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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS LEANDRO GOMES DE MOURA PROCESSO CRIATIVO DO QUADRINHO: O Evangelho Segundo o Sangue NATAL 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

LEANDRO GOMES DE MOURA

PROCESSO CRIATIVO DO QUADRINHO: O Evangelho Segundo o Sangue

NATAL

2011

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LEANDRO GOMES DE MOURA

PROCESSO CRIATIVO DO QUADRINHO: O Evangelho Segundo o Sangue

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de

Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

como requisito para a obtenção do título de Licenciado em

Artes Visuais.

Orientador: Profa. Dra. Nivaldete Ferreira da Costa

Natal

2011

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LEANDRO GOMES DE MOURA

PROCESSO CRIATIVO DO QUADRINHO: O Evangelho Segundo o Sangue

Monografia aprovada em ----/----/----, para obtenção do título de Licenciado em Artes

Visuais.

Banca Examinadora:

---------------------------------------------------------------------------

Profa. Dra. Nivaldete Ferreira da Costa

(Orientadora)

----------------------------------------------------------------------------

Prof. Dr. Marcos Andruchak

(Examinador)

---------------------------------------------------------------------------

Profa. Dra. Maria do Mar Vazquez y Manzano

(Examinadora)

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DEDICATÓRIA

Dedico este esforço à minha estimada avó, Izabel Gomes Fernandes (in-memoriam), por

ter ensinado a valorizar a vida e a importância da família; à minha estimada esposa

Cristiane, pela imensa paciência, à minha mãe, Francisca Gomes da Silva, ao meu pai,

Luís Francisco da Silva Moura; ao meu irmão, Leomir Gomes de Moura, ambos

responsáveis por eu ser quem sou; à minha tia, Maria José Gomes da Silva, por apoiar

constantemente na caminhada durante o decorrer do curso; aos amigos Rodolfo, Ari Brito,

Adriana Leonardo, Joane Karen, Marcos Roberto, Alexandre, Mayara Suellen, Gabriela

Xavier, Paulo Sérgio, que acompanharam minha trajetória durante todos esses anos; por

fim, aos seres que habitam nossa história em quadrinho; Hugo, Elena, Ana, Padre Afonso

e o nosso misterioso vilão, pois sem eles não teria sido possível realizar este trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Marcos (Guerra), cuja inspiração original é responsável pela existência do

quadrinho: O Evangelho Segundo o Sangue; à minha esposa Cristiane, pois seu

inestimável apoio (paciência) e incentivo foram fundamentais para a execução deste

trabalho. Em seguida, à professora e orientadora Nivaldete Ferreira da Costa, por estar

sempre disposta a auxiliar e acreditar neste projeto; Clayton Marinho, colega e bom

conhecedor da arte sequêncial. E, ainda a todas as pessoas, incluindo amigos ou

familiares, que de alguma forma contribuíram para a pesquisa e consequente execução

deste Trabalho de Conclusão de Curso. E, por fim, a Will Eisner, visionário quadrinista e

teórico que se empenhou em tratar o quadrinho de forma artística e séria; a Scott

McCloud, outro teórico e grande contador de histórias, a Allan Moore, por sua significativa

contribuição no amadurecimento do meio, e a todos os leitores, que sempre foram o alvo

de nosso projeto.

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É infundada a crítica que se faz aos quadrinhos, principalmente aquela que o considera

subliteratura ou ‘’subarte’’. Isso porque, uma vez que os quadrinhos tenham se nutrido em fontes

literárias ou pictóricas, não quer dizer que esses materiais conservem a sua natureza depois de

adquirirem sua forma final. É o que acontece com o cinema: depois de o roteiro passar para a

linguagem cinematográfica não é mais literatura e, sim, uma nova e vigorosa modalidade artística.

(Bibe-Luyten, 1985, p.12).

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RESUMO

Este trabalho traz a descrição e a análise do processo de criação do quadrinho de terror

O Evangelho Segundo o Sangue. É relatada a experiência, em coautoria, de transpor um

roteiro para as páginas dessa narrativa, procurando-se explicar o quanto produzir essa

forma de arte é algo desafiador, envolvente, rico em detalhes e particularmente

interessante do ponto de vista semiótico, já que apresenta signos verbais e não verbais

(palavras e imagens visuais). É referido o percurso do projeto, desde as primeiras ideias;

esboços dos personagens, instruções do roteiro para a elaboração das páginas, além de

exemplos das páginas que compõem a obra. Abordam-se, enfim, os princípios e práticas

da arte sequêncial, o foco basilar deste trabalho. Foram aproveitadas concepções de

autores como Scott McCloud (pensamento visual), que faz uma análise sobre a linguagem

da ‘’arte sequencial’’ e é, por sua vez, seguidor dos passos do pioneiro Will Eisner, a

quem cabe trazer à tona toda a qualidade artística e intelectual que este gênero pode

oferecer ao grande público.

Palavras-chave: Processo Criativo, Histórias em Quadrinhos, Webcomic.

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Sumário

1. INTRODUÇÃO 09

2. O PROCESSO CRIATIVO 11

2.1 O Evangelho Segundo o Sangue 11

2.2. A gênese de uma narrativa de terror 11

2.3 O Arquivo Morto 14

2.4 Sobre o Roteiro 16

3. A CONCEPÇÃO VISUAL 19

3.1. Personagens 19

3.2 Traços 23

3.3 Introitus 27

3.4 Encapsulamento de imagens – Sequências 29

3.5 Formatos de publicação 36

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 39

5. BIBLIOGRAFIA 40

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1. INTRODUÇÃO

Estudar e produzir arte sequencial sempre foram algo do meu interesse, ao entrar

no curso de artes visuais. Porém, logo ficou percebido que a grade curricular não

proporcionava tais conhecimentos. Prossegui no curso, engajando-me, porém, no grupo

que tinha o objetivo de produzir quadrinhos, o extinto grupo ‘’Nanquim’’, formado por

alguns alunos do curso de artes visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte-

UFRN. Contudo, nada era, até então, muito ‘’sério’’, mas, em meados de 2009, um colega

em quem descobri afinidades, Marcos Antônio, mais conhecido como Marcos Guerra, (na

ocasião prestes a se formar no curso de Licenciatura em Artes Plásticas), mostrou-se

interessado numa empreitada pretensiosa: produzir uma série de contos de terror

ambientada no século XIX, com a promessa de publicarmos o material num formato de

webcomic1 independente, que seria lançada em breve (K-ótica).

A partir daí, começamos a elaborar os primeiros rascunhos sobre o projeto e a

delinear o caminho a ser seguido. Vale salientar que, em linhas gerais, o conceito da

história, criação da ordem da narrativa e todos os elementos verbais sempre foram do

roteirista, Marcos Guerra. A criação das imagens, por sua vez, ficou a cargo do ilustrador

e coautor, Leandro Moura (este que aqui escreve), que teria a tarefa de dar vida ao texto.

Então, o sucesso ou fracasso do quadrinho obrigatoriamente dependeria do trabalho

realizado em equipe.

Essa atitude - desenvolver tal trabalho sem que este se derive diretamente de uma

disciplina cursada na graduação - encontra respaldo, do ponto de vista pedagógico, no

que Freire (1996, p. 59) trata como pedagogia da autonomia, defendendo que se deve

respeitar “a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua

linguagem [...]”.

Chegando, ao passar dos semestres, o momento de me decidir pelo assunto do

Trabalho de Conclusão de Curso-TCC, fiz uma ponderação: é notória a escassez (ou

ausência) de material bibliográfico descritivo acerca do processo de produção de

quadrinhos. Considerei viável, então, fazer do relato dessa experiência o meu TCC,

1 Webcomic, ou quadrinhos on-line, são quadrinhos cuja publicação é veiculada exclusivamente pela

Internet.

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esclarecendo que, mesmo não tendo cursado uma disciplina especificamente voltada

para o assunto, absorvi e apliquei conhecimentos adquiridos em outras do curso de Artes

Visuais.

Quanto ao procedimento de escrita, sigo aqui um método descritivo-analítico, e

acredito que este trabalho pode colaborar para o desenvolvimento da arte -

particularmente da HQ - no Rio Grande do Norte-RN, seja pelo produto, seja pela

explicação do processo de produção, o que pode auxiliar colegas e professores de

escolas interessados no assunto. Deve ainda ser levado em conta que O Evangelho

Segundo o Sangue traz uma narrativa relacionada ao RN, o que envolve, além da

pesquisa artística e da ação criadora, a pesquisa histórica, embora a representação da

história, neste caso, venha hibridizada com a representação imaginária, “carregada de

afetividade e de emoções criadoras e poéticas” (LAPLATINE; TRINDADE, 2003, p.25),

não tendo, assim, um caráter reprodutivo, mas de ultrapassagem do que foi sistematizado

como história oficial. Cria-se, então, outro real. E parece ser este o destino da arte.

