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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES LICENCIATURA EM HISTÓRIA PROCESSO MIGRATÓRIO DO VALE DO TAQUARI PARA O NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL DÉCADAS DE 1930 E 1940 Charles Cassiano Gerhard Lajeado, julho de 2014

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CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES

LICENCIATURA EM HISTÓRIA

PROCESSO MIGRATÓRIO DO VALE DO TAQUARI PARA O NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO

SUL – DÉCADAS DE 1930 E 1940

Charles Cassiano Gerhard

Lajeado, julho de 2014

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Charles Cassiano Gerhard

PROCESSO MIGRATÓRIO DO VALE DO TAQUARI PARA O NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO

SUL – DÉCADAS DE 1930 E 1940

Monografia apresentada na disciplina de

Trabalho de Conclusão de Curso II, do

Curso de Licenciatura em História, do Centro

Universitário Univates como parte da

exigência para a obtenção do título de

Licenciado em História.

Orientador: Prof. Ms. Mateus Dalmáz

Lajeado, julho de 2014

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RESUMO

Entre as décadas de 1930 e 1940 muitas famílias migraram do Vale do Taquari-RS para o noroeste do estado do Rio Grande do Sul, área também chamada de Alto Uruguai. Os motivos da migração se constituem no objeto de análise desta monografia. Como hipótese, considera-se que fatores econômicos e demográficos foram as principais causas da onda migratória. A ocupação do Alto Uruguai não apenas representou uma alternativa para a superação das questões econômicas e demográficas que levaram à migração, como também proporcionou adaptações dos migrantes com o ambiente para o qual se deslocaram. Para o exame do tema são importantes os referenciais teóricos e metodológicos de Thompson (1992) e Félix (1998) relativos à memória e à história oral.

Palavras-chave: Migração. Economia. Demografia. Alto Uruguai-RS. Vale do

Taquari-RS.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 5

1 OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO DO ALTO URUGUAI-RS ...................................... 8

1.1 A ocupação por imigrantes europeus ............................................................... 8

1.2 A ocupação por indígenas e caboclos ............................................................ 11

1.3 Formação da atual sociedade Rio-Grandense ................................................ 12

1.4 Relações entre os migrantes e o ambiente ..................................................... 16

1.5 Recursos naturais ............................................................................................. 19

1.6 O progresso sobre trilhos ................................................................................ 20

2 RAZÕES DEMOGRÁFICAS E ECONÔMICAS ..................................................... 23

2.1 Razões demográficas e econômicas ............................................................... 23

2.2 Propaganda ........................................................................................................ 28

2.3 Rede viária, escolas e hidrografia do Alto Uruguai. ....................................... 31

2.4 Transformação ambiental ................................................................................. 33

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 36

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 38

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INTRODUÇÃO

Ao longo da história do Brasil, ocorreram migrações internas no território

nacional, motivadas por diversos fatores políticos, econômicos, sociais e culturais.

No Brasil migraram inicialmente indígenas, primeiro para garantir a própria

subsistência, depois, com a chegada dos europeus, pelas necessidades

mercantilistas do uso da mão de obra escrava, motivo pelo qual também houve as

ondas migratórias de escravos negros. Com a redução do tráfico negreiro a partir de

1870 e a abolição da escravatura em 1888, iniciou-se outro grande fluxo migratório,

o dos europeus, chamados de braços livres para a lavoura em substituição aos

escravos. A pesquisa aqui desenvolvida permite que se conheça um pouco mais

sobre migrações, um processo importante na constituição do estado, como também

o impacto socioambiental promovida por estas ondas migratórias.

Neste trabalho, busca-se analisar os motivos da migração de habitantes do

Vale do Taquari-RS para o noroeste do estado do Rio Grande do Sul, nas décadas

de 1930 e 1940. Através de fontes orais e bibliográficas, questiona-se quais teriam

sido os fatores que promoveram tal onda migratória.

Considera-se como hipótese, em primeiro lugar, que a migração de habitantes

do Vale do Taquari para o noroeste do estado ocorreu por motivos econômicos, uma

vez que a busca por novas terras se relaciona com a possibilidade de obter áreas

maiores, férteis e baratas, com relevo e solo mais apropriado para a agricultura. Em

segundo lugar, percebe-se que a migração ocorreu por razões demográficas, já que

o crescimento demográfico das “antigas colônias” representou menor espaço para a

comunidade.

O resgate de fragmentos da história da ocupação do território do Rio Grande

do Sul, através de lembranças e memórias, traz a tona determinadas situações

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marcantes na vida das pessoas que participaram do processo migratório. Uma leva

de pessoas em busca de novos horizontes e melhores condições de vida se

configurou num importante momento na história rio-grandense.

Thompson (1992) afirma que a história oral pode dar grande contribuição para

o resgate da memória. Tal método se mostra bastante eficiente para a realização de

pesquisas em diferentes áreas, pois preserva a memória física e espacial, bem como

do indivíduo e da sociedade. O resgate histórico através de depoimentos orais

... pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história. Enquanto os historiadores estudam os atores da história à distância, a caracterização que fazem de suas vidas, opiniões e ações sempre estará sujeita a ser descrições defeituosas, projeções da experiência e da imaginação do próprio historiador: uma forma erudita de ficção. A evidência oral, transformando os “objetos” de estudo em “sujeitos”, contribui para uma história que não é só mais rica, mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira (Thompson, 1992 p.137).

Loiva Otero Felix (1998) segue na mesma linha de raciocínio de Thompson e

afirma que a memória recria o passado e é a única forma de detê-lo. O passado não

deve ser visto como um objeto morto, e sim, como uma experiência de vida

concretizada. Vale esclarecer que o critério da escolha dos entrevistados se dá pela

relação de suas vivências pessoais com o objetivo da pesquisa, que consiste em

realizar entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre os

acontecimentos migratórios. Para a contextualização histórica foram consultadas

obras de autores que tratam da ocupação do noroeste do estado, como Paulo

Afonso Zarth (1997, 1998 e 2002), Marcus Gerhardt (2009) e Martin Fischer (2002).

A monografia está estruturada em dois capítulos: o primeiro, intitulado

“Ocupação do território do Alto Uruguai-RS”, trata da contextualização da ocupação

do noroeste do Rio Grande do Sul ou território do Alto Uruguai por imigrantes

europeus, indígenas e caboclos no século XIX, com a intenção de caracterizar, em

geral, a formação da sociedade rio-grandense e, em particular, a área para a qual

migraram diversas famílias do Vale do Taquari-RS em meados dos séculos XIX e

XX. Tal abordagem é de fundamental importância, uma vez que os depoimentos

orais coletados sobre este processo precisam ser contextualizados para sua melhor

compreensão.

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O segundo capítulo, intitulado “razões demográficas e econômicas”, contém a

análise dos depoimentos orais de descendentes e de quem efetivamente participou

do processo migratório nas décadas de 1930-40. Neste capítulo são examinadas as

razões demográficas e econômicas que fizeram com que os habitantes do Vale do

Taquari-RS migrassem para o noroeste do Rio Grande do Sul. Vale lembrar que

também são analisadas questões socioeconômicas e ambientais na instalação

destas famílias no Alto Uruguai. As narrativas são interpretadas com base nos

conceitos de memória e corresponde à metodologia da história oral.

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1 OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO DO ALTO URUGUAI-RS

O objetivo deste capítulo é contextualizar a ocupação do noroeste do Rio

Grande do Sul ou território do Alto Uruguai por imigrantes europeus, indígenas e

caboclos no século XIX, com a intenção de caracterizar, em geral, a formação da

sociedade rio-grandense e, em particular, a área para a qual migraram diversas

famílias do Vale do Taquari-RS em meados dos séculos XIX e XX. Também são

examinados aspectos da relação entre os habitantes e o ambiente. Para tanto, foram

utilizados fundamentalmente os livros de Zarth (1997, 1998, 2002), Júnior (1953),

Boeira e Golin (2006), Correa (2006), Gerhardt (2009), Dean (2007), Dias (1986),

Carrazzoni (1990) e Heisesfeld (2007).

1.1 A ocupação por imigrantes europeus

O limite ao norte e oeste do Alto Uruguai é o rio Uruguai, uma fronteira natural

de difícil travessia por seu volume de água e profundeza. Ao norte do estado

Gaúcho se encontra o estado de Santa Catarina e a oeste a Argentina:

Afora isso, na margem oposta do rio não havia motivos econômicos que pudessem tornar possível um avanço dessa natureza [povoados] além do rio. Em tal margem, a população era rarefeita e praticamente inexistiam povoados que pudessem se tornar motivo de alguma ligação maior em termos econômicos. As regiões próximas ao rio Uruguai, em grande parte de sua extensão tanto de um lado como de outro, eram cobertas de densa floresta e no máximo havia estradas pelas quais eram conduzidas as tropas de gado para as feiras de Sorocaba, em São Paulo (Zarth, 1998, p. 130).

A fronteira política com os países da Argentina e Uruguai teve um papel

importante para o Rio Grande do Sul. Os limites políticos causaram preocupação

para o governo brasileiro e gaúcho, pois o fantasma de um conflito no território

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rondava os dirigentes, o que de fato se concretizou várias vezes durante o século

XIX. O povoamento da fronteira parecia, assim, uma estratégia importante para a

proteção do território: “a política das autoridades nesse sentido consistia em criar

núcleos estratégicos de povoamento ao longo da fronteira e assim garantir-se de

uma eventual disputa por parte da Argentina e Uruguai” (Zarth, 1998, p 18). Essa

preocupação faz sentido se lembrarmos das disputas pelo território das Missões no

início do século XIX. Zarth (1998) afirma que em “1824, os estrategistas oficiais

tentaram fundar uma colônia com imigrantes alemães em São João das Missões. O

projeto fracassou pelo isolamento da região em relação ao mercado agrícola, entre

outras causas”. O mesmo autor ainda considera que “o extremo sul do Brasil, apesar

de sua economia secundária no contexto brasileiro, foi muito importante em termos

políticos e militares diante de sua condição estratégica na conflituosa bacia do Prata

(Zarth, 2002, p.31).

