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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social AMANDA YARA GENEROZO PRODUÇÃO DE SENTIDOS NA INFÂNCIA: MEDIAÇÕES NA RECEPÇÃO DA SÉRIE DE ANIMAÇÃO DOUG FUNNIE São Bernardo do Campo, 2015

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

AMANDA YARA GENEROZO

PRODUÇÃO DE SENTIDOS NA INFÂNCIA:

MEDIAÇÕES NA RECEPÇÃO DA SÉRIE DE

ANIMAÇÃO DOUG FUNNIE

São Bernardo do Campo, 2015

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

AMANDA YARA GENEROZO

PRODUÇÃO DE SENTIDOS NA INFÂNCIA:

MEDIAÇÕES NA RECEPÇÃO DA SÉRIE DE

ANIMAÇÃO DOUG FUNNIE

Dissertação apresentada em cumprimento

parcial às exigências do Programa de

Pós-Graduação em Comunicação Social,

da Universidade Metodista de São Paulo

(UMESP), para obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Laan Mendes de Barros.

São Bernardo do Campo, 2015

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FICHA CATALOGRÁFICA

G286p Generozo, Amanda Yara

Produção de sentidos na infância: mediações na recepção da série de

animação Doug Funnie / Amanda Yara Generozo. 2015.

135 p.

Dissertação (mestrado em Comunicação Social) --Faculdade de

Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do

Campo, 2015.

Orientação: Laan Mendes de Barros

1. Narrativa seriada 2. Recepção - Televisão 3. Mediação 4. Doug

Funnie (Seriado) 5. Telespectador infantil I. Título.

CDD 302.2

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FOLHA DE APROVAÇÃO

A dissertação de mestrado sob o título “Produção de sentidos na infância: mediações na

recepção da série de animação Doug Funnie”, elaborada por Amanda Yara Generozo, foi

defendida e aprovada em 10 de março de 2015, perante a banca examinadora composta por

Profa. Dra. Elizabeth Moraes Gonçalves (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Laan Mendes de

Barros (Titular/UNESP) e Profa. Dra. Maria Isabel Rodrigues Orofino (Titular/ESPM).

Declaro que o (a) autor(a) incorporou as modificações sugeridas pela banca examinadora, sob

a minha anuência enquanto orientador(a), nos termos do Art. 34 do Regulamento dos Cursos

de Pós-Graduação.

Assinatura do orientador:

Nome do orientador: Prof. Dr. Laan Mendes de Barros

Data: São Bernardo do Campo, 08 de maio de 2015.

Visto do coordenador do Programa de Pós-Graduação:

Área de concentração: Processos Comunicacionais

Linha de pesquisa: Comunicação Midiática nas Interações Sociais

Projeto temático: Mediações nos Processos de Recepção Televisiva

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À minha sobrinha, Rafaela Generozo

Balthazar, que motivou e inspirou esta

pesquisa.

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Em sua interação com as demais crianças na

escola ou no bairro, se dão uma ou várias re-

apropriações e se re-produz o sentido do que

foi visto na TV. Dessa maneira, o processo de

recepção “sai do lugar” em que está a

televisão e “circula” em outros cenários, em

que seguem atuando os telespectadores. Em

todos esses cenários, o processo de recepção

vai sendo mediado tanto pelas novas

situações, como pelos agentes e instituições

envolvidos (OROZCO, 2005, p. 34).

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, prof. Dr. Laan Mendes de Barros, por compartilhar seu conhecimento e

pela paciência e dedicação durante esta jornada;

À minha amiga profa. Ms. Aparecida Ribeiro dos Santos, por quem tenho profunda admiração

e respeito, pelo incentivo e apoio incondicional;

À Universidade Metodista de São Paulo;

Ao corpo docente do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Comunicação Social, em

especial, às professoras Dra. Elizabeth Gonçalves e Dra. Magali do Nascimento Cunha pelas

ricas contribuições;

À professora Dra. Maria Isabel Rodrigues Orofino pelas indicações de autores e textos que

colaboraram para a construção do referencial teórico desta pesquisa;

À Estadual José Mamede de Aquino e ao Colégio Engler Abelhinha Feliz pelo espaço de

pesquisa;

À Capes.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Esquemas narrativos 50

Tabela 2 – Tipificação das relações em Doug Funnie 69

Tabela 3 – Primeira temporada de Doug Funnie (1991): estética da repetição 72

Tabela 4 – Grupo 1: Caracterização dos estudantes por idade e gênero 95

Tabela 5 – Grupo 2: Caracterização dos estudantes por idade e gênero 96

Tabela 6 – Grupo 3: Caracterização dos estudantes por idade e gênero 96

Tabela 7 – Grupo 4: Caracterização dos estudantes por idade e gênero 97

Tabela 8 – Programas televisivos preferidos (Grupos 1 e 2) 99

Tabela 9 – Programas televisivos preferidos (Grupos 3 e 4) 102

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Evolução dos brinquedos óticos 24

Figura 2 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 59” e 1’43”) 58

Figura 3 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 2’07” e 3’07”) 59

Figura 4 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 3’54” e 5’11”) 59

Figura 5 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 5’37” e 7’37”) 60

Figura 6 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 8’24” e 9’15”) 60

Figura 7 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 9’23” e 10’17”) 61

Figura 8 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 10’25” e 11’11”) 61

Figura 9 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 05” e 51”) 62

Figura 10 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 2’04” e 3’03”) 62

Figura 11 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 3’41” e 4’08”) 63

Figura 12 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 4’23” e 5’33”) 63

Figura 13 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 6’02” e 7’41”) 64

Figura 14 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 8’25” e 9’17”) 64

Figura 15 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 9’22” e 10’58”) 65

Figura 16 – Sequência em que Doug escreve em seu diário 74

Figura 17 – Animação limitada: técnica de produção versus estilo de ilustração 74

Figura 18 – Estilo animação limitada 75

Figura 19 – Representação de O tênis de Doug criada por alunos da 3a série 119

Figura 20 – Representação de O tênis de Doug criada por alunos da 3a série 120

Figura 21 – Representação de O tênis de Doug criada por alunos da 3a série 120

Figura 22 – Representação de O tênis de Doug criada por alunos da 3a série 121

Figura 23 – Representação de O tênis de Doug criada por alunos da 3a série 121

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LISTA DE ESQUEMAS

Esquema 1 – Método de análise dos episódios 66

Esquema 2 – Modelo triádico em O tênis de Doug 70

Esquema 3 – Modelo triádico em Doug cai no rock 70

Esquema 4 – Mapa das mediações 85

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 16

Estrutura da dissertação 20

CAPÍTULO I – ANIMAÇÃO, CRIANÇA E TV 23

1. Do nickelodeon às séries televisivas: breve trajetória do desenho animado 23

2. Infâncias na pós-modernidade 28

CAPÍTULO II – ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA 39

1. Hierarquia dos níveis: ações, personagens e discurso 39

2. Estética da repetição nas narrativas seriadas 45

3. Construção dos personagens de ficção 52

CAPÍTULO III – DOUG FUNNIE 57

1. Narrativas do cotidiano infantil 57

1.1. Sinopse do episódio O tênis de Doug 58

1.2. Sinopse do episódio Doug cai no rock 62

2. Desconstrução do universo ficcional 65

3. Estética da repetição e técnicas de produção 72

CAPÍTULO IV – RECEPÇÃO E MEDIAÇÕES 77

1. A gênese dos estudos de recepção: Stuart Hall e a Escola de Birmingham 77

2. Mediações comunicativas da cultura: perspectivas de Jesús Martín-Barbero 82

3. Enfoque integral da audiência: contribuições de Guillermo Orozco Gómez 88

CAPÍTULO V – PESQUISA DE RECEPÇÃO 94

1. Procedimentos metodológicos 94

2. Seleção das instituições de ensino 97

3. Corpus da pesquisa 98

3.1. Escola Estadual José Mamede de Aquino 98

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3.2. Colégio Engler Abelhinha Feliz 101

4. Dinâmicas na exibição dos episódios 103

4.1. Escola Estadual José Mamede de Aquino 103

4.2. Colégio Engler Abelhinha Feliz 110

5. Articulações entre o referencial teórico e a pesquisa de recepção 115

CONCLUSÃO 125

REFERÊNCIAS 129

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GENEROZO, Amanda Yara. Produção de sentidos na infância: mediações na recepção da

série de animação Doug Funnie. 2015. 135f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social)

– Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo.

RESUMO

Esta pesquisa propõe uma reflexão a respeito dos processos de recepção de produtos culturais

por parte do telespectador infantil. A problematização está em investigar, valendo-se dos

referenciais teóricos das mediações comunicativas da cultura e do enfoque integral da

audiência, como as crianças com idade entre 7 e 12 anos interagem com as narrativas

audiovisuais, especialmente com a série de animação televisiva, para desta perspectiva

compreender como se dão a apropriação e a produção de sentidos no cotidiano, tomando-se

por base a interpretação do desenho animado Doug Funnie. O estudo emprega como

metodologia a revisão de literatura combinada ao grupo de discussão norteado pelo modelo

teórico-metodológico da mediação múltipla formulado por Guillermo Orozco Gómez, com

base no paradigma das mediações de Jesús Martín-Barbero. A pesquisa de recepção, realizada

em ambiente escolar, constatou que a comunicação midiática é de natureza dialógica e

implica em reconhecimento e projeção do interlocutor no universo da ficção, assim, a

produção de sentidos em relação ao desenho animado não está contida no audiovisual, mas no

contexto sociocultural no qual interlocutores relacionam-se entre si e com os meios. E desta

interação emergem a compreensão e a recriação dos produtos culturais, sinalizando que as

interpretações do telespectador infantil revelam a sua maneira de ver o mundo.

Palavras-chave: Narrativa seriada. Recepção televisiva. Mediações. Telespectador infantil.

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GENEROZO, Amanda Yara. Production of meanings in childhood: mediations in reception

of the animated series Doug Funnie. 2015. 135pp. Dissertation (Master’s Degree in Social

Communication) – Metodista University of de São Paulo, São Bernardo do Campo.

ABSTRACT

The present research is intended for bringing a reflection about the reception processes of

cultural products by child viewers. The questioning lies in investigating it, making use of the

theoretical framework of communicative mediations of culture and full focus on audience,

that is, the manner how children aged between 7 and 12 interact with audiovisual stories,

especially animated television series, in order to understand, from this perspective, the

acquisition and the production of meaning in daily life, taking the interpretation of the cartoon

Doug Funnie as basis. As methodology, the study applies literature review combined with a

discussion group guided by the theoretical and methodological model of multiple mediation

formulated by Guillermo Orozco Gómez, based on the mediation paradigm of Jesús Martín-

Barbero. The reception research, carried out in the school environment, verified that media

communication has a dialogic nature and implies recognition and projection of the viewer

with the fiction universe. Therefore, the production of meaning in what concerns television

cartoon is not contained in the audiovisual scenario, but in the social and cultural context in

which interlocutors relate with each other and with the media. From this interaction,

understanding and development of cultural products emerge, then signaling that the

interpretation of the child viewers reveals their particular manner of seeing the world.

Keywords: Series narratives. Television approach. Mediations. Child viewer.

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GENEROZO, Amanda Yara. Producción del significados en la infancia: mediación en la

recepción de la serie animada Doug Funnie. 2015. 135pp. Disertación (Maestría en

Comunicación Social) – Universidad Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo.

RESUMEN

La presente investigación tiene la intención de propiciar reflexión sobre los procesos de

recepción de productos culturales por parte de niños espectadores. La indagación yace en

llevar a cabo la investigación haciendo uso del marco teórico de mediación comunicativa de

la cultura y enfoque total en la audiencia, es decir, la forma en la cual los niños entre 7 y 12

años interactúan con historias audiovisuales, especialmente series de televisión animadas,

para entender, desde esta perspectiva, la adquisición y producción del significado en la vida

diaria tomando la interpretación de la caricatura Doug Funnie como base. Como metodología,

el estudio aplica una revisión de literatura combinada con una discusión grupal guiada por el

modelo teórico y metodológico de mediación múltiple formulado por Guillermo Orozco

Gómez, basado en el paradigma de mediación de Jesús Martín-Barbero. La investigación de

recepción, llevada a cabo en un ambiente escolar, verificó que la comunicación mediática

tiene una naturaleza dialógica e implica el reconocimiento y proyección del espectador con el

universo ficticio. Por lo tanto, la producción del significado en cuanto a caricaturas televisivas

no se encuentra contenido en el escenario audiovisual sino en el contexto social y cultural en

el cual los interlocutores se relacionan unos con otros y con los medios. Desde esta

interacción emerge el entendimiento y desarrollo de productos culturales y después se señala

que la interpretación de niños espectadores revela su manera particular de ver el mundo.

Palabras clave: Series narrativas. Enfoque televisivo. Mediaciones. Niño espectador.

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INTRODUÇÃO

A televisão, com suas narrativas e personagens, está presente em 97,2%1 dos lares do

Brasil. O país é um dos maiores consumidores de TV do mundo e as crianças brasileiras2,

entre 4 a 11 anos, permanecem diariamente com a televisão ligada durante 5 horas e 22

minutos. Na TV aberta é clara a predominância de conteúdos voltados ao público adulto. Em

entrevista concedida, em 2012, ao Público na TV, da TV Brasil, Vania Lúcia Quintão

Carneiro, doutora em Educação e docente da Universidade de Brasília (UnB), alertou para a

redução significativa das atrações direcionadas aos telespectadores infantis nas principais

emissoras comerciais do país. O programa Ver TV3, exibido em 2014, também na TV Brasil,

mostrou o movimento das emissoras brasileiras para migrar a programação infantil para os

canais por assinatura, de acordo com a reportagem, entre os motivos destas mudanças na

grade televisiva estão a fraca audiência e a baixa receita advinda da publicidade. Alinhados a

esta tendência, os canais infantis da TV paga exibem cada vez mais novos desenhos animados

e diversidade de conteúdos audiovisuais. Uma pesquisa realizada pela Sophia Mind4, em

2011, revela que os canais de TV preferidos pelas crianças são aqueles em que as séries de

animação comandam a grade de programação – Discovery Kids, Cartoon, Disney Channel,

Nickelodeon e TV Rá Tim Bum. Cabe ressaltar que os canais infantis da TV por assinatura

devem, como regulamenta a Lei 12.485, disponibilizar no mínimo três horas e meia semanais

para a exibição das produções audiovisuais nacionais.

As horas dispensadas ao consumo de produtos audiovisuais indicam que as crianças

passam mais tempo em frente à TV – muitas vezes assistindo à atrações destinadas para

outras faixas etárias – do que presentes na sala de aula. Mesmo com o advento das

tecnologias, que possibilitou às infâncias novas formas de socialização, interação e

aprendizagem, em razão da desigualdade social existente no país – não apenas do ponto de

vista da aquisição de dispositivos tecnológicos, mas especialmente das competências de usos

criativos e produtivos das TICs – a televisão continua a ter importância como meio de

comunicação de massa e como instituição na formação das culturas da infância.

1 Resultados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD), realizada anualmente pelo IBGE,

relativas à TIC (Telefones Fixos e Celulares, Microcomputadores, Internet, Rádio e Televisão). 2 Dados do Painel Nacional de Televisão Ibope/Media Workstation (2012). 3 O programa Ver TV é exibido pela TV Brasil (EBC – Empresa Brasil de Comunicação) e apresenta debates

críticos a respeito do papel da televisão na sociedade brasileira. 4 Sophia Mind – empresa de pesquisa e inteligência de Mercado do grupo Bolsa de Mulher.

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Diante deste cenário, a reflexão acerca dos processos de recepção televisiva e o

telespectador infantil se torna relevante. Neste sentido, a problematização desta pesquisa está

em investigar como as crianças interagem com as narrativas audiovisuais, especificamente

com as séries de animação, para desta forma compreender como se dá a apropriação e a

produção de sentidos por parte do telespectador infantil.

No Brasil, diferente de outros países da América Latina, como o México e a Colômbia,

parte significativa das pesquisas a respeito da criança e produtos culturais (revistas, desenhos

animados, séries televisivas entre outros) toma como objeto de estudo a influência direta –

negativa ou positiva – do conteúdo midiático sobre a audiência infantil. Nesta visão teórico-

metodológica, o processo comunicacional é investigado a partir do polo do emissor e do

conteúdo de suas mensagens, em uma relação de causa e efeito com o receptor.

Esta investigação trabalha com a chave da compreensão que implica em múltiplos

trajetos de leitura. Ao assistir o desenho animado, a criança inter-relaciona a ficção ao seus

contextos de vida. E nesta perspectiva, a recepção transforma-se em uma relação dialógica,

mediada pela cultura, em que não há subordinação entre emissores e receptores, ambos são

interlocutores com competências para dialogar entre si e dialogar com os conteúdos

midiáticos, interpretá-los e produzir novos sentidos.

Embora os estudos de recepção tenham conquistado um espaço expressivo na última

década, particularmente na Compós - Associação Nacional dos Programas de Pós-

Graduação em Comunicação e na Alaic – Associação Latino Americana de Investigadores de

Comunicação, a apresentação de artigos com a temática criança e desenho animado em

processos comunicacionais de natureza dialógica não tem sido frequente. De acordo com

Nilda Jacks (2009), dentre as pesquisas empíricas de recepção realizadas na América Latina,

as mulheres e as crianças são menos estudadas. Na Compós, dos 49 textos arquivados na

biblioteca do GT Recepção: processos de interpretação, uso e consumo midiáticos, entre

2010 e 2014, apenas um traz uma abordagem a respeito de recepção e criança, contudo, a

discussão se dá na dimensão do consumo midiático. Na Alaic, dos 76 trabalhos apresentados

no GT Estudios de recepción, nos Congressos de 2010 e 2012, apenas quatro fazem referência

à recepção infantil; a interação entre criança e série de animação não foi discutida em nenhum

dos artigos.

