sol, de modo que quanto mais ativo ele estiver, maior o fluxo de raios UV. Esse máximo teria ocorrido entre 1957 e 1958 e somente a partir de então as medições passaram a ser mais frequentes. Dizem que o maior malefício dos CFCs teria sido o de não pagarem mais direitos de propriedade aos seus fabricantes, pois suas patentes passaram para o domínio público. Atualmente, não se fala mais no buraco de ozônio, como também sobre o temido “Bug do Milênio”, quando montanhas de recursos foram tragadas na proteção do nada. No caso da eliminação do uso dos CFCs, os bene-ficiários teriam sido os detentores das patentes de seus sucedâneos.

Mas, das três grandes ameaças à atmosfera, aquela que causou e cau-sa maior comoção mundialmente é o chamado “efeito estufa”, ou melhor, a sua parcela proveniente do crescimento exponencial das emissões de gases produzidos pelas atividades humanas e lançados na atmosfera, principalmente do dióxido de carbono – CO2, oriundos do uso de combustíveis fósseis e das queimadas. Ironicamente, esse efeito estufa é o responsável pela existência de camada protetora da superfície terrestre e que permite que sua temperatura média seja em torno dos 15ºC, e não -18ºC, como seria no caso de sua inexistência.

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3. A criação do IPCC

Em 1988, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC em inglês) foi criado com o objetivo de avaliar os riscos das mudanças climáticas causadas pelas atividades humanas pela World Meteorological Organization (WMO) e pelo United Nations Envi-ronment Programme (UNEP), ambas organizações pertencentes à Organização das Nações Unidas – ONU. O IPCC não realiza pesquisas próprias, tampouco faz o monitoramento de condições ambientais, sendo sua principal atividade a publicação de relatórios especiais sobre tópicos considerados relevantes para a implementa-ção do UN Framework Convention on Climate Change (UNFCCC) (Conferência Quadro sobre Mudanças Climáticas). Suas publicações são baseadas em literatura científica e em reuniões de especialistas. Sua primeira publicação foi em 1990 (First Assessment Report) e em seu “Sumário Executivo para Formuladores de Políticas” (Policymakers Summary) é dito ser certo que as emissões resultantes das atividades humanas estão aumentando substancialmente as concentrações de gases causadores do efeito estufa, resultando em um aquecimento adicional da superfície terrestre. Cálculos relatam com segurança que o CO2 assim emitido seria o responsável por mais da metade do efeito estufa terrestre. De acordo com esses cálculos, a temperatura terrestre teria aumentado de 0,3 a 0,6ºC ao longo dos 100 anos anteriores (da mesma ordem de grandeza que as variações naturais do clima) e que a tendência seria de um crescimento de 0,3ºC por década de 1990 a 2100. Em 1992, foi editado relatório complementar, com vistas à Conferência Rio/92, sem alterar as conclusões do relatório anterior.

As publicações do IPCC que se sucederam continuaram reforçando as primeiras divulgações, traduzindo o ponto de vista das políticas oficiais de diversos países, atingindo o público em geral e criando

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praticamente um consenso sobre as ameaças das emissões de CO2 provenientes das atividades humanas.

Em 2 de fevereiro de 2007, o mundo foi informado sobre as sombrias perspectivas ambientais que se vislumbrava ao longo do século XXI, caso não se promovesse, nas próximas décadas, uma drástica redução no consumo de combustíveis fósseis. O IPCC divulgou o denominado “Sumário para Formuladores de Políticas” do seu Quarto Relatório de Avaliação, com os seguintes prognósticos:

• Aumentos de temperaturas de até 6,4ºC

• Elevações do nível do mar de até 59 cm

• Aumento da frequência de ondas de calor

• Aumento da frequência de chuvas intensas

• Aumento das áreas submetidas à seca

• Aumento nas atividades de ciclones tropicais

• Risco de extinção de até 30% das espécies vivas existentes

• Aumento da ocorrência de desnutrição, diarreia, doenças cardior-respiratórias e infecções

No ano anterior, o documentário “Uma Verdade Inconveniente”, protagonizado pelo ex-vice-presidente dos EUA Al Gore, foi visto por centenas de milhões de pessoas e funcionou como um caminho preparatório de corações e mentes, no entendimento da tragédia global, preste a ser anunciada.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico

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(OCDE), na elaboração de seus cenários energéticos, divulgados atra-vés de sua publicação Energy Outlook (a mais recente de 2009), prevê diferentes hipóteses de trajetórias em termos de emissões de CO2, sendo que o cenário de referência não supõe a existência de qualquer mecanismo inibidor destas emissões, com o crescimento da demanda por energia sendo coberta principalmente por combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural) e com consequente crescimento das emissões de carbono. Por outro lado, o cenário que prevê a introdução de mecanismos para reduzir as emissões de CO2 de modo a limitar o previsto crescimento da temperatura média terrestre em 2ºC até 2030, através da taxação das emissões e do uso de tecnologias ditas limpas, custaria cerca de US$ 200 bilhões por ano, para uma taxa por emissão de CO2 de US$ 50/tonelada, cifra que significaria seis vezes o valor estimado pela mesma organização para eliminar o déficit de eletricidade em países pobres.

4. Questionadores e descrentes

Mas desde a publicação do “Sumário para Formuladores de Políticas”, alguns cientistas que participaram dos trabalhos de fundo iniciaram um processo de questionamento sobre a referida publicação, com relação ao total das informações utilizadas. Um dos autores líderes do IPCC (Keith Shine), ao referir-se ao Policymakers Summary disse: “Nós produzimos um rascunho e, desde então, os políticos assumi-ram palavra por palavra e mudaram completamente a forma como o relatório fora apresentado. (We produce a draft, and then the policymakers go through it line by line and change the way it is presented.) ...É peculiar que eles tenham a palavra final no que é dito em um relatório de cientistas. (It’s peculiar that they have the final say in what goes into a scientists’ report.)”.

O presidente emérito da Universidade Rockfeller e anteriormente

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presidente da Academia Nacional de Ciências dos EUA, o físico do estado sólido Frederick Seitz, denunciou publicamente o relatório do IPCC, dizendo: “Eu nunca presenciei uma corrupção tão grave de um processo de revisão de um trabalho feito por pares (peer review), como este que resultou no relatório do IPCC”. Porém, seu posicio-namento foi vigorosamente rebatido pelo presidente da Sociedade Americana de Meteorologia.

Outro questionador da forma final do relatório do IPCC, Fred Singer, publicou nota sobre a redação do Capítulo 8º, dizendo que este fora alterado substancialmente para fazê-lo adequado ao Sumário e que três cláusulas, expressando o consenso dos autores, contribuidores e revisores, deveriam ter sido incluídas, em vez de terem sido eliminadas do capítulo. Entretanto, Benjamin Sauter contra-argumentou, dizendo que nenhuma das mudanças feitas teve motivação política e só teriam sido realizadas para um melhor entendimento do documento.

No Brasil, o primeiro questionamento sobre as novas verdades sobre a questão ambiental foi apresentado pelo Instituto Liberal, em 1992, com a tradução do trabalho da Doutora Jo Kwong, no livro Os Mitos sobre a Política Ambiental, que alerta sobre o dramático aumento da consciência ambiental do cidadão norte-americano e do tratamen-to emocional dado à questão. “A ideia de água contaminada, lixo tóxico, ou câncer em crianças causado por pesticidas cria imagens aterrorizantes na mente das pessoas, estejam ou não fundamentadas em evidências científicas. Uma vez suficientemente alarmadas, as pessoas são facilmente motivadas a agir e a tomar decisões pessoais ou endossar ações públicas que têm como objetivo eliminar ameaças ao ambiente”.

Ao longo de cerca de 50 páginas e em linguagem muito objetiva, a

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autora se propõe a colocar uma visão diferente sobre 16 Mitos, por ela selecionados, relativos ao papel do governo, a economia, os con-sumidores e as ameaças à Terra bastante diferente do consenso que estava sendo criado já àquela ocasião, tais como:

• Primeiro Mito: Os recursos naturais devem ser de propriedade pública, por serem recursos muito preciosos para serem propriedade de indivíduos.

• Segundo Mito: Somente o governo é confiável para proteger re-cursos naturais, críticos e ameaçados.

• Terceiro Mito: Uma regulamentação mais rigorosa garante uma proteção mais efetiva do meio ambiente.

• Quarto Mito: Quanto mais gastarmos em regulamentação ambien-tal, mais limpo o nosso meio ambiente se tornará.

• Quinto Mito: Dada a sua importância vital, o meio ambiente não tem preço.

• Sexto Mito: Todos se beneficiam da legislação ambiental.

• Sétimo Mito: As leis que preveem a concessão de “licenças para poluir” são antiéticas e inoperantes. Ao invés de promulgá-las, dever- -se-ia proibir a utilização de poluentes e produtos químicos perigosos.

• Oitavo Mito: A empresa privada conduz à rápida diminuição de nossos recursos naturais.

• Nono Mito: As empresas privadas preocupam-se unicamente com o lucro e não com a conservação e proteção do meio ambiente.

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• Décimo Mito: Precisamos reduzir o crescimento econômico, a fim de revertermos a tendência de degradação ambiental.

• Décimo Primeiro Mito: Os produtos naturais são mais seguros para o meio ambiente do que os produtos fabricados pelo homem.

• Décimo Segundo Mito: Alguns bens de consumo são tão prejudi-ciais ao meio ambiente que deveriam ser banidos.

• Décimo Terceiro Mito: A obrigatoriedade da reciclagem de pro-dutos potencialmente poluentes beneficia o meio ambiente.

• Décimo Quarto Mito: Se não houver um rigoroso controle gover-namental, a chuva ácida causará gravíssimos danos ao nosso meio ambiente.

• Décimo Quinto Mito: A poluição industrial está destruindo a ca-mada de ozônio que protege a Terra, o que causará grandes epidemias de câncer de pele (criação de créditos de CFC em Cingapura).