O extremo sul do Brasil não despertou interesse na colonização portuguesa

nos primeiros séculos de colonização. A falta de interesse se justifica pela

localização geográfica, longe dos mercados consumidores. A região não possuía

metais preciosos, o clima temperado não era adequado para o cultivo de produtos

tropicais e o território era ocupado por grupos indígenas.

Os primeiros europeus a explorarem o território foram os padres jesuítas e

depois os bandeirantes, mais tarde devido à possibilidade de comércio com o Vice-

Reinado do Prata, o extremo sul se tornou estratégico do ponto de vista militar e

comercial: “com objetivos claramente contrabandistas, o governo português fundou,

em 1680, a colônia de sacramento, no atual Uruguai, em frente a Buenos Aires”

(Zarht, 2002, p. 50). Este episódio gera conflitos com a coroa espanhola e em 1737

o governo português deu início à colonização oficial do território do Rio Grande de

São Pedro: “apenas no século XVIII, o Rio Grande recebeu efetiva atenção da coroa

portuguesa e com objetivos geopolíticos: o Sul era porta de entrada natural para um

possível ataque castelhano ao Brasil” (Zarht, 2002, p. 50).

Com o desfecho da Guerra Guaranítica a favor dos portugueses e espanhóis,

os jesuítas expulsos deixaram para traz o gado vacum, introduzido no estado em

períodos anteriores pelos mesmos. O gado solto procriou rapidamente:

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O produto que iria atrair milhares de aventureiros das províncias ao norte e transformar os militares em prósperos estancieiros. O gado foi à riqueza que viabilizou economicamente a ocupação europeia, a partir do século XVIII, e deu origem a uma poderosa classe de latifundiários dedicados à pecuária (Zarht, 2002, p. 51).

O fato citado anteriormente teve grande influência na estrutura agrária

gaúcha. Os campos naturais ocupavam o sul do território, palco de vários conflitos

dentre os quais a Guerra Guaranítica (1756), a dos portugueses contra os

castelhanos que ocuparam Rio Grande (1763 a 1776), a disputa pelo território do

Uruguai (1810 a 1828), a Guerra dos Farrapos (1835 a 1845), guerra contra a

Argentina (1851 a 1852) e Guerra do Paraguai (1864 a 1870). Este campo de

conflitos quase interruptos constituía numa forte presença militar no estado e que

muito influenciou na ocupação da própria província.

A apropriação das terras gaúchas por militares, no século XVIII, tem grande

relação com militares encarregados de defender a tumultuada região. As

autoridades incentivavam a instalação de estâncias e lavouras para os soldados a

fim de garantir a povoação da área, garantindo-a para o reino de Portugal.

As primeiras tentativas de instalação nos moldes de pequenas propriedades

no Rio Grande do Sul tiveram início com a imigração açoriana em meados do século

XVIII. Mais adiante foram instalados colonos imigrantes alemães em São Leopoldo,

sob os mesmos moldes de pequena propriedade dedicada à agricultura: “uma

população densa daria garantia de posse do território e fornecia soldados e

alimentos” (Zarht, 2002, p. 69). Estes pequenos agricultores, dedicados à produção

de alimentos de primeira necessidade, foram de extrema importância para a

economia rio-grandense.

Nas áreas de campos naturais do Rio Grande do Sul, acontecerá como no

nordeste açucareiro, onde a cana-de-açúcar dominava, expulsando produtos de

subsistência e o gado. No Rio Grande do Sul não foi diferente. O gado predominava

sobre a agricultura de subsistência, de acordo com Zarth (1997):

O gado foi expulso para o sertão inóspito em favor da cultura da cana-de-açúcar, o gado sulino foi privilegiado em detrimento da agricultura, essa, no caso, expulsa para as florestas inóspitas. O gado no sul era a atividade nobre e o poder político era comandado pelos pecuaristas que determinavam o processo de ocupação das terras gaúchas. A agricultura a cargo de pequenos lavradores nas áreas florestais e a pecuária a cargo de grandes fazendeiros nas zonas de campo formavam uma espécie de

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divisão do trabalho na economia local. À agricultura, nesta divisão, cabia um papel inferior diante da nobreza pastoril (p.18).

Percebe-se que no nordeste do país se priorizava culturas de alta

lucratividade, como a cana-de-açúcar. No Rio Grande do Sul não foi diferente, o

gado vacum, comercializado por tropeiros nas feiras de São Paulo, dava grande

retorno aos estancieiros gaúchos. O gado era o carro-chefe da economia e exigia

menos trabalho e capital que a agricultura comercial. Outro fator a favor da criação

de gado era que as adversidades eram menores, pois além de auto transportar-se

para as feiras de Sorocaba, o planalto gaúcho situava-se exatamente no caminho

das tropas que procediam de regiões ainda mais ao sul, portanto mais distantes.

Com o rápido progresso dos estancieiros estes se tornaram politicamente fortes.

1.2 A ocupação por indígenas e caboclos

As áreas de campo e mata do noroeste do estado eram ocupadas

inicialmente por populações indígenas de maioria da etnia caingangue e de menor

dimensão guarani. Estas populações, conforme Boeira e Golin (2006, p. 504), eram

consideradas fronteiras internas pelos governantes da época, isto é, a existência

real de uma nação dentro do estado nacional.

No noroeste do estado ocorreu o processo de expansão, deslocando

populações de colonos das antigas colônias, somados aos novos imigrantes

europeus, para os territórios indígenas. Consequência prática deste processo tem

sido a expulsão de muitos povos de suas terras, segundo Boeira e Golin (2006):

São características da frente pioneira as grandes campanhas de usurpação caingangue/guarani promovidas pelos governos imperial e provincial – e depois pelos estadual republicanos, utilizando ordens religiosas, contingentes militares, milicianos e de bugreiros, articulando uma forma de ocupação estatal e privada de colonização (p. 506).

Como exemplo desta ocupação do território caingangue/guarani, e que ainda

persiste, foi a criação dos aldeamentos, para confinar os indígenas, e o resultado

disto são: a perda de inúmeros saberes e artes tradicionais, constantes conflitos de

terras entre agricultores e grupos indígenas.

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A partir do final do século XVII, a região de florestas do Alto Uruguai começa

a receber um contingente de pessoas denominadas de caboclos. Estes eram

trabalhadores livres, que viviam da natureza e da terra pública, e nela circularam até

meados de 1850, ano que foi instituída a lei das terras. A principal atividade

econômica exercida por eles era a extração da erva-mate nativa. Conforme Boeira e

Golin (2006), estes também exerciam outras atividades dentre as quais o comércio,

trabalho eventual em derrubada de mato, cuidando de rebanhos de estancieiros em

momentos de grande serviço.

Na década de 1860, começou um processo de desapropriação das áreas de

mato devolutas e iniciaram vários conflitos entre estancieiros e coletores de erva-

mate, chamados de caboclos, que até então não possuíam propriedade jurídica de

seus roçados e dos ervais. Conforme Zarth (1998, p. 29), “essa apropriação de

terras florestais visava à venda futura a colonos imigrantes subsidiados pelo governo

que, desde 1824, vinham se multiplicando na província”.

Há poucas referências de caboclos brancos. Todas nos encaminham como

uma nomeação a índios, bugres e mestiços, sendo que caboclo era um termo

pejorativo relacionado a pequenos cultivadores, roceiros, sem posses, fugitivos da

justiça entre outras situações.

Com a ocupação das áreas por colonos europeus e migrantes das antigas

colônias, os grupos menos favorecidos foram sendo empurrados cada vez mais

território adentro. Muitos caboclos acabaram se incorporando, trabalhando de peão

nas fazendas, de diarista para colonos ou se transformando em agregados. Por

agregado neste contexto se entende quem não tinha posse da terra, mas a cultivava

pagando parte da produção ao dono da terra.

1.3 Formação da atual sociedade Rio-Grandense

A história das migrações internas no Rio Grande do Sul contribui para a

compreensão do modo que se formou a atual sociedade Rio-Grandense. Desta

maneira, Correa (2006) afirma:

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O final do século XIX ainda seria marcado pelo início da ocupação das ultimas áreas florestais da província, com a implantação das chamadas “colônias mistas”, fundadas por migrantes egressos das “colônias antigas” e por imigrantes europeus. Trata-se de uma colonização marcada por uma diversidade étnica, resultado do recrutamento que se fazia no interior das colônias já existentes – com excedentes demográfico em relação a sua organização socioeconômica e cultural – e no exterior, principalmente leste europeu (p. 108).

Ao encontro de Correia, Zarth (1998) afirma que o governo de Júlio de

Castilhos patrocinou a formação de colônias mistas no noroeste do Rio Grande do

Sul. O atual município de Ijuí era uma região de mata ocupada por caboclos que

viviam da extração da erva mate nativa:

A colônia de Ijuí (conjunto de terras devolutas vendidas a imigrantes) foi fundada em 1890 sob o governo positivista de Júlio de Castilhos. Houve orientação explicita do governo estadual pela formação de colônias mistas. Misturavam-se as etnias para favorecer uma integração mais rápida dos estrangeiros na vida social do país (p. 148).

