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ANÁLISE / ANALYSIS Processo Saúde/Doença e Complexidade em Epidemiologia Health/Disease Process and Complexity in Epidemiology Fermin R. Schramm 1 Luis David Castiel 2 SCHRAMM, F. R. & CASTIEL, 1 D. Health/Disease Process and Complexity in Epidemiology. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 8 (4): 379-390, oct/dec, 1992. The use of the idea of Complexity in Epidemiology is an approach to point out either an internal disciplinary crisis, resulting from shortcomings in its conceptual instruments (theories, models) regarding health's concrete reality, or a crisis in terms of the broader cultural context (paradigms, epistemic framework, Zeitgeist, Weltanschauung) in which health issues are necessarily inserted. Although those two approaches are pertinent from a systemic and environmental standpoint, their disjunction is insufficient in dealing with the main contemporary health challenges that affect individuals, populations and the biosphere. Complexity consists of a point of view that appears to overcome this obstacle. On the one hand, it stresses the reductionism of dichotomous visions that shaped the Modern Age, generally unable to focus on a living universe made up of relations and the emergence of new properties, when we move from one level of organization to another. On the other hand, ways of dealing with living beings' interactive processes are presented. A dynamic, historical and evolutive perspective is presented as a way of looking upon the crisis in Epidemiology as a sign, pointing out the need to conceive a complex approach towards its practical discursive instruments in order to devise more suitable patterns for the Health/Disease process.. Keywords: Epidemiology, Epistemology, Complexity 1 Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 9 o andar, 21041-210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 2 Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 8 o andar, 21041- 210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. INTRODUÇÃO As considerações aqui apresentadas procedem de um duplo ponto de vista "construtivista". O primeiro, interno, considera a dita ''crise de identidade" da Epidemiologia (Almeida-Filho, 1990) como um "efeito" do processo em que a multiplicação de modelos de análise do "fenô- meno" complexo da saúde em populações diferencia o próprio campo global e tradicional da Epidemiologia tido, até então, como unitário — em especializações locais e setoriais. Isto ocorreria de tal modo que permitiria supor a existência de várias epidemiologias, tornando cada vez mais problemática uma visão unificada e compreensiva isto é, global — dos fatos epidemiológicos. Deste ponto de vista, a "crise" seria, em primeiro lugar, o efeito de um cresci- mento interno ao saber epidemiológico, devido à construção de vários modelos "locais" e à emergência de novos problemas que devem coexistir com os antigos. Ou seja, tratar-se-ia de uma crise de complexificação do campo da Saúde Coletiva, que, por um lado, precisaria de um aprofundamento das análises específicas (para escapar da generalidade, que não dá conta dos casos concretos), assim como do estreita- mento das relações interdisciplinares (para evitar a parcialidade da modelização). Em suma, questões que dizem respeito à complexi- dade e à interdisciplinaridade seriam as caracte- rísticas internas desta crise de identidade da Epidemiologia. O segundo ponto de vista, externo, mas vinculado ao primeiro pelo mesmo processo

Processo Saúde-doença Em Epidemiologia

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Apresentação do processo saude doença em epidemiologia

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ANÁLISE / ANALYSIS

Processo Saúde/Doença e Complexidade em EpidemiologiaHealth/Disease Process and Complexity in Epidemiology

Fermin R. Schramm1

Luis David Castiel2

SCHRAMM, F. R. & CASTIEL, 1 D. Health/Disease Process and Complexity in Epidemiology.Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 8 (4): 379-390, oct/dec, 1992.

The use of the idea of Complexity in Epidemiology is an approach to point out either an internaldisciplinary crisis, resulting from shortcomings in its conceptual instruments (theories, models)regarding health's concrete reality, or a crisis in terms of the broader cultural context(paradigms, epistemic framework, Zeitgeist, Weltanschauung) in which health issues arenecessarily inserted. Although those two approaches are pertinent from a systemic andenvironmental standpoint, their disjunction is insufficient in dealing with the main contemporaryhealth challenges that affect individuals, populations and the biosphere. Complexity consists of apoint of view that appears to overcome this obstacle. On the one hand, it stresses thereductionism of dichotomous visions that shaped the Modern Age, generally unable to focus on aliving universe made up of relations and the emergence of new properties, when we move fromone level of organization to another. On the other hand, ways of dealing with living beings'interactive processes are presented. A dynamic, historical and evolutive perspective is presentedas a way of looking upon the crisis in Epidemiology as a sign, pointing out the need to conceivea complex approach towards its practical discursive instruments in order to devise moresuitable patterns for the Health/Disease process..

Keywords: Epidemiology, Epistemology, Complexity

1 Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacionalde Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 9o

andar, 21041-210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.2 Departamento de Epidemiologia e MétodosQuantitativos em Saúde da Escola Nacional de SaúdePública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 8o andar, 21041-210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

INTRODUÇÃO

As considerações aqui apresentadas procedemde um duplo ponto de vista "construtivista". Oprimeiro, interno, considera a dita ''crise deidentidade" da Epidemiologia (Almeida-Filho,1990) como um "efeito" do processo em que amultiplicação de modelos de análise do "fenô-meno" complexo da saúde em populaçõesdiferencia o próprio campo global e tradicionalda Epidemiologia — tido, até então, comounitário — em especializações locais e setoriais.Isto ocorreria de tal modo que permitiria supora existência de várias epidemiologias, tornando

cada vez mais problemática uma visão unificadae compreensiva — isto é, global — dos fatosepidemiológicos. Deste ponto de vista, a "crise"seria, em primeiro lugar, o efeito de um cresci-mento interno ao saber epidemiológico, devidoà construção de vários modelos "locais" e àemergência de novos problemas que devemcoexistir com os antigos. Ou seja, tratar-se-ia deuma crise de complexificação do campo daSaúde Coletiva, que, por um lado, precisaria deum aprofundamento das análises específicas(para escapar da generalidade, que não dá contados casos concretos), assim como do estreita-mento das relações interdisciplinares (paraevitar a parcialidade da modelização). Emsuma, questões que dizem respeito à complexi-dade e à interdisciplinaridade seriam as caracte-rísticas internas desta crise de identidade daEpidemiologia.