Embora os quadrinhos tenham sido no passado recente, produto feito por um único

artista, hoje cada vez mais os mecanismos de produção dessa linguagem artística têm se

transformado numa verdadeira ‘’linha de montagem’’, onde o escritor concebe inicialmente

a narrativa que, em seguida, entrega ao artista para que este possa dar vida ao mundo de

suas ideias verbalizadas e, em seguida, confere a tarefa de refinar a arte feita a lápis até

a arte-finalista, e por fim, entram em cena o colorista e o letrista. Tal processo criativo

está, pois, ligado, de maneira geral, a questões de tempo, o qual impera sobre os prazos

apertadíssimos (os famosos deadline) para cumprir a demanda de trabalho.

É interessante notar que este método é algo muito relacionado à produção

ocidental, uma vez que, no oriente, os mangás, quadrinhos japoneses, são concebidos

por um único individuo que tem a total responsabilidade da obra. O grande quadrinista e

teórico da área Will Eisner é da opinião de que a obra deve ser exatamente dessa

maneira, pois assim o criador tem mais chances de transmitir sua mensagem com mais

eficiência. Feitas estas observações, importa dizer que este trabalho trata de examinar o

processo criativo por trás da obra O Evangelho Segundo o Sangue, série de contos de

terror, a qual é publicada na Webcomic K-ótica que, por sua vez, é inserida na seção

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Quadrinhos da Revista Catorze,2 e que é realizada em parceria com o amigo e artista

Marcos Guerra. Para tanto, como coautor conto a experiência de transpor o roteiro para

as páginas dessa narrativa, procurando explicar o quanto produzir essa forma de arte é

algo desafiador, envolvente, rico em detalhes e particularmente interessante do ponto de

vista semiótico, já que apresenta signos verbais e não verbais (palavras e imagens

visuais). Em síntese, será demonstrado a seguir o percurso do projeto desde as primeiras

ideias, esboços iniciais dos personagens, instruções do roteiro para a elaboração das

páginas, além de exemplos das páginas que compõem a obra. Em outras palavras,

abordar os princípios e práticas da arte sequencial será o foco basilar deste trabalho.

2. O PROCESSO CRIATIVO

2.1 O Evangelho Segundo o Sangue - A gênese de uma narrativa de terror

Escrever sobre o processo criativo de uma História em Quadrinho parece a

princípio algo teoricamente fácil, uma vez que tratar dos pormenores técnicos da

produção, como o tipo de papel, lápis, tinta ou coisa do gênero a serem empregados na

criação parece à coisa mais óbvia a ser mencionada por quadrinistas de todas s partes do

globo. Todavia, ao restringirmos a elementos puramente materiais, o texto seria

demasiadamente enfadonho limitando-o a um mero manual de instruções sobre como

fazer quadrinhos. E isso não pode ser levado em consideração, pois o tipo de material

não afeta diretamente a mensagem expressa pelo conteúdo e forma. Nesse sentido, a

abordagem tratada aqui tenta mostrar os mecanismos de construção escolhidos, ou

melhor, as decisões que tornariam possível a construção de uma narrativa gráfica. Vale

salientar que esta proposta é principalmente mostrar a forma como este conto foi

concebido, e que o processo pode, e deve variar drasticamente de acordo com cada autor

ou temática escolhida. Portanto, tal trabalho é por definição aberto a inúmeras maneiras

de produzir um quadrinho. Entretanto, trataremos aqui do processo criativo que envolveu

a produção do quadrinho de terror oitocentista intitulado O Evangelho Segundo o Sangue,

ambientada em Natal, no Rio Grande do Norte, a qual é sustentada pelos personagens

2 A Revista Catorze é um projeto de jornalismo cultural independente, veiculado na internet como forma de

revista eletrônica. O foco da revista é movimentar a cena cultural de Natal e proporcionar ao leitor informação crítica e de boa qualidade.

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Hugo, Elena, Ana e o Padre Afonso e uma entidade misteriosa. Primeiramente é

interessante perceber que o gênero terror nas Histórias em Quadrinhos (HQs) 3, desde os

distantes anos 1930 vem prendendo a atenção do leitor, e que nesse tipo de narrativa é

comum a inserção de elementos que mesclem suspense, criaturas desfiguradas,

psicopatas, e finais inesperados. De acordo com McCloud (2008, p. 224) “os gêneros são

construídos em torno das expectativas do público. Quando o gênero é amplo, a lista de

expectativas é curta”. De todo modo, há certos signos repetitivos em tais narrativas, os

quais podem estar presentes na ambientação como lugares inabitados, escuros, densas

florestas ou na composição dos personagens com alguma particularidade como cicatrizes,

deformações do rosto, do corpo, ou outras peculiaridades. A presença de elementos

sobrenaturais como bruxas, demônios, vampiros, fantasmas, é responsável pelos conflitos

desencadeados nos enredos deste gênero que teve grande impacto nos EUA,

principalmente a partir dos anos 19504. Assim, a violência, explícita ou implícita, é outra

constante nessas narrativas, em que “[...] reconheço o terror como a emoção mais fina e,

assim, tentarei aterrorizar o leitor. Mas, se achar que não posso aterrorizar, tentarei

horrorizar, e, se achar que não posso horrorizar, partirei para a grosseria.’’ (KING apud

CARROLL, 1999, p. 84). Não obstante o terror estaria mais associado ao suspense,

fazendo com que o público, ao se identificar com os heróis da história, assuste-se com

determinadas situações. Dessa forma, cenas como, por exemplo, de violência gratuita ou

de qualquer ordem dessa natureza estão atreladas ao horror e, portanto, foram

descartadas na fase de pré-produção, pois não condizia com os interesses do roteirista,

muito menos do ilustrador da série. E, logo, foi percebido que a espinha dorsal da história

seria uma, a qual ‘’menos é mais’’, sem os típicos clichês do gênero, o que de certa forma

tornou o desenrolar da trama mais natural. A abordagem da narrativa intitulada O

Evangelho Segundo o Sangue teria todos os elementos típicos de uma HQ de terror,

3 Abreviação para Histórias em Quadrinhos.

4 A inovação nos quadrinhos de terror norte-americanos adveio no início da década de 1950, quando Max

Gaines (o pioneiro dos comic-books nos Estados Unidos) morreu vítima de um acidente. William Gaines, o filho, herdou a editora, a Educational Comics, que editava revistas educativas e quadrinhos adaptados a partir de textos bíblicos e estava à beira da falência. Com o nome mudado para Entertaining Comics passou a publicar títulos de quadrinhos de terror, como Tales from the crypt, The vault of horror, The haunt of fear, Weird fantasy, Crime suspenstories, entre outros. As publicações traziam histórias curtas de terror apresentadas pelos horripilantes Guardiões da Câmara e Zelador da Cripta e pela Bruxa Velha, que também respondiam as cartas enviadas pelos leitores. Os enredos fugiam do convencional (o horror pode acontecer em uma praia ensolarada; o assassino estaria na pele de um homem simpático), mostrando situações insólitas, violência explícita, sensualidade, escatologia, elementos grotescos, ambição, vingança e finais inesperados e surpreendentes.

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ambientada numa cidade interiorana do Brasil, em pleno século XIX, porém, sem o forte

apelo ao erotismo tão empregado nos quadrinhos brasileiros em décadas anteriores5.

Para tanto, devemos a principio investigar a natureza daquilo que é o cerne desta

narrativa: a ideia. Esta, por sua vez, teve sua origem em inúmeras fontes como, por

exemplo, o mestrado de Annie Pontes, irmã do roteirista Marcos (Guerra), o qual trata das

festas e funerais na Natal oitocentista, e ainda, a presença dos mitos vampirescos que

povoam o imaginário de incontáveis culturas, o que traz o sentido da interculturalidade,

porém, revestido das particularidades locais que surgem a partir ‘’[...] Do encadeamento

das ideias surge a criatividade. Ideia e criatividade estão na base da confecção da obra

artística’’ (COMPARATO, 1995, p. 72). Sobretudo, a pretensão era criar uma trama bem

estruturada e que, de fato pudesse privilegiar a cultura local, ou seja, inserir elementos

que fazem parte da mitologia brasileira e, ao mesmo tempo, trazer costumes e

superstições comuns a outras culturas.