• Décimo Sexto Mito: O aquecimento da Terra resultará no caos ecológico, a menos que governos tomem medidas drásticas.

Mas, recentemente, um conjunto de vozes dissonantes passou tam-bém a receber espaço nos meios de comunicação, questionando o consenso do aquecimento global por fatores humanos. De acordo com estudos daqueles atualmente rotulados pela mídia como descren-tes (aqui no Brasil salienta-se o trabalho do geólogo Geraldo Luís Lino, em “A Fraude do Aquecimento Global”), tanto as temperaturas oceânicas quanto as atmosféricas já apresentaram valores médios su-periores e inferiores aos atuais. A humanidade teria surgido no período Quaternário, considerado o de mais rápidas mudanças climáticas na

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Terra, em períodos denominados ótimos climáticos, segundo registros arqueológicos e históricos, nos quais temperaturas um pouco mais elevadas que as atuais seriam, para a maior parte da biosfera, bem como para a espécie humana mais propícias ao desenvolvimento das espécies. Por outro lado, períodos frios são comumente caracterizados por fome e doenças.

O “Ótimo Climático Romano”, ocorrido entre 400 a.C. e 200 d.C., teria permitido o florescimento das civilizações persa, grega e romana. O clima voltou a se resfriar durante os 600 anos seguintes, em período denominado “Eras Negras”. No período compreendido entre 800 e 1250, no denominado “Ótimo Climático Medieval”, as temperaturas mais elevadas possibilitaram aos povos nórdicos colonizar regiões no norte do Canadá e no sul de uma ilha por eles denominada de Groenlândia (Terra Verde), hoje coberta de gelo. Tais oscilações na temperatura da Terra são cíclicas. Entre 1925 e 1946, ocorreu um aumento de 0,4ºC na temperatura média global, cuja principal causa teria sido um grande aumento da atividade solar, a mais intensa em 300 anos de registros. Nesse mesmo período, o Ártico apresentou um aumento de temperatura de 4ºC, com registros de derretimento da área de gelo flutuante, superior ao registrado em 2007. Entre 1947 e 1976, ocorreu um pequeno resfriamento global de cerca de -0,2º C, possivelmente proveniente do resfriamento das águas do oceano Pacífico. No início dos anos 1970, dizia-se que uma nova era glacial estaria por acontecer, mas o Pacífico se aqueceu bruscamente e em 1976 as temperaturas voltaram a crescer.

De acordo com diversos cientistas da climatologia, o principal gás causador do benéfico efeito estufa na superfície terrestre é o vapor d’água, que responde por mais de 90% da absorção/emissão de ondas longas, apesar de suas concentrações serem muito variáveis no espaço

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e no tempo. Seu papel preponderante pode ser constatado no deserto do Saara, onde as temperaturas diurnas se aproximam dos 50ºC e as noturnas caem para cerca de 5ºC, devido às baixas concentrações do vapor d’água. Em regiões situadas na mesma faixa de latitude, mas dotadas de cobertura vegetal e, portanto com uma maior concentração de vapor d’água, as variações térmicas são muito menores, embora as concentrações de CO2 sejam praticamente as mesmas. No âmbito dessa abordagem, o CO2 seria o segundo gás em importância para a formação do efeito estufa, sendo responsável por menos de 10% e, os demais gases (metano – CH4, ozônio – O3, óxido nitroso – N2O e os CFCs) teriam um efeito bastante reduzido.

Porém, do total de CO2 emitido para a atmosfera, 95% seriam pro-venientes de fenômenos naturais e os restantes 5%, oriundos das atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis para a produção de energia, locomoção, processos industriais e mesmo a respiração. Independentemente de tais cifras, o CO2 desempenha um papel fundamental para o equilíbrio da biosfera, pois, embora não seja um dos elementos mais comuns da composição química do planeta (é 14º em abundância na crosta terrestre), o carbono é o mais importante elemento para a vida na Terra, por sua facilidade de se ligar a outros elementos cruciais à sustentação da vida, principalmente o hidrogênio, o oxigênio, o nitrogênio e o enxofre. Todas as moléculas orgânicas constituintes dos seres vivos, tais como proteínas, carboidratos, gor-duras, dependem do CO2 que funciona como o principal nutriente da fotossíntese, origem de toda a cadeia alimentar da biota terrestre.

Em 23 de fevereiro deste ano, quatro questões sobre mudanças climá-ticas foram colocadas pelo periódico francês Le Figaro, para cientistas franceses defensores do papel da humanidade sobre o aquecimento global, bem como para os denominados céticos.

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As quatro questões foram:

1. A Terra está se reaquecendo?

2. Os modelos de projeções climáticas são confiáveis?

3. A humanidade é realmente responsável pelas mudanças climáticas?

4. A influência do Sol é preponderante?

Para cada uma dessas questões foram divulgadas as respostas dos dois grupos de cientistas.

Assim, para a primeira pergunta (A Terra está se reaquecendo?), a resposta positiva dada por Hervé Le Treut, membro da Academia de Ciências e Diretor do Instituto Simon Laplace, é que esse aquecimento não é uniforme em termos locais e temporais e a questão seria se podemos deixar acumular nessas flutuações os efeitos de gases que se acumulam na atmosfera e que permanecerão por séculos e que em algumas dezenas de anos provocarão um aquecimento importante e de difícil reversão. De acordo com a também defensora desse ponto de vista, Valerie Masson-Demotte, paleoclimatologista do Laboratório das Ciências do Clima e Ambiente (LSCE), os continentes se aquecem mais que os oceanos. Mas, globalmente, depois do início do século XX, a temperatura média da Terra aumentou 0,75ºC e os últimos 10 anos foram os mais quentes nos últimos 150 anos. No passado, existiram períodos mais quentes, localmente, como logo após o último período interglacial, a 125 mil a 130 mil anos (+2 a 5ºC nos polos), ou globalmente, como a 3 milhões de anos com uma maior concen-tração de CO2, diz o glaciologista Jean Jouzel, pesquisador do LSCE.

A corrente de cientistas céticos diz que a Terra se aquece de forma irregular no espaço e no tempo. As curvas de temperatura mostram

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que entre 1900 e 1986 não houve um reaquecimento na Europa. As temperaturas subiram, em seguida, 1ºC e se estabilizaram, por um motivo que se desconhece, diz o geofísico Vincent Courtillot. Na América do Norte, houve uma grande alta até os anos 1930, em se-guida, uma redução muito forte e uma retomada a partir de 1970. Sua conclusão é que inexiste um clima global. As variações se produzem em escala regional e são independentes do teor de gás carbônico.

Os céticos contestam, também, o fato de que o período atual bate recordes de temperaturas. De acordo com estudos sobre a espessura do crescimento de troncos de árvores no norte da Escandinávia, estima-se que o clima na superfície terrestre esteve muito mais quente em torno do ano 1000 d.C, período no qual as emissões humanas de CO2 eram desprezíveis.

Quanto à segunda pergunta, se os modelos climáticos seriam confiá-veis, aqueles a favor dizem que existe uma confusão entre modelos econômicos empíricos e os modelos climáticos que aplicam princípios da física, nos quais os pesquisadores trabalham sobre uma maquete do planeta baseada nos princípios da física universal e fazem uso de um conjunto de equações único, capaz de reproduzir as estações do ano, episódios do passado, quentes ou glaciais. Tais modelos permi-tem reproduzir o momento em que o Saara era úmido, os regimes das monções, as consequências das erupções vulcânicas, mesmo contendo incertezas. Os modelos não são todos homogêneos, pois alguns não propõem um crescimento linear das temperaturas, mas todos predizem um aquecimento.

Já a outra corrente de cientistas afirma que parâmetros climáticos não podem ser descritos por modelos. De acordo com Claude Allègre, o clima é uma matéria muito mais complexa e a climatologia

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uma ciência muito jovem para pretender descrever o que existirá no próximo século.

A terceira pergunta e a mais debatida é a que atribui à humanidade a responsabilidade por mudanças climáticas, e que passou a ser consi-derada como uma verdade a partir dos anos 1960, com o aumento da presença de CO2 na atmosfera nos últimos anos, a uma taxa superior que o pior cenário do IPCC, segundo Hervé Le Treut.

A corrente dos céticos diz que um aumento do efeito estufa devido a uma maior concentração de CO2 na atmosfera não é uma idiotice, mas pretender que 90% das mudanças climáticas tenham esta ori-gem seria uma estupidez (Vincent Courtillot), uma vez que as eras climáticas na Terra variaram de forma natural, às vezes até de forma violenta, sem qualquer intervenção humana. Nesse contexto o cien-tista diz que, devido às incertezas envolvidas, seria mais conveniente que cientistas ambientalistas cuidassem de problemas mais tangíveis e inquestionáveis, como a demografia, a fome no mundo, o acesso à água potável, ou à reciclagem do lixo urbano, problemas às vezes ocultados pela obsessão do aquecimento global.

A quarta e última questão refere-se à influência do Sol ser ou não preponderante no processo das mudanças climáticas.

De acordo com aqueles que defendem a importância de tal influência é dito que, no passado, o clima variou, tanto em ciclos de 100 mil, quanto de mil anos, devido a fatores astronômicos como a variação da órbita da Terra em torno do Sol, o seu grau de inclinação, ou a atividade solar. As atividades solares apresentam uma correlação mui-to acentuada com as temperaturas terrestres, tendo um importante papel na circulação dos ventos e deslocamento de correntes marinhas, como o El Niño. Certos raios cósmicos poderiam interagir até mes-

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mo sobre a formação de nuvens de baixa altitude e sobre o clima e a confirmação de tal hipótese faz parte do elenco de experiências a serem realizadas no projeto do CERN, Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire (Conselho Europeu para Pesquisa Nuclear).