O segundo ponto de vista, externo, masvinculado ao primeiro pelo mesmo processo

construtivo, situa a Epidemiologia no interiordas transformações que se operam no próprioconjunto das ciências e dos discursos queacompanham tais transformações. As ciênciaspercebem-se, atualmente, como fazendo partede uma "era de transição", o que, portanto,implica o reconhecimento de crises, isto é,momentos decisórios que produzem os novosobjetos teóricos, a reconceituação e a reterrito-rialização dos antigos, dentro de um novo"quadro epistêmico" (Piaget & Garcia, 1987).

No interior deste novo contexto teórico, omundo apresenta-se cada vez mais como estan-do inserido em um universo "unidual", no qualencontram-se fenômenos tanto "determinísticos"quanto "estocásticos", tanto "reversíveis" quanto"irreversíveis". Neste mundo, que desde a eramoderna é concebido como aberto, "evolução"e "pluralismo" tornar-se-iam as palavras funda-mentais (Nicolis & Prigogine, 1991).

Conforme esses dois pontos de vista — quesão, na realidade, dois aspectos do mesmoprocesso de construção do conhecimento —, olugar discursivo em que nos situamos é do tipointerfacial, ou seja, na fronteira entre "cons-trução interna" — ou disciplinar — do campoepidemiológico e "construção externa" — oucontextual. Em suma, entre ponto de vista locale ponto de vista global. Esta fronteira entresistema e contexto, portanto, é também umaregião de contato e situa-se no limiar que abre(segundo uma célebre expressão, de 1934, doepistemólogo Gaston Bachelard) para o "novoespírito científico" (Bachelard, 1985), ou seja,para o quadro da revolução científica específicado século XX. Hoje em dia, costuma-se chamareste "novo espírito científico" de ponto de vistada complexidade, entendendo-se, com isso, demaneira bastante intuitiva, um ponto de vistarelacional e dinâmico, em oposição à tradiçãodicotômica e estática cartesiana da época mo-derna.

Contudo, nesta "era de transição", o ponto devista complexo não pertence somente à práticae à teoria da ciência. Ele afeta também a "hu-manitude" do homem, isto é, as várias di-mensões (como a estética, a ética, a política) da"contribuição humana para o universo (...), quenão fazia parte da contribuição da natureza"(Jacquard, 1987: 177), vindo a se constituir,desta maneira, em um verdadeiro novo Zeitgeist

da nossa contemporaneidade, além de ser,evidentemente, o indício significativo da cons-trução de uma nova Weltanschauung. Assim,uma nova maneira de pensar dar-se-ia juntocom uma nova maneira de sentir.

Segundo a epistemóloga Isabelle Stengers,hoje a "complexidade" é uma noção intuitivaque pertence ao nosso vocabulário cotidiano.Para esta autora, "complexidade" seria muitasvezes utilizada como sinônimo de "compli-cação", dando origem à confusão entre "pro-priedades objetivas", que pertencem aos siste-mas complexos, e "propriedades subjetivas",que são atribuídas a sistemas cuja complicaçãodependeria, de fato, da limitação dos nossospontos de vista (Stengers, 1990). No campo dasciências, a idéia de complexidade aparecetambém cada vez mais como tendo se alastradodos territórios de origem da sua utilização —como as ciências biológicas e as ciências huma-nas e sociais — para as ciências "duras", comoa física. Hoje, as próprias leis fundamentais douniverso deveriam ser consideradas complexas(Nicolis & Prigogine, 1991). Como afirmaPrigogine, "Do ponto de vista da ciência con-temporânea (...), as leis da biologia, assimcomo aquelas das sociedades humanas, expri-mem o conteúdo de leis que vão além do estrei-to âmbito da biologia e das sociedades huma-nas" (Prigogine, 1987: 191). O fato relevante éque este novo olhar põe em crise antigas dico-tomias, como aquela entre natureza e cultura,conferindo à própria natureza uma dimensãoessencialmente histórica, vinculando-a à "flechado tempo", isto é, a "bifurcações", a "rupturasde simetria", ao acaso. Nesta concepção funda-mentalmente não-dicotômica, o próprio realaparece como uma vinculação entre ordem edesordem, como gerador da variedade de for-mas e estruturas que nos rodeiam, mas unifica-do pelo tempo e pela história.

Do duplo ponto de vista construtivista aquiadotado, apreender o real significa construirmodelos e confrontá-los com as observações.Nos processos de conhecimento, a mente exa-mina o ambiente; classifica as observações pormeio de hipóteses, esquemas e modelos, tentan-do integrá-los no já adquirido e tirando con-clusões parciais que, se forem suficientementeestruturadas e integráveis, permitirão conclusõesmais gerais e, eventualmente, a formulação de

uma teoria sobre uma classe de fenômenos.Neste processo — que é uma verdadeira cons-trução do real (Piaget, 1937) —, a mente proce-de de duas maneiras complementares: por"computação lógica" (que permite a "distinção")e por "associação analógica" (que permite a"significação"). Para Edgar Morin, estas duasoperações mentais constituem as duas facesinseparáveis das operações da mente — a dopensamento lógico-simbólico e a do pensamentoanalógico-mítico-arquetípico. A apreensão doreal seria feita por meio destas duas operações,que são operações distinguíveis, mas inseridasem uma estruturação em anel que permite a"retroação" (feedback) de uma sobre a outra,isto é, a passagem recíproca de informação deuma para a outra. Este fato permitiria o aumen-to de informação e a complexificação do siste-ma (Morin, 1986). Dito de forma mais precisa,o processo desenvolve-se em duas etapas suces-sivas. Na primeira, ele procede por analogia,estabelecendo relações entre a observação donovo e a memória do antigo (que funciona,então, como um sistema de referência), cons-truindo um modelo que seja o mais adequadopossível à experiência e que, desde então,funcionaria como um novo sistema de referên-cia (ou "modelo padrão"). Em seguida, tenta-seir além da analogia para reconhecer, dentro doquadro do modelo adotado, as especificidadesde cada novo problema, incorporando-as àdescrição. Da confrontação entre o novo e oantigo nasce a possibilidade de previsão e,quando existe um acordo, têm-se as condiçõessuficientes para formular uma teoria, ou seja, "omeio para dominar a complexidade" (Nicolis &Prigogine, 1991: 251).