Alimentados por estas escolhas, optamos pelo ambiente do interior, lugar

adequado para a criação, sendo importantes também à atmosfera de desolação e a

presença da cultura oral nos lugares remotos das grandes cidades. Na visão de Cirne

(1990, p. 44), “mais do que uma realidade editorial, o quadrinho de Terror, em nosso país,

é uma realidade cultural”. Para Marcos Guerra, escritor de O Evangelho Segundo o

Sangue, a história foi idealizada para apresentar algumas reflexões acerca da natureza do

desejo e perda, num cenário em que as práticas e crenças funerárias socialmente

disseminadas pudessem estar em alinhamento com tais temas. Justifica-se essa

necessidade dramática pela opção de usar a idéia da temporariedade da vida como maior

figura de linguagem na compreensão do apego e/ou desapego apresentado pelas

alegorias do quadrinho. Um enfoque mais sombrio foi adicionado à história para melhor

expressão do apego às coisas como fonte do sofrimento das personagens. Cirne (2005,

p. 35) salienta que:

5 As vampiras sensuais Mirza, Naiara e Nádia são alguns exemplos. Criada por Colonnese e pelo roteirista

Luis Meri Quevedo em1967, Mirza, a mulher vampiro, cujas histórias foram publicadas pela Jotaesse, tendo como editor José Sidekerskis passou, depois, para outras editoras e tendo suas narrativas reunidas em coletâneas, além de participar da edição especial Brasilian Heavy Metal, com uma história futurista.

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[...] seja no Nordeste, seja no Sul – Maravilha ou em qualquer outra região do país, é preciso pensar o nosso quadrinho a partir do caldo cultural que nos alimenta – a tal ‘’geleia’’ cantada em prosa e verso pelo tropicalismo dos anos 60. Como já afirmamos antes, é preciso que o quadrinho brasileiro contenha, em sua essência gráfica e temática, os nossos dengos, os nossos carnavais, as nossas esperanças, as nossas dúvidas, as nossas superstições, os nossos costumes, a nossa brasilidade, enfim.

Em síntese, pode-se dizer também que em linhas gerais, a origem HQ surgiu das

inúmeras referências não apenas literárias, como também de outros artistas e as próprias

experiências dos autores. Na realidade, explorávamos todas as tangentes possíveis,

falando sobre filmes, música, livros e quadrinhos antigos que pudessem de algum modo,

ser utilizados como fonte referencial. Diante dessas considerações, cabe dizer que este

foi literalmente o início da jornada para criar este quadrinho de terror, o qual exigiu um

esforço significativo da parte de ambos os envolvidos na concepção de uma obra que,

sob todos os aspectos, sempre procurou o caminho autoral, sem as devidas restrições

impostas pela figura de um editor que viesse a comprometer a natureza do projeto.

2.2 O Arquivo morto

Parece um nome um tanto mórbido, mas é justamente o nome dado ao que é o

arquivo de referência de imagens que um artista coleciona durante o curso de sua

carreira. Expressões como banco de imagens também são usados para tal fim. Com

organização em ordem alfabética ou de assuntos, tais arquivos contêm fotos, recortes,

rascunhos, textos, enfim, toda sorte de objetos que, eventualmente, servirão em

determinados trabalhos estarão lá. Desse modo, qualquer artista, por mais talentoso que

seja às vezes precisa de material de referência para representar algo com exatidão, seja

um desenho ou pintura, e fundamental sempre quando possível recorrer a referências. O

roteirista, Marcos Guerra, sugeriu utilizar uma pasta em constante crescimento que

serviria de consulta sempre que necessário e assim tonou-se um item fundamental, a qual

seria guardada todo e qualquer tipo de informação, desde textos, pequenas anotações,

fotografias, e lista de livros ou referências artísticas que seriam utilizados como fonte de

pesquisa na fase que antecede a produção da narrativa em si.

A partir daí, os dados colhidos eram organizados numa ordem dos acontecimentos

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da narrativa, que viriam a tomar forma de acordo com o planejamento estabelecido

inicialmente pelo roteirista, e consequentemente transmitido ao ilustrador da série, que

por sua vez tinha a tarefa de seguir as orientações para resolver a elaboração das

páginas. Ao compor uma página, por exemplo, tinha-se em mente não apenas a mera

composição desta, mas, como cada cena deveria funcionar dentro de todo o plano

narrativo. Ao dar inicio a pesquisa de fontes, a qual incluiu visita ao Instituo Histórico e

Geográfico do Estado do Rio Grande do Norte, onde tivemos acesso a fotos, livros e

documentos, da Natal oitocentista, (época que se passa a narrativa do quadrinho) entre

outras informações que iriam auxiliar tanto a produção do texto como a arte da narrativa.

Também foram feitas sessões fotográficas em locais onde a estória se passa em

alguns momentos como a Igreja Matriz Nossa Senhora da Apresentação, dentre outros

em Natal, porque às vezes ‘’uma boa pesquisa pode fazer a diferença [...] pode valer a

pena tirar algumas fotos no lugar [...] Dedique algum tempo para se perder nos ambientes

que você desenha e seus leitores igualmente o farão (McCloud, p. 176-177, 2008)’’. Em

outras palavras, dar ao espectador pelo menos um grau significativo de credibilidade ao

que está sendo produzido (v. figura 1).

Por outro lado, o próprio roteirista Marcos Guerra recomendou outras fontes de

pesquisa para tentar trazer à luz a atmosfera descrita no texto. Tais fontes traziam

referências visuais como, por exemplo, o livro de RPG A Arte de Vampiro: A Máscara,6 o

6 Role-playing game também conhecido como RPG (em português: jogo de interpretação de personagens),

é um tipo de jogo em que os participantes assumem os papéis de personagens e criam narrativas em colaboração. O progresso de um jogo se dá de acordo com um sistema de regras predeterminadas, dentro

Figura 1 – Fotografia: Imagens da pesquisa de fontes logo no início do projeto. Fonte: Leandro Moura, 2009.

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qual, apresenta uma compilação de ilustrações feitas por diversos artistas de renome

internacional, e que ajudaram a estabelecer o visual ou atmosfera do jogo ao longo dos

anos. Essas indicações visuais, ‘’impostas’’ pelo roteiro foram bastante pertinentes, já que

era imperativo proporcionar uma atmosfera bem especifica a narrativa gráfica. Vale

ressaltar que durante todo o trabalho o escritor Marcos Guerra sempre proporcionou certo

grau de liberdade para que fossem desenvolvidos todos os pormenores da concepção

visual. Consequentemente, tal processo exigiu horas de trabalhos a lápis e,

inevitavelmente, muitos rumos errados ao longo da jornada – o que teve sua importância,

uma vez que tal trabalho exige um procedimento que inclui o ensaio e erro, à semelhança

do que ocorre em certos fazeres científicos, corrigindo-se os erros ao longo do projeto,

quando necessário. Sim, porque há erros que se convertem em acertos. Enfim, todo o

material coletado durante a fase de pré-produção serviu para que o quadrinho viesse

pouco a pouco ganhar forma ainda que, num momento embrionário.

2.3 Sobre o Roteiro

No que diz respeito ao roteiro, fase de pré-produção de uma HQ, é necessário

saber que sempre deve começar pelo tema ou ideia principal, isto é, do que vai tratar toda

a narrativa a ser contada. Nessa etapa do processo criativo, um breve rascunho em linhas

gerais é importante, pois a partir daí tem-se a essência do projeto que em seguida,

começa ganhar forma por meio de pequenos fragmentos que culminarão na organização

estrutural de sua estória e assim, estabelecer o início, meio, e um fim. E foi o que de fato

ocorreu na criação da narrativa de terror oitocentista intitulada O Evangelho Segundo o

Sangue, que é dividido em vários capítulos.

Primeiramente, o coautor e roteirista Marcos Guerra procurou reunir e organizar

sistematicamente os pequenos fragmentos, que aos poucos tomaram corpo à medida que

suas investigações acerca da temática escolhida, logo viria a se concretizar num texto

que lida com a natureza da perda inserida numa ambientação desolada de uma cidade

ainda provinciana, Natal. A estória em si utiliza-se de referências reais, tais como locais e

das quais os jogadores podem improvisar livremente, porém, as escolhas determinam a direção que o jogo irá tomar. Vampiro: A Máscara é um cenário de RPG de horror pessoal, baseado no sistema Storyteller e centrado nos vampiros em um mundo Punk-Gótico. Publicado originalmente em1991 por Mark Rein Hagen, pela editora White Wolf, chegou a ter uma segunda edição em1992 e uma edição revisada em 1998.

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outros elementos que foram combinados às pseudoreferências, citações e

intertextualidades com o intuito de acentuar complexidade a trama. Nessa etapa, foi

importante definir a ambientação: onde vai se passar a história; em que época;

características de personagens principais e secundários entre outros elementos da

narrativa gráfica. Escrever um roteiro [...] ‘’exige uma disciplina especifica. Deve-se

avançar por partes. É uma construção que obedece a uma estrutura lógica. A

personalidade do escritor pode sem dúvida matizar essas partes’’(COMPARATO, 1995 p.