A formação destas colônias mistas se confirma nos registros do Padre Cuber

(Apud, Zart, 1998, p. 148) de Ijuí, na qual o padre afirma que eram falados 19

idiomas no inicio do século XIX em Ijuí, entre eles alemão, italiano, polonês russo,

entre outros. Pois, quando os colonizadores chegaram, não se misturaram e

agruparam-se por etnias nas diferentes linhas:

Formando assim núcleos no interior da colônia em torno da identidade étnica. Essa união étnica era de fundamental importância para as relações sociais, as comunidades interioranas recriavam suas bases culturais e sócias em torno de uma igreja e de uma escola, ambas etnicamente homogêneas (Zarth, 1998, p. 149).

O objetivo principal na implantação de “colônias mistas” pelo governo era

integrar mais rapidamente os imigrantes à sociedade brasileira e este não foi

alcançado com esta política: “somente com a integração econômica das diferentes

áreas colonizadas do estado, através de centros econômicos, é que este fato se

concretiza” (Zarth, 1994, p. 42). Gerhardt (2009) lembra que uma das preocupações

por parte do governo e das companhias colonizadoras na colonização de Ijuí era de

separar católicos de protestantes, com o objetivo de evitar conflitos religiosos.

Desde o século XIX o governo propaga a ideia da necessidade de modernizar

o país. Aliás, “o verbo modernizar e o adjetivo moderno são muito usados como

soluções para os problemas econômicos e sociais do país, e para alcançar os níveis

de vidas dos países desenvolvidos” (Zarth, 2002, p.13). No século XIX os problemas

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agrários eram bastante graves e já se utilizava a palavra “moderno” como símbolo

de riqueza e de progresso.

O governo do estado tem interesse em ocupar as últimas áreas do Rio Grande

do Sul: “ele encontrara ai o interesse e o estimulo dos governos locais das

províncias, que procurarão solucionar com ele o problema de seus territórios quase

desertos” (Junior, 1953, p. 193). Com estas povoações o estado aumenta suas

atividades econômicas e sua renda.

Com a imigração europeia no estado, com destaque à alemã, italiana e

polonesa, o Rio Grande do Sul passou por uma transformação importante: um

crescente aparecimento da pequena propriedade rural, quase ausente no passado.

Comparando-se com o início da colonização: “nos primeiros séculos da colonização

não havia lugar para este tipo de propriedade numa economia como a nossa voltada

para a exploração em larga escala de produtos de alto valor comercial” (Júnior,

1953, p. 255).

Zarth (1998) salienta que, no caso do Brasil,

O estado exerce ainda o papel de fomentar o desenvolvimento da base técnica produtiva ... o estado não promove uma distribuição equitativa do direito ao acesso aos fatores tecnológicos, mas promove um processo competitivo beneficiando os sujeitos sociais imbuídos de condições técnicas e de capital (p. 36).

À medida que o estado promove um desenvolvimento tecnológico, mas não

populariza o acesso a ele, este está promovendo a diferenciação social. Tal qual o

exemplo de um agricultor que utiliza meios tradicionais no cultivo e, não tendo meios

de modernizar o processo, fica excluído do sistema produtivo.

Para incentivar a ocupação das terras no noroeste do estado por migrantes

descendentes de alemães alguns escritores publicavam em jornais locais discursos

racistas em favor dos alemães, como segue trecho publicado no periódico Aurora da

Serra (Apud, Zarth, 1998, p. 53), de Cruz Alta, em 1886:

Tanto os alemães como o italiano são excelentes colonos, mas devemos nos precaver com real cuidado na introdução d‟este último, em cujo país superabunda uma parte da população péssima, (refere-se aos italianos do sul) essa então pode ficar por lá; já temos de sobra uma massa de libertos e de escravos suficiente para nos incomodar. Precisamos sim, de gente, porém morigerada, de bons costumes e trabalhadora.

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Estas interpretações eram comuns no Rio Grande do Sul e serviam para atrair

e defender a imigração europeia. Os europeus eram considerados pessoas de

qualidade superior. O jornal Aurora da Serra, “engajado num movimento para atrair

imigrantes para o planalto rio-grandense, se referia aos caboclos locais como vadios

e ignorantes” (apud Zarth, 1998, p. 53).

O que estimulou a pequena propriedade foi a formação de núcleos urbanos e

industriais. A produção das grandes propriedades monocultoras não era compatível

com as necessidades destes povoados. Assim:

A agricultura especializada, trabalhosa e de pequena margem de lucros que caracteriza a produção dos gêneros de primeira necessidade, não era possível em larga escala, nem atraente para o grande proprietário brasileiro. Favorece assim o estabelecimento e progresso de lavradores mais modestos (Júnior, 1953, p. 257).

Nesta perspectiva, nas áreas de imigração e migrantes ocorre uma rápida

expansão da agricultura, com aumento repentino da população. Além disso,

“florestas são derrubadas e casas e ruas são construídas, povoados e cidades

saltam da terra quase da noite para o dia e um espírito de arrojo e otimismo invade

toda população” (Zarth, 1998, p. 55). Esta é uma típica representação das colônias

de imigrantes rio-grandenses, mas não poderia ser creditada a agricultores

nacionais, os quais avançaram lentamente a fronteira agrícola. A agricultura foi a

principal razão da colonização europeia no estado gaúcho e foi a mais importante

atividade econômica até um passado recente.

Devemos considerar que os imigrantes europeus que migraram para o sul do

país não vieram para substituir a mão de obra escrava, mas sim para ocupar as

terras como camponeses independentes. Conforme os imigrantes e migrantes

europeus avançavam sobre a região do Alto Uruguai, diminuía o espaço ocupado

por caboclos:

As companhias de colonização e o governo encontraram uma série de dificuldades ao colonizar as matas do noroeste, diante da presença de milhares de posseiros, que não possuíam título legal das terras. Para colonizar a região o governo precisava disciplinar o acesso a terra, delimitando para cada família um lote. A delimitação das terras era algo novo para os caboclos, acostumados a certa liberdade de migrar pelo interior da floresta, sem se preocupar muito com as questões legais da posse da terras (Zarth, 1998, p. 72).

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1.4 Relações entre os migrantes e o ambiente

A convivência de pessoas e animais nem sempre foi harmoniosa, ocorrendo

diversos conflitos que resultaram numa drástica diminuição da fauna nativa do Alto

Uruguai. Antes da ocupação em massa do noroeste do estado o viajante Evaristo

Castro (Apud, Gerhardt, 2009, p. 114) destaca a existência de alguns animais da

fauna de Santo Ângelo:

A variedade das aves silvestres deste município é imensa e seria enfadonho enumerá-las todas. Existem a jacutinga, macuco, que fornece excelente carne. Os ovos do macuco são do tamanho dos de peru e de uma cor verde muito elegante. O uru, que é semelhante a uma galinha ganize, e anda em bandos, e que fornece excelente carne, e que são fáceis de matar, porque semelhante a galinha, depois que sobe em arvores ali fica, o inhandú, a saracura, o jacu e muitas outras.

Conforme escritos do padre Cuber (Apud, Gerhardt, 2009, p. 114) são

relatados animais extintos na região, mas que contribuíram com os colonos como o

tamanduá, verdadeiros papa formigas: devora enormes quantidades de formigas

sendo útil ao colono no combate da formiga cortadeira ou saúva. Cuber afirma que

“os colonos jamais devem abater este animal, pois ele é muito útil” (p. 114).

Os animais nativos da região foram de fundamental importância com a

receita dos municípios no inicio do século XX. Uma publicação do jornal Die Serra

Post, de 1925 (Apud, Gerhardt, 2009, p.118), anunciava que a “Companhia

Brasileira de Exportações de Peles de Paul Van Roosmalen & Cia comprava peles

de “nutrias, gatos monteses, ratões do banhado, lontras, jaguatiricas, graxains,

zorrilhos, raposas, etc.”. A partir da década de 1930 não mais se registra venda de

couro de animais selvagens, o que pode ser motivado pela drástica diminuição

destas espécies na região.

Do ponto de vista econômico nenhum animal foi mais nocivo à agricultura do

que as formigas cortadeiras. Os testemunhos da presença das formigas são

abundantes em documentos históricos e relatos orais. O padre Cuber (Apud,

Gerhardt, 2009, p.136) relata que “enormes quantidades de formigas aqui existem”.

Num relatório de 1913, Antônio Soares de Barros, (Apud, Gerhardt, 2009, p.139),

prefeito de Ijuí, referindo-se à inspetoria agrícola do estado, escreveu: “a mesma

intendência mandou um encarregado para ensinar os meios práticos de matar

formigas, que bons serviços prestou a esta zona. Agradeci em nome da população”.

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Em outro relatório do prefeito (Apud, Gerhardt, 2009, p.142) municipal de Ijuí, este

relata a dificuldade de obter a quantidade de formicida “Capanema” que havia

solicitado.

Conforme a pesquisa de Gerhardt (2009), os jornais anunciavam formicidas

como segue o anúncio a seguir de 1923 do Die Serra Post e Correio Serrano de

1922:

Formicida Radical! Formicida Radical é o melhor, o de efeito mais garantido da região. Formicida Radical significa extermínio garantido das formigas. Fabricante: Carlos Güinther e Cia Ltda. Porto Alegre (...)(Die Serra Post, 16 fev 1923, MADP, tradução livre). Contra formigas só “incecticida Carriere” (sem machina, agua ou fogo). O que delle diz conhecidíssimo e atacadíssimo publiscista Hugo Metzler, do “Deutssches Volksblatt” (...) (Correio Serrano, 6 dez. 1922. MADP. (Apud, Gerhardt, 2009, p. 137).