Nos sistemas vivos, existem, pois, diferentesgraus de complexidade, dependendo da varieda-de de comportamentos perante as variações doseu ambiente, isto é, do número de escolhaspossíveis para a auto-organização do sistema.Sistema e ambiente vinculam-se na troca dematéria, energia e informação. Tais trocas sãomáximas nos sistemas dinâmicos, como associedades humanas, que são tipos de sistemasentre os mais complexos. Com efeito, as socie-dades humanas, contrariamente a outros siste-mas dinâmicos e complexos (que não partici-pam da construção da "humanitude"), sãohistóricas stricto sensu, desenvolvem projetos e

satisfazem desejos, criando, assim, novos víncu-los entre sistema e ambiente, ou seja, dandoorigem a uma nova dinâmica do conjuntosistema-ambiente, que, por sua vez, cria umanova complexidade. Desta maneira, a capacida-de de controle, assim como de previsão daevolução do conjunto, diminui conforme oaumento da complexidade, precisando de maiscontrole, do processamento informacional dastrocas por meio de modelos com maior desem-penho, de "diálogos" inéditos entre pontos devista diferentes. Ou seja, torna-se necessário oaprofundamento da análise local por meio demodelos informativamente mais performantes("redutores" da complexidade) e a integraçãodas várias análises locais em uma compreensãoglobal consistente ou em uma teoria.

Então, se admitirmos que a Epidemiologia"construiu-se, historicamente, como uma disci-plina heterogênea em seus objetivos, métodos epráticas [e se] é a interdisciplinaridade [queconstitui] a característica mais marcante daciência epidemiológica" (Possas, 1991: 316),esta parece ter que inserir-se em um novoquadro epistêmico da complexidade que permitanão somente fundar a nova aliança interdiscipli-nar entre ciências naturais e ciências humanas(Prigogine & Stengers, 1979), mas tambémintegrar saúde e doença na realidade da vidaconcebida como sendo, ao mesmo tempo,natural e sócio-cultural, individual e coletiva.

A EPIDEMIOLOGIACOMO INSTRUMENTO DECONSTRUÇÃO DO REAL

No trabalho "Avances Metodológicos enEpidemiologia", apresentado no I CongressoBrasileiro de Epidemiologia, Castellanos fazuma tentativa de utilização da idéia de comple-xidade no estudo dos processos de saúde-doen-ça nas populações. Diz ele: "(...) a situação desaúde de um grupo de população inclui, emqualquer momento, fenômenos que se eviden-ciam como diferenças (variações) na freqüênciaou intensidade, ao nível de indivíduos; fenôme-nos que se evidenciam como diferenças entregrupos; e fenômenos que se evidenciam comodiferenças entre formações sociais" (Castella-nos, 1990: 204). Para este autor, haveria, desta

forma, uma complexidade originária da estrutu-ra da situação de saúde que englobaria diversasdimensões da realidade e que seria, portanto,objetivável. Sua abordagem conduz ao privile-giamento da idéia de complexidade aplicada adeterminantes ao nível do Estado, paralelamenteà complexidade "de processo". Isto implicariauma postura de sustentação de uma práxis porparte dos epidemiólogos, que "não podemrenunciar ao estudo da situação de saúde dediferentes grupos de população sem que istosignifique um sacrifício da possibilidade demobilização de recursos e de participar noprocesso decisório dos atores sociais" (Castel-lanos, 1990: 205). Apesar de sugerir umaobrigatória "militância" por parte do epidemio-logista ao desempenhar seu papel social, o quedaria margem a uma importante discussão, nãoé este o objetivo deste trabalho. Neste ponto,importa enfatizar a dimensão heurística encon-trada no desenvolvimento de Castellanos.

No intuito de melhor esclarecer este aspecto,é preciso situar a discussão sob dois pontos devista: o primeiro, diacrônico e o segundo,sincrônico. Do ponto de vista diacrônico, valea referência à tipologia quanto à evolução daEpidemiologia em três grandes períodos, apre-sentada pelo Prof. Rodrigues da Silva:

"• Epidemiologia da constituição pestilencial edos miasmas: relacionada às teorias pré-pas-teurianas, a partir da primeira metade doséculo XIX;

• Epidemiologia dos modos de transmissão:coincidente com o início da era bacteriológi-ca, responsável pelo estudo das doençasinfecto-contagiosas, desde o final do séculopassado até os anos 50;

• Epidemiologia dos fatores de risco: cujoobjeto principal de estudo são as doençascrônico-degenerativas, tendo-se desenvolvidoaté os dias atuais" (Rodrigues da Silva, 1990:111).

Segundo Rodrigues da Silva, é possívellocalizar correntes explicativas alternativas àpredominância das teorias hegemônicas. Levan-do isto em consideração, destaca o papel dachamada Epidemiologia Social como teoria não-hegemônica que se antepôs à Epidemiologia dosfatores de risco.

Por outro ângulo, a partir de um ponto devista sincrônico, o campo investigativo daEpidemiologia dita clássica (dos fatores derisco) está, atualmente, sendo local de confla-grações. Temos, por um lado, a chamada Epide-miologia Social (ou Crítica), na busca de umaconfiguração mais abrangente e equilibrada nosseus pólos de pesquisa (epistemológico, teórico,morfológico e técnico), de modo a consolidarsua proposta alternativa (e emancipatória) decompreensão dos determinantes do processosaúde-doença em populações concretas, comcaracterísticas históricas e sociais próprias(Gonçalves, 1990). Por outro, num movimentoaparentemente mais vigoroso, a denominadaEpidemiologia Clínica discute a validade cientí-fica do empreendimento epidemiológico, quenão se baseia no "paradigma" dos ensaiosclínicos controlados (Feinstein, 1989, Almeida-Filho, 1992).