Aqueles que não creem em uma influência significante do Sol, capaz de ser superior aos efeitos maléficos das emissões humanas de CO2, argumentam que, nos últimos 50 anos, o efeito estufa passou a ser responsável por mais de 2 w/m2 na temperatura terrestre, enquanto as atividades solares seriam responsáveis por apenas 0,2 w/m2.

O nível dos debates tem-se acirrado recentemente a ponto de, em seu livro L’Imposture Climatique (A Impostura Climática), o autor Clau-de Allègre, ex-ministro da educação, dizer que o ecologismo atual vai marcar um enorme retrocesso com relação às mais preciosas conquistas da ciência e da República. Na crise econômica atual, devido ao desemprego, tenta-se, inclusive, sensibilizar as mulheres a reabraçarem suas vocações naturais, em particular na Alemanha, país do ecologismo por excelência, no sentido do saudoso triplo K: Kinder, Kirche und Küche (criança, cozinha e igreja, em alemão). Especialistas incitam mães a pararem de trabalhar para amamentar seus sacrossantos bebês, obedecendo às injunções de uma nova ma-trona, muito mais autoritária: A Mãe Natureza!

“O autor denuncia a existência de um Khmer Verde, em alusão ao governo cambojano, Khmer Vermelho, apontado como responsável pelo extermínio de cerca de sete milhões de pessoas nos anos 1970, bem como de se portarem como verdadeiros aiatolás da precaução”.

O livro de Claude Allègre, bem como o do paleomagneticista (pale-omagnéticien) Vincent Courtillot – Diretor do Instituto de Física de Paris, intitulado Nova Viagem ao Centro da Terra (Nouveau Voyage au centre

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de la Terre) motivaram o envio ao Ministro do Ensino Superior e da Pesquisa e à Academia de Ciências, em 30 de março passado, de um apelo com a assinatura de mais de 400 pesquisadores, solicitando uma posição oficial sobre a polêmica que está causando tantos distúrbios nas ciências sobre o clima. O presidente da Academia informou ter tomado a decisão de promover um debate científico profundo, em consonância com a importância que a controversa adquiriu. Isso “porque ambos autores são, nada mais nada menos que, membros da Academia de Ciências da França”.

5. O criador de Gaia

Mas o grande choque sobre o consenso do aquecimento global ocor-reu a partir de declarações do darling dos ambientalistas, o cientista britânico James Lovelock.

Para Lovelock, puxamos um gatilho ao iniciar o aquecimento, mas não sabemos qual será o desfecho. Mudar os hábitos para tentar sal-var o planeta é uma tolice, na opinião de um dos mais conceituados especialistas em meio ambiente no mundo, para quem a Terra, se for salva, será salva por ela mesma.

O cientista de 90 anos é autor da Teoria de Gaia, que considera o pla-neta como um superorganismo, no qual todas as reações químicas, físicas e biológicas estão interligadas e não podem ser analisadas separadamente.

Considerado um dos mentores do movimento ambientalista em todo o mundo a partir dos anos 1970, Lovelock é também autor de ideias polêmicas como a defesa do uso da energia nuclear como forma de restringir as emissões de carbono na atmosfera e combater as mu-danças climáticas.

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Para Lovelock, a humanidade não decidiu aquecer o mundo delibera-damente, mas puxou o gatilho, inadvertidamente, ao desenvolver sua civilização da maneira como conhecemos hoje. “Com isso, coloca-mos as coisas em movimento”, diz ele, acrescentando que as reações que ocorrem na Terra em consequência do aquecimento, entre elas a liberação de gases como dióxido de carbono e metano, são mais poderosas para produzir ainda mais aquecimento do que as próprias ações humanas. Segundo ele, no entanto, o comportamento do clima é mais imprevisível do que pensamos e não segue necessariamente os modelos de previsão formulados pelos cientistas.

“O mundo não muda seu clima convenientemente de acordo com os modelos de previsões. Ele muda em saltos, como vemos. Não houve aumento das temperaturas em nenhum momento neste século. E tivemos agora um dos invernos mais frios em muito tempo em todo o hemisfério norte”, diz Lovelock.

Durante a entrevista à BBC, o cientista britânico afirmou ainda não ver sentido na busca de alguns hábitos de consumo diferentes ou no desenvolvimento de energias renováveis como forma de conter as mudanças climáticas.

“Comprar um carro que consome muita gasolina não é bom porque custa muito dinheiro para ser mantido, mas essa motivação é pro-vavelmente mais sensata do que a de tentar salvar o planeta, que é uma bobagem”, diz.

Para Lovelock, a busca por formas de energias renováveis é uma mistura de ideologia e negócios, mas sem contar com uma boa en-genharia prática por trás. “A Europa tem essas enormes exigências sobre energias renováveis e dispõe também de vários subsídios para

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o uso de energia renovável”. “É um bom negócio e não vai ser fácil parar com isso, mas não funciona de verdade”, afirma o cientista.

Gaia é incrivelmente resistente. Como minha colega de trabalho, Lynn Margulis, descreveu, ela é um osso duro de roer. Ela agora tem cerca de 4 bilhões de anos e é muito velha. Tem um quarto da idade do Universo. E já enfrentou todo tipo de adversidades. Imen-sos cometas se chocando com ela, erupções vulcânicas gigantescas cobrindo vastas áreas com lava. Todo tipo de coisa já aconteceu e ainda há vida no planeta, ela não sumiu. O Sol está 30% mais quen-te, mas a temperatura se manteve, excetuando pequenas oscilações, em um nível confortável, permitindo que houvesse vida. Então, Gaia é muito forte e não podemos fazer nada capaz de afetá-la. Ela irá mudar, como qualquer animal, para um estado mais confortável que será uma temperatura mais alta. E nós sobreviveremos, porque somos uma espécie resistente. Mas o mundo aconchegante em que vivemos não resistirá.

“Tentar salvar o planeta é bobagem, porque não podemos fazer isso. Se for salva, a Terra vai se salvar sozinha, que é o que sempre fez. A coisa mais sensata a se fazer é aproveitar a vida enquanto podemos”, afirmou Lovelock em entrevista à BBC, em 2009.

Palestra pronunciada em 25 de maio de 2010

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Na verdade foram duas traições.

A história moderna nos traz a imagem de um traidor que discrepa da versão habitual, muito inspirada em sentimentos nacionalistas e militaristas. Esse inconfidente de um novo tipo não trai propriamente o Exército, a Nação, o Estado. Nem por isso sua traição deixa de ser considerada, por seus pares, ato de deslealdade, digno de repulsa e condenação.

É o caso, por exemplo, daqueles emigrados, que deixaram a França para se alistar nos exércitos dos aliados, Rússia e Áustria e combate-ram a Revolução de 89. Assim, os nobres russos que fugiram para o Ocidente em 1917 e tomaram armas contra os soviéticos. Kropotkin, (1842-1921) príncipe russo, geógrafo de reputação europeia, tornou-

José Arthur RiosSociólogo

A traição de Nabuco

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-se anarquista, abrindo mão de suas origens aristocráticas e das regalias de que gozava sua classe na pátria dos Czares, para levar uma vida de prisões e ostracismos durante o regime leninista.

Nabuco nasceu senão aristocrata – porque não havia tal no Brasil no século XIX, nem assim se poderiam chamar os barões do Impé-rio – mas veio à luz na melhor oligarquia governante. Nasceu a 19 de agosto de 1849, no Recife, foi criado por sua madrinha, senhora do engenho Massangana, que anos mais tarde, celebraria em página memorável. Foi educado por um Barão do Império, Tautphoeus, em Nova Friburgo. Mudou-se para a Corte quando o pai, José Tomaz de Nabuco de Araújo, foi eleito deputado e onde cursou o Pedro II. Tudo o encaminhava à casta governante.

No entanto divergiu. É discutível que essa deserção tenha tido origem na costumeira rebeldia dos jovens contra os pais. Parece que foi filho querido, até mimado. E consagrou a seu pai um livro que é preito de admiração filial, monumento histórico, Um Estadista do Império.

Quando então teria tido início essa insurgência? Na Faculdade, alistou--se entre os jovens liberais, foi revolucionário de ideias, à moda da época. Tantos “liberais” o foram, apegados aos ardores jacobinos da mocidade, conseguindo conciliar essas teorias com o mais dedicado conservadorismo, fiéis ao Trono e às instituições da monarquia; e à principal delas – a escravidão. Alguns foram até “abolicionistas”, mas de um abolicionismo lento, cauteloso, paliativo, que não rachasse com o regime e, sobretudo não acabasse, de golpe, com o indispensável braço africano.

Calabar não nos deixou explicação porque se passou para os ho-landeses. Tiradentes não deixou testamento. A traição de Nabuco está toda documentada em livro que é monografia, obra histórica e

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também panfleto – ou propaganda, como ele o chamou. Deu à obra, o título de O Abolicionismo.

Que teria se passado na mente de Nabuco para levá-lo a abraçar causa tão contrária à sua tradição, a seus valores de classe?

Foi na Inglaterra que deu forma a essa vocação antiescravagista. O Abolicionismo em Albion já tinha longa história. Vinha de fins do século XVIII, do Iluminismo, da atuação desassombrada dos grandes liberais ingleses, das seitas protestantes dissidentes, os Dissenters dos Quakers. Mas essas influências intelectuais já encontraram terreno propício em forte sentimento.

Ao recordar o que chamou, em livro clássico – sua formação – evoca o momento da infância quando lhe nasceu a percepção imediata, ful-minante, do que representava verdadeiramente a condição de escravo e teria decidido, “do emprego de minha vida”.

Conta: “Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro des-conhecido, cerca de 18 anos, abraça-se aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças procurando mudar de senhor porque o dele, dizia-me, o castigava e ele tinha fugido com risco de vida”. Continuava o memorialista: “Foi esse o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ocultava”.