O objetivo geral do estudo Produção de sentidos na infância: mediações na recepção

da série de animação Doug Funnie é investigar como a criança interage com a série de

animação. Especificamente, a pesquisa se propõe a:

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1. Compreender como se dá a apropriação e a produção de sentidos do telespectador

infantil tomando-se por base a interpretação do desenho animado Doug Funnie e as

mediações múltiplas que contornam a recepção;

2. Examinar como as apropriações e as representações se deslocam para as interações

sociais no ambiente da escola;

3. Identificar semelhanças e diferenças nas apropriações e representações da criança em

razão do contexto sociocultural no qual ela está inserida.

A pesquisa utilizou como metodologia a revisão de literatura combinada ao grupo de

discussão norteado pelo modelo teórico-metodológico da mediação múltipla formulado por

Guillermo Orozco Gómez com base no paradigma das mediações culturais da comunicação,

de Jesús Martín-Barbero. Para a investigação teórico-prática foram aplicados os seguintes

procedimentos metodológicos para a sistematização dos conhecimentos:

a) estudo bibliográfico e estruturação do referencial teórico;

b) observação e seleção dos episódios da série Doug Funnie;

c) análise da estrutura narrativa de Doug Funnie;

d) realização dos grupos de discussão;

e) articulações entre o referencial teórico e a pesquisa empírica.

A escolha da série Doug Funnie para estudo de recepção provocada se deu com base em

uma premissa básica: a animação cumpre as funções de entreter e educar tendo em vista a

contextualização – de personagens, temática, espacial e temporal – da narrativa. Desta forma,

pensou-se na hipótese de que este desenho animado poderia oferecer inúmeras possibilidades

de discussão – e por que não de aprendizagem – junto às crianças pesquisadas. Para os grupos

de discussão foram selecionados dois episódios: O tênis de Doug e Doug cai no rock. O

primeiro episódio debate o consumo como mediador das relações sociais na infância e o

segundo aborda a preferência cultural em termos musicais e a construção do ídolo entre as

crianças.

Para a investigação empírica foram selecionadas duas escolas que ofertam o ensino

fundamental. A Escola Estadual José Mamede de Aquino, localizada em um bairro periférico

de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, e o Colégio Engler Abelhinha Feliz,

localizado no Novo Jardim Pagani, bairro tradicional da cidade de Bauru, interior de São

Paulo.

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Em cada uma destas escolas formou-se dois grupos de crianças com idade entre 8 e 12

anos, ou seja, estudantes que cursam entre a 3a e a 5 séries do ensino fundamental. A faixa

etária dos estudantes pesquisados foi definida com base nas perspectivas social e de produção

e consumo de bens culturais. Para Piaget e Inhelder (2012), entre 7-8 e 11-12 a criança está na

fase das operações concretas na qual a socialização e a conquista da personalidade individual

tornam-se relevantes para o campo das relações interpessoais, principal temática da série de

animação Doug Funnie. Alinhada a esta concepção de Piaget e Inhelder (2012), foram

observados os critérios de segmentação praticados pela indústria do entretenimento que, de

acordo com Nesteriuk (2011), classificam-se em toddlers (até três anos de idade),

preschoolers (de três a seis anos), kids (seis a oito anos), tweens (8 a 12 anos) e teens (12 a 15

anos). Assim, as crianças envolvidas nesta pesquisa vivenciam a fase das operações concretas

e integram o segmento tweens.

Nas escolas pesquisadas, as dinâmicas5 de investigação se deram do seguinte modo:

a) diálogo inicial com as crianças participantes dos grupos de discussão;

b) exibição dos episódios de Doug Funnie (aproximadamente 12 minutos);

c) observação dos processos de recepção pelo mediador-pesquisador;

d) provocação inicial por intermédio do pesquisador;

e) dinamização da discussão com base no modelo teórico-metodológico da mediação

múltipla.

Para interpretação e análise do material de pesquisa apurado junto aos grupos de

discussão foram aplicados os procedimentos metodológicos descritos abaixo:

a) observação e descrição das dinâmicas de recepção capturadas em vídeo;

b) seleção e transcrição de trechos das discussões pertinentes ao tema da pesquisa;

c) análise e interpretação das falas transcritas;

d) articulação entre o referencial teórico e os processos de interpretação, apropriação e

produção de sentidos das crianças pesquisadas.

No nível da interpretação, esta pesquisa se propôs a relatar, com o maior nível de

precisão possível, os significados atribuídos às narrativas de Doug Funnie pelos estudantes,

sem perder de vista as experiências subjetivas das crianças e seus contextos de vida. Orozco

(2005, p. 38) esclarece que “[...] o importante com a investigação do telespectador na sua

5 A pesquisa empírica de recepção realizada com os grupos de discussão está registra em vídeo.

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interação com a TV, é descobrir os processos de recepção e as ‘práticas’ de mediação dos

quais são objeto. Para isso, basta ter ‘comparações suficientes’ e passar por cima dos casos

individuais”. No nível das articulações, as interpretações e percepções estão concatenadas ao

referencial teórico dos estudos de recepção.

Estrutura da dissertação

A dissertação está estruturada em cinco capítulos. Os capítulos I e IV revisitam os

referenciais teóricos da sociologia da infância e dos estudos de recepção para articulá-los, no

capítulo V, à pesquisa empírica com os telespectadores infantis. Os capítulos II e III são

dedicados à estrutura da narrativa na dimensão teórica e aplicada à análise da série Doug

Funnie.

CAPÍTULO I – ANIMAÇÃO, CRIANÇA E TV

Apresenta uma breve trajetória da animação, desde a invenção e a evolução dos

brinquedos óticos até os mecanismos de massificação que contribuíram para popularizar os

desenhos animados exibidos no cinema e na televisão; este capítulo traz ainda técnicas de

produção e estilos de ilustração criados no século XX que são referências universais para a

atual indústria do entretenimento. Tal trajetória é relatada com base nos textos de Alberto

Lucena Jr. e Sérgio Nesteriuk.

Em um segundo momento, o capítulo debate a contextualização das infâncias na

contemporaneidade, visualizando os modos de significação e de atuação da criança sobre o

mundo por intermédio dos processos de reprodução interpretativa que levam às novas

dinâmicas de socialização, de aprendizagem, de consumo e de interação midiática e

tecnológica, em outras palavras, às culturas das infâncias. Estas reflexões à respeito da criança

pós-moderna são fundamentadas nas teorias de Manuel Jacinto Sarmento e William Corsaro.

CAPÍTULO II – ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA

Neste capítulo, a visão estruturalista dialoga com as concepções da indústria do

entretenimento a respeito da construção das narrativas. Tais articulações são embasadas na

teoria dos níveis que analisa a organização e as relações estabelecidas entre os elementos

fundamentais da estrutura narrativa – ações, personagens e discurso. O estudo faz uma

abordagem mais específica a cerca dos personagens para compreender os recursos de

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tipicidade e verossimilhança que trabalham o reconhecimento e a projeção dos receptores no

universo ficcional. Por fim, o texto discute a estética da repetição recorrente nos produtos

culturais contemporâneos, relacionando os modos de produção aos aspectos de recepção

midiática, especialmente das narrativas seriadas. A abordagem busca subsídios teóricos nos

ensaios de Tzvetan Todorov, Roland Barthes, Umberto Eco, Omar Calabrese e Sérgio

Nesteriuk.

CAPÍTULO III – DOUG FUNNIE

Tomando-se por base o referencial teórico exposto no capítulo anterior, este capítulo

traz a análise estrutural das narrativas da série de animação Doug Funnie. A proposta é

desconstruir o universo ficcional do desenho animado para identificar as relações

estabelecidas entre os personagens, a lógica das ações nos episódios e os recursos discursivos

utilizados para narrar a história aos receptores.

CAPÍTULO IV – RECEPÇÃO E MEDIAÇÕES

Discute as mediações comunicativas da cultura e o enfoque integral da audiência como

os novos paradigmas dos estudos de recepção. Para estas perspectivas teóricas, nos processos

de comunicação, a interpretação se converte em apropriações que extrapolam os sentidos

contidos nas mensagens midiáticas para circular na sociedade, desdobrando-se em produção

de novos sentidos que são legitimados e reincorporados às práticas sociais. Neste sentido, o

receptor supera a figura do simples decodificador em busca do significado original codificado

pelo emissor para assumir o papel de interlocutor, um sujeito social em plena interação no

campo da recepção. Os autores referências para este capítulo são Jesús Martín-Barbero e

Guillermo Orozco Gómez.

CAPÍTULO V – PESQUISA DE RECEPÇÃO

Descreve, analisa e interpreta os dados coletados na pesquisa de recepção junto às

crianças com idade entre 8 e 12 anos que frequentam o ensino fundamental. A descrição relata

as dinâmicas de exibição dos episódios de Doug Funnie e o diálogo com os estudantes,

apresentando transcrições das falas captadas no ambiente escolar. A análise e a interpretação

articulam esta investigação empírica ao paradigma das mediações comunicativas da cultura,

de Jesús Martín-Barbero, e ao modelo teórico-metodológico da mediação múltipla, de

Guillermo Orozco Gómez.

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Os tempos contemporâneos incluem, nas

diferentes mudanças sociais que os

caracterizam, a reinstitucionalização da

infância. As ideias e representações sociais

sobre as crianças, bem como as suas

condições de existência, estão a sofrer

transformações significativas, em homologia

com as mudanças que ocorreram na

estruturação do espaço-tempo das vidas

quotidianas, na estrutura familiar, na escola,

nos mass-media, e no espaço público

(SARMENTO, 2004).

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CAPÍTULO I – ANIMAÇÃO, CRIANÇA E TV

1. Do nickelodeon às séries televisivas: breve trajetória do desenho animado

Em Dramaturgia de série de animação, Sérgio Nesteriuk (2011) argumenta que a

estrutura central da animação tem origem em duas manifestações artístico-culturais: primeiro,

nos registros feitos pelo homem primitivo nas cavernas, nos quais a narrativa era sustentada

pela imagem fixa; e, mais tarde, no teatro de bonecos, inventor do movimento que trouxe vida

à narrativa.

Na concepção de Alberto Lucena Junior (2011) a produção visual do desenho animado

se define na relação vital entre técnica e estética. “Técnica e estética convivem em simbiose,

nutrem-se intimamente uma da outra, permitindo desta forma uma evolução constante dos

procedimentos para a elaboração plástica” (LUCENA JR., 2011, p. 28).

A evolução das técnicas de animação se confunde com a invenção e o aperfeiçoamento

dos brinquedos óticos. Em 1645, Athanasius Kircher criou a lanterna mágica, um dispositivo

composto por uma caixa e espelhos curvos que permitia a projeção de slides pintados em

lâminas de vidro. O invento despertou o interesse de cientistas da época que perceberam no

equipamento um uso potencial para o entretenimento. De fato, no século XVIII, este

brinquedo tecnológico havia alcançado a popularidade e foi reutilizado, com poucas

adaptações, por Etienne Gaspard Robert para criar e exibir o espetáculo do gênero macabro

Fantasmagorie (LUCENA JR., 2011).

No mesmo período, o cientista Peter Mark Roget publicou uma pesquisa que contribui

para aprimorar os brinquedos óticos de ilusão do movimento. De acordo com Lucena Jr.

(2011, p. 33-34) o estudo revelou que “[...] o olho humano combina imagens vistas em

sequência num único movimento se forem exibidas rapidamente, com regularidade e

iluminação adequadas”.

A partir da experiência da lanterna mágica, responsável pelo sucesso do show

Fantasmagorie, aliada à pesquisa de Peter Mark Roget, diversos dispositivos foram

inventados, todos com a pretensão de aperfeiçoar a técnica da animação em busca de

movimentos mais convincentes aos olhos do espectador. Novas tecnologias foram aparecendo

rapidamente.

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Figura 1 – Evolução dos brinquedos óticos

Imagem elaborada pela autora da pesquisa com base no texto de Lucena Jr. (2011).

Em 1825, surgiu o taumatroscópio, mas para o campo da animação não houve nenhuma

contribuição efetiva, uma vez que o dispositivo movimentava apenas duas imagens

desenhadas nas duas faces de um círculo. Entre 1828 e 1832, Joseph Plateu e Simon von

Stampfer criaram o fenaquistoscópio e o estroboscópio que traziam a ilusão da animação por

meio de movimentos cíclicos de discos giratórios. William Horner inventou, em 1834, o

zootroscópio, utilizando os mesmos princípios tecnológicos dos brinquedos construídos pelos

cientistas Plateu e Stampfer. A partir de 1968, o flipbook começou a ser utilizado como

técnica de animação, este recurso simples, prático e de baixo investimento financeiro – um

livro com imagens sequenciais no qual os desenhos ganhavam vida por intermédio da

movimentação rápida das páginas – se tornou a principal referência para os animadores

daquela época (LUCENA JR., 2011).

Curioso notar que nesta primeira fase do cinema de animação, os principais inventores

envolvidos com as técnicas de ilusão do movimento atuavam no campo das ciências e não da

arte. Logo, durante aquele período, a animação não obteve avanços significativos em relação

à estética.

De acordo com Nesteriuk (2011) o primeiro registro de exibição de um curta-metragem

de animação data de 1892, quando o pintor Chrales-Émile Reynaud utilizou o praxinoscópio6

para apresentar as Pantomimes lumineuses no Musée Grévin, na França. As animações, com

até quinze minutos de duração, já eram elaboradas dentro de alguns princípios

cinematográficos: apresentavam cores, personagens, enredos, cenários e trilha sonora

sincronizada aos movimentos. O Teatro Óptico de Reynaud fez sucesso e cativou o público

mesmo após a invenção do cinema pelos irmãos Lumière, em 1895.

6 Brinquedo ótico estruturado por tambor, espelhos e fita de tecido transparente na qual eram feitas as ilustrações

que permitia a projeção das imagens em movimento em um cenário.

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Lucena Jr. (2011, p. 37) discorda e argumenta que as apresentações de Reynaud se

aproximavam dos shows de lanterna mágica e em razão de não ter desenvolvido uma

formulação artística acabada, o pintor não contribui para a linguagem da arte-animação. Para

Lucena Jr. (2011, p. 41), cabe ao artista plástico, James Stuart Blackton, o mérito pela

produção do primeiro desenho animado, intitulado Humorous phases of funny faces, em 1906.

Blackton fez uso, pela primeira vez, da técnica frame a frame e acrescentou à animação

efeitos especiais inspirados nas produções de Georges Méliès. Contudo, o enredo era

inexistente e a animação se resumia a uma sequência de imagens sem coerência.

Embora não haja consenso entre os dois autores, em termos de linguagem da animação,

Pantomimes lumineuses, de Reynaud, está mais próxima dos desenhos animados produzidos

atualmente por unir ilustração, movimento, trilha sonora e uma narrativa coerente com

personagens, cenários e enredo (ver animações na mídia anexa).

A partir de 1910 as animações de curta-metragem passaram a ser exibidas em pequenas

salas de projeção denominadas nickelodeons – nome que inspirou o canal de TV por

assinatura direcionado ao telespectador infantil e produtora de séries de animação

Nickelodeon. As sessões no nickelodeon tinham preços populares e eram acompanhadas por

trilha sonora ao vivo. Com o sucesso das animações de curta-metragem construídas por

narrativas únicas com até trinta minutos, os animadores perceberam uma oportunidade para

produzir e exibir séries de animação. “Ao invés de se assistir a um curta unitário, a ideia era

que universos e personagens que tivessem boa aceitação pudessem cativar o público e fazê-lo

retornar e assistir a um novo episódio” (NESTERIUK, 2011, p. 27).

Omar Calabrese (1987) e Nesteriuk (2011) concordam que a serialidade transformou

definitivamente os modos de produção e de recepção do audiovisual. Histórias fragmentadas,

descontínuas e com repetição frequente de elementos centrais – que tinha como objetivo

agilizar a produção e economizar recursos financeiros – exigiram novas competências do

telespectador para interpretar e compreender a animação.

Gradativamente, os nickelodeons foram desaparecendo para dar espaço às salas de

cinemas maiores e mais confortáveis, especialmente por conta do início da exibição dos

filmes de longa-metragem. As séries animadas atraíram espectadores para as salas de cinema

entre 1910 e 1960 (NESTERIUK, 2011).

Com a técnica mais aprimorada – a partir do uso do fotograma – a animação encontrou

em Emile Cohl e Winsor McCay os caminhos para a consolidação do status de arte autônoma.

Cohl deixou como herança para as gerações futuras de desenhistas seu estilo de linhas simples

e expressivas e estética incoerente, inspiradas no Dadaísmo e no Surrealismo.

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[...] Cohl conseguiu extraordinárias animações em movimentos de incrível fluidez,

com figuras que não se limitavam às duas dimensões do suporte, mas permitiam

explorar a profundidade virtual do espaço tridimensional através do tratamento

ilusório do escorço e do jogo perspectivo. Os elementos do universo artístico, com

suas infinitas possibilidades de sintaxe plástica, adentravam verdadeiramente no

emergente do cinema de animação, dando origem a uma nova arte (LUCENA JR.,

2011 p. 51).

McCay, por outro lado, imprimiu à animação o estilo gráfico sofisticado, referenciado

em suas histórias em quadrinhos, que se tornou uma linguagem própria do artista. A inovação,

além da estética próxima ao realismo, estava na deformação e atribuição de características de

personalidade aos personagens, utilizadas até hoje nos desenhos animados (LUCENA JR.,

2011). Nesteriuk (2011, p. 50) explica que o estilo do desenho animado compreende “[...] um

conjunto de elementos e estratégias de representação do som e da imagem capazes de

estabelecer um gosto formal comum”. Emile Cohl e Winsor McCay consolidaram dois estilos

de ilustrações – a simplicidade e o realismo – que mesmo após numerosas releituras de

animadores contemporâneos e adaptações às novas tecnologias, são identificados nas

produções audiovisuais da atualidade.

Cohl e McCay utilizaram a mesma técnica: tinta nanquim e papel arroz para produzir

cada um dos fotogramas necessários para criar um desenho animado. É possível imaginar o

quanto estes processos de criação e de produção eram dispendiosos em termos de tempo e de

recursos financeiros. Após dominada a arte e a técnica da animação – pelo menos para a

época – chegou-se a um novo empasse: a popularização do cinema fez com que a audiência

nas salas de exibição aumentasse e para suprir a demanda de prazo e de orçamento da recente

indústria do entretenimento era preciso agilizar e baratear a produção de desenhos animados,

sem perder a qualidade estética e técnica alcançada até aquele momento. Surgiram então os

estúdios de animação que implementaram a produção em escala com processos de trabalho

fragmentados que favoreciam a reutilização de elementos criados anteriormente para outras

sequências ou episódios da série animada (LUCENA JR., 2011; NESTERIUK, 2011).