É importante ressaltar o papel fundamental daEpidemiologia Social em denunciar as reduções(e tendenciosidades) das teorias hegemônicas —especialmente a propriedade de equalizar (e,assim, minimizar) as variáveis econômicas esociais ao mesmo nível das demais variáveis(de pessoa, tempo e lugar), sem destacar adimensão histórica na determinação do processosaúde-doença, assim como as abordagens mera-mente descritivas das relações entre o campo dasaúde e o todo social (Garcia, 1983). Por suavez, a Epidemiologia Social, ao mesmo tempoque ressaltava o papel "determinante" dasdesigualdades sócio-econômicas no processo deadoecimento das populações (ao ancorar-senuma proposta de deslocamento do pólo teóricopositivista para o pólo materialista), viu-sesitiada, por um flanco, pelos questionamentosque atingem os modelos explicativos marxistase, pelo outro, pelas discussões epistemológicasacerca da crise dos paradigmas na ciência. Umade suas dificuldades está relacionada ao queBateson chamou confusão de tipos lógicos(Bateson, 1979): como conceituar as variáveisdo nível social e operar com as mesmas e comorelacioná-las às variáveis do nível individual?Isto é, de que modo variáveis consideradascomo pertencentes à dimensão macro-social(por exemplo, classe social) teriam nexoscausais diretos (ou "determinações") com aocorrência de agravos específicos à saúde

detectados ao nível micro-social? Desta forma,o estabelecimento das probabilidades de morbi-mortalidade conforme os diversos modos deinserção no processo econômico não é suficien-te para definir a existência de nexos causais oudeterminantes entre os níveis "social" e "indivi-dual" (Possas, 1990). Assim, parece ser neces-sária uma mediação entre os dois níveis, e,então, a falta de um nível de organizaçãointermediário bem-estabelecido, isto é, com suaidentidade teórica definida, nos conduz a consi-derar que a demarcação de relações de causa-efeito entre os níveis citados é insatisfatória.Haverá, quando muito, conexões — mas sempermitir afirmações de causalidade (Sabroza,Comunicação Pessoal, 1991).

Como foi referido anteriormente, a discussãode Castellanos sobre a utilização da idéia decomplexidade na Epidemiologia sugere démar-ches promissoras ao apontar para a "necessida-de de assumir a realidade como estruturada emdiferentes níveis de organização e complexida-de" e considerar a possibilidade de abordá-lamediante o estabelecimento de níveis interme-diários de análise, seja o grupo, a comunidade,a família, através de uma matriz de dadoscomposta por unidades de análise, variáveis evalores de tais variáveis (Castellanos, 1990:206). Tais níveis intermediários constituiriam olugar de articulação em que se define a interfa-cialidade entre saúde/doença, individual/coleti-vo, biológico/social, sistema/ambiente, isto é, asnovas fronteiras prático-discursivas dos atuaisproblemas epidemiológicos. Fronteiras que são,ao mesmo tempo, regiões de articulação deproblemas e lugares de incerteza da teoria. Estaordem de questões pode ser exemplificada pelosestudos epidemiológicos sobre o estresse, cujosproblemas conceituais e metodológicos ilustramas dificuldades pelas quais passa o campoepidemiológico (Castiel, 1992).

Por outro lado, é preciso desenvolver a teori-zação subjacente à idéia de "fator de risco". Arigor, ela introduz um atributo de identidadeentre o possível e o provável, trazendo opressuposto de que o provável é quantificável.Tal concepção acentuaria, a princípio, a di-mensão preditiva da disciplina. Para isto seconcretizar de fato, inclui-se um elemento dehomogeneização: os objetos de estudo (via deregra, amostras populacionais) são comparáveis

e generalizáveis às populações gerais (desdeque sejam seguidos certos critérios "metodoló-gicos" e tomadas algumas precauções). Assim,há a possibilidade de operar-se uma confusãode tipos lógicos, pois se produz um desloca-mento do estatuto de "fator de risco" — confor-me um "padrão" de exposição achado numaamostra considerada representativa de umadeterminada população-alvo (que se situa numtipo lógico) para a população geral (tipo lógicohierarquicamente superior) e, por sua vez, parao nível individual (tipo lógico inferior), atri-buindo-lhe um "risco" (no sentido de ameaça deum dano) de ser atingido pelo efeito em ques-tão, caso haja uma exposição correspondente(Almeida-Filho, 1992). Em suma, na verdade,estes pressupostos oferecem problemas deconfusão de tipos lógicos — variáveis localiza-das em uma dada dimensão (populacional)talvez não possuam o mesmo comportamento seconsideradas ao nível do indivíduo. Em termosepidemiológicos, as causas da incidência deuma doença podem ser distintas das causas daocorrência do caso individual (Rose, 1984).Além disso, têm-se percebido um emprego danoção de "risco" como uma categoria submetidaà crescente medicalização, isto é, uma reduçãoque poderíamos chamar de tipo pragmático-funcional. Desta forma, o "risco" adquire oestatuto de entidade passível de intervenção e,com isto, geradora do consumo de práticasterapêuticas e preventivas próprias (Almeida -Filho, 1992).

Por sua vez, a característica quantificadora,base para a busca de nexos causais (e a conse-qüente capacidade de previsão), estimulada pelaproliferação de recursos computacionais e detécnicas estatísticas de análise (Susser, 1991),vê-se na contingência de dar conta dos fenôme-nos de interação e sinergismo entre os possíveisfatores causais (Sabroza, Comunicação Pessoal,1991). Neste caso, a agregação destes compo-nentes gera a emergência de uma nova "quali-dade", com propriedades que ultrapassam aspropriedades dos componentes individuais,considerados isoladamente. Teríamos, então, umcomportamento "mais complexo", regido porfunções não-lineares.