No inicio da década de 1930, em relatório municipal, Antônio Soares de

Barros (Apud, Gerhardt, 2009, p.155) destaca que “o maior flagelo dos agricultores

tem sido a formiga”. Neste mesmo período se registra a criação de uma sociedade a

qual auxiliava os agricultores a melhor a maneira de combater a formiga e a comprar

os melhores formicidas a preços mais acessíveis.

Dean Waden em sua obra a Ferro e Fogo (2007) também relata a dificuldade

dos agricultores frente às formigas: “Em clareiras novas não há formigas para fazer

estragos em nada [...] O lavador podia confiar em um intervalo de dois ou três anos

de colheitas tranquilas antes de as formigas aparecerem em grande número”

(Waden, p. 127), dado confirmado por Arcênio Felipe Gerhard (depoimento oral

concedido em 10 de outubro de 2013), que em seu relato afirma que seus irmãos se

instalaram na região de São Martinho e que os primeiros anos foram de colheitas

fartas e, após um intervalo de três a cinco anos, a lavoura era tomada por formigas,

deixando muitas vezes somente o talo da planta. Seus irmãos diante desta praga

venderam a terra para novos migrantes e se instalaram na região de Três Passos,

próximo ao Rio Uruguai, região onde havia pouquíssima presença de formigas

cortadeiras.

Elvira Klein (depoimento oral concedido em 24 de outubro de 2013) em seu

depoimento afirma que seu irmão, depois de migrar para São Martinho, ocupando

uma área de terras virgens, após um curto período a área foi tomada por formigas,

diante da dificuldade de combatê-las, vendeu a área de terras e se instalou no

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município de Três Passos, atualmente município de Tiradentes do Sul, as margens

do rio Uruguai, terra na qual não tinha a presença da formiga cortadeira.

Dean (2007) em sua pesquisa segue:

[...] Baltasar da silva Lisboa, um funcionário colonial muito ativo e experiente, que por um bom tempo foi o guardião das florestas do sul, queixava-se das formigas, “que de um modo espantoso se multiplicavam; e os habitantes não podendo extingui-las, passaram a devastar as matas vizinhas, cujos terrenos bem cedo se tornaram igualmente estéreis, ficando habitações dos mais terríveis inimigos da lavoura”. Silva Lisboa inclinava-se a crer que os lavadores, que não tomavam nenhuma medida contra as formigas, eram “indolentes”, embora a única medida que ele propunha, a introdução de sulfato de arsênico nas entradas dos túneis, certamente tivesse pouco efeito (p. 127).

Popularmente as formigas cortadeiras são chamadas de saúva, mineira,

quenquém, schlepper (carregadeira) em alemão, esta é muito numerosa e

resistente. A formiga cortadeira utilizava-se das folhas das plantas cultivadas pelos

colonos para nutrir um fungo no interior do ninho o qual servia de alimento. A

ocupação humana e a destruição do habitat de muitos animais acabaram diminuindo

drasticamente o número de predadores naturais.

Entre os colonos havia várias técnicas de combate à formiga cortadeira, entre

as mais comuns estavam a utilização de veneno, alguns muito tóxicos, contendo

arsênio. Outra alternativa ao controle da saúva era amarrar capim seco ou lã de

ovelha nos troncos das árvores para dificultar o acesso às mesmas. Um método

mais trabalhoso consistia em cavar até o formigueiro e derramar água fervente

matando um grande número de formigas e se tivesse sorte talvez morresse a

formiga rainha. Havia também um equipamento moderno para a época no combate

a formiga, este consistia numa máquina de fole a qual bombeava ar para uma

câmara que continha veneno e dali um tubo era instalado numa das entradas do

formigueiro e o veneno era bombeado para o interior das câmaras.

Apesar de todo empenho dos agricultores e gestores públicos no controle e

combate da formiga cortadeira, somente nos meados dos anos 1970, com o avanço

da tecnologia é que são fabricados inseticidas eficazes para o combate desta praga,

que durante anos devastou plantações inteiras, obrigando famílias a buscarem

novas áreas de ocupação.

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1.5 Recursos naturais

O valor da terra depende da quantidade e acesso à água que a mesma

possui. Este pensamento é unanime entre os imigrantes e migrantes. Estes se

instalando próximo de rios, arroios ou vertentes. Os viajantes em seus relatos

narram com detalhes a hidrografia das regiões. Carl Axel Magnus Lindman, (Apud,

Gerhardt, 2009) descreve os recursos hídricos da região de Ijuí em 1893, na qual

observa:

A colônia de Ijuhy é muito bem regada por córregos, e a 3 kilometros da sede passa o largo e caudal arroio da Porta no qual admirei uma cascata imponente. Também o rio principal, Ijuhy-guassú, no seu curso para o oeste até o rio uruguay, está cheio de corredeiras e cascatas, entre as quaes a de pipapó. A forte correnteza e grande queda destes cursos d‟agua e sua perfeita limpidez mostram que sua abundancia não é devido as chuvas do lugar (p. 88).

A água era essencial no cotidiano e sobrevivência dos colonos. Isto é

observado em fontes escritas e orais, nas quais se percebe que, para a escolha do

local da construção da residência, era observado o acesso às fontes de água. Por

este motivo muitas construções foram erguidas nas partes mais baixas da área.

Arno Frank (depoimento oral concedido em 10 de abril de 2013) afirma que, quando

chegaram a Tenente Portela, após ficarem dois dias hospedados na casa de

familiares, foram realizar um levantamento da área de terras a ser adquirida:

Saímos caminhando o pai, eu, meus irmãos e mais dois desconhecidos, deviam ser os donos da terra, entramos no mato (a área a ser adquirida pela família Frank), meu pai tinha interesse na terra, só que era tudo mato, ele queria conhecer a terra antes de comprar. Depois de um tempo de caminhada no mato, chegamos num lugar que era bastante úmido, depois de vistoriar a área e tirar as folhas meu pai gritou “achemos água” e era uma vertente e logo começamos a cavoucar e era mesmo uma vertente forte, voltamos para a casa e no mesmo dia, o pai comprou a terra. No outro dia voltamos para o lugar para terminar de cavar o poço e o pai falou: é aqui que vamos levantar a casa. Comecemos a derrubar as árvores para limpar o lugar e aproveitamos a madeira na construção, me lembro que a varanda da casa foi construída em cima do poço.

O padre Cuber observou que “em lugar algum falta água, porque são raros os

lotes sem vertentes ou arroios” (Apud, Gerhardt, 2009, p. 89). Era fundamental a

terra ter acesso à água, seja de vertente (poço) ou arroios. Conforme eram medidos

os lotes a serem vendidos aos novos moradores, teve-se o cuidado de que todo lote

ter acesso à água.

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Em anúncios de venda de lotes anunciados em jornais como o Die Serra Post

e Correio Serrano, (Apud, Gerhardt, 2009, p.82) muitas vezes destacava a presença

de “boas águas permanentes”, de “água corrente”, ou de “poço”, item que valorizava

a área como podemos observar no anuncio do jornal Die Serra Post:

Uma invernada, com tamanho de 31/2 colônia, na margem do Fachinal, 3º

distrito, Linha 17-18, toda cercada, com boa terra de plantio e terra de mato, queda de água, vende-se a preço baratíssimo. Mais informações com Umberto Allegretti, Ijuhy, 1ª secção da Romada (Die Serra Post, 30 jul. 1920, MADP, tradução livre).

Mesmo com todos os avanços tecnológicos a presença de boas fontes

naturais de água na propriedade rural ainda de fundamental importância, pois esta é

utilizada para os animais, eventual irrigação e em muitos casos no próprio consumo

da família. Conforme relato de Gerhard, Frank e Erno Dutra (entrevista concedida

em 21 de outubro de 1013), que durante toda vida foram agricultores, afirmam uma

área de terras sem fonte natural de água perde muito do valor comercial, e segundo

eles “terras sem vertentes não tem valor algum”.

1.6 O progresso sobre trilhos

Como vimos nos capítulos anteriores, o território gaúcho é zona de fronteira,

visando uma rápida e duradoura ocupação do território oeste do estado do Rio

Grande do Sul, o imperador Dom Pedro II, pressionado pela elite local que precisava

escoar sua produção, decreta o início da construção da ferrovia em 1889.

O Rio Grande do Sul encontrava-se nas margens da economia nacional, sua

produção era voltada para o mercado interno, enquanto a economia do centro do

país era voltada para o mercado externo. Com o início da ocupação da área de mata

do noroeste do estado, frente às dificuldades de escoação da produção excedente,

forte pressão por parte da elite local, formada por grandes estancieiros e sendo

território fronteiriço, sempre muito disputado o governo sentiu-se na obrigação de

construir a ferrovia, ligando a região central ao norte do estado, passando pela

região do Alto Uruguai, assim:

Partindo das necessidades estratégicas Ewbank da Câmara, conhecedor da realidade sulina e estudioso dos traçados e planos ferroviários dos países

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vizinhos, elaborou o Projeto Geral de Viação Férrea, uma verdadeira resposta as imposições geopolíticas de seu tempo. Visava a construção de uma rede, não apenas subordinada ao prolongamento das ferrovias nacionais, mas que atendesse essencialmente, as exigências de segurança territorial das áreas fronteiriças (Dias, 1986, p. 18).