Para avaliar a verdadeira dimensão dessa mudança é preciso saber que Brasil era esse, nesses anos 80 do século XIX. Um Império que escapara à fragmentação das colônias hispano-americanas, abrigava uma população de 12 a 13 milhões de habitantes, dos quais dois

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milhões de escravos, e um regime monárquico parlamentar. Na prá-tica, o país era governado por uma nobreza fortemente assentada na propriedade da terra. Vencera uma guerra contra o Paraguai. Mas o Brasil era a escravidão! A oligarquia governante era formada por bacharéis idealistas, educados em Coimbra, Montpelier, Olinda, São Paulo, leitores ávidos e atentos da literatura europeia. A Constituição do Império exemplo de texto político. O Imperador mais parecia um sólido burguês, da França ou da Alemanha. Tinha o gosto das viagens como do Governo. Mas o Brasil não tinha povo, muito menos uma sólida classe média.

Culturalmente, éramos uma França mestiça, as modas eram france-sas, a elite falava francês, viajava a Londres, Paris. Em Paris, Nabuco visitou Renan, ícone de época, cortejou Sarah Bernhardt, e escreveu algumas de suas primeiras obras em francês. Os diplomatas brasileiros, de alto nível, alinhavam-se entre os mais cultos da Europa. O país era grande exportador de açúcar, também de café, tabaco, algodão, cultivos plantados em grandes propriedades. Era a lavoura, como então se dizia, era, sobretudo a escravidão.

Todos, elite e povo, dirigentes e subalternos, participavam das be-nesses da escravatura, exploravam o braço do africano, dependiam do negro. Duas instituições o mantinham no eito – o feitor e o chi-cote. Das paredes das melhores casas, pendia o açoite, não só como instrumento simbólico. E também a palmatória de uso doméstico e educativo, que, como tal, veio até nossos dias. Nas fazendas, o tronco, a gargalheira, a focinheira – usada nos cães. O Código Criminal do Império incluía, entre as penas – o açoite. E anos após a Abolição, foi necessária uma revolta para eliminá-lo da Marinha.

Foi em Londres, em 1883, que Nabuco deu começo ao livro

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O Abolicionismo. Durante meses, conta seu biógrafo Luiz Viana Filho, pacientemente, estudou o assunto no Museu Britânico. Depois, para ter à mão a biblioteca de Cobden, o famoso reformador, transferiu-se para Brighton, onde, no fim de setembro recebeu a visita do mulato André Rebouças – amigo e correligionário, abolicionista apaixonado, também seu ocasional mecenas.

No Governo sucediam-se gabinetes, ora liberais, ora conservadores, ao arbítrio do Imperador, às vezes nitidamente escravistas – como o de Martinho Campos que se declarava “escravocrata da gema” – ou-tros tepidamente abolicionistas, partidários de uma abolição gradual, à moda brasileira, de empurrar com a barriga. Sempre defendiam indenizações aos fazendeiros.

O Abolicionismo foi escrito na vigência da Lei de 28 de setembro de 1871, a chamada Lei do Ventre Livre, promulgada no Ministério Rio Branco. Deu liberdade aos nascituros e foi aclamada como enorme conquista social. Antes dela a instituição era regida pela Lei de 7 de novembro de 1831 que proibira o tráfico de escravos, quando a nação “estava ainda à mercê dos agentes do tráfico”.

Nesses anos, Antonio Carlos, um Andrada, outro traidor, fora acu-sado de haver renegado seu país quando aconselhou a Inglaterra a cobrir de navios as nossas águas e bloquear os ninhos dos piratas do Rio e da Bahia. Mas, ó surpresa! Passou à história, esse defensor do imperialismo, na época britânico, como “vingador da honra e da dignidade do Brasil”.

A Lei de 1871 foi imediatamente denunciada pelos interesses do tráfico. Traria a temida calamidade, a abolição total, algo como o apocalipse. Não era nada disso, apenas uma contemporização. Era, literalmente, para inglês ver.

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Não mudava nada na vida dos escravos, senão na pequena propor-ção dos alforriados, mas com ela fazia-se crer ao mundo adiantado e pensante, isto é, à Europa, que representava o primeiro passo para a libertação dos cativos. No julgamento severo do abolicionista francês Augustin Cochin, que lhe dedicou artigo na Révue des Deux Mondes: “A nova lei era necessária, mas incompleta e inconsequente, eis a verdade”. Conta-se que o Imperador em viagem à Europa avistou-se com Cochin. Que teriam conversado?

O desmentido à lei estava, às escâncaras, em todos os jornais – na sessão de anúncios. Aí se encontravam, a granel, notícias de transações de compra e venda, de aluguel de escravos – estes sob designações especiais – porque a escravidão usava também semântica própria – mucamas, moleques, peças, pardinhos, às vezes “raparigas de casa de família” – para diferenciá-las das outras. (Um século depois, Gilberto Freyre começaria sua obra analisando esses anúncios sob o ângulo tranquilo da antropologia social.) Quem caminhasse nas ruas do Rio, via com olhos vistos, o espetáculo da escravidão. Eram os “negros de ganho” vendendo quitanda para os senhores, outros, bestas de carga, chicoteados, carregando fardos, tonéis às vezes mal cheirosos. Está tudo como, em filme, nas gravuras de Debret, de Rugendas, para quem quiser ver.

Por isso um político da época, Silveira Martins, sintetizou: “o Brasil é o café e o café é o negro”. Politicamente correto, evitou a palavra escravo, mas logo definiu o país como uma grande fazenda. Podia tê-lo definido como uma grande senzala.

Nessa enorme fábrica agrícola – ou agroindústria, como diríamos hoje – empenhavam-se todos, desde as classes intermédias do comér-cio: caixeiros, comissários, ensacadores, exportadores. Sustentavam a

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imensa clientela de todas as profissões: o fiscal, o camarada, cão de guarda para todos os serviços, mas, também, o médico, o advogado, o vigário, o juiz de paz, e não se esqueça, a máquina do Estado, a burocracia crescente e avassaladora que monopolizava as certificações, ou seja a própria vida civil e o exercício da cidadania. E emperrava toda a atividade econômica.

Numa das páginas finais do livro, que devia estar no frontispício, revendo o que devia ter sido seu drama de consciência, Nabuco re-memorava: “...Eu as discuti seriamente comigo mesmo (as razões da deserção), antes de queimar os meus navios e cheguei, de boa-fé e contra mim próprio, à convicção de que deixar à escravidão o prazo de vida que ela tem pela Lei de 28 de setembro (a lei dos nascituros do Ventre Livre) seria abandonar o Brasil todo à contingência das mais terríveis catástrofes...” (o grifo é nosso).

Queimar os próprios navios! Por trás da imagem naval leia-se aban-donar amigos, parentes, aliados políticos, aderências sentimentais ligadas à infância, à sua formação. E romper com Eufrásia, a noiva, ora próxima, ora distante, sempre presente durante os 14 anos que durou esse estranho conflito namoro-noivado.

Muito já se escreveu sobre o enigma Eufrásia. Para explicar o rom-pimento do longo noivado, apresentaram-se hipóteses, algumas fantasiosas, todas discutíveis.

Eufrásia Teixeira Leite, sobrinha do Barão de Vassouras, era rica proprietária de vastas fazendas de café na província fluminense. A parentela se opunha a esse noivado com pretendente pobre, cheio de ideias revolucionárias. A pressão familiar sobre a noiva devia ter sido insuportável. Nas cartas, algumas pistas: “Suas opiniões, escrevia ela ao noivo, são tão diversas das dos que me rodeiam que, natural-

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mente, por mais que evite, tenho ouvido falar de si, e infelizmente não posso responder nada”. Chegou a pedir segredo ao noivo sobre a correspondência que mantinham.

Em dado momento, como antecipando versões sobre o seu afasta-mento, Eufrásia foi viajar para a Europa deixando Nabuco, em fase difícil, no Brasil, quando periclitava sua eleição para a Câmara e se achava à mingua de recursos: “Apesar de desejar muito vê-lo com-preendo bem todas as dificuldades que teria em vir, sou a primeira em não querer, a pedir-lhe, se for preciso, que não se condene a uma posição secundária no estrangeiro, quando pode e deve ter a primeira no nosso país”. E fazia votos para que fosse eleito – o que não aconteceu.

Em dado momento chegou a cometer o erro de lhe oferecer dinhei-ro – o que só tornou a rutura inevitável. Eufrásia permaneceu na Europa liberta da tutela familiar, especulou em títulos na bolsa. De rica passou a milionária. Nabuco casou-se, teve filhos ilustres. Mas sua paixão era a luta contra o escravismo.

A Abolição, nessa década do século, já era um processo em marcha, mas o Abolicionismo foi invenção de Nabuco. Teve de explicá-lo aos contemporâneos: “Assim como a palavra ‘abolicionismo’, a palavra ‘escravidão’ é tomada neste livro em sentido lato. Esta não significa somente a relação do escravo para com o senhor; significa muito mais: a soma do poderio, influência, capital e clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a dependência em que o comércio, a religião, a nobreza, a indústria, o Parlamento, e a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante o poder agregado da minoria aris-tocrática, em cujas senzalas centenas de milhares de entes humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regime a que estão sujeitos”.

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Muitos bem pensantes acreditavam poder reduzir a escravidão me-diante panaceias, homeopaticamente, dando tempo ao tempo. Nabu-co, numa tentativa conciliadora, chegou a princípio a concordar com essas dilações, admitiu até a Abolição com indenização aos proprie-tários de escravos. Mas logo foi além: queimou os navios. Além de tudo mais, a escravidão era para ele “um espírito, o princípio vital que anima a instituição toda, sobretudo no momento em que ela entra a recear pela posse imemorial em que se acha investida, espírito que há sido em toda a história dos países de escravos, a causa de seu atraso e de sua ruína”. Em suma, sua rara intuição sociológica o fazia ver a escravidão como um sistema.