Na década de 1950, teve início a produção de séries de animação para a TV. Neste

mesmo período, a United Production of America (UPA) 7 criou a técnica de animação

limitada (ou animação econômica), desenvolvida por meio do uso do acetato, permitindo que

“desenhos animados pudessem ser produzidos de maneira relativamente mais rápida e barata

também para a televisão” (NESTERIUK, 2011, p. 29). A animação limitada se destacou pela

simplicidade compositiva da ilustração. Lucena Jr. (2011, p. 129) menciona que “As

7 United Production of America (UPA) – Estúdio de animação americano fundado por Zack Schwartz, David

Hilberman e Stephen Bosustow, em 1943.

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configurações da UPA se apoiavam nas mais recentes conquistas estéticas da arte moderna

surgidas a partir do cubismo, com ênfase na geometria e nas linhas simples encontradas nas

telas de Picasso, Matisse, Modigliani, Klee, entre outros”.

A pintura, por sua vez, apresenta uma estrutura mais “chapada”, com reduzidas

variações em sua paleta de cores e em seu degradê. A retificação de formas

orgânicas e o uso de pinturas “chapadas” não chegaram a provocar grandes

incômodos ao público, visto que este novo estilo de animação está mais próximo

de uma estética contemporânea, presente nas artes e no design (NESTERIUK,

2011, p. 51).

Em oposição à animação limitada, o estilo realista – ou animação total – retrata

minuciosamente as representações do mundo real, assim, compõe a animação com traços

sofisticados e movimentos perfeitos. Para alguns animadores este estilo corresponde a “um

fator limitador de exploração de suas potencialidades criativas, estéticas e de linguagem”

(NESTERIUK, 2011, p. 50). Lucena Jr. (2011, p. 120) defende que “[...] a arte também

necessita de um mínimo de estrutura lógica a partir da qual se permita o devaneio criativo

ilimitado”. A animação total tem como principal representante os estúdios Disney.

Em 1970, as séries de animação deixaram de ser exibidas no cinema “[...] muitas destas

séries inicialmente produzidas para o cinema foram e, em alguns casos, ainda são

reaproveitadas e reprisadas em inúmeros canais de televisão por todo o mundo”

(NESTERIUK, 2011, p. 27). A massificação da TV foi a principal responsável pela mudança

na trajetória da animação: primeiro, a transição das telas do cinema para as telas da TV e,

depois, o redirecionamento das produções animadas para o público infantil. De acordo com

Lucena Jr. (2011, p. 136) “Os estúdios tradicionais passaram a desenvolver experiências com

vistas à produções que oferecessem qualidade satisfatória a baixo custo – uma tarefa

dificílima numa época em que não havia processos para automatização da animação de

personagens”. Estes deslocamentos impactaram o setor do entretenimento, visto que recriar os

personagens que faziam sucesso no cinema, produzidos em animação total, para competir

com as animações limitadas pensadas para o telespectador infantil, pouco exigente, havia se

tornado financeiramente inviável.

Nos anos 1980, o avanço da computação gráfica oportunizou novas perspectivas à

animação. A tecnologia digital foi gradativamente incorporada pelos estúdios, possibilitando

qualidade estética superior e atendimento às exigências de prazos e de orçamento da televisão.

Superados os desafios de produção, o desenho animado se firmou como um importante

produto cultural da promissora indústria do entretenimento, conquistando prestígio e espaço

nas grades da programação televisiva.

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Recentemente, com a redução da programação direcionada para as crianças nas

principais emissoras comerciais do país, a animação ganhou outras telas para exibição. Os

canais da TV por assinatura, especializados no telespectador infantil, exibem novas produções

a cada dia, exigindo dos estúdios de animação capacidade inventiva para criação e renovação

dos desenhos animados, a fim de cativar os telespectadores e manter as séries animadas como

a atração televisiva preferida entre as crianças de diferentes idades.

2. Infâncias na pós-modernidade

O contexto pós-moderno despertou o interesse pelos temas da infância. O atual debate a

respeito do “ser criança” no século XXI envolve a comunidade acadêmica e a sociedade de

maneira geral, abrangendo as esferas pública e privada, esta última no que tange aos modos

de produção e padrão de consumo idealizados para o público infantil. A questão central desta

discussão está em compreender qual a representação da infância na contemporaneidade que

leva a outras reflexões: como delimitar a fase da infância e com base em quais parâmetros se

estabelece este limite? Qual lugar a criança ocupa no mundo pós-moderno? E, por fim, qual o

papel da infância na sociedade midiatizada?

Fernanda Martineli e Alessandra Moína (2009, p. 62) relatam que a infância é um

conceito construído socialmente, por isso seu significado é contextualizado e distintas são as

representações da infância em diferentes períodos históricos e culturas diversas. Antes mesmo

de debater os temas da infância, é preciso revisitar os contextos histórico-sociais nos quais a

infância se consolidou.

Anterior à modernidade, como descreve Manuel Jacinto Sarmento (2004), a criança foi

categorizada puramente como um ser biológico, seguindo nestas condições de vida até a

entrada precoce no mundo adulto. Durante um longo período, a infância carregou o sentido

literal da palavra – infante “o que não fala” –, em outros termos, a criança era percebida pela

sociedade como um sujeito sem voz, privado de seu status social e desprovido de autonomia

existencial.

A institucionalização da infância tem suas raízes na modernidade em razão das

transformações ocorridas no âmbito social. Primeiro, a democratização da escola pública e a

obrigatoriedade do ensino gratuito – instituído como direito da criança à educação – resultou

na formação escolar das classes populares e implicou em redução da força de trabalho

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infantil. Outro fator relevante foi o resgate da família como instituição social; o núcleo

familiar retomou o seu papel de fomentador do desenvolvimento cognitivo e social da criança,

assim como foi atribuído às famílias o dever de apoio e controle da infância (SARMENTO,

2004). A terceira dimensão destas mudanças condicionou-se ao campo semântico das práticas

sociais para sistematizar rituais de significação da infância que Sarmento (2004) conceituou

como administração simbólica da infância. Este conjunto de expectativas em relação à

infância criou diretrizes para o convívio social da criança, legitimando padrões de

comportamento socialmente aceitos (o que vestir, como alimentar-se, quais lugares são

apropriados para frequentar, a obrigatoriedade da atividade escolar) e, ao mesmo tempo, a

isolou do mundo adulto, excluindo sua participação nas esferas econômica e cultural.

Nesta nova conjuntura, a escola se transformou no principal espaço para a socialização

da criança, uma vez que a aprendizagem se definiu como atividade central da infância.

William Corsaro (2002, p. 114) argumenta que a escola é uma instituição socializadora

porque promove um ambiente favorável para as interações entre pares “[…] as crianças

produzem a primeira de uma série de culturas de pares nas quais o conhecimento infantil e as

práticas são transformadas gradualmente em conhecimento e competências necessárias para

participar no mundo adulto”.

Ainda neste período, surgiram as tentativas de globalização da infância por meio de

instrumentos e normas para a defesa dos direitos da criança elaborados pelas agências

internacionais. Tal tentativa de homogeneizar a infância não se mostrou factível do ponto de

vista das práticas sociais.

Não obstante, importa sublinhar que este esforço normalizador e homogeneizador,

se tem efectivas consequências na criação de uma infância global, não anula –

antes potencia – desigualdades inerentes à condição social, ao gênero, à etnia, ao

local de nascimento e residência e ao subgrupo etário a que cada criança pertence.

Há várias infâncias dentro da infância global, e a desigualdade é o outro lado da

condição social da infância contemporânea (SARMENTO, 2004).

Esta noção de várias infâncias sinalizada por Sarmento (2004) é fortalecida no contexto

pós-moderno – sobretudo pela perspectiva econômica – no qual as crianças ganham status de

consumidoras e se tornam um segmento significativo8 para o mercado de bens e serviços e

para a indústria do entretenimento.

Para David Morley (1998), a pós-modernidade traduz-se em uma experiência cultural

particular, resultante das transformações nas estruturas sociais e econômicas, e implica em

8 De acordo com o censo do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010), 24,08% da população

brasileira está na faixa-etária de 0 a 14 anos, são aproximadamente 45,6 milhões de crianças em todo o País.

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novas maneiras de compreender e atuar sobre o mundo. A compreensão e a atuação dos

sujeitos contemporâneos estão, ao mesmo tempo, alinhadas aos aspectos históricos e às

mutações na sociedade. Como bem observa o sociólogo, a visão implícita da perfeição

gradual da sociedade conquistada por meio do planejamento racional e da reforma social –

ideia central da modernização e do progresso – não se confirmou na contemporaneidade e as

promessas de emancipação da humanidade diante da pobreza e da ignorância converteram-se

em evidências da desigualdade e desarranjos sociais.

Especialmente para a reinstitucionalização da infância, alguns aspectos desta nova

estrutura socioeconômica e cultural são relevantes para compreender os mundos de vida das

crianças e as culturas infantis no contexto pós-moderno, são eles: a formação de núcleos

familiares não tradicionais, as tecnologias da comunicação como mediadoras do convívio

social, as mudanças nos modos de produção e no padrão de consumo e os desafios da escola

para fomentar o processo de aprendizagem colaborativa com base na multiculturalidade.

No âmbito da família, as rupturas na configuração do núcleo familiar –

monoparentalidade, lares chefiados por mulheres, mudanças dos papéis entre homens e

mulheres – aliadas às situações como a pobreza e a violência doméstica colocaram em xeque

a concepção desta instituição como espaço seguro e protegido para a socialização e o

desenvolvimento intelectual na infância. “Deste modo, a transformação familiar convida a

que a família seja pensada como instituição social, sendo como tal construída e estruturada, e

não como entidade natural, imune ao pathos da vida social” (SARMENTO, 2004).

Na esfera econômica, as crianças foram definitivamente incorporadas às práticas de

consumo de bens e serviços e, embora sem poder aquisitivo, adquiriram status de

consumidoras em razão da autonomia relativa para escolher roupas e brinquedos e da

influência que exercem na compra de itens para toda a família – da alimentação ao

entretenimento, como qual restaurante frequentar ou qual filme assistir, do eletroeletrônico ao

modelo do automóvel9. De acordo com Martineli e Moína (2009, p. 61) é razoável admitir a

ideia da infância inserida nas dinâmicas de consumo “na medida em que se pode pensar em

crianças contemporâneas aprendendo a se relacionar com as marcas desde pequenas e

experimentando sensações que lhes são oferecidas pelos estímulos do marketing, da

9 O estudo O poder da influência da criança nas decisões de compra da família, realizada em 2011 pela Viacom

International Media Networks, em 11 países, incluindo o Brasil, revelou que 51% dos pais levam em

consideração a opinião das crianças antes de optar por um bem de consumo e que 97% conversam com os filhos

antes de sair às compras. Das crianças entrevistadas, 60% admitiu ter influência na escolha da família. A

pesquisa entrevistou por meio de questionário online 15.600 pessoas, entre crianças de nove a catorze anos e pais

e mães com filhos de seis a catorze anos.

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publicidade e mesmo nas interações com outros indivíduos”. Contudo, vale ressaltar que a

aquisição de bens, serviços e produtos culturais está subordinada à condição social e por isso

os padrões de consumo são diferentes nas várias infâncias. Se por um lado a

contemporaneidade concedeu à infância o status de consumidora, há ainda, do lado oposto,

crianças que participam da economia pela produção, sendo submetidas ao trabalho infantil10.

São os infortúnios dos tempos pós-modernos.

Outro aspecto da globalização da infância é a universalização da produção cultural. Os

conteúdos midiáticos circulam pelos cinco continentes por meio da televisão, do cinema, das

histórias em quadrinhos e da internet. Dublados em vários idiomas, permitem que crianças de

diferentes origens – social e geográfica – partilhem um gosto comum. Algumas destas

produções se tornam ícones das culturas da infância – como exemplos podem ser citados o

anime japonês e as princesas da Disney, além de personagens atemporais como Pica-pau e

Tom e Jerry – e se desdobram em produtos licenciados que contribuem para o aquecimento

do consumo no segmento infantil. “Há a considerar, todavia, a reinterpretação activa pelas

crianças desses produtos culturais e o facto dessas reinterpretações se fixarem em uma base

local, cruzando culturas societais globalizadas, com culturas comunitárias e culturas de pares”

(SARMENTO, 2004). Neste contexto de recepção, é preciso superar a ideia de que as

crianças são receptoras passivas e reprodutoras das mídias, o que ocorre na fruição são

interpretações criativas e críticas dos produtos midiáticos.

Ainda a respeito da universalização cultural, há outra questão importante a ser avaliada:

a inclusão digital está longe de ser uma realidade para muitas das crianças brasileiras11 e a

frequência ao cinema, assim como o serviço de TV por assinatura, estão subordinados à

condição social da família; deste modo, a televisão continua a ter relevância como meio de

comunicação de massa e como instituição na formação das culturas da infância. Neste cenário

midiático e tecnológico, ao mesmo tempo global e desigual, algumas reflexões se fazem

necessárias.

A primeira diz respeito à programação da televisão brasileira e ao acesso da criança aos

conteúdos mediatizados. De acordo com David Buckingham (2007), a Carta da Televisão

para Crianças12 (1995) defende a qualidade e a diversidade de gêneros e conteúdos nos

programas infantis e orienta para que a exibição destas atrações ocorra em horários acessíveis

10 De acordo com dados da Pnad – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2013), há no Brasil 486 mil

crianças, com idade entre 5 e 13 anos, em situação de trabalho infantil. 11 Segundo dados da pesquisa Nielsen IBOPE, referente ao primeiro trimestre de 2014, apenas 15% das crianças

entre 2 e 15 anos possuem acesso à internet por meio de computadores em domicílio. 12 Elaborada na Conferência de Cúpula sobre Criança e Televisão em 1995, na Austrália, defender os princípios

de qualidade, diversidade e acesso universal no serviço público.

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às crianças. O documento menciona ainda a circulação destes conteúdos midiáticos por meio

de outras tecnologias da comunicação amplamente acessíveis ao receptor infantil.

Assim, a Carta da Televisão para Crianças defende que os programas devam

‘afirmar o senso de comunidade e lugar das crianças’ e ao mesmo tempo promover

‘a conscientização e a valorização em relação a outras culturas, paralelamente ao

contexto cultural das próprias crianças’ (BUCKINGHAM, 2007, p. 13).

Examinando esta proposta contextualizada no cenário brasileiro, há conflitos a serem

sinalizados. O atual panorama da TV brasileira se choca com a premissa de “afirmar o senso

de comunidade e lugar das crianças” por intermédio das mídias. Em entrevista concedida ao

Público na TV, em 2012, Vania Lúcia Quintão Carneiro alertou para a significativa redução

das atrações televisivas direcionadas ao telespectador infantil nas principais emissoras do

país. O programa Ver TV13, exibido em abril de 2014, também na TV Brasil, mostrou o

movimento das emissoras brasileiras para migrar a programação infantil para os canais por

assinatura, de acordo com a reportagem, entre os motivos destas mudanças na grade televisiva

estão a fraca audiência e a baixa receita advinda da publicidade. Na TV aberta é clara a

predominância de conteúdos midiáticos voltados ao público adulto. Os programas educativos

infantis são reservados às emissoras estatais e as atrações de entretenimento aos canais da TV

por assinatura. Às emissoras comerciais, meio pelo qual a maior parte das famílias tem acesso

à comunicação, restam os programas de conteúdo notadamente adulto como novelas, séries,

filmes e programas de auditório com os quais as crianças interagem diariamente, ainda que

com algum controle familiar.

Do mesmo modo, é conflitante pensar “a conscientização e a valorização em relação a

outras culturas, paralelamente ao contexto cultural das próprias crianças” quando o consumo

midiático por parte do receptor infantil tende a ser globalizado em virtude da ampla exibição

de produtos culturais estrangeiros, especialmente americanos e japoneses, tanto nas emissoras

brasileiras como nos canais da TV por assinatura. E falar em circulação de conteúdos em

diferentes meios e tecnologias quando “o acesso não tem a ver apenas com a tecnologia, ele

diz respeito também ao capital cultural e educacional necessário para usar a tecnologia de

modo criativo e efetivo” (BUCKINGHAM, 2007, p. 39). O acesso diz respeito ao quanto, de

fato, a tecnologia está incorporada às culturas da infância; não apenas do ponto de vista de

aquisição de dispositivos, mas especialmente o quanto a tecnologia é para esta criança um

elemento estruturante da comunicação (MARTÍN-BARBERO, 2009).

13 O programa Ver TV é exibido pela TV Brasil (EBC – Empresa Brasil de Comunicação) e apresenta debates

críticos a respeito do papel da televisão na sociedade brasileira.

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Por outro lado, já não se pode ignorar que a criança tem competência inata para os

meios. Para compreender as culturas da infância, por meio das mídias e seus conteúdos, é

preciso um olhar sobre a produção da cultura e a respectiva fruição pelo receptor infantil. Não

se trata de controle e julgamento – adequado versus inadequado, próprio versus impróprio –

ou de exclusão geracional, trata-se de entender as competências de recepção da criança. “Em

relação às mídias, temos de reconhecer a habilidade que as crianças têm de avaliar as

representações daquele mundo disponíveis para elas e identificar o que elas ainda precisam

aprender para fazê-lo de forma mais plena e produtiva (BUKINGHAM, 2007, p. 126).

A segunda reflexão refere-se à exclusão geracional por parte dos mass media. David

Buckingham (2007) relaciona o acesso às “mídias adultas” à entrada da criança no mundo

adulto que se dá prioritariamente, mas não unicamente, pelas mídias.