Então, se encararmos a complexidade comocaracterística dos sistemas auto-organizados,estes deveriam dispor de: redundância —

repetição de módulos estruturais e funcionais(Bourguignon, 1990), ou, conforme a teoria dainformação, um afastamento previsível daaleatoriedade (onde cada nova unidade deinformação pode ser prevista pela anterior)(Gleick, 1990); e de fidedignidade (ou confia-bilidade) — capacidade de resistir às pertur-bações aleatórias (ruído), que está relacionadaàs propriedades inerciais do sistema: quantomais fidedigno, menor é a probabilidade deocorrerem erros. Desta forma, a ordem de umsistema auto-organizado implica uma estrutu-ração em patamares e depende de um jogo deinterações entre o sistema e o meio. Relaciona-se ao caráter redundante e à fidedignidade destesistema. Assim, a complexidade está indicadapelas seguintes características: grande variedadede elementos de diversas categorias, que pos-suem funções especializadas; organização desteselementos em níveis hierárquicos; multiplicida-de de relações entre elementos e níveis (conec-tividade); interações entre os níveis que nãoseguem padrões lineares (Jacquard, 1988;Bourguignon, 1990). A auto-organização estárelacionada ao fato do ruído (seja exógeno ouendógeno) elevar a quantidade de informaçãodo sistema, ao mesmo tempo que esta é reduzi-da pelo acúmulo de erros. Para que haja equilí-brio, é preciso um determinado grau de comple-xidade, com redundância e fidedignidade (e suarelação) em níveis satisfatórios para o funciona-mento compatível com a sobrevivência do servivo. Quando os estímulos aleatórios encontramuma estrutura com poder auto-organizador, aoinvés de destruí-la, provocam mudanças nosentido de ampliar sua complexidade. Taismodificações implicam novas propriedades, nãoprevistas em seus pormenores, de modo apropiciar uma autoprodução de significação e,simultaneamente, um certo grau de indetermi-nação (Bourguignon, 1990).

Na Epidemiologia, tal situação é discutida porAlmeida Filho ao delinear as características deuma nova configuração paradigmática, de modoa incluir a abordagem complexa do processosaúde/doença. Esta constituir-se-ia sob a égidede um paradigma — "3" — que superaria aslimitações dos paradigmas "1" (da epidemiolo-gia dos modos de transmissão) e "2" (da epide-miologia dos fatores de risco). Assim, ter-se-ia"um objeto-totalizado", "modelos de sistemas

dinâmicos" (ou, melhor dizendo, instáveis)regidos por "interdeterminação" (sistemas decausação circular), descritos por "funções não-lineares" e representados graficamente poratratores (estranhos) (Almeida-Filho, 1990).

Nesta perspectiva, existem, nas CiênciasNaturais, tentativas de mensurar a complexidadeem sistemas evolutivos mediante modelosmatemáticos. Tais procedimentos têm sidoempregados com a finalidade básica de simular,na medida do possível, as circunstâncias deocorrência dos fenômenos e, em função disto,prever o comportamento das variáveis de inte-resse.

O uso de modelagem em epidemiologia podeser rastreado nos trabalhos de Sir Ronald Rosssobre a malária, através de sua teoria dosacontecimentos (Ross, 1910). Mais recente-mente, surgiram na Epidemiologia tentativas delidar com os já referidos problemas: a generali-zação dos achados de estudos amostrais (Mietti-nen, 1985) e os problemas das passagens entrediferentes níveis de organização (Susser, 1973),seja através da discussão metodológica relativaaos estudos ecológicos (Morgenstern, 1985;Piantadosi et al., 1988), seja mediante propostasde "modelização qualitativa" dos sistemasdinâmicos (Puccia & Levins, 1985) ou a partirdas elaborações matemáticas acerca (a) deacontecimentos dependentes (Halloran & Stru-chiner, 1991); (b) dos estudos epidemiológicosbaseados na teoria do caos (Olsen & Schaffer,1990); (c) da teoria da epigênese (patogêneseepidemiológica) aplicada ao relacionamento dapatogênese no indivíduo e aos padrões dedoença em populações (Koopman & Weed,1990), entre outros.

Em geral, os estudos de doenças mediantemodelagem matemática parecem ser úteis emdeterminadas situações nas quais têm-se oconhecimento (e controle) das variáveis interve-nientes. Via de regra, os modelos estocásticossão considerados os mais apropriados para talfinalidade (Sanches, 1984). No entanto, omodelo precisa ser "calibrado" conforme cadacontexto de aplicação para se verificar o graude ajustamento à "realidade" que se propõesimular (Sanches, Comunicação Pessoal, 1992).

Por outro lado, é preciso levar em conta que,com freqüência, os processos biológicos assu-mem comportamentos cujas leis não são conhe-

cidas, sendo impossível determinar todas asvariáveis intervenientes no sistema e suasintrincações. Sanches sublinha que a complexi-dade, nestas situações, decorreria da interaçãoentre o pesquisador e o fenômeno estudado,resultante da abordagem mensuradora. Destemodo, seria possível conceber patamares dife-renciados de complexidade conforme a magni-tude de tal interação (Sanches, 1984).