O que passou, então, a demonstrar, atacando o mal em sua raiz, a ilegitimidade do domínio do senhor sobre o escravo, o caráter per-verso dessa relação que contaminava ambos os protagonistas, viciava a vida social e política do país – edificado sobre uma falha moral. É o caso de perguntar, será que nas bancas acadêmicas do Recife ou de São Paulo, teria lido Hegel?

De qualquer modo foi essa a essência de seu liberalismo, o sentido maior de sua revolução. Sua crítica não era imediatista, partidária ou sectária. Rachava os Partidos, dividia a opinião. Mais que institucional ou política era, diríamos hoje, estrutural. Questionava o direito, até então estabelecido na lei positiva, que conferia a indivíduos, famílias, corporações, a propriedade de um ser humano, de manipulá-lo e transacioná-lo como coisa.

Na sua ética revolucionária, o escravismo, não era problema pura-mente econômico, não se reduzia ao pagamento de uma soma – em libras ou sacos de café. A dívida era de justiça. Na sua maneira de ver, a escravidão era uma forma de usura e esta é problema moral, não

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se reduzia à taxa de juros. Sua análise remetia aos próprios alicerces da sociedade, aluindo seus andaimes de contrafação, corrupção e hipocrisia.

Demarcada essa arena, o lutador não se media apenas com indiví-duos – Cotegipe, João Alfredo, Saraiva, o Imperador – mas com todo o processo de colonização, com a própria história.

Seu adversário direto era o que, na época, se chamava – a Lavoura. A Lavoura era contra a alforria total e imediata, a Lavoura exigia “auxí-lios”, indenizações para libertar os escravos, hoje diríamos “subsídios” – para continuar a prática da agricultura extensiva, predatória do solo e do homem, destrutiva de recursos humanos e materiais. Hoje é co-mum ver o Estado subvencionar usinas falidas, indústrias precárias. Para atender a essa economia sempre à beira da crise, o recurso era a emissão de moeda ou a caixa sempre aberta de Rotheschild.

Mas o que era afinal a Lavoura? Era a grande propriedade, o lati-fúndio, a oligarquia governante, enfim, o Poder. E, como dizia um estadista, talvez lido em Maquiavel, batendo forte o punho na tribuna do Parlamento, “O poder é o Poder”.

Por isso mesmo, em contraste providencial, Nabuco via a imigração criando – no Paraná, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, es-paços excepcionais para a agricultura, o progresso, a implantação de comunidades livres.

Ao contrário, as extensas zonas de latifúndio, onde segundo ele, “a pequena propriedade não existe senão por tolerância” impedia o florescimento das “classes médias, que fazem a força das nações”.

Nas cidades, onde era despendido suntuariamente o capital obtido

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na plantação, cresceram “os bairros pobres” – os mucambos – no tempo de Nabuco ainda não se chamavam favelas – que reproduziam a miséria do campo.

Não se iludam, advertia Nabuco, com o luxo aparente das capitais, da rua do Ouvidor mais tarde, mostruário e símbolo na República do que se convinha chamar civilização. Tudo isso resultava de um só produto – café, açúcar, algodão, borracha – e seu desaparecimento representaria uma catástrofe financeira. Anos mais tarde sucessivas crises do café, da borracha, do cacau, lhe dariam razão.

Esse progresso, o luxo que financiava esse consumo ostensivo, para usar a expressão hoje consagrada de Veblen, dependia das terras virgens, da mata a devastar e, é claro, de uma demanda externa que absorvesse a produção. Para manter tudo isso era necessária mão de obra – escravos ou imigrantes – de toda a maneira servos.

Não se deteve aí o sociólogo. Em capítulo que antecipa o Gilberto Freyre de Casa Grande e Senzala, expõe a atrofia das classes – entendidas não como castas –, mas como categorias de atividades, os meeiros e vendeiros no campo, operários das cidades, “escravidão e indústria são termos que se excluem sempre, como escravidão e colonização”.

O mesmo efeito esterilizante exercia o escravismo sobre o comércio, “manancial de escravidão e seu banqueiro”. A burocracia estatal era canal livre para os filhos, a família, os bacharéis, a única via de ascensão social cada vez mais estreita pelo esgotamento da terra, pelos saltos e sobressaltos do consumo, pela técnica rudimentar de cultivo. Os burocratas seriam “os servos da gleba do governo” futuros persona-gens de Machado de Assis, Lima Barreto e Ciro dos Anjos.

A disputa do cargo público criava nessa sociedade um clima de com-

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petição que nada tinha a ver com a livre concorrência das sociedades avançadas, mas que dependia do padrinho, do empenho, do pistolão, do compadre prestimoso. Envenenava as relações sociais e tornava a inveja paixão dominante. Aqui o sociólogo tomava emprestada a pena ao psicólogo social. O antropólogo, Roberto da Matta que andou estudando o efeito social da inveja, endossaria essa afirmação.

Como demolir esse Leviathan? O quadro era desanimador. A Lavoura, ameaçada, reagia. O bloqueio inglês tentava extinguir o tráfico nos mares, mas os fazendeiros, aliados aos comerciantes de escravos e aos negreiros, reagiam pelo contrabando. Era intenso o comércio de escravos entre os engenhos do Norte, em sérias dificuldades finan-ceiras, e os fazendeiros de café de São Paulo. A lei do Ventre Livre ficara a meio caminho. Que fazer? Os gabinetes, conservadores ou liberais aguardavam um aceno do Imperador – que não vinha. Adia-vam a Abolição para 1890, assim mesmo com indenização. A solução política, pelo Parlamento, uma legislação libertadora – primeira opção de Nabuco – esse caminho afigurava-se ao tribuno inçado de dificul-dades. Patrocínio escolhera a técnica americana do meeting, do comício, da agitação. Por isso era inconteste seu domínio das massas urbanas, da rua. Nabuco acabou por acompanhá-lo – adotando a estratégia da doutrinação da opinião, pelo discurso, pela palavra, pelo artigo de jornal, nas praças, nos teatros. Apelava para a grande voz do povo.

Ao seu influxo, como pela ação de Rebouças, de Patrocínio e de tantos outros, criavam-se associações antiescravistas, clubes à moda inglesa e americana, promoviam-se encontros, multiplicavam-se reuniões a céu aberto, ou em segredo para organizar a libertação e dar fugas a escravos.

Nabuco levava sua análise impiedosa mas justa, às instituições sociais,

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à família, à Igreja, ao Governo. Para ele a escravidão era “causa infalível de corrupção social”. Na família, pela ama de leite, pela babá, pelo moleque; na Igreja, pelas contaminações do fetichismo. Na política onde o sistema representativo não passou de “enxerto de formas parlamentares em governo patriarcal”. Senadores e deputados só tomam a sério o papel que lhes cabe nessa paródia de democracia pelas vantagens que auferem. O livro, é clamor, é protesto, também panfleto, pintura forte, a carvão.

Cabe perguntar até que ponto o retrato ainda é válido. Até onde perduram os efeitos da escravidão?

A corrupção social e política não é só brasileira é da natureza humana, também entendida como produto da decomposição moral de uma classe, de uma sociedade, de uma cultura, embora aqui floresça em formas específicas nunca vistas: a corrupção também é nossa.

Lembremos que a escravidão, como a malária, continua endêmica, reponta aqui e ali nas notícias de trabalho forçado, no sequestro de homens, mulheres e crianças em fazendas, na dependência do tra-balhador ao armazém onde se endivida, e que o torna praticamente servo da gleba, na estranha relação entre patrões e empregados, na exploração do menor e da mulher, na favelização das cidades, no analfabetismo, na marginalidade.

Nabuco não acreditava – ó espanto! – que os efeitos do escravismo cessariam com a Abolição. Disse-o com todas as letras: “Não acredito que a escravidão deixe de atuar como até hoje sobre o nosso país, quando os escravos forem todos emancipados”. É simples: a aboli-ção não formaria cidadãos, era preciso algo mais que para converter escravos e senhores em homens animados com espírito de tolerância e de adesão aos princípios de justiça, quando mesmo sejam contra

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nós, de progresso e de subordinação individual aos interesses da pátria. Como lutar contra ela? Pela educação? “A escola e a senzala são incompatíveis”. Do mesmo modo, escola e latifúndio.

O livro não conseguiu silenciar, no Parlamento, as vozes dos lati-fundiários que exigiam prévia indenização para conceder a plena abolição. O clamor dos republicanos positivistas soava mais alto. E, sobretudo, o movimento, lançado nas ruas, por Patrocínio e Rebouças. O “Manifesto da Confederação Abolicionista”, redigido por ambos, pedia abolição imediata sem indenização.

De repente vibra uma nota nova nessa complicada orquestra. Em 1884, Nabuco, em artigos sobre um escritor americano, repetia e ampliava uma ideia já lançada em O Abolicionismo e defendida por André Rebouças, e que este chamava a “nacionalização do solo”.

Que era isso? Henry George publicara em 1877, Progress and Poverty que vendeu dois milhões de exemplares. George era um crítico do capitalismo industrial e defendia um imposto único sobre o solo que abolisse, aos poucos, a propriedade privada.

Nabuco percebeu a relação entre a distribuição desigual da proprie-dade da terra e a produção da miséria, mas não aprovava o remédio proposto por George. Para ele, essa chamada “nacionalização” viria aumentar “o tamanho do Estado” e a corrupção daí resultante criaria novas “classes parasitas”. “Não há nada na propriedade da terra que a torne imoral, ilegítima e criminosa para ser assim tirada aos que nela empregaram todos os seus capitais”...Nabuco não era socialista, como Henry George. Preconizava a distribuição da terra em pequenas propriedades, conjugada a divisão da terra pelo imposto territorial e a eliminação das tarifas protecionistas.