Essas transformações gerais – tanto nas ideias sobre a infância como na vida real

das crianças – têm feito eco às mudanças no ambiente midiático das crianças, e até

certo ponto as têm reforçado. Também aí as distinções tradicionais sofrem erosão,

e novas lacunas se abrem. As crianças estão ganhando maior acesso às mídias

"adultas" e maior status como consumidores; contudo, a comercialização e a

privatização da mídias (e das ofertas de lazer em geral) contribuem para o aumento

da desigualdade (BUCKINGHAM, 2007, p. 126).

Analisando historicamente a infância, a entrada da criança no mundo adulto sempre

existiu, independente da mídia ou do status de consumidora. Anterior à modernidade, a

criança pertencia ao universo feminino no qual permanecia até adquirir, precocemente,

habilidade para o trabalho, para guerra ou para reproduzir (SARMENTO, 2004). Hoje, como

sujeito social, a criança é gradativamente introduzida ao mundo adulto – quando, por

exemplo, domina as tecnologias, tem autonomia relativa para o consumo e competências para

interagir com as mídias – contudo, a identidade da infância é preservada. As crianças

transitam bem por estes dois mundos recorrendo a reprodução interpretativa que Corsaro

(2005) conceitua como a capacidade da criança de apropriação e releituras do mundo adulto:

O termo interpretativa captura os aspectos inovadores da participação das crianças

na sociedade, indicando o fato de que as crianças criam e participam de suas

culturas de pares singulares por meio da apropriação de informações do mundo

adulto de forma a atender aos seus interesses próprios enquanto crianças. O termo

reprodução significa que as crianças não apenas internalizam a cultura, mas

contribuem ativamente para a produção e a mudança cultural. Significa também

que as crianças são circunscritas pela reprodução cultural. Isto é, crianças e suas

infâncias são afetadas pelas sociedades e culturas das quais são membros

(CORSARO, 2005).

Desenhado o cenário contemporâneo, no qual a criança circula pelos mundos adulto e

infantil ao mesmo tempo em que preserva sua identidade, é possível resgatar as indagações

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iniciais. Como delimitar a infância e em quais parâmetros estes limites se baseiam? A

condição comum da infância está na diferença geracional, ou seja, embora com status social e

autonomia existencial, a infância é a fase em que os sujeitos não têm capacidade de

sobrevivência e crescimento, sendo subordinados à responsabilidade e ao controle da geração

adulta. De acordo com Sarmento (2005), o elemento distintivo desta fase são as culturas da

infância “[...] a capacidade das crianças em construírem de forma sistematizada modos de

significação do mundo e de ação intencional, que são distintos dos modos adultos de

significação e ação”.

Estes modos de significação e de atuação da criança, que implicam ainda em modos de

produção e fruição de produtos comunicacionais, são construídos coletivamente no contexto

histórico-social e materializados nas formas e conteúdos das culturas infantis (nas

brincadeiras, nos jogos de faz-de-conta e, sobretudo, no consumo de produtos culturais,

celulares e jogos eletrônicos, entre outros itens). Desta forma, a percepção, a representação e

os significados do mundo são heterogêneos porque não se dão em um espaço social vazio,

isento de múltiplas mediações culturais.

A respeito do lugar da infância na pós-modernidade, Sarmento (2004) define que

é um entre-lugar (Bhabha, 1998), o espaço intersticial entre dois modos – o que é

consignado pelos adultos e o que é reinventado nos mundos de vida das crianças –

entre dois tempos – o passado e o futuro. É um lugar, um entre-lugar, socialmente

construído, mas existencialmente renovado pela acção coletiva das crianças.

As crianças apreendem criativamente as informações do mundo adulto. Como sugere

Corsaro (2005), a reprodução interpretativa implica nestas releituras criativas do mundo

adulto e posterior apropriação destes significados nas culturas de pares. Sarmento (2004)

acredita que “A identidade das crianças é também a identidade cultural, isto é a capacidade

das crianças de constituírem culturas não redutíveis totalmente às culturas dos adultos”.

As culturas da infância retratam os modos autônomos de significação e atuação das

crianças no mundo. E os traços distintivos destas culturas se exprimem por meio de quatro

dimensões – semântica, sintaxe, morfológica e pragmática – que Sarmento (2004, 2005)

denomina gramáticas das culturas infantis.

Segundo Corsaro (2002, p. 114) “[...] as crianças começam a vida como seres sociais

inseridos numa rede social já definida e, através do desenvolvimento da comunicação e

linguagem em interação com outros, constroem os seus mundos sociais – extrapolando Piaget

a cerca da noção de estágios”.

Para Piaget (2012) a faixa-etária entre 7-8 e 11-12, que particularmente interessa a este

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estudo, corresponde à fase das operações concretas na qual a socialização e a conquista da

personalidade individual se tornam relevantes para as crianças em suas relações sociais.

[...] as construções e a descentração cognitivas, necessárias à elaboração das

operações, são inseparáveis de construções e da descentração afetivas e sociais.

Mas o termo social não deve ser entendido em seu sentido único [...] das

transmissões educativas, culturais ou morais: trata-se mais ainda de um processo

interindividual de socialização, cognitivo, afetivo e moral ao mesmo tempo, cujas

linhas mestras se podem seguir esquematizando muito, mas sem esquecer que as

condições ótimas continuam ideais e que, de fato, tal evolução está sujeita à

flutuações múltiplas, que interessam, aliás, tantos os seus aspectos cognitivos

quanto os afetivos (PIAJET; INHELDER, 2012, p. 88-89).

Sarmento (2004, 2005) defende que aprendizagem na infância se dá essencialmente por

meio das interações em espaços – social, cultural, familiar e escolar – comuns de partilha, nos

quais as crianças incorporam valores que colaboram para a formação das identidades

individual e coletiva da infância. No campo da semântica, a criança elabora significados

autônomos para compreender e atuar sobre o mundo, ainda que Sarmento (2004, 2005)

enfatize não ser factível pensar as culturas da infância totalmente desconexa do universo

adulto. Na recriação dos mundos infantis, o referencial é transmutado pelo imaginário e os

significados explícitos nas brincadeiras e nos jogos de faz-de-conta. “Era uma vez” expressa a

possibilidade de concatenar situações cotidianas ao imaginário, de aproximar passado e

futuro. Este mesmo recurso de temporalidade utilizado pela criança na construção das

brincadeiras é utilizado como recurso discursivo nas narrativas, especialmente, nas infantis.

A fantasia do real não é uma prática inerente apenas às culturas da infância, embora seja

potencializada pelo imaginário infantil, está presente também no mundo adulto e é revelada,

por exemplo, na interação midiática. Para as crianças a fantasia do real é elemento

constituinte das brincadeiras que por sua vez é elemento fundacional das culturas da infância.

Como explica Sarmento (2004) “O brincar é a condição da aprendizagem e, desde logo, da

aprendizagem da sociabilidade. Não espanta, por isso, que o brinquedo acompanhe as

crianças nas diversas fases da vida”. A construção do imaginário e os modos de ação das

crianças no ato de brincar revelam as recriações e as representações de mundos que podem

espelhar os contextos de vida ou manifestar a negação da realidade. Como explica Corsaro

(2002, p. 115) “as crianças produzem colaborativamente actividades de ‘faz-de-conta’ que

estão relacionadas com experiências das suas vidas reais (por exemplo, rotinas familiares e

ocupacionais), por oposição aos jogos de fantasia baseado em narrativas de ficção”.

A sintaxe destas representações – articulação dos elementos simbólicos à contradição do

princípio da identidade – não tem relação com a lógica, mas com releituras e interpretações

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das vivências do cotidiano que permitem à criança se descolar da realidade (pobreza,

exclusão) nas brincadeiras e criar possibilidades para ser muitas coisas ao mesmo tempo (a

princesa, o vilão, o super herói). Esta representação está, em grande parte, associada à

globalização da produção cultural, os conteúdos midiáticos servem de referência para estas

recriações (SARMENTO, 2004, 2005).

A morfologia são as formas e os conteúdos que materializam as culturas da infância –

rituais, jogos, brincadeiras e brinquedos. Implicitamente, os brinquedos carregam duas

significações das culturas infantis: primeiro, a ludicidade; depois, o brinquedo como objeto de

distinção social e, neste caso, retoma-se a ideia da criança consumidora de ícones da infância,

acessíveis apenas para uma parcela da sociedade (SARMENTO, 2004, 2005). Na

contemporaneidade, os jogos eletrônicos; o uso do computador, celular e tablets pelas

crianças; os rituais de participação e colaboração na internet, sobretudo, nas redes sociais se

constituem também em morfologias das culturas da infância.

As redes sociais se tornaram um dentre muitos “playgrounds on-line”, disponíveis

na Internet para as crianças de hoje. As redes sociais não apenas fornecem uma

convergência inédita de atividades (e-mail, copiar músicas e/ou vídeos, escrever

diários, álbuns de fotos), mas criam oportunidades de auto-expressão, sociabilidade

e criatividade para muitos. [...] essa possibilidade de criação de conteúdos por

todos os usuários facilita o aparecimento de uma peer culture inovadora entre os

jovens, em nível local e global (BELLONI, 2012, p. 78, grifos do autor).

E na experiência digital, a criança não é apenas interlocutora, mas produtora cultural.

[...] o acesso crescente a tecnologias de produção digitais oferece possibilidades

significativas, bem como coloca novos desafios. Em um nível, há, claramente, uma

promessa de democratização. A probabilidade de as primeiras experiências infantis

com a elaboração de vídeos acontecerem na escola, por exemplo, não é mais tão

grande; e os alunos cada vez mais chegarão à sala de aula com experiência de

edição de vídeo, manipulação de imagens e tecnologia musical digital. O lar não é

mais um lugar simplesmente de consumo de mídia: também se tornou um local-

chave de produção. Contudo, o acesso a esta tecnologia não é igualmente

distribuído; e pode haver uma polarização crescente, neste aspecto, entre os “ricos

em mídia” e os “pobres em mídia” [...] (BUCKINGHAM, 1999, p. 258).

Para finalizar as gramáticas das culturas infantis (SARMENTO, 2004, 2005), a

pragmática está contida nas dimensões semântica, sintaxe e morfológica uma vez que

consiste nas relações de comunicação na infância que se convertem em formas de cooperação

e estratificação presentes no imaginário e nos modos de ação da criança nos jogos e nas

brincadeiras.

Em relação à midiatização, o tema-chave está em compreender a interação criativa e

crítica que a criança realiza com os produtos culturais por meio das mídias e das tecnologias

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da comunicação. Os conteúdos midiáticos universalizados e institucionalizados pela televisão

se convertem em elementos formadores das culturas infantis e têm papel relevante na

construção simbólica das crianças. Porém, há de se considerar que as leituras destes produtos

midiáticos não são simples reproduções, mas interpretações experienciadas nos mundos de

vida das várias infâncias. Os dispositivos tecnológicos são, ao mesmo tempo, objetos de

distinção social e espaços de socialização. A criança contemporânea, nativa digital, tem

competência inata para lidar e se comunicar por meio das tecnologias, construindo relações

interativas, colaborativas e de aprendizagem nas quais se propagam as culturas de pares.

Este capítulo trouxe reflexões relevantes a respeito do papel da infância no século XXI

e na sociedade midiatizada. Apresentou os aspectos histórico-culturais que conduziram a

criança ao status de sujeito social, com autonomia existencial, para circular entre os mundos

infantil e adulto sem perder a identidade cultural da infância que permite às crianças

(re)significarem, por meio do imaginário, seus contextos de vida e reproduzi-los – ou negá-los

– nas brincadeiras e no jogos de faz-de-conta dos quais participam. Neste sentido, os mass

media e os conteúdos audiovisuais cumprem importante função, num processo de

retroalimentação, os produtos culturais são referência para a construção das fantasias infantis

e fazem uso do imaginário das crianças para compor a ficção.

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A história é uma abstração, pois ela é sempre

percebida e narrada por alguém, não existe

“em si” (TODOROV, 2011, p. 222).

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CAPÍTULO II – ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA

1. Hierarquia dos níveis: ações, personagens e discurso

Em Análise Estrutural da Narrativa, Gérard Genette (2011, p. 265) define a narrativa

como “a representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou

fictícios, por meio da linguagem [...]”. Na mesma obra, Roland Barthes (2011, p. 19) escreve

que “a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem

fixa ou em movimento, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias [...]”.

Em uma primeira abordagem, se o ato de narrar confunde-se com o ato de contar histórias por

meio da fala ou de suportes midiáticos, então a narrativa esteve presente em todas as

sociedades, marcando diferentes culturas e períodos históricos, desde a arte rupestre ao

cinema digital.

Ao atravessar a história, a narrativa consolidou princípios estruturais e regras que, ao

mesmo tempo, dão a ela uma natureza própria e peculiaridades que a diferencia e permitem o

seu reconhecimento a culturas e épocas distintas, denominados por Omar Calabrese (1987)

horizonte comum de gosto. Nesta mesma linha de raciocínio, Barthes (2011, p. 20-21)

acrescenta que as narrativas possuem uma estrutura comum acessível à análise “[...] ninguém

pode combinar (produzir) uma narrativa, sem se referir a um sistema implícito de unidades e

de regras”.

Para identificar este sistema de unidades e regras, Barthes (2011) propõe a teoria dos

níveis. Segundo o autor, a narrativa é estruturada por um conjunto de unidades que são

distribuídas em níveis hierárquicos. As unidades que encontram-se no mesmo nível

estabelecem entre si relações distribucionais que limitam-se ao plano da descrição.

Entretanto, a significação da narrativa se dá por meio das relações integrativas que agrupam

unidades de hierarquias diferentes. Nesta concepção, a hierarquia dos níveis é o princípio

organizador da estrutura da narrativa.

Compreender uma narrativa não é somente seguir o esvaziamento da história, é

também reconhecer nela “estágios”, projetar os encadeamentos, horizontais do

“fio” narrativo sobre um eixo implicitamente vertical; ler (escutar) uma narrativa

não é somente passar de uma palavra a outra, é também passar de um nível ao

outro (BARTHES, 2011, p. 27).

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Tzvetan Todorov (2011, p. 219) compartilha da visão de que a significação concretiza-

se na integração das unidades narrativas, porém, entende que o significado está em duas

noções primárias que são o sentido e a interpretação. O sentido, como também defende

Barthes (2011), é a correlação entre os elementos internos à narrativa e a interpretação uma

leitura pautada na personalidade e na ideologia de quem a percebe. Neste contexto, o conceito

de ideologia que melhor explica a interpretação é o proposto por Althusser, no qual as

experiências vivenciadas pelos homens não refletem a realidade, mas uma relação imaginária,

neste caso específico, entre o universo narrativo e seus interlocutores.

Ideologia é na verdade um sistema de representações mas, na maioria das vezes,

essas representações não tem nada a ver com a consciência ... é como estruturas

que elas se impõem à ampla maioria dos homens ... é dentro desse inconsciente

ideológico que os homens conseguem alterar as experiências vividas entre eles e o

mundo e adquirem uma nova forma específica de inconsciente, que se chama

consciência (ALTHUSSER apud HALL, 2003, p. 148, grifos do autor).

Seguindo as premissas dos formalistas russos, Todorov (2011, p. 220-221) propõe

dividir a narrativa em dois níveis hierárquicos: história e discurso. A narrativa é história “[...]

no sentido que evoca uma certa realidade, acontecimentos que teriam ocorrido, personagens

que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida real”. E a narrativa é também discurso

porque “[...] existe um narrador que relata a história; há diante dele um leitor que a percebe.

Neste nível, não são os acontecimentos relatados que contam, mas a maneira pela qual o

narrador nos fez conhecê-los”. O nível da história subdivide-se em lógica das ações e sintaxe

dos personagens; e o nível do discurso em tempo, aspectos e modos da narrativa. Similar a

esta proposta teórica, Barthes (2011), em sua visão integrativa, analisa a estrutura da narrativa

a partir de três níveis principais: nível das funções e nível das ações – que na perspectiva de

Todorov estão no nível da história – e nível da narração – que para Todorov é o discurso.

[...] estes três níveis estão ligados entre si segundo um modo de integração

progressiva: uma função não tem sentido se não tiver lugar na ação geral de um

actante; e a própria ação recebe sua significação última pelo fato de ser narrada,

confiada a um discurso que tem seu próprio código (BARTHES, 2011, p. 27).

Barthes (2011) explica que para visualizar o nível das funções é necessário definir as

unidades mínimas da narrativa. Por unidade entende-se os segmentos da narrativa que se

apresentam como correlação de outros segmentos no mesmo nível hierárquico ou em um

nível superior. Toda unidade é funcional à medida que significa algo, mesmo que no primeiro

momento não seja percebida como útil à história ou ao discurso, no desenrolar da trama, em

integração com um nível hierárquico superior, a unidade terá sua significação revelada. Em

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outras palavras “[...] a arte não conhece o ruído [...] é um sistema puro, não há, não há jamais

unidade perdida, por mais longo, por mais descuidado, por mais tênue que seja o fio que a liga

a um dos níveis da história” (BARTHES, 2011, p. 29). O autor agrupa as unidades mínimas

da narrativa em duas classes formais: funções e índices.

A classe das funções tem natureza distribucional, ou seja, apresentam correlações

horizontais com outras unidades do mesmo nível hierárquico; nesta classe, as unidades são

complementares a outros segmentos da narrativa ou consequência destes. As funções são

agrupadas em duas subclasses: as cardinais que são unidades de articulações da narrativa e

respondem pela lógica da história e pelo tempo cronológico do discurso; e as catálises que

são unidades contemplativas e têm como função preencher os espaços narrativos. As

cardinais constituem o elemento surpresa da estrutura narrativa, um momento de tensão em

que a história pode assumir um novo percurso. As catálises são as zonas de segurança da

narrativa, embora com baixa influência na história, são úteis ao nível do discurso, sua função

é ditar o ritmo discursivo.

Os índices estabelecem relações verticais, portanto, são de natureza integrativa. Nesta

classe estão as unidades semânticas que atribuem aos níveis da história – mais

particularmente aos personagens – e do discurso um significado implícito que é contínuo na

narrativa. Esta classe de unidades é subdividida em índices e informantes. Os índices têm a

função de significar os personagens, a atmosfera e o universo narrativo, são de caráter

indexado e trabalham junto ao interlocutor o reconhecimento da narrativa, orientando-o a

interpretá-la. Os informantes são unidades de identificação que situam a narrativa no tempo e

no espaço, são unidades, assim como as catálises, úteis ao discurso e buscam trazer realidade

à ficção. Em síntese, “[...] as Funções implicam relata metonímicos, os índices relata

metafóricos; uns correspondem a uma funcionalidade do fazer, as outras a uma

funcionalidade do ser” (BARTHES, 2011, p. 33, grifos do autor).