21). Então, somente a partir do curto texto se deve detalhar, reescrevendo e preenchendo

todas as lacunas, colocando os diálogos, os lugares, os ângulos e os enquadramentos,

baseando-se nas informações fornecidas nas etapas anteriores. Por outro lado, roteiros

são escritos de inúmeras formas, e quando se fala a respeito de arte sequêncial, não

existe uma ‘’receita de bolo’’, ainda que haja necessidade de uma determinada estrutura.

Assim, é comum encontrar roteiros cuja estrutura segue uma mera descrição dos

fatos a serem narrados, com pouca ou nenhuma preocupação com sua disposição na

página, já outros, ocasionalmente, sugerem um roteiro preliminar e, em seguida, retornam

à história quando chega o momento de preencher os balões com os diálogos. E, por fim,

também é comum existirem roteiros bem detalhados, os quais determinam descrição de

cada elemento que precisa ser representado na página. No entanto, como já foi dito,

todas estas formas são válidas.

Muitas vezes, a colaboração entre um escritor e um artista exige a aplicação de

uma metodologia de trabalho que deve permitir a melhor maneira de combinar palavras e

imagens, o ocorreu especificamente no caso da HQ, O Evangelho Segundo o Sangue.

Não obstante isso pode variar significativamente dada a natureza de cada equipe criativa,

e em todo caso, é essencial que o roteirista esteja preocupado com a interpretação de

seu texto pelo artista, e o mesmo deve aceitar submeter-se à narrativa. Tendo isso em

mente, é interessante frisar que o ato de escrever para os quadrinhos requer que o

roteirista ‘’pense visualmente’’ como afirma McCloud (2008, p. 148). Essa afirmação

também é corroborada por Moore (1988), escritor inglês notório, ainda em atividade, e

que ajudou no amadurecimento da indústria quadrinística nas últimas décadas. Ele

enfatiza que o escritor deve pensar visualmente, e que este tire vantagem de quanto

conhecimento é possível para dentro de uma imagem, de forma ocasional e sem

exageros, e que mesmo não se tendo uma grande habilidade com o desenho não é difícil

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Figura 2 – Desenho: As primeiras páginas roteirizadas acompanhadas de instruções sobre o arranjo das cenas inseridas nos requadros. Fonte: Marcos (Guerra), Leandro Moura, 2009.

desenvolver uma sensibilidade visual, desde que se crie o hábito de fazer

sistematicamente rascunhos grosseiros das páginas, mostrando os elementos visuais que

compõem cada quadrinho, o que facilita o surgimento de uma ideia do que pode ser

inserido na composição final.

Semelhante a tal procedimento metodológico, foi decidido que, para a HQ de terror,

utilizaríamos o tipo de escrita Layout Full Script, o qual vem acompanhado de rascunhos,

feitos pelo escritor, de como deve ser precisamente um painel ou uma página, e

especialmente quando o roteirista quer a certeza de que o desenho final estará bem

próximo daquilo que é sua aspiração inicial (v. na figura 2).

De fato, para nós, isso não foi problema, pois o roteirista também possui

igualmente habilidades artísticas, o que consequentemente facilitou bastante a

elaboração das páginas por parte do artista responsável, pois as indicações visuais

fornecidas no texto, como por exemplo, o tipo de ângulo, iluminação ou enquadramento

19

que deveria funcionar no transcurso da história, conferindo-se, assim, uma gama maior de

detalhes à concepção final da obra.

3. A CONCEPÇÃO VISUAL

3.1 Personagens

Estabelecido o roteiro, seja num filme, conto, série ou numa História em Quadrinho

caso tratado aqui-, chega o momento de introduzir os seres que vão habitar o mundo de

sua história: os personagens. Assim, a primeira tarefa a ser cumprida nesse projeto foi

não apenas definir o visual básico do personagem principal, mas também do povoado,

seus patrícios e a inóspita atmosfera do lugar. Portanto, dar vida a um personagem não é

por definição uma ciência exata, dada à natureza peculiar de cada projeto.

Não obstante, quando bem construído, esse elemento torna-se essencial para o

funcionamento de uma história, e o escritor deve, por meio de seu roteiro, saber criar

personagens marcantes que possam gerar as emoções desejadas, sejam elas de atração

ou de repulsa, amor ou ódio, enfim, causar algum efeito significativo no espectador/leitor.

E é essencial que o roteirista conheça os seus personagens, e deve tratá-los como se

fossem pessoas reais, para que a hisória seja verossímil.

Portanto, às vezes faz-se uma historinha para cada um dos personagens

principais, como uma espécie de fichamento, de que constarão o nome completo, suas

aptidões, suas aspirações, suas principais características e seu temperamento. Esses

detalhes darão elementos para escrever, por exemplo, sobre que tipo de diálogo fica

melhor com que personagem; que atitudes imprimir nele, etc. Assim, será fácil presumir

como o personagem reagirá a uma determinada situação. O tipo que se constitui como

resultado da ação narrada é, portanto, a personagem ou situação bem realizada e

convincente, que continua na memória (ECO, 2008). Assim sendo, é de vital importância

deixar claro qual a necessidade dramática deste indivíduo, suas motivações e pretensões

ao longo da trama. Isto é, iluminar o objetivo que move a pessoa. Entretanto, isso se

aplica não apenas aos personagens principais, mas também aos coadjuvantes. Além

disso, o roteiro precisa ser direto no que diz respeito à importância do objetivo para o

personagem e como este se comporta diante dos conflitos.

Deste modo, essas foram às preocupações basilares, pois queríamos que os

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personagens de nossa HQ fossem convincentes, e que [...] ‘’quando através dos seus

gestos e do seu proceder, se define sua personalidade, o seu modo de reagir às coisas e

de reagir sobre elas, a sua concepção do mundo’’ (ECO, 2008, p. 219). Diante dessas

considerações: deve-se também frisar a concepção visual destes seres que habitam a

narrativa visual de terror oitocentista e como foi necessário planejar as características

basilares de cada um. Vejamos o caso das personagens principais da história: Hugo

Ribeiro, por exemplo, foi inspirado a principio com as feições do ator irlandês Liam

Nessom, pois entendíamos que a utilização de um rosto conhecido poderia facilitar os

estudos para representar expressões faciais entre outras nuances que inevitavelmente

fazem parte do processo, e do mesmo modo, seguiu-se a prática com a atriz Letícia

Sabatella, como modelo para os esboços iniciais tanto para a personagem Elena, como

Ana e o Padre, por sua vez teve como fonte o saudoso ator José Lewgoy, ambas

consideradas peças-chave nos eventos que ocorrem durante a narrativa visual, e,

portanto, isso exigia uma aparência específica o que caracteriza sua singularidade. A

esse respeito, McCloud (2008, p. 61) diz que:

[...] humanos adoram a tal ponto essas histórias que criarão uma a partir do mínimo indicio. Mesmo o rabisco mais solto sugerirá uma figura, uma emoção ou um gesto. Em suma, criar um ser humano na mente do leitor é fácil. São necessárias umas poucas linhas, e seus leitores farão o resto. Mas se você quiser que eles vejam uma pessoa específica, com uma aparência específica, e sonhos e esperanças específicas, então vai precisar de alguns passos extras.

O quadrinho é essencialmente um meio visual e, portanto, deve ter uma variedade

significativa dos tipos de personagens e, por definição, suas características físicas

precisam ser bem detalhadas no processo de criação. E esta tarefa cabe também ao

artista responsável pela concepção visual do projeto, que terá a oportunidade de dar vida

aos seres que conduzirão à narrativa. Desse modo, é indispensável que os personagens

tenham uma distinção visual destacada, ou seja, um físico, um rosto, comportamento

diferenciado, entre outras características (v. figura 3).

21

Figura 3 – Desenho: Esboços iniciais dos personagens centrais da HQ. É a concepção visual definitiva. Fonte: Leandro Moura, 2011.

Em outras palavras é preciso que, ao construir um enredo, os traços genéricos

possam ser evitados a todo custo e que a prioridade seja a especificidade, seja na

indumentária, veículo, rosto, enfim, tornar a distinção visual fator primordial na concepção

dos personagens da narrativa gráfica. Moore (1988) diz que um artista que quer aprender

a desenhar um corpo humano de maneira correta provavelmente irá começar a partir do

ambiente ao seu redor. Observando como as pessoas ficam de pé ou se curvam ou se

movem (daí a importância de disciplinas como desenho de observação e fotografia,

oferecidas durante a graduação em Artes Visuais). Tal afirmação é corroborada por

McCloud (2008, p.94) que ‘’se escolher uma abordagem mais realista, você pode ter de

usar modelos vivos ou referências fotográficas’’.