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Esse singular revolucionário era defensor intransigente da Ordem, da monarquia parlamentar à inglesa – o que o levou, depois do 15 de novembro, a afastar-se da República, a fechar-se em casa, na rua Marques de Olinda, em Botafogo, com seus escritos e seus livros. Daí só sairia em 1899 quando Rio Branco o convidou para a missão em Washington. Já não era a República de Floriano, mas a de Campos Sales, seu ex-colega na Faculdade de Direito de São Paulo. Essa adesão lhe valeu mais uma vez a pecha de traidor e o ódio dos monarquistas. Punha de novo, o interesse do Brasil acima das fidelidades partidárias. Nunca foi republicano. Sempre foi monarquista.

O autor do O Abolicionismo não esperava a Abolição antes de 1890! Os fatos o desmentiram por pequena diferença. A 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel, regente na ausência de seu pai, o Imperador, sancionava o projeto de Lei que lhe foi levado por José do Patrocínio. Ao firmá-lo, decretava no mesmo gesto, o fim da Monarquia.

A República não trouxe a regeneração moral que Nabuco desejava. O latifúndio do café desertou o trono, e sobreviveu. As esperanças do tribuno, claramente manifestadas, foram iludidas. A mobilidade de classes não veio. A imigração, tolerada não foi suficiente para mudar as relações humanas no nosso campo.

Daí a tristeza de Nabuco, depois do 13 de maio, inexplicável: como sua retirada dos negócios públicos, o que chamou “o luto da monar-quia”, só interrompido mais tarde quando aceitou nossa Embaixada em Washington e encontrou, no seu ostracismo uma nova forma de servir ao Brasil.

O último capítulo do O Abolicionismo não foi escrito, é obra inacabada.

Tivemos repúblicas sem parlamentarismo, ditaduras, benevolentes

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algumas, estatizações, reformas agrárias pela invasão e depredação das propriedades produtivas, uma classe média ainda dependente de emprego público, do diploma, do subsídio da inflação, e, na política, um clima de cinismo e corrupção. O clamor de Nabuco continua atual, a voz do grande tribuno ecoa ainda em nossas consciências, sempre que sobrepomos ao destino do país o interesse de classes, grupos, corporações, todas as investidas do ego sofrido e insaciável contra o bem comum.

A alma humana é um feixe de contradições. Esse abolicionista fer-voroso, esse lutador que se sujeitara a toda sorte de sacrifícios pela causa, passados anos, imaginava-se pisando a “espessa camada de canas caídas da moenda”; e julgava ouvir “o rangido longínquo dos grandes carros de boi”. Evocava o pequeno cemitério dos escravos em Massangana e, à sombra dos santos pretos, meditava que a escravidão, permaneceria “por muito tempo, como a característica nacional do Brasil”. E embora saudando no 13 de maio “a mais bela nova que, em meus dias, Deus poderia ter mandado ao mundo” sentia no peito, esse singular abolicionista, uma funda nostalgia – “a saudade do escravo”.

Bibliografia

ALONSO, Angela, Joaquim Nabuco, Os Salões e as ruas, São Paulo, 2007.

CABRAL DE MELLO, Evaldo, prefácio a Joaquim Nabuco, Diários, Recife, 2005.

NABUCO, Joaquim, O Abolicionismo, Rio de Janeiro, 6ª edição, 1999.

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NABUCO, Joaquim, Minha Formação, Rio de Janeiro/São Paulo, 1934.

VIANA FILHO, Luiz, Rui e Nabuco, Rio de Janeiro, 1949.

VIANA FILHO, Luiz, A vida de Joaquim Nabuco, São Paulo, 1952.

Palestra pronunciada em 30 de março de 2010

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Ernane GalvêasEx-Ministro da Fazenda

Síntese da ConjunturaAs fases da crise

A crise de 2007/2008 começou no sistema bancário dos Estados Unidos, com a derrama dos sub-prime. É a primeira fase da crise.

Daí, a crise assumiu sua segunda fase, transmitindo-se ao mercado de capitais e às Bolsas de Valores, estendendo sua geografia à Europa e outros continentes, com a consequência mais dolorosa do desempre-go que se seguiu à queda das atividades econômicas. Não demorou muito para a crise mostrar sua terceira fase, da insolvência fiscal na Zona do Euro, a começar pela Grécia.

Ainda não há sinais seguros do final da crise, mas admite-se que tenha se estabilizado, a caminho de uma lenta recuperação.

Os Estados Unidos continuam convivendo com o duplo déficit, interno e externo. A situação da economia dos Estados Unidos ainda não se consolidou, mas continua muito superior à da Europa, principalmente no que se refere aos bancos. Enquanto as ações dos

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20 principais bancos europeus são negociadas com 10% de desconto, as dos 20 maiores bancos americanos estão com prêmio de 10%. A atividade econômica norte-americana subiu em junho, pelo sexto mês consecutivo, mas o índice de 55,4 em maio caiu para 53,8 em junho.

Na Europa, o primeiro sinal positivo veio da Grécia que, após a ajuda do FMI e do BCE, conseguiu voltar ao mercado de capitais, nesta semana, com uma colocação de 1,6 bilhão de euros, prazo de 6 meses e juros de 5%. Entretanto, a crise fiscal foi duramente afetada pela irresponsabilidade do sistema bancário. Há bancos, na Europa, com uma alavancagem de mais de três vezes o montante do PIB de seu próprio país. Em sua maioria, as operações dos bancos europeus excedem a 100% do PIB. Nos Estados Unidos, essa mesma relação não passa de 15% para os grandes bancos americanos. A nova re-gulação aprovada pelo G-20 vai impor severas restrições aos bancos europeus.

Na Ásia, o Japão caminha lentamente e a China constitui a grande interrogação, face à possibilidade de redução do ritmo de crescimento econômico e da corrente de importação de matérias-primas.

A China é o prelúdio de uma nova e possível fase da crise. Mais remota do que próxima.

O Brasil reflete esses acontecimentos na área externa, com possí-veis repercussões no balanço de pagamentos. Entretanto, a média das exportações no 2º trimestre alcançou cerca de US$ 17 bilhões, crescimento de 13,3% sobre os últimos 12 meses. Há uma grande preocupação com o ritmo das importações, acima de 45%, no 1º semestre, mas o elevado nível de reservas (cerca de US$ 255 bilhões) afasta qualquer possibilidade de problema, a curto prazo.

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Se prosseguirem as correntes atuais do comércio exterior, chegaremos ao final do ano com exportações de US$ 190 bilhões e importações de US$ 175 bilhões.

O Brasil, após a recessão de 2009, vai certamente registrar neste ano um crescimento do PIB da ordem de 7%, apesar dos fracos funda-mentos fiscais e do balanço de pagamentos. A continuidade desse crescimento, a partir de 2011, vai depender do equacionamento finan-ceiro da Petrobras, da ordem de US$ 224 bilhões para o andamento dos projetos atuais, sem contar com os investimentos do Pré-Sal.

A Selic de 10,75%

Agora, em julho, mais uma vez o Banco Central, aumentou despro-porcionalmente a taxa de juros básica, que faz o jogo de interesses dos bancos e dos investidores de renda fixa, sobrecarregando as contas do Governo e a dívida pública. Nos últimos meses, entre março e julho, o BC/Copom voltou a elevar os juros básicos (SELIC) de 8,75% para 10,75%, sob a alegação de que tratava de prevenir um surto inflacionário, que não se confirmou.

É certo que a inflação do varejo cresceu nos quatro primeiros meses do ano, basicamente em função da forte expansão do crédito do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica, juntamente com a expansão dos gastos de custeio do Governo, assim como é signi-ficativo o reflexo da elevação dos preços internacionais do petróleo, do minério de ferro, etc., e do mau tempo que atingiu a produção agrícola. Mas também é certo que, a partir de junho, os preços no varejo voltaram a um ritmo compatível com a meta de inflação, in-clusive no setor alimentos.

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No ano passado, por ação do Banco Central, o Tesouro Nacional pagou R$ 169,3 bilhões de juros, 13 vezes o que se gastou com o Bolsa-Família. A elevação da SELIC vai atrair mais capitais estran-geiros especulativos, de curto prazo, obrigando o Banco Central a comprar mais dólares e empilhar nas reservas cambiais, com todos os ônus que isso representa. O Banco Central ainda não percebeu que a política monetária não tem mais a mesma eficácia que tinha a 50 ou 70 anos atrás.

Esta última crise mundial está mostrando que a função dos Bancos Centrais, atualmente, deve orientar-se no sentido de atuar como regu-lador das operações bancárias e de emprestador de última instância. O resto é com a política fiscal.

A expansão do crédito no Brasil, para consumo e investimentos, está sendo estimulada pelas autoridades fiscais. Então, porque não conciliar as duas políticas, mediante decisão do Conselho Monetário Nacional, ao invés de persistir nessa contradição ilógica e irracional?

A comunidade dos economistas está começando a aderir à tese, que vimos defendendo, no sentido de admitir a relativa importância da política monetária no combate à inflação, vis-à-vis a política fiscal, como parece ter ficado claro na atual crise mundial econômico-financeira. Aliás, John Keynes já nos havia ensinado isto em 1936.

Em janeiro deste ano, o presidente da FED, Ben Bernanke afirmava que “a política monetária poderia ser usada como uma ferramenta complementar...” Agora, uma equipe técnica do FMI recomendou que “ao invés de tentar reduzir os desequilíbrios usando a política de juros, pode ser preferível, em muitos casos, que o Banco Central intensifique a comunicação e emita avisos de risco”. Faz sentido.

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Ao que tudo indica, não deverão se concretizar as previsões dos economistas que apostaram em uma taxa SELIC de 11,75% ou 12% no final do ano. Preocupa, porém, saber que o Governo, e mais parti-cularmente o Ministério da Fazenda, estaria estudando novas formas para expandir o crédito bancário de longo prazo, com vistas a um mercado imobiliário já superaquecido. Os financiamentos hipotecá-rios da Caixa Econômica expandiram 96% no primeiro semestre. A oferta de materiais de construção está chegando ao limite e já estão sendo efetuadas substanciais importações de cimento.