Um fator determinante no sucesso da ocupação da região noroeste do estado

do Rio Grande do Sul foi a ligação férrea entre Santa Maria e Marcelino Ramos, esta

criada pelo imperador Dom Pedro II, sob decreto numero 10.342, de 09 de setembro

de 1889: “este concedia privilegio de 90 anos e juros de 6%, com domínio sobre as

terras devolutas, para o concessionário interessado em construir uma ferrovia que

ligasse o Paraná ao Rio Grande do Sul” (Carrazzoni, 1990, p. 66). De acordo com

Heisesfeld (2007),

Um projeto ferroviário para o Rio Grande do Sul havia sido proposto ao governo imperial em 1872, pelo engenheiro J. Ewbank da Câmara, o qual pode ser considerado o projeto embrião da malha ferroviária que cortaria o Rio Grande do Sul em todas as direções. Em seu bojo, objetivava a sofisticação das necessidades estratégicas, politicas e econômicas da parte sul do Império. As fronteiras meridionais eram consideradas inseguras e vulneráveis, tanto ao contrabando como a possíveis agressões bélicas dos países platinos. O projeto elaborado por Ewbank da Câmara era uma resposta às imposições geopolíticas da época. A rede ferroviária projetada para o Rio Grande do Sul deveria ser um prolongamento da rede ferroviária nacional e que proporcionasse a segurança das áreas de fronteiras (2007, p. 274).

O trajeto da ferrovia iniciava na fronteira de São Paulo com Paraná e tinha o

objetivo de alcançar a cidade de Santa Maria, esta tendo um ramal que divergia da

linha principal em Cruz Alta e acompanhava o rio Ijuí até a margem do rio Uruguai

na altura de Porto Lucena:

Somente em 1890, pelo decreto 303, de 07 de abril daquele ano, já em pleno regime republicano, o Marechal Deodoro do Fonseca, chefe do governo provisório, aprova a concessão outorgada por Dom Pedro II, lavrando-se então o contrato para o inicio das obras. Sua construção recebeu apoio incondicional dos poderes públicos, pelas razoes de abastecimento do norte do país, por via ferroviária, com os produtos gerados pela economia do Rio Grande do Sul (Carrazzoni, 1990, p.66).

O planalto sofria grande isolamento em relação aos mercados, as estradas

foram precárias durante todo o século XIX, restringindo o escoamento e

comercialização da produção das colônias do planalto gaúcho, neste contexto a

agricultura não poderia ir além de uma agricultura de subsistência, pois não tinha

como competir nestas condições com regiões melhores estruturadas em logística, a

respeito da colônia de Erechim, atribui-se seu sucesso a ferrovia:

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Erechim ficará, pelo menos, como um dos exemplos mais significativos de impulso demográfico que se deve à colonização. É verdade que esta se realizou ao longo da via férrea Santa Maria – São Paulo, o que lhe permitia escoar imediatamente os produtos agrícolas com facilidade excepcional na história das colônias rio-grandenses (Zarth, 1997, p. 105).

Somente a partir da construção da ferrovia que iniciou 1890 a região começa

a se desenvolver economicamente e somente em 1940 com a conclusão das

ligações férreas é que a região do Alto Uruguai dispõe de uma logística adequada

para o escoamento de sua produção.

No final do século XIX e a primeira metade do século XX, a região seria

ocupada por diversas famílias do Vale do Taquari que, por motivos demográficos e

econômicos, migrará para o noroeste do Rio Grande do Sul. Tais razões da

migração serão abordadas no próximo capítulo.

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2 RAZÕES DEMOGRÁFICAS E ECONÔMICAS

O objetivo deste capítulo é analisar as razões demográficas e econômicas

que fizeram com que os habitantes do Vale do Taquari-RS migrassem para o

noroeste do Rio Grande do Sul nas décadas de 1930 e 1940. Também são

examinados aspectos sobre a instalação dos migrantes no Alto Uruguai e a sua

relação com o ambiente naquela região. Foram utilizados depoimentos de migrantes

e de seus descendentes, bem como bibliografia específica sobre o contexto.

Novamente foram utilizados os livros de Zarth (1997, 1998), Bobbio (2007), Correa

(2006), Fischer (2002), Gerhardt (2009) e Dean (2007). De um modo geral, as

motivações demográficas e econômicas apontadas pelos entrevistados se

relacionam, respectivamente, com a falta de terras para todos os integrantes da

família e com as melhores perspectivas de prosperidade material na região do Alto

Uruguai.

2.1 Razões demográficas e econômicas

No final do século XIX, o aumento demográfico nas “colônias antigas”, isto é,

a região dos Vales dos Sinos, Rio Pardo e Taquari, formadas por pequenas

propriedades, e a fragmentação dos lotes forçaram os colonos excedentes a

procurarem novas áreas de ocupação. Este processo migratório de agricultores aqui

instalados, somado a novos imigrantes, ocupam praticamente todo território rio-

grandense:

As áreas florestais do Alto Uruguai foram definitivamente transformadas em zonas agrícolas. Os novos contingentes demográficos e a ferrovia, construída na década de 1890, deram um grande impulso à tímida

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agricultura local, aproveitando-se da fertilidade natural dos solos virgens (Zarth, 1998, p. 20).

A possibilidade de obter terras em novos núcleos coloniais influenciou um

crescimento econômico que comprometia os recursos naturais da província: “a

marcha rumo ao Alto Uruguai também contribuiu para uma economia regional com

baixa inovação tecnológica. Grande parte desta inovação era exógena1” (Correa;

Bublitz, 2006, p.113).

O processo de modernização sofre mudanças políticas, econômicas e sociais,

que segundo Bobbio (2007) iniciaram após a revolução francesa e atingiram o seu

auge na revolução industrial inglesa. O processo de modernização é rápido e

profundo, mas não é uniforme em todos os lugares, sendo que quando sistemas

tecnológicos são comparados uns podem ser mais eficientes que outros, Bobbio

(2007) afirma que: “A modernização visa a uma melhor organização das

capacidades e das potencialidades produtivas que uma sociedade envolve” (p.774).

Ilma Becker (depoimento oral realizado em 29 de abril de 2013), quando

questionada sobre o processo de modernização da agricultura, se houve algum

interesse na mecanização do cultivo agrícola, ela afirma:

A nossa propriedade em Tenente Portela era praticamente plana, nem se pensava em trabalhar a terra com máquinas, toda a terra era arada com junta de bois e capinada com enxada, o feijão, milho e outras coisas eram plantados com saraquá (pau em forma de cavadeira, com que se abre a terra para depositar os grãos), tudo era colhido manualmente, e a debulha do feijão e soja era a golpe de manguá (ferramenta de madeira com duas partes ligadas por uma corda, a qual a parte menor era golpeada um cima das vagens)

2.

Ilma lembra que a mecanização da agricultura se popularizou no final da

década de 1950:

Não lembro o ano, mas já estávamos morando a uns 15 em Tenente Portela (por volta de 1955), quando entraram as trilhadoras que funcionavam com motor a gasolina e as plantadoras que eram puxadas a boi, isso foi uma revolução, não precisávamos mais nos judiar tanto para plantar e colher.

1 Que têm origem no exterior

2 Vale esclarecer que os depoimentos foram transcritos com correções de português, visando melhor

compreensão do conteúdo e leitura. Alguns depoimentos foram realizados no dialeto alemão e foram transcritos em português com tradução livre do autor.

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Segundo o depoimento de Ilma Becker, sua família migrou do Vale do Taquari

para a região do Alto Uruguai, município de Tenente Portela, no início da década de

1940 por motivos econômicos e demográficos:

Morávamos no interior do município de Arroio do Meio, localidade de Cascata, a nossa terra tinha uns sete hectares, tudo morro, era difícil plantar e colher, a terra era fraca (estéril devido ao cultivo intensivo), não existia adubo, as colheitas eram magras. O milho que era plantado no morro era colhido e colocado em sacos e rolado morro abaixo, lá era carregado na carroça e depois guardado no paiol, era muito judiado. Éramos entre sete na família, meus pais, eu e mais quatro irmãos, a área de terra quase não era suficiente para o sustento da família, pois a produção era fraca. Um tio meu, irmão do pai já morava há alguns anos em Tenente Portela, este escreveu uma carta para irmos morar lá (Tenente Portela), pois havia colônias a venda de terra virgem, plana a um preço acessível. Eu e meus irmãos estávamos crescendo e em poucos anos a nossa área de terras iria ser insuficiente e foi ai que meus pais decidiram vender a terra e ir morar em Tenente Portela, vendemos tudo, saímos de Arroio do Meio somente com alguns caixotes, pois tínhamos pouca coisa (roupas, louças, ferramentas, etc).

Elvira Klein e Arcênio Felipe Gerhard também confirmam a escassez de terras

no Vale do Taquari. Klein afirma:

Após o casamento do Altino (irmão de Elvira) ele se muda com sua esposa e um filho para São Martinho, a nossa terra não era suficiente para o sustento da família e as propriedades que estavam à venda em Arroio do Meio eram caríssimas, a terra aqui produziam muito pouco (terras estéreis devido ao manejo predatório), sem contar que era muito morro, difícil de cultivar. Muitas famílias da nossa localidade foram buscar melhores condições (econômicas) de vida na região do Alto Uruguai. Tiveram muitos casos que as famílias venderam sua propriedade aqui (Arroio do Meio) e compraram terras lá (Alto Uruguai). Em alguns casos os filhos estavam ficando adultos uns casavam e não tinham onde trabalhar a não ser na terra dos pais; ai os pais vendiam a terra, com o dinheiro da venda compravam um lote de terra para cada filho lá (Alto Uruguai).