Na prática, isso ajudará o leitor a saber distinguir um personagem de outro. O que

22

Figura 4 – Desenho: Fragmento, Acima à esquerda, Elena, e a direita Ana, Mãe e filha respectivamente. Fonte: Leandro Moura, 2011.

significa: cada indivíduo é único e deve-se evitar, a qualquer custo, basear um

personagem importante de uma história em um estereótipo qualquer. Essa questão foi um

tanto complicada ao pensarmos na concepção visual de cada personagem,

principalmente quando se refere à distinção a personagem de Elena, - mãe e Ana, - filha,

que, de acordo com o roteirista, Marcos Guerra seria bastante pertinente representar em

traços, certo grau de semelhança entre estas duas pessoas. Uma tarefa particularmente

bastante cruel, diga-se de passagem, (v. figura 4).

Portanto, ao definirmos a utilização da referência fotográfica para composição

visual dos personagens da história, poderíamos ter liberdade para estudar e simplificar os

traços-chave de uma expressão. Assim, os personagens passarão a ter mais

credibilidade, pois o leitor será imediatamente capaz de reconhecer por meio dos traços

específicos cada indivíduo no decorrer da narrativa. Diz ainda, McCloud (2008, p. 71):

diferenças mais profundas nos tipos de rosto e corpo ajudam os leitores a memorizar seu elenco e lhes proporciona um lembrete visual único das diferentes personalidades dos personagens. Conformes os leitores forem conhecendo seu elenco, tais traços passarão a simbolizar o que cada personagem significa para eles assim como fotos reais de nossos amigos e parentes podem trazer a pessoa inteira á nossa mente.

23

Assim sendo, ao definir o design básico dos personagens em O Evangelho

Segundo o Sangue, foi necessário construímos uma ‘’ficha-modelo’’, a qual consiste em

uma série de desenhos de um personagem em diferentes ângulos e poses, para que

pudesse servir em futuras consultas e torná-los mais convincentes para a história.

Como mostra Eco (2008, p. 213) ‘’se a personagem não concretamente individual

em cada uma de suas ações, não será uma personagem artisticamente realizada’’. Para

tanto, foram feitos os estudos necessários de cada personagem com o intuito de dar

credibilidade visual à figura criada para a narrativa de terror.

3.2 Traços

Na ‘’escrita imagética’’7, palavra e imagem são sobrepostas para formar um todo

unificado e no fim, comunicar. Poderíamos pensar que criar imagens para os quadrinhos

é uma tarefa aparentemente simples, mas na realidade, o trabalho requer um esforço

significativo por parte do artista responsável, para dar vida a um mundo que nem sempre

é criado por ele. E tendo isso em mente, a questão da concepção visual da HQ,

inevitavelmente recai sobre o artista.

A escolha ou maneira por assim dizer, da representação gráfica será de suma

importância para determinar o estado de espírito a qual a obra pretende transmitir, e é

‘’nessa etapa vital do processo criativo, que o comunicador visual exerce o mais forte

controle sobre seu trabalho, e tem a maior oportunidade de expressar, em sua plenitude,

o estado de espírito que a obra se destina a transmitir. ’’ (DONDIS, 1997, p. 29).

Para todos os efeitos, a grafia particular executado por um desenhista contribui

para dar sentido à obra, uma vez que cada qual tem sua subjetividade e isso se

manifestará na arte, mesmo que indiretamente, e dessa maneira tal como numa caligrafia

o traço e estilo da aplicação trazem certa ‘’atmosfera’’ a composição fazendo com que o

leitor imerso na narrativa consiga assimilar com mais facilidade.

Embora seja um assunto de pouca relevância na maioria dos quadrinhos, o visual

ou ‘’estilo’’ de arte torna-se um ingrediente fundamental em sua concepção e em alguns

casos pode definir o teor da história. Vale lembrar que estilo como definido aqui, é o

7 Escrita imagética’’ é uma expressão que se refere aos quadrinhos, criada por Art Spiegelman, autor homônimo, cuja

obra máxima, MAUS, é a única HQ que teve o mérito de ganhar o prêmio Pulitzer de jornalismo.

24

’’visual’’ e a ‘’sensação’’ da arte a serviço de sua mensagem (EISNER, 2008).

Diante dessas considerações, decidimos que a narrativa de terror seria totalmente

narrada em preto e branco, o que não é muito comum se considerando as atuais

tecnologias que reproduzem com exatidão as cores propostas. A escolha em utilizar o

preto e branco, tornou a narrativa mais sombria e é utilizada com a finalidade de

intensificar as trevas, em uma cidade interiorana imersa em episódios aterrorizantes. Tal

recurso foi explorado nos quadrinhos de terror em décadas recentes e em filmes

expressionistas, estilo cinematográfico cuja temática primordial lida com forças malignas.

McCloud (2005, p. 192) afirma que a ausência das cores é natural, pois, ‘’nós

vivemos num mundo em cores, não em preto e branco. Os quadrinhos coloridos sempre

vão parecer mais ‘‘reais’’. Como o leitor de quadrinhos busca muito mais do que

‘’realidade’’, a cor nunca vai substituir inteiramente o preto e branco’’. Pode-se perceber a

utilização de áreas carregadas de sombra, na tentativa de causar certo mistério, e auxiliar

no entendimento da temática escolhida. O leitor encontra-se diante de uma ficção, na qual

imerso na trama e deixa que seu aspecto onírico o envolva no transcurso de toda a leitura.

E, para narrativas visuais deste gênero, uma das estratégias compositivas de

trabalhar as imagens em preto e branco seria a utilização de fortes contrastes tonais que

[...] ‘’no processo da visão, o contraste de tom é de importância tão vital quanto à

presença da luz. Através do tom, percebemos padrões que simplificamos em objetos com

forma, dimensão e outras propriedades visuais elementares. ’’ (DONDIS, 1997, p. 110).

Desse modo, a busca por estratégias que iriam proporcionar a obra uma dimensão

mais crível possível a qual, o gênero exige, iria facilitar, ou melhor, transmitir a

mensagem. Dondis novamente salienta que a mensagem é composta tendo em vista um

propósito que é ‘’[...] contar, expressar, explicar, dirigir, inspirar, afetar’’ (DONDIS, 1997, p.

131), e que, eventualmente, certas escolhas são feitas com o intuito de reforçar as

intenções expressivas, para que se possa obter o máximo das respostas.

É importante frisar que desde o inicio, o quadrinho O Evangelho Segundo o

Sangue foi concebido pelo escritor, Marcos Guerra, tendo este em mente o responsável

pela arte, pois acredita que poderia explorar os pontos fortes do ilustrador (este que

escreve) e potencializar o trabalho do roteiro, isto é, a arte como um meio de contribuir

com mais eficiência para a escrita.

Por conseguinte, o trabalho em equipe propiciou mais liberdade e esforço para que

25

a construção escrito-gráfica pudesse ganhar mais profundidade. Pois, como mostra

McCloud (2008) mesmo que você se una a alguém para criar quadrinhos, suas histórias

estarão excelentes se parecer que foram criadas com uma finalidade comum. Assim, foi

necessário escolher um traço específico em que a trama pudesse ganhar a atmosfera

aspirada na fase de pré-produção da HQ.

Assim, pode-se perceber que os traços utilizados pelo ilustrador tinham como

pretensão expressar personagens, por vezes melancólicos em um cenário fantasmagórico

e cheio de mistérios. A linha, aqui, tem papel fundamental para a construção do desenho,

de acordo com o teor da obra que se faz presente. Segundo Eisner (2008, p. 159):

Certas histórias gráficas são mais bem contadas num estilo apropriado ao conteúdo, e elas geralmente são bem-sucedidas ou falham nesse intuito. Normalmente, isso é um problema mais para o artista do que para o roteirista, pois isso exige que o artista adote um estilo apropriado à história. Existem alguns artistas capazes de utilizar qualquer estilo, mais isso exige a disciplina de um falsificador. Muitos artistas contemporâneos empenhados na narrativa gráfica têm um estilo de arte compatível com o conteúdo. Alguns conseguem dominar diferentes estilos para se pôr de acordo com a história.

Cabe aqui, a palavra estilo, num sentido de certa habilidade para expressar por

meio de linhas um gesto, uma expressão ou cena. Quer dizer, algo muito individual e

subjetivo do fazer artístico. Em meio às cenas bucólicas surgem figuras cujos traços em

preto e branco são acentuados por grandes áreas entintadas, tornando as composições

ainda mais sombrias. Nas palavras de Dondis (1997, p. 57):

A linha pode assumir formas muito diversas para expressar uma grande variedade de estados de espírito. Pode ser muito imprecisa e indisciplinada, como nos esboços ilustrados, para tirar proveito de sua espontaneidade de expressão. Pode ser muito delicada e ondulada, ou nítida e grosseira, nas mãos do mesmo artista. Pode ser hesitante, indecisa e inquiridora, quando é simplesmente uma exploração visual em busca de um desenho.