Para retomar os níveis propostos por Todorov (2011, p. 222), vale lembrar que a história

é uma convenção, uma maneira de organizar a lógica dos acontecimentos da narrativa e torna-

los compreensíveis ao interlocutor, mesmo quando a apresentação destes fatos não

corresponde a uma ordem cronológica ideal. Barthes e Todorov (2011) concordam que há

uma tendência nas narrativas contemporâneas de sobreposição da lógica ao tempo

cronológico, uma espécie de ilusão cronológica, no nível do discurso, que conduz a lógica das

ações dos personagens, estas ocorrem no nível da história.

Todorov (2006, 2011) descreve a lógica das ações por meio de dois métodos: a) triádico

e b) homológico. O modelo triádico sugere que todas as narrativas são construídas pelo

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encadeamento ou encaixamento de micronarrativas norteadas por três tipos de ação – tentativa

(frustrada ou realizada de concretizar um projeto), pretensão e perigo; assim, as narrativas que

utilizam este método têm em comum as unidades estáveis correspondentes à ação e se

diferenciam pelas possíveis combinações das micronarrativas. O modelo homológico estuda a

interdependência entre as unidades narrativas e acompanha esta rede de relações na sucessão

dos acontecimentos, em outras palavras, busca descobrir o fio da intriga por meio destas

relações que se desdobram em ações dos personagens.

Importante ressaltar que nas proposições teóricas de Barthes (2011) e Todorov (2006,

2011), personagem e ação são indissociáveis em termos de análise da estrutura da narrativa.

Todorov (2006, 2011) embora reconheça, em teoria, a lógica das ações e a sintaxe dos

personagens como duas unidades diferentes que integram o nível da história, ao fazer a

análise da narrativa, define os personagens em função de suas relações com outros

personagens, utilizando uma variação do conceito de predicados de base de A. J. Greimas;

logo, toda relação entre dois personagens exige primeiro, para que seja concretizada, uma

ação. Barthes (2011) presume que os personagens são definidos por sua participação em uma

esfera de ações e os integra, na teoria e na prática da análise, ao nível das ações. A discussão a

respeito dos personagens será aprofundada mais adiante.

No nível do discurso, a narrativa ganha outra dimensão: a do compartilhar. “O nível

narracional é pois ocupado pelos signos da narratividade, o conjunto de operadores que

reintegram funções e ações na comunicação narrativa, articulada sobre seu doador e seu

destinatário” (BARTHES, 2011, p. 53). Portanto, a narrativa não existe sem um narrador e

sem um interlocutor e é no discurso que se dá a partilha entre ambos, a alteridade que

fundamenta os fenômenos comunicacionais.

Neste sentido, vale revisitar o conceito Bakhtiniano de dialogismo: “A relação dialógica

é uma relação (de sentido) que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal. Dois

enunciados quaisquer, se justapostos no plano do sentido (não como objeto ou exemplo

linguístico), entabularão uma relação dialógica” (BAKHTIN, 1997, p. 345-346). Para Mikhail

Bakhtin, o princípio dialógico é a interatividade entre interlocutores e entre discursos.

A compreensão estreita do dialogismo concebido como discussão, polêmica,

paródia. Estas são formas externas, visíveis, embora rudimentares, do dialogismo.

O crédito concedido à palavra do outro, a acolhida fervorosa dada à palavra sacra

(de autoridade), a iniciação, a busca do sentido profundo, a concordância, com suas

infinitas graduações e matizes (sem restrições de ordem lógica ou reticências de

ordem puramente factual), a estratificação de um sentido que se sobrepõe a outro

sentido, de uma voz que se sobrepõe a outra voz, o fortalecimento pela fusão (mas

não a identificação), a compreensão que completa, que ultrapassa os limites da

coisa compreendida, etc. Estas relações específicas não podem ser resumidas a uma

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relação puramente lógica, ou a uma relação puramente factual. É aqui que se

encontram, em toda a sua integridade, posições, pessoas (a pessoa prescinde de

revelação extensiva: pode manifestar-se por um único som, revelar-se por uma

única palavra), justamente vozes (BAKHTIN, 1997, p. 350).

Se “O ato de compreensão já é dialógico” (BAKHTIN, 1997, p. 350), então, é no

discurso, nível em que se dá a última significação da narrativa, que narrador e interlocutores

constroem a interpretação da narrativa. Mais que entendimento e recuperação do sentido

original idealizado pelo narrador, a relação dialógica implica em compreensão dos sentidos

implícitos à narrativa. Na interatividade entre interlocutores e discursos, o processo

interpretativo é mediado por múltiplas vozes que se contextualizam em um espaço histórico,

cultural e social; e é a partir desta inter-relação que o ato de compreender – ao outro e a si

mesmo – desdobra-se em apropriações e produção de novos sentidos.

Todorov (2011, p. 242-243) argumenta que no discurso a temporalidade é uma

construção estética. Na história o tempo é pluridimensional, os acontecimentos são

simultâneos, cabe ao autor transportá-los para o tempo linear do discurso em que são narrados

sequencialmente e não obedecem, rigorosamente, a uma sucessão natural. O papel desta

deformação temporal empregada pelos autores é manter a história inteligível ao interlocutor.

As narrativas mais complexas, que contam duas ou mais histórias, utilizam também recursos

estéticos de temporalidade – encadeamento, alternância e encaixamento – para alinhavar o

tempo cronológico da história ao tempo lógico do discurso. No encadeamento, as histórias são

narradas do início ao fim, sem interrupção, após a conclusão da primeira, inicia-se a segunda

e assim sucessivamente; a identidade das histórias é mantida pela correlação entre as unidades

narrativas de natureza integrativa – índices e informantes. As narrativas que utilizam a

alternância contam as histórias de maneira intercalada, sem impor um limite nítido na

transição de uma para a outra, neste caso, o desfeche de uma serve para o desenvolvimento da

história seguinte. E o encaixamento refere-se às narrativas em que uma história principal

internaliza outras histórias secundárias, frequentemente, estas histórias de apoio são úteis para

caracterizar os personagens e situá-los no tempo e no espaço.

Ainda no nível do discurso, a narrativa sinaliza o tipo de percepção que tem o narrador a

respeito de seus personagens. Barthes (2011, p. 50) preocupa-se em desfazer a recorrente

confusão entre autor e narrador “[...] narrador e personagens são essencialmente ‘seres de

papel’; o autor (material) de uma narrativa não se pode confundir em nada com o narrador

desta narrativa [...]”. Deste modo, o autor é quem detém os códigos da linguagem narrativa e

os faz inteligíveis aos interlocutores, estabelecendo com estes um protocolo de consumo; o

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narrador, por sua vez, compartilha estes códigos por meio do discurso. Para entender este

contrato de leitura que convida a uma relação dialógica entre interlocutores que interagem

entre si e com a narrativa é oportuno apreender os conceitos de gramática de produção e

gramática de reconhecimento propostos por Eliseo Verón. Para o autor, o ato de narrar reúne

saberes que interferem e se combinam nos processos de produção e de

interpretação de um discurso e estão relacionados com as formas de organizar os

códigos comunicativos e culturais presentes tanto no universo do emissor quanto

do receptor, balizados pelo contexto sócio-histórico em que ambos estão inseridos

(VERÓN apud PALLEIRO, 2008, p. 155, tradução nossa).

Esta relação entre narrador e personagens, que Todorov (2011, p. 246-247) descreve

como aspectos da narrativa, influencia a percepção dos interlocutores a respeito da história,

ou melhor, a percepção do interlocutor não é diretamente espelhada pela história, mas

mediada pela visão de quem narra os acontecimentos. Para explicar os aspectos da narrativa,

Todorov (2011), serve-se da tipologia de Jean Pouillon que em seu livro O tempo no

romance, de 1970, reconhece três principais modos de narrar: 1) a visão “por detrás”

(Narrador > personagem) – o narrador não está na história, sua posição é a de um espectador

privilegiado que observa dos bastidores, por isso conhece antecipadamente os personagens e

suas ações, permitindo aos interlocutores acessar o mundo interno da narrativa, neste caso, o

narrador impõe, por meio do discurso, o seu modo de ver os acontecimentos; 2) a visão “com”

(Narrador = personagem) – narrador e personagens participam da história com a mesma

intensidade, os acontecimentos são contados do ponto de vista dos personagens e podem levar

a uma visão estereoscópica, quando todos os personagens têm o mesmo olhar sobre os

acontecimentos, ou a uma visão plural em que os personagens percebem as mesmas situações

de maneira particular; 3) a visão “de fora” (Narrador < personagem) – o narrador tem uma

visão externa ao universo da trama, nada sabe a respeito dos personagens e narra os

acontecimentos no momento em que os observa.

Os modos da narrativa revelam de quem é a fala. Na narração (narrador >

personagem), a fala é do narrador, o “ser de papel” que conta a história, descreve seus

personagens e detalha cada uma de suas ações, envolvendo seus interlocutores na atmosfera

da narrativa e compartilhando com eles os códigos da significação, este modo de narrar é

denominado estilo panorâmico. Na representação (narrador = personagem), a narrativa se

desenrola por meio do diálogo e atos dos personagens, assim, no estilo cênico prevalece a fala

dos personagens (TODOROV, 2011, p. 254).

No estilo panorâmico ou no cênico, é a fala do narrador que torna público, por meio do

discurso, os acontecimentos da narrativa. Em algumas narrativas, a história somente pode ser

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compreendida em sua plenitude se considerada sua estrutura interna de sentido, uma espécie

de princípios morais internos à trama, partilhados por narrador e interlocutores, que ganham

significado apenas no universo narrativo e que no mundo exterior não fazem sentido algum.

Em outros casos, as histórias tomam emprestadas as convenções sociais do mundo externo e

as interiorizam na estrutura de sentido da narrativa, desta forma, narrador e interlocutores

compartilham códigos morais que são significados tanto na ficção como no mundo real.

Todorov (2011, p. 255) define esta relação ficção versus realidade como nível apreciativo. O

nível apreciativo é de natureza dialógica, o narrador revela seus traços psicológicos e valores

morais que são o fio condutor de suas ações, esta imagem do narrador espelha também a

imagem do interlocutor a partir do momento em que este se deixa envolver pela narrativa e

passa a aceitar e a vivenciar as ordens psicológica e moral sugeridas pela história. “Esta

dependência confirma a lei semiológica geral segundo a qual ‘eu’ e ‘tu’, o emissor e o

receptor de um enunciado, aparecem sempre juntos” (TODOROV, 2011, p. 257).

Para Todorov (2011), a narrativa é sempre o confronto entre a ficção e o contexto

sociocultural de uma determinada época. Logo, as narrativas não obedecem absolutamente a

uma única ordem moral durante toda a trama; algumas histórias se iniciam e se desenvolvem

com base em uma moralidade interna à narrativa e a infração desta ordem se dá no desfecho,

quando as regras internas são legitimadas por padrões de comportamento e conduta do mundo

exterior, enquanto outras seguem uma consciência coletiva externa à trama para em seu

desfecho criar normas morais próprias que são autenticadas pela lógica interna da narrativa.

Diante do exposto, é plausível admitir que a legitimação da narrativa está condicionada

ao contexto histórico e sociocultural no qual circulam os produtos culturais. Assim, a

narrativa é legitimada no momento da fruição, quando os interlocutores apropriam-se da

história – em um exercício de interpretação que pode ocorrer mediante a lógica interna da

trama ou pelas referências do mundo exterior – e recriam seus significados que serão

novamente reincorporados a outras narrativa e à sociedade, infinitas vezes.

2. Estética da repetição nas narrativas seriadas

Deslocando-se da desconstrução das narrativas para as práticas de produção e de

consumo dos produtos culturais contemporâneos, particularmente dos documentos

audiovisuais animados, é possível perceber como o pensamento que conduziu a análise

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estrutural da narrativa no século XX ainda nos dias de hoje influencia os modos de produção

da indústria do entretenimento, especialmente no que tange à organização dos elementos que

compõem os produtos audiovisuais.

Em Dramaturgia de série de animação, Nesteriuk (2011) explica detalhadamente como

produzir séries animadas. O autor, que também é consultor de roteiro, dramaturgia e projetos

audiovisuais e de animação, orienta iniciar a construção das séries de animação a partir de três

elementos essências que são Universo–Personagem–Ação. Ao observar a tríade apresentada

pelo autor, é possível identificar semelhanças aos níveis hierárquicos de Todorov (2006,

2011) que contempla, no nível da história, a lógica das ações e sintaxe dos personagens. Na

visão de Nesteriuk (2011), os personagens são entidades que praticam e vivem as ações na

história, assim como na análise estrutural, a existência do personagem está condicionada a

uma esfera de ação e reflete o fazer. Entretanto, como se trata de um produto audiovisual, que

une som e imagem, são acrescentadas ao personagem – não apenas na descrição, mas como

recurso estilístico de produção – características físicas e movimentos que passam a compor o

universo narrativo. Além das características físicas, os personagens são constituídos de uma

consciência psicológica que define seu comportamento e conduta moral. Barthes (2011) trata

destes atributos inerentes aos personagens no nível das funções, quando argumenta que as

unidades integrativas – índices e informantes – desempenham precisamente este papel de

particularizar os personagens e criar a atmosfera narrativa.

Retornando à tríade de Nesteriuk (2011), o universo é constituído pelo espaço e pelo

ambiente. O espaço corresponde ao lugar físico da ação, traduzido na produção animada em

cenários; o ambiente é o espaço social, psicológico e moral em que vivem os personagens –

para lembrar Todorov (2011) o ambiente está associado ao nível apreciativo – e pode ser

delineado pela ficção, em que a estrutura de sentido é interna à história, ou buscar

autenticidade no mundo real. Nesteriuk (2011) escreve que tão importante quanto compor os

elementos da tríade é pensar na rede de relações que será estabelecida entre eles, percebe-se

então que nas produções contemporâneas também está presente a hierarquia dos níveis que

segundo Barthes (2011) é o princípio organizador da narrativa.

Quando as narrativas passam a empregar a comunicação audiovisual que articula o som,

a imagem em movimento e a linguagem verbal por meio do diálogo entre personagens,

diferente da literatura em que prevalece a escrita, surgem novas possibilidades de criação.

Como já mencionado, a mudança mais significativa, introduzida pelo cinema e herdada pela

TV, nas formas de contar histórias é a produção cultural seriada. Nesteriuk (2011, p. 46)

explica que “A serialidade narrativa proporciona [...] a construção de um texto fragmentado e

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descontínuo, na qual a repetição de seus elementos constituintes e a imposição de um

determinado ritmo de exibição da obra determinam características próprias e específicas”. De

acordo com Calabrese (1987), a serialidade transformou tanto os processos de produção do

audiovisual, no qual a estética da repetição tornou-se a principal tendência, quanto a recepção

que demandou novas competências para compreender e interpretar as narrativas

fragmentadas, cuja totalidade somente é alcançada mediante a soma dos episódios exibidos

separadamente. Nesteriuk (2011) acredita que a recepção de documentos audiovisuais

seriados é um processo de interação no qual o interlocutor tem a possibilidade de reorganizar

os elementos da série, realizando novas leituras.

À experiência de mediação do público, a partir de seu próprio repertório, soma-se a

uma nova experiência que a mensagem seriada é capaz de produzir, descontínua e

fragmentariamente, baseada na intertextualidade. A esse receptor atribui-se o papel

de interator capaz de reorganizar elementos (objetivos e subjetivos) preexistentes e

proporcionar novas (re)leituras desse mesmo sintagma. Tais leituras só conseguem

ser apreendidas em sua totalidade por aqueles que compartilharem a estrutura dos

códigos do sistema de serialidade que se apresenta. Neste caso, as séries passam a

funcionar com uma espécie de arquitexto, de uma enciclopédia na qual, por meio

de um processo de aprendizagem, o próprio espectador estabelece o seu conceito

de serialidade a partir de processos de compreensão, interpretação e de diferentes

estratégias de leitura (NESTERIUK, 2011, p. 45).

Calabrese (1987) conceitua a estética da repetição como o aperfeiçoamento involuntário

que nasce a partir de uma repetição mecânica para intensificar a produção cultural, em outras

palavras, embora as narrativas seriadas tenham tendência a repetitividade em sua continuidade

ou em comparação com outras narrativas de gênero e época congêneres, a cada recriação – ou

reprodução – nasce uma nova estética, a estética da repetição. Para o autor, a estética da

repetição recorrente nos produtos culturais cumpre três funções que compreendem tanto os

aspectos de produção como as expectativas do receptor:

1) a repetitividade como modo de produção de uma série a partir de uma matriz

única, segundo a filosofia da industrialização; 2) a repetitividade como mecanismo

estrutural de generalizações de textos; 3) a repetitividade como condição de

consumo por parte do público dos produtos comunicativos (CALABRESE, 1987,

p. 43).

Ao mencionar os modos de produção, o autor refere-se à estandardização da produção

cultural que se caracteriza especialmente pela produção seriada cujo objetivo primário é a

economia de tempo e recursos financeiros. A serialidade é entendida por Calabrese (1987, p.

43) como “a individualização dos componentes de um todo que sejam produzidos

separadamente e em seguida aglomerados segundo um programa de trabalho”, esta

individualização pode ser assimilada como a produção de bens culturais que têm origem em

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um protótipo e posteriormente são multiplicados em situações diversas, são exemplos os

episódios de uma determinada série, e neste caso o autor utiliza o termo variação de um

idêntico, ou ainda, analisando mais profundamente a produção audiovisual, a reutilização de

elementos como cenários e personagens que uma vez criados e produzidos para o protótipo

serão úteis para outros episódios da narrativa seriada.