Arcênio Gerhard segue a mesma linha, relata que dois irmãos seus, Romaldo

e Walter, adquiriam terras de planícies na região do Alto Uruguai, na década de

1930, a um baixo custo, sendo que estas terras eram cobertas de mata virgem. Os

motivos desta migração também se remete à densidade demográfica. Gerhard

confirma que a família não possuía terras suficientes para todos os membros.

Conforme ocorriam os casamentos de seus irmãos mais velhos estes procuravam

novas áreas de ocupação, sendo que a região do Alto Uruguai era o principal

destino de habitantes do Vale do Taquari.

Dutra em seu depoimento alega que a motivação do seu pai de buscar novas

áreas foi o processo de modernização que atingiu o Vale do Taquari, pois seu pai

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era açougueiro de profissão, e este migrou para Santo Ângelo no ano de 1940, com

o objetivo de ganhar a vida como comerciante, tendo em vista uma região em franco

desenvolvimento econômico. Dutra instala nesta cidade um armazém de secos,

molhados e açougue:

Meu pai saiu de Arroio do Meio por causa dos negócios (comércio), que não iam bem. A energia elétrica chegou por volta de 1940 em Arroio do Meio e o primeiro eletrodoméstico que as famílias compravam era um refrigerador, isto não era bom para os açougues, pois as pessoas que possuíam um refrigerador abatiam um animal de sua própria criação e estocavam a carne no mesmo e assim diminuindo drasticamente o movimento dos açougues. Como a região de Santo Ângelo ainda estava atrasada (tecnologicamente) em relação a Arroio do Meio ele decide se mudar para as missões e continuar com o comércio de carne.

Arno Frank relata que, em 1938, então com nove anos de idade, instala-se

juntamente com seus pais e demais irmãos numa área de terras adquirida em

Tenente Portela, estando à propriedade coberta de mata virgem, sendo necessário o

desmatamento da mesma para o cultivo de produtos de primeira necessidade, entre

os quais feijão, milho e mandioca. Em torno de uma década depois da chegada em

Tenente Portela é que a família inicia o plantio comercial de grãos, com destaque

para o milho, soja e trigo. Nesta linha de pensamento, Correa e Bublitz (2006)

destacam o “desmatamento civilizatório” que, “substituindo as seculares árvores

gigantescas pelo pé de trigo, transformaram a „rainha do mato‟ em “capital do trigo”

(p.117).

Arno aponta como sendo o principal motivo da saída de sua família do interior

de Venâncio Aires, atual município de Mato Leitão, a doença conhecida como tifo,

caracterizada por uma infecção no sistema digestivo causada por bactérias. Frank

destaca que a localidade em que moravam foi atingida pela epidemia,

Naquela época existiam muitas doenças e pestes, praticamente não existiam médicos, hospitais e medicamentos, simplesmente quando ficava doente se curava em casa, somente quando a doença era muito grave que se procurava tratamento médico, por volta de 1938, a localidade que nos morava foi atingida pelo tifo, em pouco tempo muitos foram contagiados. O tifo atingiu todos os membros de uma família, vizinha nossa, depois de uma semana no hospital, voltaram para casa e tiveram uma recaída, todos vieram a falecer. A minha família não ficou imune, três irmãos meus, um de 18, outro de 20 e um de 23, foram infectados pelo tifo e também faleceram. Meus pais muito assustados com o ocorrido vendem a propriedade e se mudam para Tenente Portela.

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Em decorrência de tal situação, permitia-se a todos fazer aquilo que melhor

lhes conviesse, incitando muitos a abandonarem tudo em nome da fuga de doenças

mortais que atingiam as comunidades.

As migrações para outras regiões tiveram por consequência a formação de

minifúndios destinados a práticas agrícolas. Vale lembrar que, desde a chegada do

imigrante ao Brasil, iniciou-se um novo conceito de trabalho: “... nem seria possível

realizar-se o progresso que ultimamente vem se realizando em São Paulo, no Rio

Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná [...] sem a contribuição do imigrante”

(Correa; Bublitz, 2006, p.131). Quase a totalidade dos imigrantes europeus que

desembarcaram no sul do Brasil se dedicaram à agricultura. Estas populações se

organizaram em comunidades e as propriedades eram formadas na sua maioria por

minifúndios, que produziam basicamente para a subsistência e eventualmente

comercializavam o excedente. No noroeste do Rio Grande do Sul, percebe-se a

mesma tendência: minifúndio e policultura.

Maria Strapasson (depoimento concedido em 12 de dezembro de 2013),

nascida no município de Encantado, relata que após seu casamento em 1947, ela e

seu esposo compram uma propriedade rural no atual município de Anta Gorda,

sendo esta uma área de relevo acentuado, e que o casal cultivou a área por dois

anos. Maria afirma que os motivos que levaram o casal a buscar outros horizontes,

além de Anta Gorda foram, a falta de sorte, relevo acentuado e a pequena área de

terras que possuíam,

Não tivemos sorte na propriedade em Anta Gorda, no primeiro ano duas vacas e um boi morreram, ficamos muito aborrecidos, foi ai que meu marido disse - vamos embora daqui – e nos mudamos para Erechim. Deste solteiro meu marido falava – se um dia pudesse trabalhar uma terra plana – era o sonho dele ter uma terra de relevo plano. A nossa terra em Anta Gorda era fraca, possuíamos apenas cinco hectares de morro. Fomos morar (Erechim) no meio de um pinheiral (coníferas), e logo iniciamos a derrubada para construir a nossa casa e iniciar o plantio. A mudança foi feita de caminhão, levamos uma novilha, dois porcos e algumas galinhas, quando chegamos, a primeira coisa que fizemos foi derrubar alguns pinhos (Araucária) e alocar as torras formando um chiqueiro (recinto para criar porcos) provisório para os animais. Muitas companhias vendiam a terra sem escritura, somente com contrato de compra e venda, não tínhamos escritura da terra, somente contrato, depois de uns dez anos conseguimos regularizar a terra com a escritura.

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2.2 Propaganda

A imigração europeia para o Brasil no século passado deve ser entendida

num contexto global. A Europa enfrentava problemas de superpopulação, devido à

industrialização, neste contexto compreende-se o sucesso da propaganda

desenvolvida pelos agentes recrutadores de imigrantes, o Brasil:

Representava, para o camponês e operário europeu, a promessa da liberdade religiosa e política: a posse privada da terra, o trabalho livre para todos, a possibilidade de enriquecimento rápido. Era a nova pátria, a terra de promissão (Fischer, p. 19, 2002).

Conforme pesquisa realizada por Fischer, 2002, a propaganda desenvolvida

pelos recrutadores pode ser exemplificada pelo trecho abaixo de autoria do cônsul

polonês no Brasil, Kasiminerz Gluchowski (1922 – 1925):

O cativeiro político e principalmente o infortúnio econômico obrigaram populações inteiras a emigrarem. E justamente sobre este elemento era lançada, por vários agentes, uma hábil propaganda; e o agricultor e o operário polonês seguia através do oceano até este Brasil encantado. (apud, p. 20)

É evidente que o Brasil tinha interesses na vinda de imigrantes europeus,

“inicialmente defesa do território numa eventual luta pela independência; ocupação

territorial e fixação das fronteiras do sul” (Fischer, 2002, p. 20). Havia sem dúvida

outros interesses por parte do governo brasileiro, como o desenvolvimento de uma

agricultura de pequena propriedade, voltada para o mercado nacional, substituição

da mão de obra escrava, melhoramento da “raça” entre outros.

A vinda dos casais açorianos para o Rio Grande do Sul nos remete ao século

XVIII, em 1824, inicia a ocupação do atual município de São Leopoldo por imigrantes

alemães e em 1875 os italianos ocupam o território do município de Caxias do Sul.

No final do século XIX, a ocupação destas áreas atinge seu limite, principalmente

pela alta fecundidade das famílias de imigrantes e a fragmentação das propriedades

começava a se desenvolver. No final do século XIX, se inicia a ocupação do

“despovoado” território situado à margem esquerda do rio Uruguai, área coberta de

florestas.

Os anúncios de jornais despertavam a cobiça dos interessados em áreas de

terras não exploradas, conforme anúncios em jornais da época, percebe-se os

atributos que eram utilizados para valorizar a terra, como “ter mato e vertentes” eram

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atributos que valorizava a terra e este pode ser removido dando lugar a roça. Segue

um anúncio de venda de terras publicadas no Die Serra Post e em sua versão em

língua portuguesa, o jornal Correio Serrano, ambos de circulação regional em Ijuí,

pesquisa realizada por Gerhardt:

2 colonias situadas na linha 15 norte, Ijuhy, com excellente matto, quasi tudo madeira de lei e terra fertilíssima para plantação (...) Bernando Müller, linha 15 (Correio Serrano, 7 de fev. 1919. MADP)”. (apud, Gerhardt, 2009, p. 79)

Neste outro anúncio percebe-se que ainda restavam áreas florestais, na

colônia de Ijuí na década de 1930, conforme área de terras anunciada no jornal Die

Serra Post, em 1930:

Colonia a venda. Uma colônia situada na linha 17, 3º districto de Ijhuy, mais da metade de mattos, madeira de lei, uma casa (...) cinco olhos d‟agua permanentes, só fazendo uma visita que se agradará. Tratar com o proprietário João Aquila (Correio Serrano, 26 de junho de 1930. MADP) (apud, Gerhardt, p.82, 2009)

Conforme narrativa de Arcênio Gerhard era muito comum rapazes solteiros

acompanhar a mudança das famílias de migrantes, com o objetivo de conhecerem

as novas áreas de ocupação. Gerhard descreve:

Quando o meu irmão Romaldo foi morar em São Martinho, três rapasses solteiros o acompanharam na viagem, pois queriam conhecer a região para uma possível instalação futura. Na nossa região, Arroio do Meio, Lajeado, não tinha trabalho além da agricultura, na década de 1930 não existiam firmas (Indústrias), conforme os jovens casavam, compravam uma área de terras para cultivar, ou trabalhavam na terra dos pais, as famílias eram numerosas, não tinha lugar para todos, os filhos mais velhos precisavam dar espaço aos mais novos, eram tempos difíceis. A região de São Martinho era muito promissora, terra boa (fértil), plana e barata, muitos quando casavam compravam um lote e se mudavam para lá.