26

Figura 5 – Desenho: Acima se percebe como a escolha do grafismo tenta conceber certa ‘’atmosfera’’ sombria a arte da história. Fonte: Leandro Moura, 2011.

Novamente Eisner (2008), ressalta que isso resulta de uma habilidade particular

com o lápis ou o pincel, e que tem grande impacto sobre a qualidade de uma obra. Para

ele: ‘’o estilo pode ser considerado como uma forma de imperfeição’’ (EISNER, 2010,

p172). Na verdade, o que plasma na página de um quadrinho, assim como numa tela é o

olhar de um sujeito sobre um dado tema ou situação, ou seja, a maneira como o artista

vê/cria um mundo e o apresenta ao espectador. Eco (2008) diz que toda obra pode ser

chamada de típica, visto que revela, não só seus modos estilísticos, nos conteúdos que

forma e oferece uma visão pessoal da realidade, reconhecível por diversos fruidores

como o exemplo perfeito do seu próprio modo de ver o mundo. (v. figura 5).

O que de certa forma ocorre com a HQ em análise, uma vez que, somente estes

autores tratam do tema por um viés que outros provavelmente poderão dar outra

abordagem, isto é, seu modo particular. A esse respeito, Dondis afirma que ‘’o estilo é a

síntese de elementos, técnicas, sintaxe, inspiração, expressão e finalidade básica’’.

(DONDIS, 1997, p. 163). Portanto, assim tal como um pintor tem sua fatura particular e

reconhecível em seu meio, o artista de quadrinhos é de igual modo um individuo singular,

que detém um grafismo ou maneira de compor uma determinada sequência de imagens.

Então, em tal quadrinho de terror, a arte/imagem durante toda a trajetória tinha de

ser desenhada com um visual predominante, e que seria fundamental para melhor

entendimento da obra. Ainda Dondis (1997, p. 165) explica sobre a questão do estilo:

27

[...] a individualidade de uma obra não só é desejável, mas também inevitável. Todo ser humano tem um rosto único, impressões digitais únicas e um padrão único de esquadrejamento, e se pedíssemos a cada um que desenhasse um círculo, todos os círculos seriam únicos.

Diante dessas considerações pode-se afirmar que o traço ou grafismo do artista,

escolhido para desenhar a HQ, tornou-se essencial dada à temática de horror. O

ilustrador, por sua vez utiliza fortes contrastes tonais permitindo uma iluminação

dramática ou atmosfera na composição das cenas, e dessa maneira permite uma estética

gótica contemporânea,8 que predomina durante toda a narrativa visual, e conferindo uma

qualidade emocional recorrente ou certa tipicidade.

3.3 Introítus9 - Página de abertura

Para uma narrativa visual é interessante pensar como a imagem que abre os

acontecimentos será apresentada ao público, é um dever primordial na construção de

todo o projeto, e que, esta por sua vez será importante perante os próximos no transcurso

dos eventos a serem narrados. Portanto, ela pode ser entendida aqui como uma página

de referência para o leitor. Algo semelhante a um cartaz de um filme. É pertinente trazer a

afirmação de Eisner a respeito da utilização da primeira página de uma narrativa (2010, p.

64):

A primeira página de uma história funciona como uma introdução. O que e quanto entra nela depende do número de páginas que vêm a seguir. Ela é

8 A estética gótica contemporânea, denominada dark tem suas raízes no advento do Romance Gótico do

século XVIII, com o romance ‘’o Castelo de Otranto’’, de Horace Walpole (1764). Centrado na atmosfera romântico-lúgubre das poesias pré-simbolistas de Charles Baudelaire e Rimbaud, entre outros, de quem traz seu lirismo e atitude reflexiva. Ambiente noturno, vestimentas em negro, mistério: seu imaginário de características obscuras. Relaciona-se ao sobrenatural, ao que não é humano, ao ambíguo, e que articula uma vida além túmulo. O gótico, então, em uma manifestação estética jovem e dark, floresce em vários produtos culturais contemporâneos: cinema, música e literatura de Graphic Novels. 9 Os títulos que denominam as primeiras páginas de capítulo da narrativa O Evangelho Segundo o Sangue,

fazem alusão direta a obra do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, Réquiem. Introitus - que significa "entrada" em latim é o capítulo primeiro da série.

28

Figura 6 – Desenho: Introitus, abertura do primeiro capítulo da série de terror oitocentista e em seguida a página que apresenta de forma definitiva os acontecimentos da narrativa. Fonte: Leandro Moura, 2011.

um trampolim para a narrativa, e, para a maior parte das histórias, estabelece um quadro de referência. Se bem utilizada, ela prende a atenção do leitor e prepara a sua atitude para com os eventos que se seguem. Ela estabelece um ‘’clima’’. Ela se torna uma página de apresentação, mais do que uma simples primeira página, quando o artista a planeja como uma unidade decorativa.

Diante dessas considerações, tivemos a intenção de que cada capítulo da narrativa

seria estabelecido com sua própria imagem de abertura, servindo de preparação para os

eventos subsequentes, portanto, a arte da composição que abre a história poderia de

algum modo servir como quadro referencial. Portanto, a imagem de abertura ou dita

primeira página, teve como função básica iniciar a narrativa, e apresentar ao leitor por

meio dos elementos gráficos na composição o que seria tratado durante todo o percurso

narrativo. Para isso, o planejamento cuidadoso da cada uma das imagens selecionado

para abrir a narrativa foi fundamental para estabelecermos o palco da HQ, e ambientar o

leitor. (v. figura 6).

29

Em todos os capítulos que seguem a história, existe uma imagem específica e que

corresponde à problemática do mesmo, e a escolha por uma imagem, como mostrada a

figura acima semelhante a uma fachada, tem a finalidade de colocar o leitor dentro da

narrativa. O motivo gráfico empregado estabelece o clima de suspense que predomina na

escrita imagética.

3.4 Encapsulamento de imagens - Sequências

Depois de feito todo o processo de pesquisa e elaboração do roteiro, assim como a

concepção visual dos elementos pertinentes a história, chegou o momento de iniciar a

produção do quadrinho em si. Esta tarefa é feita a partir da articulação entre palavra e

imagem, porém, para que possa obter sucesso no que pretende transmitir, o quadrinista

deve escolher as imagens/momentos que irão preencher os quadros de sua narrativa.

Diante disso, a função básica é ‘’encapsular’’ ou ‘’congelar’’ as imagens no fluxo narrativo,

e, por conseguinte, situar as ações, pensamentos, locações, personagens, enfim, todos

os elementos indispensáveis à escrita imagética. Segundo Eisner (2010, p. 39):

[...] Para lidar com a captura ou o encapsulamento desses eventos no fluxo da narrativa, eles devem ser decompostos em segmentos sequenciados. Esses segmentos são chamados quadrinhos, que não correspondem exatamente aos quadros cinematográficos. São parte do processo criativo, mais do que resultado de um tecnologia.

Encapsular significa, portanto, estabelecer a posição do leitor perante os

acontecimentos, e indica certa temporalidade, que dizer, ele informa em que momento a

ação ocorre, logo, indica o tempo pressuposto entre uma cena e outra. Nesse sentido, é

fundamental saber escolher os momentos certos de forma que, seja possível captar a

imagem que melhor represente a situação. Por outro lado, é importante considerar a

transição10 de cenas, e que, esta por sua vez é de todo modo tida como parte do

10

Scott McCloud, em seu livro Desenhando Quadrinhos (2008), define seis tipos de transição: 1. Momento a momento, uma única ação retratada em uma série de momentos. 2. Ação a ação, Um único sujeito (pessoa, objeto etc.) em uma série de ações. 3. Sujeito a sujeito, uma série de sujeitos alternantes dentro de uma única cena. 4. Cena a cena, transições entre distâncias significativas de tempo e/ou espaço. 5. Aspecto a

30

enquadramento do tempo. Segundo Moore, (1988) o movimento de transição de uma

cena para outra, é um dos mais intricados e intrigantes elementos de todo processo de

escrita, nela, o artista tem de lidar com a constante variação de lugar e tempo, sem forçar

o fluxo continuo da história. Para ele, a transição tratada de maneira errada pode

‘’despertar’’ o leitor para a realidade cedo demais o levando-o a perder o interesse pela

narrativa. Aqui entre em cena a habilidade do artista em apresentar uma sequência que

venha valorizar o enredo. McCloud (2005, p. 92), diz que [...] ‘’Nenhuma outra arte oferece

tanto ao seu público e exige tanto dele. [...] acho um erro considerá-los uma mistura de

artes gráficas e ficção em prosa. Entres os quadros, acontece uma magia que só o

quadrinho consegue criar’’. Assim, nota-se, em algumas páginas da história, uma

relevância maior nas transições de cenas momento a momento, nas quais, uma única

ação é representada em uma série de momentos que é ‘’útil para retardar a ação,

aumentando o suspense, capturando pequenas mudanças e criando um movimento

cinematográfico na página’’ (MCCLOUD, 2008, p. 16). Este mecanismo tornou-se

necessário, pois numa narrativa gráfica deste gênero, entregar os fatos rapidamente ao

leitor poderia possivelmente comprometer a qualidade da obra. Abaixo, por exemplo, fez-

se uso de quadros de formato muito semelhante em tamanho, com o intuito de manter o

ritmo e a passagem do tempo no fluxo narrativo. (v. figura 7).

aspecto, Transições de um a outro aspecto de um lugar, ideia, ou estado de espírito. 6. Non Sequitur, Uma série de imagens e/ou palavras aparentemente não relacionadas e absurdas.