De qualquer maneira, a perspectiva de mode-lização dos sistemas dinâmicos concebe oobjeto de estudo como sendo determinado porfatores que se modificam durante o próprioprocesso de determinação, de tal modo que osparâmetros sofrem variações no decorrer doevento (Almeida-Filho, 1992). Mas, nesteponto, cabe perguntar se esta via de modeli-zação matemática de sistemas dinâmicos seriaindiciária de propostas de avanço teórico nocampo. Ou seja, estaria vinculada a um movi-mento de transformação da Epidemiologia,junto com a mudança do quadro epistêmico,diante da crise dos paradigmas científicostradicionais e da emergência de novas questõespertinentes na especificidade histórica da nossaépoca? Ou, então, constituir-se-ia numa tentati-va de sustentação do modelo racionalista deciência, caudatário do empiricismo (enquantomantenedor de cientificidade), que procura selegitimar mediante o panegírico do método e dasofisticação tecnológica no processamento dainformação? Tais características no empreendi-mento investigativo foram levadas ao paroxismona Epidemiologia, com a proliferação dastécnicas de análise multivariada, e viabilizadaspelo grande acesso aos recursos computacio-nais. Como diz Susser — um insuspeito epide-miologista "tradicional" —, "as variáveis anali-sadas são múltiplas, mas estão freqüentementedivorciadas tanto do substrato biológico comodo contexto societário" (Susser, 1989: 481).Mesmo assim, nesta altura, ainda é prematuraqualquer definição quanto ao significado pro-missor do emprego da modelagem matemáticade sistemas dinâmicos, no sentido de viabilizaravanços na pesquisa epidemiológica com vistasa propor respostas mais resolutivas no que serefere à morbi-mortalidade no panorama dasaúde contemporânea.

De qualquer forma, caso se reconheça aexistência (ou a necessidade) de várias epide-

miologias no lugar da abordagem epidemiológi-ca tradicional, isto implica novos recortes quepermitam individualizar, no interior de ummesmo quadro epistêmico, várias identidadesespecíficas de cada disciplina epidemiológica,conforme o grau de desenvolvimento e aprofun-damento alcançado em cada território. Como foimencionado no início deste ensaio, há sinais deinquietação nas hostes epidemiológicas, sugerin-do uma "crise na Epidemiologia" (Almeida-Filho, 1992), que parecem apontar para estasituação de mutação. Só que a "consciência" dacrise, o "mal-estar" que atinge o campo epide-miológico, pode ser visto como um efeito —uma espécie de alter ego — que acompanha ootimismo tecnológico da cultura ocidental nomomento da sua maior potência universalizante.Esta crise pode, portanto, ser entendida de duasmaneiras interligadas: 1) como consciência daerosão interna e/ou externa dos fundamentossobre os quais baseiam-se uma prática e umsaber (nesta situação, a crise teria nascido coma consciência crítica, a "suspeita" e o "relativis-mo" do século XX); ou 2) como complexifi-cação dos pontos de vista sobre o real (plurali-dade e complementaridade dos pontos de vista,interdisciplinaridade), isto é, como consciênciada complexificação que transforma o quadroepistêmico tradicional. É esta "transformação"de todo o quadro epistêmico que caracterizauma revolução científica e que envolve a"simples" mudança ou substituição de paradig-mas. É por esta razão, pensamos, que o proble-ma da complexidade não pode ser reduzido àemergência de um "paradigma da complexida-de" que tornar-se-ia dominante, pois trata-se deuma transformação mais radical da inteiraWeltanschauung de uma época. Ou seja, aemergência de um "novo espírito científico" nointerior de uma "nova visão de mundo", acopla-da a um novo Zeitgeist, situação esta quedemanda uma nova "síntese", a partir dasinterfaces das disciplinas existentes.

Esta exigência de "síntese" manifesta-se comparticular insistência na necessidade da transdis-ciplinaridade, a qual se exprime cada vez maisnas ciências; na integração, por exemplo, entremodelos relativos a campos de investigaçãodiferentes. Neste caso, a busca de analogias naexplicação relaciona-se, necessariamente, coma aspiração em descobrir (ou, mais precisamen-

te, em construir) a unidade na diversidade. Noque diz respeito à inteligibilidade, esta dependeda linguagem utilizada, ou seja, da condição deuma linguagem bem definida e de regras expli-citáveis. É somente no sentido desta condiçãoepistemológica, pensamos, que é possível falarem objetividade científica, e não no sentidoainda presente nas ciências, de "reflexo" do realpela teoria (representacionismo). Dito de outramaneira, se uma certa adequação "ao limite"entre real e conhecimento parece inelimináveldo imaginário científico para evitar as cons-truções mais arbitrárias, tal adequação, noentanto, não seria uma forma de representaçãodo real pela teoria. A adequação seria mais dotipo "coerência" na construção de parâmetros,modelos ou teorias, e entidades significativas doreal escolhidas, ou seja, na pertinência entreracionalidade interna construída na teoria eracionalidade externa suposta no real. Estacoerência é possível somente se as relaçõesexternas são semanticamente concebíveis,independentemente do grau de aproximaçãoatingido. Em outras palavras, a objetividadeseria, em primeiro lugar e racionalisticamentefalando, uma explicitação semanticamentecorreta, e é neste sentido que podemos falar emconstrutivismo.

Mas, admitindo-se esta forma não-radical deconstrutivismo, coloca-se uma série de questõescríticas fundamentais. A primeira e a maisgeral: existe uma forma ideal (eficaz) de expli-cação dos fenômenos? A segunda, que é umdesdobramento da primeira: se a resposta forsim, existe uma diferenciação mais precisa entremodelo e teoria que não a da menor ou maiorabrangência cognoscente? No caso de umaresposta afirmativa, é possível um melhorequilíbrio entre modelo e teoria, entre expli-cação e compreensão? Seria pretensão nossaresponder aqui diretamente a questões funda-mentais que transcendem ao campo epidemioló-gico, pois são constitutivas do próprio fazercientífico. Limitaremo-nos, portanto, a algumasconsiderações "preliminares".