As generalizações de textos remetem à universalidade, o uso frequente de elementos

invariáveis para compor a estrutura narrativa que extrapola um produto cultural em si para

impregnar-se em um gênero ou uma época. Os padrões de generalização que Calabrese (1987,

p. 46) designa como identidade dos mais diferentes – produtos culturais que são criados como

originais, porém apresentam uma identidade comum com outras narrativas – são desenhados

com base em três modelos: 1) modo icônico estrito que reproduz as conotações culturais

estereotipadas; 2) modo temático que é a recorrência de temas idênticos em diferentes

narrativas; e 3) modo narrativo14 que são as encenações-tipo. Nestes três modos concebidos

pelo autor, a repetição pode assumir a forma de decalque quando duas ou mais narrativas

apresentam repetição total – modos icônico, temático e narrativo – ou como reprodução em

que um dos modos é omitido. Como explica Calabrese (1987, p. 44)

Nem sequer se poderia falar em repetições, de resto, senão despedaçando a rede de

modelos com a qual analisamos os fenômenos, que é precisamente através daquela

rede que se tornam não já indivíduos localizados, mas sim estados de coisas

abstratas, utilizados como padrões.

Na recepção, a estética da repetição presente nas séries contemporâneas está relacionada

ao consumo cultural e às projeções do universo semântico do receptor no processo de

interpretação. Nesta interação entre produtos comunicativos e interlocutores os padrões de

generalização buscam atender a certas expectativas do receptor. As generalizações de textos

esboçam um trajeto de leitura facilitada pelos elementos invariáveis da narrativa que são

imediatamente reconhecidos pelos receptores, no entanto, Calabrese (1987) pondera que estas

generalizações não são impostas pela produção cultural, mas construídas pelo confronto de

valores – entre produtores e interlocutores – do qual emerge o horizonte comum de gosto.

Por outras palavras, poderemos achar a ‘fábrica televisiva’, que já não se oculta

como tal, um texto que exalta a lógica da serialidade e um consumo que se faz

‘escolha da vida’, estão estritamente ligados pela existência de códigos superiores

do gosto, não só propostos como modelos, mas também estabilizados como

comportamentos no saber coletivo” (CALABRESE, 1987, p. 49).

14 Diferente da visão de Todorov (2011), em que os modos de narrar são parte do discurso, para Calabrese (1987)

os modos de narrar são representados pelas encenações-tipo, portanto, transitam entre o discurso e a história.

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Similar à teoria de Calabrese (1987), Lorenzo Vilches (1984) acredita que a produção

cultural seriada é influenciada por três fatores: 1) pela estrutura produtiva que diz respeito aos

aparatos tecnológicos e à autonomia técnica e criativa do autor e produtor da série; 2) pela

estrutura narrativa que são os modos de apresentação da série ao público; e 3) pela

expectativa dos interlocutores que está associada às competências de recepção e

compreendem aspectos sociológicos, midiáticos e relações intertextuais. Para Nesteriuk

(2011, p. 45), a intertextualidade é uma atividade semântica que permite aos interlocutores

memorizar os elementos de uma narrativa seriada e articulá-los com diferentes situações,

episódios e com a série como um todo, neste sentido, a recepção é, como já apontado, um

processo de aprendizagem e de reconhecimento dos códigos do sistema da serialidade.

Segundo Nesteriuk (2011, p. 43) “Os elementos invariáveis funcionam não apenas

estabelecendo uma continuidade com as expectativas e conhecimentos do público, mas,

principalmente, como reiteração das partes estruturais dos códigos do sistema de uma série”.

Estas articulações de continuidade podem ocorrer na elaboração dos códigos que dão

significado à narrativa – portanto são de responsabilidade do autor, no momento da criação da

série, e do discurso, na representação – e na organização das unidades narrativas presentes na

história – nível das ações e dos personagens. Barthes (2011) define os índices e informantes

como unidades de continuidade; os índices carregam significados implícitos, sentimentos que

circundam personagens, ações e universo, compondo a atmosfera da narrativa e os

informantes servem “para dar autenticidade à realidade do referente, para enraizar a ficção no

real [...]” (BARTHES, 2011, p. 36), ambos trabalham o reconhecimento da narrativa junto ao

interlocutor.

Porém, não somente de repetição é construída a narrativa. Existem os elementos

variáveis que assumem o papel de elemento surpresa, acrescentando à estrutura já

reconhecida pelo interlocutor, novas situações com as quais ele não está habituado a interagir

ou não as identifica como pertencentes ao universo narrativo. Da mesma forma que os

invariáveis, os elementos variáveis podem ser inseridos em todos os níveis hierárquicos da

narrativa, sendo mais frequente a introdução de elementos surpresa no nível da história –

como a apresentação de novos personagens, a variação temática, a oscilação do perfil

psicológico de um personagem, um cenário diferenciado ou a modificação de um ambiente.

Nesteriuk (2011, p. 43) compara a combinação de elementos variáveis e invariáveis na

produção audiovisual à dinâmica da vida “Podemos, portanto, comparar este modo de

produção à própria dinâmica da vida cotidiana, que ao se renovar, também se mantém atada

às estruturas cumulativas prévias”. Vilches (apud NESTERIUK, 2011, p. 52-53), com base

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nas articulações entre elementos variáveis e invariáveis da estrutura narrativa, propõe cinco

esquemas possíveis de repetição nos produtos culturais seriados.

Tabela 1 – Esquemas narrativos

ESQUEMA

NARRATIVO

RELAÇÕES ENTRE ELEMENTOS NARRATIVOS

INVARIÁVEIS VARIÁVEIS

Fixo Reprodução de um protótipo de estrutura simplificada, sem

acréscimo de elementos variáveis.

Fixo com variação

de personagens

Tema central dos episódios e

perfil psicológico dos

personagens principais.

Novos personagens de

hierarquia secundária.

Fixo com variação

de perfil psicológico

Tema central dos episódios. Perfil psicológico dos

personagens. O desenvolvimento

narrativo é sustentado pela

profundidade psicológica dos

personagens, evidenciando a

solução de seus conflitos

internos.

Fixo com variação

de temas

Perfil psicológico dos

personagens.

Tema central dos episódios.

Personagens fixos Personagens. Tema central dos episódios.

Tabela elaborada pela autora da pesquisa, segundo as proposições de Lorenzo Vilches (1984).

Vilches (1984, p. 9) defende que a criação dos produtos audiovisuais obedece às regras

e estratégias que servem como diretrizes para organizar a recepção, deste modo, os elementos

formais e temáticos, articulados entre si, são transmitidos em formato de textos culturais que

envolvem o telespectador em um mundo real ou possível. O autor, que também atua como

consultor nos campos do cinema e da TV, propõe classificar as séries televisivas tomando-se

por base a estruturação dos elementos da narrativa e a rede de relações articulada entre eles,

ou seja, por meio dos modos de apresentação da série. Mais uma vez, a ideia-chave da análise

estrutural da narrativa – estruturação e organização hierárquica dos elementos e as relações

estabelecidas entre estas unidades – é aplicada para atender a uma demanda da indústria do

entretenimento no que diz respeito à categorização dos produtos culturais. Vilches (1984)

classifica as narrativas seriadas em três tipos: 1) topológico no qual o universo é o elemento

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central da trama e toda a rede de relações da narrativa se dá a partir do espaço físico e do

ambiente, isto é, o universo narrativo é a principal forma de reconhecimento por parte dos

interlocutores; 2) enciclopédico que estabelece relações de intertextualidade, assim, a

interpretação da série exige determinadas competências de recepção; e 3) rendado em que a

série é composta por episódios autônomos, com histórias completas e independentes, e a cada

episódio existe uma nova missão a ser cumprida. Nesteriuk (2011, p. 49) defende que

Os modos de produção, distribuição, recepção e interpretação das narrativas

seriadas na televisão possuem características próprias para que as classifiquemos

como um gênero próprio e específico dentro da televisão e do próprio audiovisual.

Todavia, sabemos que é possível aplicar outros critérios para novas classificações

dentro deste gênero, isto é, existem diferentes tipos e gêneros de séries de

televisão.

Arlindo Machado (2000, p. 83) exemplifica três tipos de narrativas seriadas televisivas:

1) as de construção teleológica que são as narrativas únicas ou o encadeamento de narrativas

nas quais a história se desenvolve de maneira linear – a apresentação dos acontecimentos em

ordem cronológica dá continuidade à trama – ao longo dos capítulos ou episódios, o princípio

essencial da narrativa teleológica é reaver o equilíbrio perdido nos capítulos iniciais, tal

desequilíbrio é causado por um conflito que será solucionado somente nos capítulos finais; 2)

as narrativas em que um protótipo é multiplicado em variantes diversas, neste caso, cada

episódio é autônomo e conta uma história completa, mantendo os personagens e a situação

narrativa como elementos invariáveis, assim, a exibição dos episódios não exige uma ordem

cronológica – ou lógica – e os interlocutores não necessitam de conhecimento prévio para

interpretar a história; e 3) as narrativas nas quais predominam os elementos variáveis, neste

modelo permanecem como índices de continuidade da série o ambiente e o tema.

Se para os estudiosos da narrativa e profissionais da indústria do entretenimento os

documentos audiovisuais – e outros produtos comunicativos – fixam limites bem claros entre

a ficção e a realidade, o mesmo não acontece na dimensão do consumo cultural. No campo da

produção, as narrativas são o resultado da organização hierárquica de inúmeros elementos

invariáveis e variáveis que articulam-se entre si, cada qual com uma função específica dentro

da trama; os personagens ganham vida por meio de suas ações que são contextualizadas no

universo narrativo – espaço e ambiente; quando história e discurso se conectam, os sentidos

da narrativa são revelados, possibilitando diferentes interpretações pautadas na personalidade

e na ideologia de cada interlocutor. Como lembra Todorov (2006, p. 79) “[...] A obra será

sempre considerada como a manifestação de uma estrutura abstrata, da qual ela é apenas uma

das realizações possíveis [...]”.

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Já no campo da recepção, a fronteira entre o mundo ficcional e o mundo real não é tão

nítida; aos olhos do receptor, as histórias contadas nas telas do cinema ou da televisão ou

narradas em um livro se parecem com fragmentos da vida cotidiana. Esta sensação de

realidade despertada nos interlocutores é causada pela verossimilhança. Adilson Citelli (1995,

p. 14) explica que “Verossímil é, pois, aquilo que se constitui em verdade a partir de sua

própria lógica”, para o autor a arte não tem compromisso com a realidade, mas com a criação

de um mundo intermediário entre a ficção e o real que a partir da abstração do interlocutor e

de seu envolvimento com a narrativa, seria possível.

3. Construção dos personagens de ficção

Os estudos a respeito de personagens ainda são bastante incipientes. Em A personagem,

Beth Brait (1985, p. 12) escreve que "[...] a personagem é um habitante da realidade ficcional,

de que a matéria de que é feita e o espaço que habita são diferentes da matéria e do espaço dos

seres humanos [...]”, contudo, a autora pondera que estas duas dinâmicas mantêm uma relação

bastante próxima. Para Nesteriuk (2011, p. 181)

A noção de personagem pode ser entendida como a representação de uma entidade

que pratica e, principalmente, vive as ações apresentadas em uma história. Seja por

meio da dinâmica visual (sua movimentação, ações e características físicas) ou

psicológica (a forma de pensar, sentir, agir, as palavras que usa e os

comportamentos mais frequentes), a construção de uma personagem forte depende

tanto da capacidade de observação do roteirista quanto de sua inventividade.

Todorov (2006, 2011) e Barthes (2011) referem-se aos personagens como seres de

papel. A análise estrutural da narrativa rejeita a ideia da construção de personagens-pessoas

como reprodução da realidade externa.

[...] os personagens (por qualquer nome que lhes chame: dramatis personae ou

actantes) formam um plano de descrição necessário, fora do qual as pequenas

ações narradas deixam de ser inteligíveis, de sorte que se pode bem dizer que não

existe uma só narrativa no mundo sem “personagens” ou ao menos sem “agentes”;

mas, por outro lado, estes “agentes” bastantes numerosos não podem ser descritos

nem classificados em termos de “pessoas” [...] (BARTHES, 2011, p. 45, grifos do

autor).

Contudo, nas narrativas contemporâneas, das mais simples as mais complexas, os

personagens se mostram plenamente constituídos de características físicas, psicológicas e

moral. Se os personagens da ficção não fazem referência alguma aos seres humanos, como

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explicar a identificação entre estes seres ficcionais e seus interlocutores? Umberto Eco (2011)

responde a este questionamento discutindo a tipicidade dos personagens

[...] a tipicidade não é um dado objetivo que a personagem deva adequar para

tornar-se esteticamente (ou ideologicamente) válida, mas resulta da relação de

fruição entre personagem e leitor, e um reconhecimento (ou uma projeção) que o

leitor realiza diante da personagem (ECO, 2011, p. 216).

Eco (2011, p. 212) afirma que “falar em ‘personagem típica’ significa pensar na

representação, através da imagem, de uma abstração conceptual”. O autor explica a tipicidade

como um recurso ao tópico15 que busca rememorizar, na narrativa, experiências estéticas – de

fruição – para qualificar experiências intelectuais e morais individuais, não de forma

contemplativa, mas aplicada (à realidade). O recurso ao tópico torna-se pleno e operante no

momento em que ocorre o reconhecimento – ou projeção – do interlocutor; tal

reconhecimento nasce na invenção de um personagem com consistência artística e bem

realizado16 como objeto narrativo (poética), entretanto, a tipicidade dos seres ficcionais é

autenticada na fruição (estética) quando um grupo de interlocutores percebe na personalidade

e no comportamento do personagem a sua própria maneira de ver o mundo e o sente como um

“ser verdadeiro”. Eco (2011, p. 218) define este comportamento criado para a ficção como

mimese do comportamento humano que está fundamentada “na capacidade produtiva de dar

vida ao fatos, que, pela sua coerência de desenvolvimento, surjam como verossímeis; onde,

portanto, a lei da verossimilhança é lei estrutural, de sensatez lógica, de plausibilidade

psicológica [...]”.

O autor compartilha da premissa de que o personagem é resultado de uma ação narrada

ou representada e, como já citado, quando bem realizado como objeto estético permanece

vivo na memória dos interlocutores. A tipicidade deste produto artístico que é o personagem

se concretiza à medida que ele se apropria de uma fisionomia completa, não apenas exterior,

mas também intelectual e moral, ou nos termos de Nesteriuk (2011), a materialização do

personagem se dá por meio das dinâmicas visual e psicológica. A fisionomia intelectual é

criada e contextualizada na narrativa e expressa o modo pelo qual, por meio de gestos e ações,

o personagem define sua personalidade e revela a sua concepção de mundo, permitindo aos

interlocutores compreendê-lo plenamente. Assim, o personagem típico é legitimado

15 Umberto Eco define como tópico o “conjunto de interpretações previstas na estratégia discursiva de produção

de um texto que prevê uma modalidade particular de recepção”. 16 O autor entende como “bem realizado” o personagem criado em sua plenitude, com uma fisionomia completa

que contempla características físicas, intelectuais e morais, contextualizadas no enredo da narrativa, capazes de

estimular uma relação fruitiva, de reconhecimento ou de projeção, com seus interlocutores.

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[...] quando o autor consegue revelar os múltiplos nexos que coligam os traços

individuais dos seus heróis aos problemas gerais da época; quando a personagem

vive, diante de nós, os problemas gerais de seu tempo, mesmo os mais abstratos

[...]’ (LUKÁCS, 1953 apud ECO, 2011, p. 220).

Com base nas proposições de Eco (2011), é factível admitir que a identificação entre

seres da ficção e seres humanos irrompe de uma relação fruitiva, desencadeada pelas

narrativas em que o narrador – ou autor – é capaz de articular nexos entre a realidade e as

experiências estéticas, criando um mundo autossuficiente e plenamente possível e

compreensível dentro de sua lógica própria. Não se trata, portanto, de mera decodificação do

que foi codificado pelo autor. Mas de fruição, dada por dinâmicas de interpretação e produção

de sentidos. As narrativas são, assim como a tipicidade dos personagens, concretizadas na

fruição de pessoas reais que carregam na memória aqueles seres ficcionais nos quais se

reconhecem ou se projetam; esta relação entre personagens e interlocutores frui porque a

realização do personagem como objeto narrativo somada à mimese do comportamento

humano possibilitam encontrar no enredo da narrativa situações convincentes que são

facilmente associadas ao cotidiano.

Retomando a perspectiva da análise estrutural da narrativa, Todorov (2011, p. 230)

enfatiza que “todo personagem se define inteiramente por suas relações com outros

personagens”. Para tipificar estas relações, o autor propõe uma variação do modelo

predicados de base, formulado por A. J. Greimas, que estabelece três formas de

relacionamento entre personagens da ficção: desejo, comunicação e participação. As relações

de desejo expressam afetividade; as de comunicação correspondem às confidências e, por fim,

as de participação que equivalem à ajuda. De acordo com esta matriz, as demais relações

articuladas entre os personagens em uma narrativa são derivações destes predicados de base e

para cada um deles, existem predicados opostos que sustentam as relações inversas, como

amor versus ódio, ajuda versus impedimento, confidencialidade versus exposição.

Na dimensão da produção e do consumo de documentos audiovisuais, os personagens

são classificados tendo em vista sua importância na história, sua função narrativa e seu nível

de desenvolvimento psicológico (NESTERIUK, 2011, p. 180). Em relação à importância na

trama, os personagens são tipificados com base em uma hierarquia que os classifica como

principais, secundários ou figurantes, esta classificação ocorre em virtude de sua relevância

para a história e não é considerado, necessariamente, o tempo de exposição do personagem ao

longo dos episódios. Quanto à função narrativa, a categorização se dá por meio de dois tipos

opostos – protagonistas e antagonistas; para exemplificar esta relação é útil retomar a regra de

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oposição dos predicados de base: na relação ajuda versus impedimento, o papel de ajuda

corresponde ao protagonista, enquanto o impedimento ao antagonista. O nível de

desenvolvimento psicológico classifica os personagens em planos ou redondos. Os seres

ficcionais planos são superficiais, associados a uma única ideia ou qualidade, são estáticos e

não evoluem no decorrer da narrativa. Esta categoria de personagens é subdividida em tipo e

caricatura:

São classificadas como tipo aquelas personagens que alcançam o auge da

peculiaridade sem atingir a deformação. […] Quando a qualidade ou ideia única é

levada ao extremo, provocando uma distorção propositada, geralmente a serviço da

sátira, a personagem passa a ser uma caricatura (BRAIT, 1985, p. 42).