Geralmente, as campanhas eleitorais tendem a aquecer as atividades econômicas, pelo aumento dos gastos com propaganda, principal-mente nos meios de comunicação. Não é hora, portanto, para criar estímulos novos ao consumo. Pelo contrário, esta é a hora de orientar todos os recursos possíveis para os investimentos em infraestrutura, o ponto mais fraco do crescimento sustentável.

Se o Banco Central usar o bom-senso de não se deixar seduzir pela insinuação dos bancos, certamente não dará curso à elevação da taxa SELIC, em conformidade com o seu próprio entendimento de que a economia nacional entrou em processo de desaceleração e a inflação perdeu força, a partir de junho.

É importante acompanhar de perto o que está ocorrendo na China. Se houver uma redução de atividades e, em consequência, uma que-da na importação de matérias-primas, tais como minério de ferro, metais, petróleo e outros, não haverá necessidade de acionar uma alta de juros, para frear o consumo e os investimentos. Isso ocorrerá naturalmente, sem choques.

Expectativas econômicas

A confiança nos resultados da política econômica, ou seja no curso

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do crescimento sustentável, é a base sobre a qual se assentam as de-cisões para investir, contratar mão de obra e consumir. A tendência de crescimento das atividades econômicas foi alterada, a partir do segundo semestre, pelas expectativas de alta da SELIC, patrocinada pelo Banco Central, quebrando o ânimo psicológico dos empresá-rios. A alta dos juros vai acentuar os efeitos negativos da retirada dos incentivos fiscais anticíclicos.

Entretanto, na conjuntura atual, há um generalizado grau de confian-ça, no sentido de que a economia brasileira está inserida em um ciclo de expansão, com crescimento de 7% no PIB de 2010 e em torno de 4% a 5% nos anos vindouros. Todas as pesquisas de intenções de consumo das famílias e de investimentos apontam nessa direção, tanto as da FGV como as do IBGE, da CNI e da CNC, embora com viés de ligeiro arrefecimento.

As expectativas em relação aos impulsos que virão do exterior se ba-seiam nas projeções do FMI, estimando um crescimento em torno de 5% do PIB mundial e uma expansão de 10% do comércio internacio-nal. Estados Unidos e Europa darão pouca contribuição à retomada do crescimento econômico, o mesmo que o Japão. A contribuição da China deve arrefecer ligeiramente, a partir da segunda metade de 2010 e de 2011, face à perda de impulso das exportações e problemas internos de distribuição da renda. Um dos focos de incerteza continua sendo a paridade do dólar americano; começou o ano em US$ 1,45/euro, chegou a US$ 1,19 e está fechando julho em US$ 1,30.

Em relação à economia brasileira, está claro que a alta do PIB em 2010 resulta de vários fatores, a partir de uma base zero, em 2009: 1) expansão do crédito do BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econô-mica; 2) expansão do comércio exterior, com acréscimo de 27,5%

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nas exportações; 3) aumento sazonal da produção agrícola; 4) maior produção de máquinas e equipamentos; 5) nível mais elevado do emprego; e 6) salários mais elevados.

Dificilmente, esses fatores continuarão no mesmo ritmo de expansão, a partir de 2011, sob qualquer novo Governo. Por força das incertezas e da adaptação, estima-se um menor crescimento do PIB nacional. Permanece, porém, uma grande e favorável expectativa em relação aos investimentos no Pré-Sal, apesar das incertezas geradas pelo acidente da BP no Golfo do México.

Os problemas mais sérios da economia brasileira estão se acumulando e se não houver soluções adequadas a médio prazo podem se trans-formar em crises. É o caso, principalmente, da dívida pública interna, insuflada pelas taxas de juros administradas pelo Banco Central. Em princípio, pode-se afirmar que a causa primária desses desajustes re-pousa, basicamente, na pesadíssima carga tributária imposta à Nação para satisfazer as necessidades crescentes do Estado, excessivo em suas dimensões, ineficiente em suas ações, burocrático, perdulário e, porque não, aberto à corrupção.

Somados os três entes federativos – a União, os Estados e os Muni-cípios – é fácil perceber que há erros e distorções em todos os níveis de poder, no Executivo, como no Legislativo e no Judiciário. O setor público retira, atualmente, do setor privado, o equivalente a cerca de 40% da Renda Nacional (PIB), 37% de carga tributária mais 3% de déficit nominal. É bem verdade que boa parte dessa apropriação é devolvida em forma de juros pagos sobre a dívida pública ou como transferência no campo da assistência social. Mas, nada disso tira do Brasil o cetro de campeão universal da carga tributária, quando comparado aos países que conosco concorrem nos mercados inter-

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nacionais. Falta orientação, falta uma coordenação política, dentro da compreensão de que o maior problema nacional é o excessivo tamanho do Estado.

A questão mais preocupante está no fato de que o Governo ainda não se deu conta desse problema e continua aumentando o número de Ministérios, Secretarias, Agências, Conselhos e órgãos auxiliares, com salas, funcionários, cargos em comissão, computadores, telefones celulares, automóveis, ar-condicionado, material de escritório, diárias, passagens, etc. Aumentando as despesas de custeio e negligenciando os investimentos em serviços públicos e obras de infraestrutura que, em muitos setores, anulam as vantagens comparativas que a produção brasileira desfruta no comércio internacional.

O papel do BNDES

O BNDES, como qualquer banco, que faz empréstimos, funciona como um promotor das atividades econômicas, na medida em que abre créditos (depósitos) para empresas que têm projetos de investi-mentos e, com esses recursos, vão construir prédios, comprar equi-pamentos e matérias-primas, contratar mão de obra e pagar impostos. Essa é a função do Banco.

Indagar se os recursos utilizados pelo Banco vêm do Orçamento de União (venda de títulos públicos), constituindo um orçamento paralelo, do tipo Conta de Movimento no velho Banco do Brasil, é uma indagação legítima, com o sentido de averiguar se a expansão de crédito por esse meio não está superaquecendo a demanda agregada e criando pressões inflacionárias, fora do controle da política monetária.

O problema mais importante, porém, é saber que quando o Tesouro

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vende títulos no mercado está, no mínimo, transferindo poupança do setor privado, principalmente captada pelos bancos privados. No fundo, o “bolo” é um só, e quando o BNDES expande 60% ao ano, é lógico que sobra menos espaço para o resto do sistema.

O fundamental na ação do BNDES é que ele é praticamente o único banco brasileiro que promove financiamento de longo prazo, para investimentos produtivos. Nesse campo, a alternativa para as em-presas é procurar o mercado de capitais, para colocação de ações ou debêntures, a um custo bem mais elevado.

Por tudo isso, tais operações têm de ser realizadas com expertise pro-fissional e não à galega. De outra forma, os resultados de curto prazo podem ser alentadores, mas, com o tempo, vão se revelar negativos, pelas distorções que introduzem no sistema econômico.

Atividades econômicas

A economia brasileira atravessa, em 2010, um dos períodos mais destacados das últimas décadas, com a expectativa de uma alta do PIB entre 6% e 7%, que compreende os fortes resultados positivos da agricultura, da indústria e do comércio de bens e serviços.

Ao que tudo indica, esse crescimento das atividades se deve, basi-camente, à forte expansão do crédito, com destaque para os bancos oficiais (BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica), complemen-tada pelo aumento do nível de emprego e elevação da massa salarial. O nível dos investimentos fixos também sinaliza tendência de alta, podendo atingir 20% do PIB, até o final do ano. O mesmo ocorre com as exportações, que estão se recuperando da drástica queda ocorrida em 2009, e até agosto deste ano tiveram expansão de 28,8%.

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O atual quadro econômico positivo resulta, basicamente, dos seguin-tes fatores, pela ordem de importância:

1) da influência da China no comércio internacional, beneficiando as exportações brasileiras de commodities. A China já é o mais importante parceiro comercial do Brasil;

2) da rápida expansão do crédito, através do BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal;

3) dos incentivos fiscais (IPI) ao consumo doméstico; e

4) ao menor índice de desemprego e maior nível de renda.

Não há maior garantia de continuidades desse ciclo positivo, ao longo dos anos 2011 e 2012, face às incertezas criadas pela política fiscal deficitária, a política cambial deficiente (real sobrevalorizado) e a inexplicável taxa de juros elevada derivada de uma equivocada política monetária. Vamos aguardar a orientação e o desempenho do próximo Governo.

Em contrapartida, convivemos com uma deplorável situação política, com o comprometimento ético e moral da administração pública, ao nível dos Três Poderes da República. A conjuntura política é o caos.

Indústria

A produção industrial brasileira cresceu 0,4% em julho, sobre junho, após três meses seguidos de queda, segundo o IBGE, representando aumento de 8,7% em relação a julho/09 e acumulando, no ano, 15%. Um resultado excelente.

Das 27 atividades pesquisadas, 17 apresentaram crescimento, com

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destaque para a indústria automobilística, que cresceu 18,3% até ju-lho. Houve alta significativa, também, nos setores químicos, celulose, petróleo e mineração. Em termos de tendência, é importante assinalar que a produção industrial recuou 2,2% de abril a junho. A produção de bens de capital caiu 0,2% em julho, depois de um recuo de 2% em maio. O nível de atividade da construção civil continuou crescendo em julho, com 53,4 pontos sobre 51,8 de junho (CNI). Entretanto, a produção de aço teve um crescimento próximo de zero (+0,1%) em junho. Em julho, as vendas de produtos siderúrgicos sofreram queda de 6,3%, contra junho, mas o resultado da produção acumulada no ano atingiu 19,2 milhões de tons. de aço bruto, ou seja uma alta de 47,3% sobre o mesmo período do ano passado. Em contrapartida, a importação de aço no 1º semestre representou 20% do consumo nacional.

Segundo a FIESP, a atividade industrial paulista subiu 0,6% em julho, após cair 0,6% em junho.