Figura 7 - Desenho: Cadências no ritmo narrativo com o objetivo de ‘’marcar’’ o ritmo. Fonte: Leandro Moura, 2011.

31

Figura 8 – Desenho: Nesta página tem-se o exemplo da transição sujeito a sujeito, com o intuito de dinamizar a narrativa. Fonte: Leandro Moura, 2011.

Além disso, tivemos a preocupação de inserir as transições de sujeito a sujeito, que

‘’são igualmente importantes, eficientes para levar a história adiante, alternando os

ângulos para dirigir a atenção do leitor conforme necessário’’(id. ibid.). Vale salientar que

esta última transição pode conduzir o narrador gráfico à escolha do enquadramento das

cenas, já que neste procedimento ação se dá por meio das alternâncias de personagens.

A imagem abaixo (v. figura 8), por exemplo, mostra uma sequência a qual traz a

personagem Elena sendo pedida em casamento pelo seu amado Hugo. Para tanto, a

ação é mostrada de acordo com alternância dos personagens, permitindo perceber a

reação de ambos em cena, reforçando a importância desta na página.

32

Outro elemento de igual importância nesta sequência em particular, é a ‘’quase

ausência’’ de diálogo11, e que [...] ‘’esse equilíbrio é dinâmico. Por vezes, as palavras

assumem a frente, outras vezes são as imagens... Mas ambas atuam juntas para impelir a

história para frente’’ (MCCLOUD, 2008, p. 128). Então, pode-se considerar que a arte

neste caso, foi executada a serviço da narrativa gráfica, e que o texto teve a tarefa de

complementar à sequência das imagens além de auxiliar a passagem do tempo. “A

disposição dos balões que cercam a fala [...] contribui para a medição do tempo. Eles são

disciplinares, na medida em que requerem a cooperação do leitor” (EISNER, 2010, p. 24).

Saber expressar a passagem do tempo numa sequência é, pois, essencial para o

sucesso de qualquer narrativa visual, e tal processo exige também do leitor certa

habilidade perceptiva, uma vez que este precisa preencher as lacunas entre um plano e

outro (anterior e posterior) que o leva a sequência. Aqui, emprega-se o ‘’timing’’, que é o

uso dos elementos do tempo para obtenção de uma mensagem ou emoção, a disposição

dos quadrinhos passa a ser elemento fundamental’’ (id. p. 24). É, em si, a dimensão

fundamental desta linguagem, já que se refere à interligação de tempo, espaço e som,

sendo responsável por dar ritmo ou cadência a narrativa, ou ainda intensificar uma ação

de acordo com o plano narrativo construído. Isso significa dizer que cada quadrinho está

de certa forma, num tempo e um espaço, de forma exata, subordinado ao enunciado

geral. O espaço entre os quadros ou, como afirma McCloud, sarjeta, “é responsável por

grande parte da magia e mistério que existem na essência dos quadrinhos. É aqui, no

limbo da sarjeta, que a imaginação humana capta duas imagens distintas e as transforma

em uma única ideia” (MCCLOUD, 2005, p. 66).

Segundo o autor, este espaço indica que deve existir uma conexão entre as

vinhetas. “Os quadros das histórias fragmentam o tempo e o espaço, oferecendo um ritmo

recortado de momentos dissociados. Mas a conclusão nos permite conectar esses

momentos e concluir mentalmente uma realidade contínua e unificada” (id. p. 67).

Outra particularidade da narrativa de terror oitocentista está na utilização, em

determinados momentos, de quadros que ocupam a página por completo, como no início,

onde mostra uma silhueta que caminha próxima a um casarão (v. figura 9). A imagem de

certa forma parece colocar o leitor a porta da própria narrativa gráfica, o que faz pensar

11 O mangá Gon, criado por Masashi Tanaka, caracteriza-se pela ausência de balões, narrador,

onomatopéias ou qualquer outro tipo de linguagem escrita, acompanhado de um fluxo de ação cinematográfico, onde se destaca as ilustrações com rigor realista.

33

Figura 9 – Desenho: página inteira reforça a pausa. Ao lado, à direita, detalhe da mesma página; as nuvens são formadas pela palavra sangue repetidas vezes. Fonte: Leandro Moura, 2011.

como se estivesse literalmente entrando na HQ. Além disso, a utilização de páginas

nesse formato permite ao leitor ‘’respirar’’, ou seja, apreciar com mais cuidado uma

composição, permitindo a observação mais cuidadosa de uma figura na qual a aplicação

de certos detalhes podem chamar atenção para algo importante em cena.

Conforme Eisner, quadros de uma página inteira permitem diminuir o ritmo da

leitura, e assim, o leitor levará um tempo maior para interpretar o quadro. Ele ainda

salienta ‘’que, quando o leitor vira uma página, ocorre uma pausa. Isso permite uma

mudança de tempo, um deslocamento de cena, é uma oportunidade de controlar a

atenção do leitor’’ (EISNER, 2010, p.65). É interessante compreender que as escolhas

destes momentos no fluxo narrativo podem interferir em outro ponto importante no que

34

Figura 10 – Desenho: Nesta página o leitor pode experimentar a sensação da ‘’entrar’’ HQ, pois o ângulo inclinado favorece a interação. Fonte: Leandro Moura, 2011.

concerne a produção de um quadrinho. E a isto, damos o nome de enquadramento. Nele,

o quadrinista decide qual é realmente o foco da cena. Na narrativa em análise, podemos

perceber a existência de várias páginas que contém sequências bem convencionais, com

todos os quadros de tamanhos relativamente iguais, ao gerar certa continuidade e ritmo

de leitura à narrativa. Contudo, ao mesmo tempo é possível constatar a exploração de

diferentes dimensões para a composição dos quadros. McCloud (2008, p.19) afirma que:

[...] ‘’enquadramento é o estágio em que você decide de quão perto enquadrar uma ação pra mostrar todos os detalhes pertinentes ou quanto recuar para que o leitor saiba onde uma ação está ocorrendo e, talvez, proporcionar-lhe ao mesmo tempo a sensação de estar lá’’.

A variação do tal enquadramento poderia criar efeitos interessantes, se pensarmos

como determinado ângulo poderia funcionar no decorrer da narrativa. Ao olhar a página

abaixo, a qual é formada por um único quadro, tem-se a impressão de estar num imenso

buraco negro e que o próprio leitor é quem está sendo sepultado. (v. figura 10).

35

Assim, esta imagem em particular tornou-se o ponto de partida para a sequência, a

qual é estruturada em sua maior parte, sob este ângulo de visão, permitindo o leitor estar

mais próximo aos desdobramentos da narrativa, e não apenas acompanhar como um

mero espectador que vê, mas que participa da ação. Isso de certa forma propicia um

envolvimento maior com a narrativa. Eisner (2010, p. 92) afirma ‘’que a reação da pessoa

que vê uma determinada cena é influenciada pela sua posição de espectador. Ao olhar

uma cena de cima, o espectador tem uma sensação de pequenez, que estimula a

sensação de medo.

Em síntese, é possível dizer que este trabalho assemelha-se a escolha dos

ângulos de câmera em fotografia ou até mesmo numa filmagem, onde uma escolha ruim

de imagens pode afetar toda a compreensão do leitor. Isso nos faz lembrar disciplinas

como de TV e vídeo, a qual possibilitou a oportunidade de exercitar os conceitos

pertinentes a narrativas transmitidos durante as aulas.

Não menos importante foi escolher o fluxo, etapa responsável pelo arranjo

espacial, e que tem a função básica de guiar o leitor durante o percurso de sua narrativa,

e saber que [...]’’sua escolha dependerá do pacto implícito entre artistas e leitores,

segundo o qual os quadrinhos são lidos primeiro da esquerda para a direita, e então de

cima para baixo12, e de que dentro de cada quadrinho os mesmos princípios se aplicam a

legendas, balões de fala’’ (MCCLOUD, p.32). Abaixo, (figura 11) tem-se o exemplo de

como o arranjo dos quadros foi utilizado para retardar a ação, permitindo acentuar o clima

de mistério e terror ao quadrinho.