Os personagens qualificados como redondos são complexos, dinâmicos, multifacetados

e impregnados de características físicas, psicológicas, sociais, ideológicas e morais, chegando

algumas vezes a transcenderem aos conflitos da trama; para lembrar Eco (2011), são

personagens bem realizados como objeto estético que adquiriram uma fisionomia completa

contextualizada na narrativa.

Este capítulo apresentou as ideias-chave da análise estrutural da narrativa articuladas à

produção e ao consumo de produtos culturais. Na perspectiva estruturalista, os elementos

narrativos – personagens e ações – se relacionam em diferentes níveis hierárquicos para

contar uma história que terá sua última significação no discurso, na interação entre narrador e

interlocutores. Estes mesmos princípios organizativos estão presentes nos produtos culturais

contemporâneos, especialmente, nos documentos audiovisuais seriados. A serialidade

transformou os modos de produção, nos quais a estética da repetição tornou-se a principal

tendência, e também os processos de recepção televisiva que passaram a exigir dos

telespectadores novas competências para interpretar um conteúdo fragmentado e descontínuo,

aberto à múltiplas leituras. Esta explanação teórica será útil ao próximo capítulo que tem

como proposta desconstruir os episódios O tênis de Doug e Doug cai no rock da série de

animação Doug Funnie.

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A animação é uma importante forma de

comunicação e expressão contemporânea,

com forte presença nas artes e na cultura do

século XX e início do XXI. Neste sentido, a

animação é um produto cultural que pode ser

influenciado, como também pode influenciar

as sociedades nas quais se encontra inserida

(NESTERIUK, 2011, p. 12).

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CAPÍTULO III – DOUG FUNNIE

1. Narrativas do cotidiano infantil

A série de animação Doug Funnie 17 reúne narrativas do cotidiano de Doug, um

estudante de onze anos e meio que vive com a família na fictícia cidade de Bluffington. Nos

episódios, o personagem protagonista registra em seu diário acontecimentos recentes nas

quais experiências reais e imaginárias se misturam para compor o enredo da trama. Por conta

da variação temática, são diversos os cenários de ação dos personagens, no entanto, há uma

tendência de repetição da escola como espaço principal para o desenvolvimento da história.

Outros cenários frequentes são o Honker Burger – ponto de encontro dos estudantes da escola

de Bluffington – e o espaço doméstico no qual acontecem as interações familiares. O ambiente

da série está contextualizado no universo infantil e é delineado por idiossincrasias como

construção da identidade, aceitação social, consumo infantil, relacionamento familiar,

pertencimento ao grupo e mediação de conflitos que estruturam as ações vivenciadas pelos

personagens da série – Doug Funnie, Costelinha, Skeeter Valentine, Patti Maionese, Roger

Klotz e Fedido.

A escolha da série Doug Funnie para estudo se deu com base em uma premissa básica:

o desenho animado cumpre as funções de entreter e educar tendo em vista a contextualização

– de personagens, temática, espacial e temporal – das narrativas. Desta forma, pensou-se nas

seguintes hipóteses: 1) tal contextualização, especialmente dos personagens e suas ações,

possibilitaria o reconhecimento e a projeção do telespectador infantil no universo narrativo da

animação; 2) e, consequentemente, Doug Funnie poderia oferecer inúmeras possibilidades de

discussão – e por que não de aprendizagem – junto às crianças pesquisadas. Especificamente

para a investigação empírica foram selecionados dois episódios que fazem parte da primeira

temporada da série, produzida no ano de 1991 pela Nickelodeon: O tênis de Doug e Doug cai

no rock. O primeiro episódio debate o consumo como mediador das relações sociais na

17 Doug Funnie, criado por Jim Jinkins, foi ao ar pela primeira vez em 1991, em uma iniciativa do canal

Nickelodeon de produzir séries originais. A série foi produzida e exibida em duas fases distintas: inicialmente,

entre os anos de 1991 e 1994, foram produzidos pelo canal Nickelodeon 52 episódios; e, entre 1995 e 1999, a

Disney produziu 65 novos episódios e um longa-metragem intitulado Doug – 1st Movie – na tradução para o

português, Doug – O filme. No Brasil, o desenho animado – em suas duas versões – foi exibido em diferentes

emissoras, entre as quais TV Cultura, SBT e Bandeirantes. Atualmente, os episódios produzidos pelo canal

Nickelodeon são exibidos na TV Cultura, de segunda à sexta-feira, às 14 horas.

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infância e o segundo aborda a preferência cultural em termos musicais e a construção do ídolo

entre as crianças. A seguir, a sinopse dos episódios.

1.1. Sinopse do episódio O tênis de Doug

Em O Tênis de Doug, a temática é o valor simbólico do consumo para as crianças

contemporâneas. O episódio inicia-se com Doug em um jogo de basquete, tentando acertar

um arremesso livre para reverter o placar para o seu time que está perdendo por um ponto.

Costelinha torce. Patti incentiva “Você consegue Doug”, enquanto Roger tenta intimidar

Funnie “Não consegue não Patti, ele é um perdedor com T18 maiúsculo, da cabeça ao tênis

velho”. Skeeter defende o amigo dizendo que a qualidade do tênis não influencia a vitória ou

derrota no esporte. Patti aconselha Doug a ignorá-los porque estão tentando fazer com que ele

erre o arremesso. Doug erra o lance livre. Envergonhado por não ter acertado a cesta, Doug

começa a pensar a respeito da real importância de ter um tênis da moda.

Figura 2 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 59” e 1’43”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.

Na escola, Doug observa que “tênis” é o assunto do momento e se pergunta “Desde

quando tênis era algo tão importante assim?” Perto do armário, uma estudante aborda Skeeter

para elogiar o seu tênis e ele mostra a ela que seu calçado é um modelo reversível que pode

ser usado dos dois lados, a menina faz outro elogio “eu acho tão legal quando um cara sabe

que tênis usar”. Enquanto Skeeter conversa com a garota, Funnie se esconde no armário com

vergonha do seu velho par de tênis vermelhos. Patti chega e pergunta por Doug, ele cai de

dentro do armário e ela o convida para jogar basquete. Doug não se interessa pelo jogo.

18 A letra T mencionada no diálogo “ele é um perdedor com T maiúsculo” do personagem Roger faz alusão ao

tênis velho de Doug Funnie.

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Figura 3 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 2’07” e 3’07”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.

Na volta para casa, Doug conversa consigo mesmo sobre o quanto seu calçado é de fato

ruim “talvez eu precise mesmo de um tênis novo”. Na chegada, ao parar próximo à lixeira

para reencontrar Costelinha, é atingido por um par de tênis arremessado pelo sr. Dink que

tinha a intenção de jogá-los no lixo. O sr. Dink se desculpa com Funnie e lhe mostra o seu

recém adquirido super tênis de ginástica.

Mais tarde, Doug assiste, na TV, às propagandas divulgando diferentes estilos e

modelos de tênis. A propaganda do tênis Air Jets, em que Sky Davis aparece jogando

basquete, atrai a atenção de Doug e o estimula a comprar o produto “Se ao menos eu tivesse

um par de Air Jets do Sky Davis”.

Figura 4 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 3’54” e 5’11”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.

Em sua imaginação, o Air Jets promoveria uma performance muito superior no jogo de

basquete e impressionaria Patti “Oh Doug, você é a coisa mais legal sobre dois pés, agora que

usa Air Jets”. Na propaganda, Sky Davis faz um apelo “Compre um par de Air Jets a venda na

loja de Tênis & Tênis & Tênis. Air Jets, compre já”. A locução em off informa que o astro do

esporte estará no shopping Trevo de Quatro Folhas autografando o produto anunciado e a

propaganda é finalizada com o slogan “Quem bobear, vai dançar”. Doug conversa com

Costelinha e decide ir ao shopping “Dentro de poucos minutos serei dono do tênis mais legal

em Bluffington. Vamos Costelinha, hora de comprar o tênis”. No shopping, Doug tenta, sem

sucesso, se aproximar de Sky Davis.

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Na loja Tênis & Tênis uma vendedora o atende. Doug pede um Air Jets. A vendedora

tira os sapatos de Doug de seus pés e os esconde em uma caixa. Doug percebe que sentirá

saudades de seu velho tênis em razão das aventuras que viveram juntos “Eu odeio dizer adeus.

Não que eu ache que não seja bom, mas acontece que eu não posso mais ser visto com ele”.

Costelinha observa. Na imaginação do personagem, os velhos tênis ganham vida e expressam

sentimentos de tristeza por terem sido trocados por um tênis da moda “Você acredita nisso?

Ele nos trocou por um tênis da moda esquerdinha. Eu nunca pensei que viveria para ver isso

Doug”. Funnie se desculpa com os sapatos antigos, dizendo que precisa de calçados mais

sofisticados.

Figura 5 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 5’37” e 7’37”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.

A vendedora chega com o último par de Air Jets número 35 e os calça em Doug. Ele

sente que ficaram grandes, a vendedora sugere colocar algumas dúzias de meias e insiste na

compra. Doug não se sente confortável com o calçado, mas ainda assim decide comprá-los.

Orgulhoso, pergunta a vendedora se já pode usá-los “um homem novo, com um par novo de

Air Jets”. Doug descobre que o dinheiro que tem em mãos não é suficiente para adquirir o

produto e desiste da compra, a vendedora irrita-se e grita para que ele tire o Air Jets. Doug

volta para pegar seu antigo tênis e encontra Roger experimentando o Air Jets “Você perdeu de

novo Funnie”.

Figura 6 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 8’24” e 9’15”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.

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Doug e Costelinha sentam-se em um banco de uma praça. Doug está aborrecido por não

ter conseguido comprar o Air Jets “lá estava eu, o mesmo cara, com o velho tênis vermelho”.

No mesmo banco senta-se Sky Davis “Ei garoto, que tênis legal”, fala o astro do basquete.

Doug e Costelinha se surpreendem “Puxa, você não é o Sky Davis”, o jogador diz “Pode me

chamar de Chuck”. Doug pergunta ao atleta por que ele não está usando o Air Jets. Sky Davis

responde “Oh, eu gosto dos meus Air Jets, mas tenho estes tênis há muito tempo, são meus

companheiros fora de quadra, eu acho que nunca vou me livrar deles”. Doug pede a Chuck

que autografe seus tênis e ele concorda “Agora você tem um verdadeiro tênis Sky Davis”. O

jogador também pede a Doug Funnie que autografe o seu velho par de tênis “afinal, nós

somos irmãos de sola”, fala Sky Davis.

Figura 7 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 9’23” e 10’17”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.

Na escola, Roger aparece para o jogo de basquete usando o Air Jets. Costelinha

expressa raiva. Os tênis também parecem enormes nos pés de Roger. Ao pegar a bola, Roger

se atrapalha com o tênis e cai antes de chegar ao garrafão, seus amigos riem. Com o apoio de

Patti e Skeeter “Vai fundo cara, você sabe que consegue”, Doug faz a cesta e vence o jogo.

Escrevendo no diário, Doug confessa ter percebido que seu tênis é ótimo. O episódio

termina com Doug e Costelinha fazendo cestas com bolinhas de papel.

Figura 8 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 10’25” e 11’11”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.

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1.2. Sinopse do episódio Doug cai no rock

Neste episódio, Doug Funnie se dá conta de que é o único garoto de Bluffington que não

tem um ídolo musical. Skeeter, melhor amigo de Doug, é um grande fã da banda The Beets19.

Doug, que não conhece a banda, questiona “Desculpe Skeeter, mas quem são os Beets?”.

Skeeter surpreende-se com a pergunta de Funnie e decide ajudá-lo a se tornar um fanático,

como ele, pelos Beets. Costelinha, que demonstra suas habilidades tocando uma guitarra

imaginária, parece conhecer bem as canções. Com a ajuda de Skeeter, Doug se transforma em

um beatnik, conhecedor das músicas e da história da banda.

Figura 9 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 05” e 51”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.

Por meio de Roger, Doug e Skeeter ficam sabendo que The Beets fará um show em

Bluffington. Mas, após dar a boa notícia, o vilão interrompe a alegria dos garotos e de

Costelinha para avisá-los que os ingressos para o concerto estão esgotados e que ele havia

comprado o último par de ingressos.

Figura 10 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 2’04” e 3’03”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.

Doug e Skeeter ouvem na rádio K-Bluf que haverá um sorteio de dois ingressos para o

show The Beets. Para concorrer, os ouvintes devem responder corretamente três perguntas a

19 Criado exclusivamente para a série animada – contando até mesmo com a produção de músicas inéditas como

Killer tofu, em português, Mingau matador –, The Beets, formado por Monroe Yoder (vocais), Wendy Nespott

(guitarra), Chap Lippman (bateria) e Flounde (baixo), fazem referência ao quarteto de Liverpool, The Beatles.

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respeito da banda, quem acertar as respostas, ganha os ingressos. Skeeter sugere a Doug

participarem do concurso “Nós podemos ganhar esses ingressos Doug, nós dois sabemos

tudo”.

Figura 11 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 3’41” e 4’08”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.

Os estudantes voltam para a casa de Skeeter para ligar para a rádio. Roger torce contra.

Skeeter consegue a ligação para a K-Bluf e acerta duas das três perguntas. Doug, sem querer,

responde corretamente a terceira ao dizer “sem ideia”. Doug, Skeeter e Costelinha

comemoram o prêmio.

Figura 12 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 4’23” e 5’33”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.

Quando tudo parece resolvido, Skeeter fica de castigo por não se comportar bem à mesa

durante o jantar e seu pai, sr. Joe, o proíbe de ir ao show. O personagem lamenta “Oh cara, eu

não acredito que estraguei tudo”.

Doug não se sente à vontade para ir ao concerto sem o melhor amigo. Roger provoca

“Ora Funnie, não me diga que vai ficar em casa com seu amigo fracassado e perder o

concerto. Vamos, é hora de ver os Beets”. Doug questiona “Ir ao concerto? Sem o Skeeter?”

Skeeter aconselha Doug a ir com Roger “Ele [Roger] tem razão. Vai em frente, ao menos

poderá me contar tudo depois”. Doug retruca “Ah eu não sei não Skeeter, sabe esse seria o

meu primeiro concerto e provavelmente o melhor, mas eu não tenho certeza se quero ir sem

você”. Skeeter incentiva o amigo “Não se preocupe comigo, eu estarei bem”. Doug pensa

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melhor e decide não ir ao show para ficar com Skeeter “Ei, se não fosse você eu nem saberia

quem são os Beets. Eu não vou te abandonar agora”.

Figura 13 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 6’02” e 7’41”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.

Doug sugere ao amigo imaginarem que fazem parte da banda The Beets. Skeeter aceita

a brincadeira, os dois colocam a música Mingau matador e começam a dançar e cantar. Sr.

Joe se irrita com o barulho vindo do quarto de Skeeter e tira o filho do castigo para se livrar

do som alto. Com o fim do castigo, Doug e Skeeter vão ao Honker Burger que está vazio por

conta do show. Doug fantasiando ser Chap Lippman dedica uma música aos melhores amigos

Monroe Yoder e Costelinha, os três começam a cantar e dançar novamente.

Neste momento, o ônibus da banda The Beets estaciona no Honker Burger. Os

integrantes descem, olham Doug e Skeeter cantando e vão até eles para conversarem. Os

personagens ficam surpresos com a presença dos ídolos. Chap Lippman pergunta a eles se

conhecem a banda, para provar que sim, Doug e Skeeter cantam Mingau matador. Os Beets

entram na brincadeira até o garçon do Honker Burger, que parece não reconhecer os astros do

rock, entregar-lhes o milk-shake.

Figura 14 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 8’25” e 9’17”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.

Os integrantes da banda se despedem e entram no ônibus, antes de partir jogam jaquetas

personalizadas para Doug, Skeeter e Costelinha. Doug diz a Skeeter “ninguém vai acreditar

na gente” e Skeeter responde “quem se importa cara”. Roger chega do show provocando os

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colegas, os chamando de perdedores por não terem ido ao melhor concerto do mundo. Doug

pergunta a Roger se ele conseguiu chegar bem perto da banda e ele confessa que assistiu ao

concerto com binóculos, sentado na última fileira. Doug e Skeeter não contam para Roger que

conheceram a banda e ganharam as jaquetas.

O episódio termina com Doug escrevendo em seu diário que, embora seja difícil de

acreditar, tudo deu certo e que o melhor, como diz a música da banda The Beets, é estar perto

do “seu amigão”.

Figura 15 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 9’22” e 10’58”)

Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.

2. Desconstrução do universo ficcional

Doug Funnie é um conjunto de narrativas com episódios seriados que utilizam como

modo de produção técnicas de animação, combinando linguagem oral e imagem em

movimento. Além desses elementos discursivos verbais e imagéticos, as produções trazem

outros recursos sonoros de ambientação e trilhas musicais. A produção e a recepção de Doug

Funnie demostram características intrínsecas aos produtos culturais seriados que são

fragmentação, descontinuidade e repetição.

Com o propósito de dar suporte à pesquisa empírica de recepção, no que diz respeito à

interpretação das crianças em relação aos episódios O tênis de Doug e Doug cai no rock, será

apresentada nas próximas páginas a análise estrutural das narrativas de Doug Funnie,

especialmente dos episódios acima mencionados.

O diálogo entre a visão estruturalista e as práticas de produção e recepção de produtos

culturais se faz necessário posto que a animação Doug Funnie e seus interlocutores estão

contextualizados em uma sociedade midiática. Portanto, a articulação entre os princípios

organizadores da análise estrutural da narrativa e a categorização utilizada pela indústria do

entretenimento e pelos meios de comunicação de massa torna-se pertinente.