Era muito comum a troca de informações de quem já estava lá e o pessoal

que continuava no Vale do Taquari, Gerhard em seu depoimento afirma:

Meu irmão estava morando em Três Passos e nos se comunicávamos por cartas, e nestas cartas se escrevia sobre tudo, família, filhos, colheitas, clima, criação de animais, cultivos e outras coisas. Walter se orgulhava do relevo plano e das boas colheitas feitas no solo virgem de Três Passos, a não ser que ocorria um imprevisto, como pragas, seca ou excesso de chuva. Nas cartas Walter sempre pedia se eu teria interesse em um dia morar lá, pois ainda havia terras disponíveis a preços acessíveis.

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A fama das gordas produções agrícolas, fertilidade do solo e o relevo plano

de fácil cultivo da região do Alto Uruguai vagava no imaginário das pessoas do Vale

do Taquari como podemos observar no relato de Ilma,

Estávamos morando em Tenente Portela e duas colheitas não foram boas por causa da seca, o pai ficou desconsolado, porque tinha dívidas para pagar, pois comprou a terra em prestação e pagava com a colheita do milho e feijão. Um dia ele manda uma carta para meu tio que morava em Arroio do Meio e escreveu que queria voltar a morar ali (Arroio do Meio); dois meses depois veio à carta do meu tio e ele escreveu para o pai – “o que tu quer aqui (Arroio do Meio) nestes morros e com essa terra fraca, aqui não se produz mais nada”, e isso foi um consolo e o motivo para continuarmos morando em Tenente Portela.

Elvira afirma que em eventuais visitas de familiares da região do Alto Uruguai,

esses procuram promover a região, incentivando outras famílias a migrarem. Entre

as principais argumentações ressaltavam o relevo plano da região, tornando o

trabalho agrícola menos árduo, a fertilidade do solo e boa produção, por serem

áreas de recente ocupação e o preço acessível dos lotes de terra. Gerhard afirma,

que na década de 1940 o valor necessário para adquirir uma propriedade de

aproximadamente 10 hectares em Arroio do Meio poderia se comprar uma

propriedade equivalente a 60 hectares na região do Alto Uruguai.

Maria afirma que o lote comprado pelo casal foi por meio de intermediários,

como segue o relato:

Compramos a terra de um tal de Chiamullera, ele era de Encantado, falou muito bem das terras novas de mato, das fartas colheitas. Meu esposo foi conhecer a propriedade em Erechim, ele se agradou e compramos a propriedade.

Sobre a escassez de terras nas “colônias velhas” Fischer, p. 51, 2002, afirma:

A escassez de terras, e em consequência os preços caríssimos dos lotes coloniais, criaram um problema sério. A única solução para aliviar a situação, cada dia mais premente, parecia a emigração da “geração moça” para as zonas do norte e nordeste do Estado, cuja colonização começara [...] pelo governo estadual. Empresas particulares também se esforçam em colonizar as vastas regiões na margem do rio Uruguai. No norte e noroeste do Rio Grande do Sul ainda havia terras suficientes, e nas “colônias velhas” os moços corajosos e dinâmicos encilhavam os seus cavalos e saíram à procura de novas terras.

Nesta perspectiva percebe-se que uma mescla de fatores promoveu a

ocupação das ultimas áreas florestais do estado, destacando interesses mútuos do

governo, de imigrantes/migrantes e de companhias de colonização.

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Uma vez esclarecidos os principais motivos econômicos e demográficos da

migração para o Alto Uruguai, convém caracterizar a instalação dos migrantes

naquela área. Considera-se que as primeiras ações das famílias provenientes do

Vale do Taquari no noroeste do estado também expressam as razões pelas quais a

região foi ocupada.

2.3 Rede viária, escolas e hidrografia do Alto Uruguai.

As localidades da região noroeste do estado, que se localizavam próximas à

ferrovia que ligava Santa Maria a Marcelino Ramos, tiveram uma ocupação territorial

de maior expressão das demais. Evaristo de Souza Castro (apud, Gerhardt, 2009),

escritor de Cruz Alta, afirmara no final do século XIX, “a colonização não se fará

esperar, porque o colono, a par de terras fertilíssimas, estará em rápida

comunicação com os centros populosos” (p.145). Nesta mesma linha Zarht, 1997,

afirma que:

A fundação de colônias no planalto coincide com a construção de alguns trechos da ferrovia São Paulo - Rio Grande. E são as colônias próximas às ferrovias as que mais se destacaram em seu desenvolvimento. Ijuí e Erechim recebiam intenso fluxo de colonos estrangeiros e das colônias velhas, enquanto as demais colônias sofriam sérias dificuldades para escoar a produção (p. 57)

Muitos viajantes que passaram pela região noroeste do estado, ficaram

impressionados com a hidrografia do local, uma região com grande potencial

energético, a preocupação com a perda de força motora reafirma a ideia da

“natureza para o benefício humano, ou seja, que o rio e sua força estão ali para

servir as pessoas” (Gerhardt, 2009, p. 146). Conforme Gilmar Arruda (apud,

Gerhardt, 2009, p. 146) “um olhar que é dirigido pela técnica, pela ciência para

enquadrar o território brasileiro numa perspectiva de utilização dos seus elementos

para o progresso”.

Augusto Pestana, administrador da colônia de Ijuí, em relatório enviado a

Comissão de Terras e Colonização, afirma que “estou convencido de que ficando

concluída a rede geral de estradas da colônia, ela tomará um desenvolvimento

assombroso” (apud, Gerhardt, 2009, p. 146).

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Neste aspecto Frank relata a precariedade viária de Tenente Portela na

década de 1940, estradas para tráfego de automóveis e caminhões somente de

acesso a municípios e distritos, o escoamento da produção era realizado por

picadas e em carros de boi. Frank lembra que era obrigatório o trabalho na

construção e manutenção das estradas, Arno descreve a sua participação neste

trabalho,

Era obrigatório por lei um membro de cada família trabalhar cinco dias por ano nas estradas, diziam que era para pagar o imposto da terra, a gente se juntava (vizinhos) íamos à prefeitura se inscrever nos dias que iriamos trabalhar na estrada, e vinha um fiscal da prefeitura averiguar se todos os colonos inscritos estavam trabalhando, me lembro que tinha dezesseis anos, e justamente nos dias que era para trabalhar na estrada meu pai ficou doente, ai ele disse – vai você no meu lugar, e mostra serviço. Trabalhamos na abertura de uma picada (estrada) nova, uns dois quilômetros, era tudo a picareta, não existiam máquinas, era um serviço pesado, havia muitas pedras que precisavam ser removidas, sempre seguíamos o relevo plano para que a estrada ficasse o mais plano possível, isto facilitava o transporte, pois poderíamos carregar mais nas carroças que eram puxadas com bois. Na época existiam poucos caminhões e poucos se aventuravam pelas áreas mais interioranas, as estradas eram precárias.

As duas principais preocupações dos administradores eram estradas e

escolas, como podemos ver num relatório do intendente Antônio Soares de Barros

“não há nada tão necessário às regiões coloniais como as aulas e as estradas. Sem

aulas e viação não haverá progresso nem desenvolvimento algum” (apud, gerhardt,

2009, p.146)

A precariedade da educação nas colônias novas é confirmada no relato de

Ilma, ela afirma que a educação primária era patrocinada pelos pais das crianças

que frequentavam a escola, em longos períodos ficam sem aulas pela dificuldade de

contratar professores, pois estes vinham de regiões como Vale do Taquari, Sinos,

entre outros. Becker narra que em algumas situações os professores não se

adaptavam a localidade ou não agradavam aos pais dos alunos, provocando a saída

destes e gerando um prejuízo aos estudantes, pois a contratação de outro docente

se arrastava por meses. Ilma narra o período que ficou sem frequentar a escola:

Lembro que era o primeiro ano que eu ia à escola, eu tinha oito anos, acordava cedo, primeiro realizava as tarefas que eram de minha responsabilidade, como tirar leite de duas vacas e tratar as galinhas, depois me arrumava e íamos para a escola eu e minha irmã mais nova, lembro de que fomos na aula uns três meses e de um dia pro outro o professor não veio mais, não sei se ele foi despedido ou se saiu por conta própria, ficamos um tempo sem ir na aula, acho que demorou uns dois meses até vir outro

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professor. A única participação do estado na educação era o espaço físico cedido pelo mesmo.