Em primeiro lugar, se uma teoria ideal éaquela que tem uma certeza completa da valida-de dos seus princípios e esquemas explicativos(i.e., dos seus pontos de vista), ela estariacondenada a ser não falsificável; em termospopperianos, ela não seria propriamente científi-

ca. Com efeito, a "incerteza" faz parte doZeitgeist atual e afeta também o saber científicocontemporâneo (considere-se só a importânciada "teoria do erro" na Física), na medida emque todo ponto de vista, por mais complexo queele se conceba, sempre é apenas um dispositivoque o sujeito cognoscente constrói para seaproximar do real, recriando-o e tornando-ointeligível o mais que se possa. Sem este dispo-sitivo, o real não se dá ao sujeito, pois ele ésuscetível de ser conhecido por meio de umasérie aberta de pontos de vista pertinentes paraos sujeitos da prática cognoscente. Assim, se aciência parece estar "condenada" à incerteza eà abertura — à precariedade e à falsificabilida-de, como condições dos seus avanços —, elaparece também ter que "se salvar" por meio daeficácia prática dos conhecimentos adquiridos,isto é, ela deve ser funcional. Todavia, o "desti-no" técnico-científico da procura da eficáciaprática implica a existência contínua de conhe-cimentos empíricos mais eficazes, ou seja,melhores do próprio ponto de vista pragmático.De tal maneira, a redução pragmática da ciênciasubmete esta a um processo "autofágico" deobsolescência.

Um outro caminho poderia ser a construçãode dispositivos cognitivos mais coerentes doponto vista lógico, como foi o caso das tentati-vas do empirismo lógico e, em geral, do racio-nalismo. Mas também este caminho tem umalimitação significativa, na medida em queescamoteia a questão da confrontação com oempírico.

No entanto, o que seria, de fato, uma expli-cação consistente que desse conta de fenômenosreais, em si independentes de um observador,mas acoplados a este no processo de conheci-mento? Ela deveria ter alguma "conformidade"com o real para poder aprendê-lo? Dito de outraforma, como pode uma explicação ser verossí-mil? Esta "verossimilhança" pressupõe umconhecimento do tipo analógico que "assegura-ria" melhor o real. A capacidade em estabeleceranalogias constituiria, então, uma qualidadeemergente da matéria viva e pensante que, aose pensar, conseguiria estabelecer as relaçõessignificativas com o real, ao invés de se pensarcomo separada.

Um dos pensadores que mais contribuiu paraa reformulação desta nova maneira de conceber

as relações entre conhecimento e real foi oantropólogo Gregory Bateson. Para este autor,qualquer definição dada é uma relação "constru-ída" que está também inscrita no real que nós"representamos". Isto pressupõe que, na base detodo fenômeno, existe uma estrutura queconecta tal fenômeno com os outros (Bateson,1972, 1979). O "tecido" constituído pelas"coisas vivas" seria fabricado pela mente não demaneira lógica, mas primordialmente de manei-ra analógica, ou, para utilizar os termos deBateson, metaforicamente. No mundo da vida,existiriam sempre cadeias circulares de causase efeitos (feedbacks), nas quais os efeitostornam-se causas e, portanto, a metáfora estariana base da vida como um tipo particular dorelacionar-se. Assim, se a lógica constituiria uminstrumento poderoso e "elegante" para descre-ver sistemas lineares de causas e efeitos, poucoimporta se múltiplos, ela revelar-se-ia insufi-ciente para dar conta de sistemas circulares(como os sistemas vivos), pois geraria parado-xos de tipo lógico. O traço fundamental deste"novo paradigma" consistiria, então, na passa-gem do enfoque estático e "representacionista"dos objetos para o enfoque "construtivista" dasrelações entre objetos que, como no caso dosseres vivos, são sempre relações dinâmicas e,em parte, imprevisíveis. Para Bateson, estapassagem dos "objetos" para as "relações" éuma condição necessária para toda análise dosseres vivos, porque a própria forma biológicacompor-se-ia de relações, e não de partes. Emoutras palavras, as relações seriam uma peculia-ridade de todo o mundo dos viventes e, dentrodeste, existiria uma qualidade emergente eauto-reflexiva constituída pela própria "mente"ou "espírito", ou seja, a capacidade de construirrelações de relações. Assim, para que se pudes-se dizer algo de pertinente sobre aquilo quepertence à vida, seria indispensável utilizar umalinguagem que falasse de relações e não deobjetos. Além disso, tais relações deveriam serconsideradas como dinâmicas, isto é, sujeitas aotempo e à história. A própria causalidade deve-ria ser pensada de maneira dinâmica, pois acausa estaria sempre submetida à retroação doefeito. A estrutura da "natureza" e a da "mente"constituiria, então, uma unidade necessária(Bateson, 1979). Toda discussão sobre proces-sos não poderia esquecer esta "complexidade"

inscrita na própria vida que se pensa e quepensa que pensa, e toda modelização ou teori-zação estaria limitada pela própria obsolescên-cia inelutável, devido às produções que mudamao longo do tempo e da história e, a princípio,se aperfeiçoam. Todo modelo or teoria sobreaspectos da vida seria, então, um instrumentoprecário sobre um mundo ao mesmo temponatural e histórico, em constante complexifi-cação.

Entretanto, modelos e teorias são precáriostambém de um outro ponto de vista, o qualchamaremos de antropológico e que concernea dependência do homem da própria cultura,isto é, da sua inserção particular no quadroepistêmico do próprio tempo. Esta inserção é dotipo necessário, a tal ponto que o conhecimentoproduzido se torna uma espécie de verdadeira"segunda natureza", que garante a pertinênciado conhecimento. Este fato, apontado porGeertz na Antropologia (Geertz, 1975), temduas conseqüências pragmáticas importantes nanossa discussão. Em primeiro lugar, porquemodelos e teorias parecem ser tanto maiseficientes quanto mais "naturalizados, isto é,eficazes, na medida em que são tidos como"reflexos" da própria realidade, conseqüênciasdo próprio objeto, e não construções de umsujeito em interação com um ambiente ao qualele pertence enquanto sistema. A longa estaçãodo empirismo nas ciências provavelmente tema ver com a resistência deste tipo de naturali-zação. Em segundo lugar, a utilização de mode-los e teorias na prática científica transforma-osem função do princípio da "melhor performati-vidade" na abordagem do real (Lyotard, 1979).Assim, modelos e teorias se diferenciam, en-tram em crise, tornam-se obsoletos e criam ascondições para a emergência de outros pontosde vista, de outros paradigmas (Kuhn, 1975).