12

No ‘’mangá’’ ou quadrinho japonês, a leitura é feita da direita para a esquerda.

Figura 11 – Desenho: fluxo de leitura, de cima para baixo, da esquerda para a direita. Fonte: Leandro Moura, 2011.

36

Contudo, em alguns casos tomamos a liberdade de seguir uma rota mais

experimental. Por fim, a reprodução dos elementos dentro do quadrinho, e o arranjo das

imagens, que por sua vez associadas a outras, formam a ‘’gramática’’ básica a partir da

qual se constrói este quadrinho de terror.

3.5 Formatos de publicação: ‘’Aberto’’

Uma coisa é certa: os quadrinhos, desde o seu inicio, sempre foram criados para

fazer parte de uma tira diária, revista ou jornal, mas, com o advento da internet, os rumos

da arte sequencial mudaram um pouco. Isto é, a página impressa como principal veiculo

para a distribuição de quadrinhos hoje tem de competir com as webcomics. Este formato

caracteriza-se pela veiculação diretamente na internet, que iniciou funcionando apenas

como meio de divulgar as HQs, mas com o passar dos anos e com o avanço e a

popularidade da internet, tornou-se independente, dando, a possibilidade para novos

autores apresentar suas criações e conquistar seu público. Além disso, acabou por ser

uma alternativa financeiramente viável, uma vez que independe dos custos de impressão,

e ainda potencializa a arte sequencial para o público em nível internacional. Apesar dos

inúmeros tipos de webcomics, desde uma página, similares às tiras cômicas de jornal, até

histórias mais elaboradas com um número significativo de páginas ou até mesmo

sofisticadas experimentações com arte digital. O formato mais frequente deste veículo é

de página única com links para as páginas anteriores e posteriores.

Não obstante, existem formatos apresentados como quadrinhos convencionais,

tendo várias páginas no lugar das simples tiras, caso este da presente HQ, que a partir

desse princípio foi possível, na fase de planejamento, pensar em como poderíamos

ajustar a composição da página à tela, sem comprometer o fluxo de leitura. Eisner

argumenta que ‘’[...] A convenção de leitura dos quadrinhos é similar tanto na forma

impressa quanto na digital’’ (EISNER, 2008, p. 165).

Diante disso, pensou-se disponibilizar inicialmente a história de terror intitulada O

Evangelho Segundo o Sangue, neste último formato, uma vez permitiria explorar todo o

potencial da narrativa, que ironicamente foi desenvolvido a maneira tradicional, ou seja,

lápis e arte-final sobre papel que posteriormente recebeu o devido tratamento digital.

McCloud (2008, p. 36) afirma que ‘’ seja qual for à forma de seus quadrinhos, desde que

navegar por eles seja processo simples e intuitivo. Esse processo ficará transparente para

37

o leitor e o fluxo de leitura pode prosseguir ininterrupto’’. De imediato, serviu perfeitamente

a nossas intenções, uma vez que em curto prazo teríamos gastos reduzidos e

divulgaríamos o projeto com mais rapidez na internet, embora não tenhamos descartado a

possibilidade de publicar futuramente numa versão impressa13.

Outro fator de suma importância foi a total independência, pois não havendo

influência direta de editoras, nós como criadores, tínhamos total liberdade para decidir o

que deveria ser posto numa cena ou diálogo, por exemplo, e assim editamos a obra sem

os empecilhos que, muitas vezes, ocorrem quando outro indivíduo, que não compreende

a natureza do projeto, está envolvido.

E é claro, a relação mais dinâmica entre criadores e leitores, é uma das vantagens

que compete ao formato de webcomic, permitindo perceber se a obra está ou não

agradando ao público alvo por meio de blogs e fóruns de discussão (logo após o término

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O EVANGELHO SEGUNDO O SANGUE é efetivamente publicada posteriormente numa versão impressa dentro do projeto primeira edição, em Fevereiro de 2011, com o apoio da Fundação José Augusto, o qual possibilitou a novos artistas divulgarem seus trabalhos e seguirá com os próximos episódios inéditos em futuras edições independentes.

Figura 12: Desenho: Páginas do capítulo 4, COLLECTA, disponibilizadas online na revista

K-ótica. Fonte: Leandro Moura, 2011.

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de cada edição da webcomic K-ótica tem-se a opção de comentar livremente qualquer

narrativa, com o intuito de aproximar os artistas e leitores). O potencial do formato é

atestado por Eisner (2008, p. 168):

Os Webcomics cresceram tanto que hoje são uma área importante para a expressão artística na internet. Pioneiros da narrativa gráfica on-line têm mostrado o potencial criativo da internet, enquanto sites comerciais conseguiram desenvolver modelos de negócios flexíveis o bastante para apresentar uma variedade de estilo de Webcomics e sistemas de entrega e, ao mesmo tempo, satisfazendo o leitor e as expectativas do usuário ou cliente.

Deste modo, sendo uma publicação independente, a grande preocupação dos

criadores é a satisfação do seu público. Temos visto recentemente artistas de renome, e

outros que seguiram o mesmo caminho, resolvendo publicar seus trabalhos em blogs

próprios, como por exemplo, Malvados, de André Dahmer, que iniciou em 2001 com seu

humor ácido, chegando a participações em publicações brasileiras de destaque e

lançando livros. Em suma, o caminho autoral para publicar de forma independente,

parece que é a alternativa mais satisfatória para novos criadores que querem não apenas

buscar seu espaço perante o panteão de autores há tempos já consagrados, mas também

chamar atenção para suas ambições e se possível que o próprio leitor faça parte dessa

jornada.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desta escrita, constato que minha intenção, na qualidade de coautor, foi ao

menos tentar transmitir, da maneira mais honesta possível, como pude resolver a questão

da transposição das páginas da narrativa, O Evangelho Segundo o Sangue, realizada em

parceira com o amigo e roteirista Marcos (Guerra). E de fato foi muito importante no que

concerne à escolha em trabalhar em equipe, e tenho plena convicção de que isso foi

fundamental para a constituição do projeto. Também espero que o processo criativo desta

narrativa tenha sido claro o suficiente, ao mostrar, no corpo do texto, como consegui lidar

com fatores pertinentes à pesquisa, seja textual ou imagética, e que possibilitaram a

criação de elementos tais como: personagens, ambientação, sequências, enquadramento,

ou seja, dar a devida importância das técnicas narrativas introduzidas com o intuito de

expor uma noção das pequenas peças do intricado quebra-cabeças que auxiliam a

perceber os mecanismos envolvidos na construção da arte sequencial.

Apesar de não ter partido dos conhecimentos oriundos de uma disciplina em

particular, para compreensão da linguagem dos quadrinhos, devo admitir que o

aprendizado fornecido por outras, como Fundamentos da Linguagem Visual, Desenho de

Observação, Pintura, TV e Vídeo, e Cinema proporcionaram o constante aprimoramento

de técnicas inseridas na construção de uma história em quadrinho.

Vale salientar, como foi dito no início do trabalho, que não existe um modelo rígido

de fazer um quadrinho. Cada criador/autor decide sua metodologia de trabalho de acordo

com a natureza de um determinado projeto. Foi visto todo o planejamento que envolveu a

criação da trama, seus mecanismos, o que inevitavelmente levou a perceber como isto

requer certa disciplina, e que a idéia segundo a qual fazer quadrinhos é algo intuitivo, não

passa, na verdade, de uma grande falácia, ainda que por vezes muitas pessoas ou até

mesmo alguns quadrinistas entendam como algo semelhante. É importante entender que,

para mudar os quadrinhos, nós precisamos mudar a maneira de pensar sobre sua

criação. Por fim, este trabalho é apenas o inicio do estopim que tenho planejado durante o

tempo em que continuo a construir a narrativa, mas, por ora, ele se interrompe aqui

nestas últimas linhas, por necessidade de cumprir o calendário acadêmico.

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5. BIBLIOGRAFIA

BIBE-LUYTEN, Sônia M. O que é História em quadrinhos. São Paulo: Editora

Brasiliense, 1985.

CARROLL, N. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campinas: Papirus, 1999. CIRNE, Moacy A escrita dos quadrinhos. Natal: Sebo Vermelho, 2005.

---------------------. História e crítica dos quadrinhos brasileiros. Rio de Janeiro:

Europa/FUNARTE, 1990.

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 2008.

EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial: princípios e práticas do lendário cartunista 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

-------------------. Narrativas Gráficas. 2ª Ed. São Paulo: Devir, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31ª.

ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

LAPLATINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense,

2003.

MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: M. Books, 2005.

-------------------. Desenhando Quadrinhos: São Paulo: M. Books, 2008.

MOORE, Allan. Como escrever estórias em quadrinhos. Parte um em Comics Jornal,

119, Janeiro de 1988, p. 91-95.