Arno confirma a precariedade da educação:

Fui na escola três anos, não aprendi a ler e escrever, metade do tempo não tinha professor ou não íamos na escola para ajudar a trabalhar em casa. Na escola sentávamos todos, um do lado do outro num banco com uma mesa à frente, o professor sentava num canto da sala, fumava charuto. Não tinha caderno na época, era uma lousa e se escrevia com giz. Na ponta do banco sentava o aluno mais inteligente, o que sabia ler, aí o professor pedia para que ele lesse e nos liamos junto com ele, mas a maioria não sabia o que estava escrito, só imitava o que o da ponta lia, se era para ler sozinho não saberíamos. Eu tinha muita dificuldade em aprender, na escola não se podia falar alemão, mas quase ninguém sabia falar português, ficávamos todo tempo sem falar. Quando lia, falava a palavra em português, mas geralmente não sabia o que ela significava.

O governo de Getúlio Vargas inicia a campanha de nacionalização, que foi um

conjunto de medidas tomadas durante o Estado Novo para diminuir a influência das

comunidades de imigrantes estrangeiros no Brasil e forçar sua integração junto à

população brasileira. Na primeira fase o projeto abordou a nacionalização do ensino,

obrigando as escolas o ensino em português, proibindo o ensino em línguas

estrangeiras e a proibição de falar idiomas estrangeiros em público, inclusive

durante cerimônias religiosas. Estas medidas afetaram diretamente as comunidades

de imigrantes no Rio Grande do Sul. Sendo que a medida de restrição a línguas

estrangeiras se estendeu também a imprensa falada e escrita.

2.4 Transformação ambiental

A colonização europeia foi vista como um dos principais fatores do

desenvolvimento econômico do Rio Grande do Sul. Por meio da pequena

propriedade rural, da mão de obra livre, trabalho familiar e da policultura, é

considerada por muitos como a principal matriz do desenvolvimento regional. Muitos

historiadores, sociólogos e economistas afirmam que: “além da modernização da

agricultura, o florescimento da indústria e do comércio teria sido quase que

exclusivamente obra dos imigrantes europeus.” (Correa e Bublitz, 2006, p. 09)

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Aos colonos não era mais possível continuarem a viver em mesmo espaço,

sem estar sujeito à regressão econômica, pois as terras cultivadas ficavam

empobrecidas, por isso a migração era contínua.

Arno Frank relata que, em 1938, então com nove anos de idade, instala-se

juntamente com seus pais e demais irmãos numa área de terras adquirida em

Tenente Portela,

A área de terras compradas por meus pais era coberta de mato, já no primeiro dia começamos a derrubar árvores para a construção da casa e a confecção das telhas. Para derrubar o mato usávamos o machado ou serrote, depois de uma semana de trabalho amontoávamos a madeira, galhos, deixávamos a área limpa e depois de um determinado tempo era ateado fogo no monte de lenha, era uma pena, tinha toras de angico de mais de um metro e meio de altura, madeira de lei, era tudo queimado.

Quando questionado sobre uma possível comercialização das torras Arno lembra:

Existiam serrarias, mas não eram suficientes para serrar toda a madeira que tinha. Para serrar uma torra era necessário agendar o dia e transportar a madeira até o local da serragem, muitas vezes as serrarias nem aceitavam, pois tinha muitas torras perto da sua sede.

A pesquisa realizada por Correa e Bublitz, 2006, vão de encontro do relato de

Frank e lembra que:

Desmatamentos, estes não foram causados inicialmente para fins de exploração madeireira, pois as derrubadas e as queimadas tinham como finalidade fazer recuar a mata para cultivar o solo [...]. Nos primeiros anos da colonização, após dar cabo das árvores que forravam seus lotes, os colonos faziam uso da madeira para fins estritamente pessoais, como a construção de suas moradias e o fogo para aquecer a família e preparar a comida. As toras que sobravam eram deixadas de lado. Não havia uma pretensão econômica em relação a isso, pelo, menos inicialmente. A utilização da madeira para fins energéticos, através da combustão de sua biomassa, ou para fins de construção de casas, promoveu uma exploração irracional dos recursos florestais do Rio Grande do Sul. (p.55)

Vale lembra no que se refere ao desmatamento das florestas rio-grandenses,

a devastação dos ervais da província, muito comum nas áreas de colonização

causou muitos conflitos étnicos entre colonos, caboclos e indígenas, pois as terras

destes territórios foram destinadas a colonos, mas já estavam habitadas por “gentes

de cor” e que dependiam diretamente destes recursos naturais.

O solo inicialmente muito fértil promovia colheitas fartas, apesar das

dificuldades climáticas e de parasitas, isto fez com que muitos produtos antes caros

e raros baixassem de preço. Arno lembra que os primeiros anos de colheitas foram

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extraordinários, mas afirma que algumas culturas não se adaptavam a fertilidade

excessiva do solo, como exemplo cita a soja, que cultivada num terreno recém-

desmatado produzia pouco, a planta se desenvolvia em excesso, mas sem “carregar

vagem”. Em contrapartida o feijão, mandioca, milho entre outros produziam muito.

A consequência de boas colheitas de milho, a criação de animais como

porcos e aves se desenvolveram rapidamente, isto desenvolveu um comércio de

produtos como banha e ovos que eram comercializados na sede dos municípios

para posterior comercialização nos grandes centros.

Becker descreve como era realizada a comercialização do excedente da

produção nos primeiros anos em que moravam em Tenente Portela,

O dinheiro quase não existia tudo era trocado, uma vez por mês passava um caminhão na picada e ele vinha carregado com açúcar, farinha de trigo e outras coisas e então a gente trocava o que se produzia como ovos, banha, feijão, lentilha, milho por produtos que não possuíamos como açúcar e farinha de trigo. Eventualmente vendíamos produtos em troca de dinheiro, só que este não poderia ser gasto, era uma reserva para uma eventual emergência médica.

Este tipo de comércio é conhecido como escambo, troca direta de uma

transação onde uma parte presta um serviço, ou entrega parte de uma mercadoria a

outra, recebendo em troca outro produto ou serviço, sem a mediação do papel-

moeda.

Warren Dean cita que “a quinhentos anos, um povo urbanizado se apossou

dessas terras, e seus contingentes e seu consumo da riqueza natural não pararam

de crescer: evidências do sucesso, como nos comprazemos em definir. [...]”(2007, p.

20).

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CONCLUSÃO

O objetivo principal deste trabalho foi analisar as razões da migração de

habitantes do Vale do Taquari para o noroeste do Rio Grande do Sul nas décadas

de 1930 e 40. A partir da metodologia da história oral, pretendeu-se comprovar a

hipótese de que aspectos econômicos e demográficos estão entre as causas da

onda migratória.

Percebeu-se que as condições socioeconômicas da Vale do Taquari nas

décadas de 1930 e 40 não eram as mais apropriadas para a expansão da produção

agrícola. O território passou por transformações significativas, dentre as quais a alta

fecundidade das famílias de migrantes e imigrantes, o relevo acidentado de algumas

regiões do vale e o manejo predatório da terra. Estes foram os três principais fatores

que levaram um contingente considerável de pessoas a procurar outras áreas de

ocupação.

Por outro lado, estava o governo com o projeto de colonização do território do

Alto Uruguai, diretamente ou através de companhias colonizadoras. As terras foram

vendidas a descendentes de imigrantes interessados em ocupar as últimas áreas de

florestas restantes no estado gaúcho. Assim, estes colonos, oriundos das “antigas

colônias”, foram fundamentais para a idealização do projeto de ocupação do

território ainda “desabitado” do Rio Grande do Sul.

O noroeste do estado, praticamente ainda intocado, coberto de mata, com

terras fertilíssimas, recursos hídricos fenomenais, despertava no imaginário do

colono europeu e descendentes uma vida regada de fartura, sendo que, para

muitos, foi a primeira oportunidade de acesso à terra própria. Vale lembrar que as

ondas migratórias devem-se também à forte pressão demográfica que se faz sentir

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nas “antigas colônias”, devido à alta taxa de natalidade registrada entre os

imigrantes europeus e seus descententes.

Por outro lado, o noroeste do estado do Rio Grande do Sul historicamente,

caracterizou-se por constantes conflitos agrários, protagonizados por indígenas,

caboclos e colonos. Em tese, os atuais conflitos tem origem nas políticas públicas

que, em meados dos séculos XIX e XX, estimularam, regulamentaram, legitimaram e

legalizaram a ocupação das terras por colonos europeus e seus descendentes,

antes ocupadas por caboclos e grupos indígenas.

Convém salientar que estes conflitos relacionados à questão da terra são

originários de políticas públicas precipitadas, produzidas ao longo da história

brasileira. Os grupos menos favorecidos pelas políticas brasileiras vivem em

constante incerteza sobre o seu futuro. De um lado indígenas e caboclos que

habitavam e ainda ocupam a região possuem uma longa história de exclusão social,

cultural e econômica; e de outro lado pequenos agricultores, dedicados à agricultura

familiar, além de excluídos das políticas de desenvolvimento, atualmente vivem o

pesadelo iminente da perda da terra.

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ZARTH, Paulo Afonso, Os caminhos da exclusão social. Ijuí: Ed. Unijui, 1997.

Entrevistas

A . F., depoimento oral concedido em 10 de abril de 2013. Duração: 45 minutos.

A. F. G., depoimento oral concedido em 10 de outubro de 2013. Duração: 26

minutos.

E. D., entrevista concedida em 21 de outubro de 1013. Duração: 46 minutos

E. K., depoimento oral concedido em 24 de outubro de 2013. Duração: 37 minutos

I. B., depoimento oral realizado em 29 de abril de 2013. Duração: 57 minutos.

M. S., depoimento concedido em 12 de dezembro de 2013. Duração: 32 minutos.