Desta maneira, modelos e teorias estão sub-metidos a um movimento aparentemente contra-ditório de conservação (devido ao poder de"naturalização") e de transformação (por causada lei da "performatividade"), fato que lhesconfere um estatuto, por assim dizer, "parado-xal". Com efeito, se, por um lado, eles precisamde uma certa estabilidade para que possam serutilizados (e a dificuldade de se pensar emtermos "dinâmicos" ilustraria esta resistência),por outro lado, eles estão submetidos à lógica

implacável da obsolescência pelo próprio fatoda evolução do conhecimento, pela emergênciade novos pontos de vista e de novas necessida-des práticas. Assim, a precariedade de modelose teorias aparece no exato momento em queestes são testados. E não poderia ser diferente,pois, para serem produtivos, ou "vivos" (opróprio Bateson, entre outros, fala em "vida"das idéias), modelos e teorias devem se subme-ter às necessárias transformações requeridaspela integração de novos pontos de vista e denovas exigências pragmáticas.

PARA NÃO CONCLUIR

Em resumo, encaramos a "crise" da Epide-miologia como uma "crise" que atinge pratica-mente o inteiro edifício do saber. Entretanto, épossível supor que, devido aos novos desafiospara a Saúde Pública, combinados aos velhosproblemas ainda não resolvidos, a "crise daepidemiologia" seja, de fato, uma crise de"crescimento" ou de complexificação que,juntando o velho ao novo, configura um novouniverso prático-discursivo sobre saúde/doença.Alguns epistemólogos contemporâneos qualifi-cam esta nova situação como um desafio dacomplexidade (Bocchi & Ceruti, 1987), ouseja, como uma situação em que existe a neces-sidade de se pensar e agir não em termos deobjetos, mas em termos de relações. Assim, o"complexo" seria, literalmente, a marca de"aquilo que está junto", como é o caso dosorganismos vivos, dos grupos, das populações,do ambiente.

Contudo, quando se fala, hoje, em "paradigmada complexidade", comete-se um abuso episte-mológico reduzindo-se a Weltanschauung e oZeitgeist da complexidade a um simples para-digma. Como afirma a epistemóloga IsabelleStengers, a complexidade "não se refere a umadisciplina específica nem a um conjunto detécnicas suscetíveis de resolver classes deproblemas definidos, [ela representa o] desper-tar para um problema, uma tomada de cons-ciência (...) expressa de modo não somenteintelectual, como também ético" (Bocchi &Ceruti, 1987: 61). É nesta junção entre "estéti-co" e "ético" que o "desafio da complexidade"corresponde a uma "gênese conceitual" (Sten-

gers, 1990), à mudança do ponto de vista sobreo padrão que une (Bateson, 1979), isto é, aum novo enfoque sobre a própria vida. Porém,se a descoberta do desafio da complexidadeimpõe uma "nova relação de conhecimento",assim como um novo enfoque das relaçõeséticas, ela não pode, no entanto, ser tida como"uma panacéia universal, [pois ela constitui] adescoberta de problemas, mais do que desoluções" (Stengers, 1990: 80).

Neste sentido, a "crise" da Epidemiologiaseria uma crise específica da insuficiência departe dos seus próprios instrumentos, que setornam inevitavelmente obsoletos (os esforçosrecentes de produção de novas abordagens,citadas anteriormente, apontam, inevitavelmen-te, para a admissão deste problema) devido àemergência de novos desafios externos para asaúde individual e coletiva que se juntam aosantigos desafios não resolvidos. E, também,trata-se de uma crise de crescimento interno àdisciplina, devido às novas "bricolagens" (comodiria Lévi-Strauss) que necessariamente sãopensadas e feitas para sustentar tais desafios,tentando, apesar de tudo, recuperar, na comple-xidade crescente do mundo atual, algo parecidocom o exercício racional da previsão, conscien-te da incerteza que necessariamente a desafia.

AGRADECIMENTOS

Queremos agradecer aos consultores peloempenho e pertinência de seus comentários.Uma menção especial ao Prof. C. J. Struchiner,que enriqueceu muito o artigo com seus aportese detalhadas indicações bibliográficas.

RESUMO

SCHRAMM, F. R. & CASTIEL, L. D.Processo Saúde/Doença e Complexidade emEpidemiologia. Cad. Saúde Públ., Rio deJaneiro, 8 (4): 379-390, out/dez, 1992.O emprego da idéia de complexidade emepidemiologia serve para assinalar as crises,tanto no domínio interno da disciplina —resultante de uma cada vez mais evidentelimitação de seus instrumentos conceituais

(modelos e teorias) para lidar com a realidadeconcreta da saúde — como no domínio docontexto cultural (paradigmas, quadroepistêmico, Zeitgeist, Weltanschauung) noqual os problemas de saúde estão inscritos.Apesar de ambas as abordagens serempertinentes, sob a ótica do sistema e doambiente, sua separação leva a uma apreensãorestrita dos atuais desafios no campo sanitário,e, portanto, insuficiente para promover asaúde e o bem-estar de indivíduos, populaçõese biosfera. A idéia de complexidade propõe-sea ultrapassar esta precariedade, apontando oreducionismo das dicotomias oriundas da eramoderna, que tende a não estar equipado paraperceber o universo composto por relações eemergências de novas propriedades ao setransitar por níveis diferenciados deorganização. Além disso, discute modos deencarar os processos que ocorrem entre osseres vivos de maneira a incluir dimensõesdinâmicas, evolutivas e históricas. Assim, háindícios de crise da Epidemiologia queapontam para a necessidade dacomplexificação de seus instrumentos prático-discursivos, de forma a viabilizar construçõesmais satisfatórias do processo saúde-doença.Palavras-Chave: Epidemiologia,Epistemologia, Complexidade

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