O clima seco em várias regiões do País, devido ao fenômeno “La Niña”, reduziu o volume dos reservatórios das empresas hidrelétricas abaixo dos níveis de 2008, exceto na região Sul, onde houve ligeiro acréscimo. O consumo total de energia elétrica, em julho, cresceu 8,4% em relação a julho/09, acumulando alta de 9,7%, sendo +13,7% na indústria, 4,6% no comércio e 4,2% no setor residencial.

Segundo a FGV, o índice de confiança industrial (ICI) sofreu queda de 0,6% em agosto e o índice da situação atual (ISA) recuou 1,4%. Pode-se antecipar uma certa acomodação na indústria, mas a CNI continua apostando em um crescimento anual de 13%. O risco de inadimplência não está configurado, como se pode ver em relação à aquisição de veículos, setor em que os atrasos superiores a 90 dias caíram pelo 13º mês consecutivo, atingindo apenas 3,4%.

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Comércio

Segundo levantamento da CNC, englobando pesquisas nas nove principais regiões metropolitanas do País, o faturamento real do co-mércio varejista cresceu 6,0% no 1º semestre, revelando uma certa acomodação em relação ao ritmo anterior. Mas a intenção de consumo das famílias (ICF) atingiu 134,4 pontos em agosto, contra 133,6 em julho. O contingente de endividamento saltou de 57,7% para 59,1%, mas a inadimplência ficou estável, revelando otimismo no mercado de trabalho. O índice de confiança registrou alta de 4,6% e a intenção de consumo das famílias paulistanas subiu 1,6%, em agosto/julho, de acordo com a Fecomércio-SP.

No setor supermercados, as vendas reais em julho subiram 4,2%, em relação a junho, acumulando, no ano, alta de 5,3%. No Rio (Feco-mércio-RJ), 52,2% das famílias têm compras financiadas, das quais 15,3% com contas atrasadas (17,5%, em 2009). No Rio Grande do Sul, o endividamento atinge 70% das famílias (Fecomércio-RS). Em São Paulo, segundo a Secovi-SP, a venda de imóveis teve alta de 18,4% no 1º semestre. Segundo a Serasa, o número de cheques devolvidos, em julho, ficou em 1,74%, o menor índice de julho, desde 2004. O indicador de inadimplência recuou 0,5%, em junho.

Agricultura

A intensidade da seca na Rússia e das enchentes na Ásia acelerou as negociações dos contratos de commodities de alimentação e está produzindo substancial aumento de preços, desde o final de junho. Nos últimos 30 dias, subiram os preços do açúcar (+10,7%), algodão (+9,3%), café (+8,4%), milho (+3,2%) e soja (+1,4%). Maiores altas devem ocorrer também em relação ao trigo e ao arroz, mas os preços

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da soja poderão ter alguma redução, face à oferta americana. O preço do trigo, até agosto, subiu 29,7%.

A safra de café, neste ano, segundo a Conab, poderá atingir 47 milhões de sacas, com expectativa de que o preço internacional permaneça no alto nível atual (174 cents/libra), representando acréscimo de 29%, neste ano.

Mercado de trabalho

A taxa de desemprego, no Brasil, continua em queda, atingindo em julho o mais baixo índice histórico de 6,9%, segundo o IBGE. Em junho, essa taxa foi de 7% e em julho/09 de 8%.

No mercado formal, conforme a Caged, foram criadas 181.796 novas vagas, em julho, caminhando para 2,5 milhões, no final do ano. Se-gundo o DIEESE, o desemprego nas principais áreas metropolitanas atingiu 12,4% em julho, ante 12,7% em junho. O nível de ocupação cresceu 0,3%, com a criação de 49 mil vagas, enquanto o número de pessoas desempregadas caiu 66 mil. A massa salarial cresceu 9,8% nominais e 8,5% em termos reais. Os reajustes em 97% das nego-ciações ficaram acima da inflação.

Segundo o Anuário do Sebrae, as micro e pequenas empresas brasi-leiras representam 99% do total de 5,8 milhões e empregam 52,3% dos 24,9 milhões de trabalhadores com carteira assinada.

A expansão do nível de emprego, o crescimento da renda real dos trabalhadores e as facilidades do crédito estão assegurando o nível atual de endividamento e a baixa inadimplência das famílias brasileiras.

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Setor Financeiro

As operações de crédito no sistema financeiro continuam crescendo. Em julho, aumentaram 1,2%, acumulando no ano 9,4% e, em doze meses, 18,4%, sendo que os bancos oficiais expandiram 24,8% e os bancos privados nacionais 16,5%; pelo visto, os bancos privados es-tão acelerando a recuperação. O total de empréstimos atingiu 45,9% do PIB.

Também cabe destaque para os índices monetários: nos últimos 12 meses, até julho, o papel-moeda emitido aumentou 17,9%, a base monetária 19,9% e os meios de pagamento (M1) 18,4%. Os recolhi-mentos compulsórios dos bancos, no Banco Central, aumentaram R$ 92 bilhões, em relação a dezembro/09.

Os empréstimos do BNDES subiram 4,7% em julho e 45,4% nos últimos 12 meses. Admite-se que a maior expansão do BNDES seja a causa do aumento das taxas de juros no mercado financeiro privado.

No ativo do Banco Central, o montante de “operações compro-missadas” aumentou 25,4 bilhões de junho para julho, mas ainda representam queda de R$ 50,9 bilhões, em relação a dezembro/09. Em contrapartida, o saldo dos depósitos do Tesouro Nacional no BC (passivo) caiu R$ 31,6 bilhões, em julho/junho e R$ 83,4 bilhões sobre dezembro/09.

Inflação

A inflação continua calma, apesar das oscilações e da elevação do IGP-M/FGV, de 0,15% em julho para 0,77% em agosto. A elevação

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do IGP-M se deve, basicamente, à alta de 15,08% do minério de ferro e de 10,55% da soja, o que não deverá se repetir até o final do ano. Ademais, praticamente subiram de preço, em agosto, todas as commodities de alimentação, tais como açúcar, café, milho, soja, arroz e trigo, além do algodão (vide item Agricultura). Ainda assim, o IPCA-15 registrou nova deflação de -0,05%, em agosto, e o IPC da FIPE manteve-se quase inalterado, com alta de 0,21%.

Depois de aplicar aumentos que somam 170% ao longo do ano, a Vale anuncia que vai proceder uma redução de 10% no preço do minério de ferro, a partir de outubro. Uma redução de 20% deverá ocorrer também nos preços do aço, no 2º semestre (O Estado de São Paulo e Jornal do Comércio, de 27/8).

Em São Paulo, o IPV da Fecomércio-SP registra deflação de 1,57% em julho/junho, e na cidade do Rio de Janeiro, segundo a Fecomércio-RJ, a cesta de compras registrou queda de 4,38%, em agosto, com destaque para tomate (-42,8%), batata (-30,0%) e cebola (-21,0%). Em contrapartida, em agosto, subiram os preços de quase todos os materiais de construção.

Setor Público

A arrecadação da Receita Federal, em julho, cresceu 10,5% sobre junho e 10,8% sobre julho/09, acumulando alta de 11,8% no 2º trimestre. Nos sete primeiros meses, a arrecadação já aumentou R$ 49,0 bilhões (+12,2%). O déficit do INSS caiu 20,6%, em julho. Os gastos do Governo federal com investimentos, até julho, atingiram R$ 25,1 bilhões (+67%).

De janeiro a julho, o Setor Público “economizou” R$ 42,6 bilhões

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(superávit primário) para pagar R$ 108,1 bilhões de juros, resultando um déficit nominal de R$ 65,5 bilhões (3,3% do PIB). Em consequên-cia, a dívida bruta atingiu R$ 2.027,6 bilhões (R$ 54,2 bilhões acima de dez./09), a dívida líquida R$ 1.446,6 bilhões e a dívida mobiliária federal R$ 1.509,1 bilhões.

Setor Externo

Em agosto, as exportações subiram a US$ 19,2 bilhões e as impor-tações a US$ 16,8 bilhões, acumulando no ano US$ 126,1 bilhões (+28,8%) e US$ 114,4 bilhões (+46,6%), respectivamente. Com o resultado positivo de US$ 2,4 bilhões em agosto, o saldo da balança comercial elevou-se a US$ 11,7 bilhões. No acumulado do ano, o déficit em Contas-Correntes ficou em US$ 28,26 bilhões (2,51% do PIB) o pior resultado da história.

O fluxo de Investimento Estrangeiro Direto (IED) não foi suficiente para compensar a saída de dólares. Os ingressos de IED somaram em julho US$ 2,64 bilhões, apenas 58% do déficit em Contas-Correntes.

No acumulado do ano, o saldo dos investimentos estrangeiros é po-sitivo em US$ 14,7 bilhões, o que representou praticamente a metade do déficit da Conta-Corrente.

A conjuntura internacional continua insegura. O PIB americano cresceu 1,6% no 2º trimestre, em ritmo insuficiente para estancar a alta do desemprego (14,6 milhões de americanos). Em julho, a venda de casas caiu 27,2%, em relação a junho e 25,5% frente a julho/09. Também caíram as encomendas de bens duráveis. Entretanto, a pro-dução de veículos aumentou 9,9% em julho e o resto da indústria cresceu 0,6%. Na Europa, o PIB da Alemanha cresce ao ritmo anual

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100 Car ta Mensa l • Rio de Janeiro, n. 666, p. 84-100, set. 2010

de 2,2%, com desemprego de 7%, inflação de 1,2% e saldo da Balança Comercial de € 60 bilhões. Os demais países têm fortes déficits no comércio exterior, com crescimento quase nulo do PIB. O Japão luta para garantir o crescimento e anunciou o lançamento de um novo plano de US$ 118 bilhões, enquanto a China continua em ritmo de expansão de 9%, ultrapassou o Japão e já é o 2º PIB do mundo. No mercado global, permanece um clima de pessimismo.