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Valendo-se da teoria dos níveis – compartilhada por Barthes (2011) e Todorov (2006,

2011) – e das perspectivas de produção e consumo de bens culturais na indústria do

entretenimento, a análise dos episódios está estrutura de acordo com o esquema abaixo:

Esquema 1 – Método de análise dos episódios

Esquema elaborado pela autora da pesquisa com base em Barthes (2011), Todorov (2006, 2011) e Eco (2011).

Iniciando a análise pelo nível das Funções, proposto pela visão integrativa de Barthes

(2011), os índices são as unidades narrativas predominantes na animação, pelas próprias

características da serialidade – fragmentação e descontinuidade – que exigem a repetição

contínua de recursos imagéticos e verbais capazes de trabalhar junto aos interlocutores o

reconhecimento da narrativa. Doug Funnie é uma série com tipologia rendada, ou seja, com

episódios autônomos cuja exibição não exige uma ordem lógica ou cronológica, assim os

índices têm papel fundamental na construção do universo narrativo para vincular cada um dos

episódios ao conjunto que origina a série.

Os índices são facilmente identificados na fisionomia dos personagens. Como explica

Eco (2011), um personagem quando bem realizado como objeto estético possui não apenas

características físicas, mas também aspectos intelectuais e morais. Ao analisar os seres

fictícios da série – que para Todorov (2006, 2011) estão no nível da história – é possível

descrever esta fisionomia20:

20 É preciso considerar que a análise da fisionomia dos personagens da série está contextualizada em uma

produção animada direcionada ao telespectador infantil, desta forma, as características intelectuais e morais são

adequadas à compreensão destes interlocutores, não abrangendo a profundidade apresentada em narrativas mais

complexas.

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Doug Funnie, personagem protagonista, tem características visuais singulares como os

traços do rosto que indicam um nariz grande, o modo de vestir-se nada contemporâneo e

incomum em sua faixa etária – camiseta e colete – e os poucos fios de cabelo. No entanto, são

as características comportamentais, repetidas a cada episódio da série – como a timidez, a

dificuldade de se socializar, seus conflitos internos e, sobretudo, sua maneira de enredar a

imaginação aos acontecimentos reais – que compõem a essência do personagem.

Em O tênis de Doug, o personagem acredita que ao comprar um novo par de calçados,

mais sofisticados, será visto pelos amigos de maneira diferente, como um bom atleta. Logo, a

aquisição de um tênis da moda está associada ao bom desempenho no basquete e,

consequentemente, ao reconhecimento do grupo. Em um dos fragmentos do episódio, Doug

conversa com Costelinha sobre o tênis velho “Eu odeio dizer adeus. Não que eu ache que não

seja bom, mas acontece que eu não posso mais ser visto com ele”, este diálogo mostra como o

personagem se importa com a percepção dos amigos a seu respeito, sinalizando a necessidade

de aceitação social.

Outra particularidade de Doug Funnie é sua capacidade inventiva para entrelaçar, nos

fatos narrados, realidade21 e imaginação. No episódio Doug cai no rock, ao fingir tocar uma

guitarra, o protagonista imagina-se em um show como vocalista da banda The Beets, cantando

Mingau matador, na plateia estão os colegas que costumam zombar dele na escola e Patti

Maionese – por quem Doug mantem uma paixão secreta – todos o admiram e estão

entusiasmados com sua música, os fãs imaginários carregam uma faixa com a frase “Nós

amamos Doug”. Em O tênis de Doug, o personagem imagina seu velho tênis ganhando vida e

sofrendo com a separação, na cena da animação os sapatos choram e conversam com Doug

“Não fomos bons para você? [...] Você acredita nisso, ele nos trocou por um tênis da moda

esquerdinha”. O mundo imaginário criado pelo protagonista expressa suas angústias e seus

desejos. No primeiro episódio, Doug por meio de seu imaginário realiza o desejo de ser

popular, um tema recorrente na série, uma vez que a popularidade está associada ao

reconhecimento do grupo e à aceitação social. Na segunda situação, Doug usa a fantasia para

resolver um conflito, idealizando um diálogo com o velho par de tênis para explicar o real

motivo da compra de um calçado mais sofisticado.

Esta dinâmica psicológica do protagonista – considerada pela perspectiva da produção e

do consumo de documentos audiovisuais como redonda por apresentar atributos físicos,

psicológicos, sociais, ideológicos e morais – contribui também para a atmosfera da narrativa

21 Por realidade entende-se as ações que de fato se concretizaram na ficção.

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visto que a temática da série se desenvolve a partir das relações que Doug estabelece com os

demais personagens. A fisionomia de Doug Funnie e a atmosfera da narrativa – unidades

indiciais de natureza integrativa – permitem ao telespectador infantil estabelecer uma

continuidade entre os episódios autônomos.

Costelinha, cachorro de estimação de Doug Funnie, é também um personagem

principal se considerada sua relevância para o desenho animado. A representação visual deste

personagem é bastante comum, o que o diferencia são suas habilidades e seus traços de

personalidade inspirados na mimese do comportamento humano. Costelinha está plenamente

inserido na esfera de ação da narrativa, é capaz de compreender os conflitos de Doug e

participar ativamente de todos os acontecimentos da história, expressando por meio da

dinâmica visual diferentes sentimentos – alegria, tristeza, raiva, surpresa, indignação.

Contudo, o personagem não pode ser considerado como redondo, a ausência da fala

impossibilita o interlocutor de compreendê-lo plenamente.

Roger Klotz é o antagonista da série. A dinâmica psicológica deste personagem é típica

dos vilões: amoral, age somente em benefício próprio, elabora planos de conspiração, cria

intrigas, seu atributo principal é a maldade. No aspecto visual, Roger se destaca pela cor verde

da pele, cabelo laranja e trajes que reforçam a tipificação do vilão. Roger aproxima-se do

personagem-caricatura, por isso é considerado plano. Seu animal de estimação é o gato

Fedido, de pelos pink, personagem secundário e plano, cuja ações são espelhadas em Roger.

Skeeter Valentine é o melhor amigo de Doug Funnie. Em alguns episódios tem papel

principal, como em Doug cai no rock, em outros, sua participação é menos relevante para a

narrativa, podendo ser classificado como secundário, como acontece em O tênis de Doug. A

fisionomia do personagem é menos inteligível, em algumas de suas ações é possível

identificar uma certa moralidade como quando, por exemplo, Skeeter defende Doug diante do

grupo, no entanto, o personagem não atinge a mesma profundidade psicológica de Doug.

Visualmente, Skeeter se distingue pela pele esverdeada, nariz avantajado e trajes modernos.

Patti Maionese é a garota mais popular da escola de Bluffington. Entre seus atributos

estão a beleza e a inteligência. Patti é a paixão secreta de Doug. Pela importância que tem

para a narrativa, a personagem é classificada como secundária.

Tomando-se por base o esquema narrativo de Vilches (1984), a série Doug Funnie é

classificada como fixa com variação de temas; nesta concepção, os índices podem também se

constituírem em elementos invariáveis do desenho animado, embora com temas diferenciados

a cada episódio, é perceptível a repetição na construção da atmosfera narrativa e na

fisionomia dos personagens, esta estrutura comum aos episódios – que Barthes (2011) chama

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de “sistema implícito de unidades e regras” – é resultado das unidades indiciais presentes na

narrativa.

Nos episódios de estudo, além da variação temática, outros elementos variáveis foram

inseridos no nível da história. Em O tênis de Doug, o personagens Sky Davis e a vendedora

da loja Tênis & Tênis, assim como o cenário do shopping Trevo de Quatro Folhas, são

novidades na série. No episódio Doug cai no rock, os personagens da banda fictícia The Beets

e o locutor da rádio K-Bluf, além do cenário da rádio, são elementos surpresa.

A temática de Doug Funnie se desenvolve a partir da rede de relações estabelecida entre

o personagem protagonista e os demais personagens da série. Neste sentido, é apropriado

tipificar estas relações com base no modelo predicados de base, adaptado por Todorov

(2011). Considerando as três formas de relacionamento definidas nesta matriz – desejo,

comunicação e participação – e seus respectivos predicados opostos e variações, é possível

indicar que:

Tabela 2 – Tipificação das relações em Doug Funnie

PREDICADOS

DE BASE

SIGNIFICAÇÃO VARIAÇÕES

Doug Funnie

Costelinha Comunicação Confidencialidade Compreensão

Participação Ajuda Apoio

Roger Participação Impedimento Amoralidade

Skeeter Comunicação Confidencialidade Amizade

Companheirismo

Participação Ajuda Apoio

Patti

Maionese

Desejo Amor Amor platônico

Amizade

Tabela elaborada pela autora da pesquisa, segundo a matriz Predicados de base, adaptada por Todorov (2011).

Ainda no nível da história, no que tange às ações, a série Doug Funnie encaixa-se no

modelo triádico. Os episódios autônomos, narrados do início o fim, sem intervenção de outras

histórias, são fragmentos – ou encadeamentos – da série. Cada episódio é norteado por três

tipos de ações – 1) tentativa, 2) pretensão e 3) perigo – centralizadas inicialmente no

personagem protagonista. A partir de tentativas e pretensões de Doug Funnie, os demais

personagens são envolvidos no universo narrativo e a trama se desenvolve, como

demonstrado nos esquemas a seguir.

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Esquema 2 – Modelo triádico em O tênis de Doug

Esquema elaborado pela autora da pesquisa com base no modelo triádico (TODOROV, 2012, p. 225-227)

Esquema 3 – Modelo triádico em Doug cai no rock

Esquema elaborado pela autora da pesquisa com base no modelo triádico (TODOROV, 2012, p. 225-227)

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O discurso é o espaço para o diálogo entre Doug Funnie e o telespectador infantil. Se a

relação dialógica, segundo Bakhtin (1997), é o ato de compreensão no qual narrador e

interlocutores são produtores de sentidos, então é no nível do discurso que se dá os processos

de interpretação e apropriação do universo narrativo. A interpretação do interlocutor é

construída não somente pela visão que ele tem da história, mas também mediada pela visão de

quem narra os acontecimentos, em Doug Funnie particularmente, pelos personagens da série

animada. Narrador e interlocutores caminham juntos na compreensão dos signos da

narratividade, situados em um espaço histórico, social e culturalmente contextualizado.

Esta relação entre narrador e interlocutor é reflexo do confronto entre o universo

narrativo e o contexto social – em outras palavras, o confronto entre ficção e realidade –

denominado por Todorov (2011) como nível apreciativo. Se observada a contextualização da

série Doug Funnie, é plausível apontar que a narrativa busca referências no mundo exterior

para legitimar a moral interna da trama. A temática do desenho animado apresenta

verossimilhança com situações do cotidiano da criança, da mesma maneira que os padrões de

comportamento e conduta dos personagens – mimese do comportamento humano – são

baseados em uma lógica externa ao universo narrativo – certo versus errado, bem versus mal,

moral versus amoral. Tal contextualização fez de Doug Funnie um produto midiático

atemporal, o desenho animado é exibido pelas emissoras de televisão desde 1991, ano de sua

criação, atraindo novos telespectadores e mantendo cativa a geração adulta que assistia aos

episódios da série na infância.

Deslocando-se da relação entre narrador e interlocutor para a relação entre narrador e

personagem, Doug Funnie, além de protagonista é o narrador da série. Se considerada a

proposta teórica de Jean Pouillon (1970), Doug é classificado como narrador-personagem,

visto que participa dos eventos ao mesmo tempo em que narra a história. O registro de Doug

em seu diário e o tempo verbal utilizado no início de cada episódio (O tênis de Doug: “Lá

estava eu, pronto para o lance livre. Estávamos perdendo por um ponto. Costelinha tava

torcendo”. Doug cai no rock: “Querido diário, sou eu, Doug. Eu era o único cara em que não

tinha uma banda favorita”) sinalizam que a história aconteceu no tempo passado e os eventos

estão sendo contados aos interlocutores do ponto de vista do narrador e demais personagens

da animação por meio do estilo cênico. Após indicar que está narrando eventos já ocorridos, o

narrador-personagem retoma a representação no tempo presente. Este recurso estilístico de

temporalidade utilizado na série é útil para tornar os acontecimentos inteligíveis aos

interlocutores e conectar o tempo pluridimensional da história – passado – ao tempo linear do

discurso – presente.

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3. Estética da repetição e técnicas de produção

A estética da repetição é uma tendência nos processos de produção audiovisual –

sobretudo, na produção de séries criadas para exibição na TV – e uma característica intrínseca

aos produtos culturais seriados. Desta forma, na série de animação Doug Funnie é possível

reconhecer alguns aspectos deste modo de produção. A individualização dos elementos

narrativos – criados e produzidos para o protótipo – e a posterior combinação destes

elementos em situações múltiplas, ou seja, a presença de elementos invariáveis no decorrer

dos episódios, já configuram uma estética da repetição cuja finalidade é agilizar a produção

cultural e economizar recursos financeiros. Calabrese (1987) denomina este modo de

produção de variação de um idêntico.

A ideia de repetição não assume aqui o sentido utilizado na Teoria da Informação, como

contraponto dos ruídos. Naquela corrente teórica, que se volta à transmissão da maior taxa de

informação possível em uma dada operação de comunicação, a superação dos ruídos

(interferências e perdas) pode ser obtida como recurso da repetição. Aqui o termo aparece por

conta do uso desse recurso estético (ou poético) nas narrativas dos seriados televisivos.

Observada a série em seu conjunto, a sintaxe dos personagens constitui-se em elemento

invariável, reutilizado na produção de novos episódios. Ou seja, uma vez ilustrados, os

personagens são inseridos em diferentes temáticas sem que haja mudança significativa na

dinâmica visual. O conjunto de cenários proposto é também um elemento invariável. Na série,

a escola de Bluffington, o Honker Burger e os espaços domésticos são os cenários

predominantes, em alguns episódios estes cenários são combinados a novos espaços como

forma de apresentar ao interlocutor um elemento surpresa. Dos vinte e cinco episódios que

compõem a primeira temporada da série, a escola de Bluffington aparece como cenário em

catorze, o Honker Burger em oito e os espaços domésticos em dezenove. Nesta temporada,

apenas três episódios têm cenários inéditos: Sempre alerta, Prefeito por um dia e O pescador.

Tabela 3 – Primeira temporada de Doug Funnie (1991): estética da repetição

EPISÓDIO CENÁRIOS

Doug pega um sapossauro Casa de Doug. Honker Burger.

Doug não sabe dançar Casa de Doug.

Culpado ou inocente Escola de Bluffington. Honker Burger. Casa de Doug.

A namora de Costelinha Casa de Doug.

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O narigão de Doug Escola de Bluffington. Casa de Doug.

Sempre Alerta Floresta.

Doug cai no rock Casa de Skeerter. Honker Burger.

A desgraça de Doug Casa de Doug. Escola de Bluffington. Honker Burger.

A culpa não foi de Doug Escola de Bluffington.

Prefeito por um dia Prefeitura de Bluffington.

Doug o talentoso Escola de Bluffington. Casa de Doug.

O tênis de Doug Escola de Bluffington. Casa de Doug.

Super Doug Escola de Bluffington. Casa de Doug.

Doug muda o visual Casa de Doug.

Doug e sua vó muito louca Casa de Doug.

O pescador Casa do sr. Dink. Lago.

Doug tá duro Casa de Doug. Honker Burger. Casa do sr. Dink.

Doug perde o diário Casa de Doug. Honker Burger. Escola de Bluffington.

A caricatura de Doug Escola de Bluffington.

O cozinheiro Escola de Bluffington. Casa de Doug. Casa do sr. Dink.

Doug banca a babá Casa de Doug. Honker Burger. Casa de Skeeter.

Doug é o homem codorna Escola de Bluffington.

Doug entra em campo Escola de Bluffington. Campo de baseball.

O primeiro programa de Doug Escola de Bluffington. Casa de Doug. Feira regional.

Amigos inseparáveis Casa de Doug. Honker Burger. Casa de Skeeter.

Tabela elaborada com base no DVD da primeira temporada da série Doug Funnie (1991).

Ainda no nível da história – considerando a lógica das ações – a dinâmica psicológica

dos personagens integra os elementos invariáveis da série. Os padrões de comportamento e

conduta dos seres ficcionais são previsíveis, permitindo ao telespectador infantil estabelecer

uma continuidade entre os episódios. São expectativas do telespectador em relação à narrativa

as maldades de Roger, a timidez e a necessidade de aceitação social de Doug, o

companheirismo entre Funnie e Skeeter, o apoio de Costelinha ao protagonista; neste sentido,

a repetitividade se torna um contrato de leitura – no qual entram em operação as gramáticas

de produção e de reconhecimento – entre o desenho animado e seus interlocutores que de

acordo com Calabrese (1987) é uma das funções da estética da repetição.

Outro elemento invariável da série é o fragmento em que Doug Funnie registra em seu

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diário as histórias vivenciadas. Além da repetição do cenário, é possível notar que a

colorização e a iluminação da cena são especificidades que a diferencia das demais

sequências do episódio.

Figura 16 – Sequência em que Doug escreve em seu diário

Imagens reproduzidas do audiovisual, Nickelodeon, 1991.

A série Doug Funnie foi criada com ilustrações no estilo animação limitada e produzida

por meio da computação gráfica. Na década de 1940, quando foi inventada pela UPA (United

Production of America), animação limitada designava uma técnica, desenvolvida por

intermédio do uso do acetato, para agilizar e baratear a produção de séries de animação,

especialmente para a exibição na TV. Pela originalidade e ousadia, o termo animação

limitada foi reconhecido não apenas como modo de produção de desenhos animados, mas

particularmente como um estilo de ilustração que permanece como referência até os dias

atuais. Na figura abaixo estão, à esquerda, Gerald McBoing-Boing, produzido pela UPA

(United Productions of American), em 1951, utilizando a técnica de animação limitada; e à

direita Doug Funnie produzido pela Nickelodeon, em 1991, com o mesmo estilo de animação.

Figura 17 – Animação limitada: técnica de produção versus estilo de ilustração

Imagens reproduzidas do audiovisual. Gerald McBoing-Boing (1951) e Doug Funnie (1991).

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O estilo animação limitada – inspirado no movimento Cubista – caracteriza-se pela

ênfase na geometria, simplicidade dos traços e colorização chapada das ilustrações e pela

bidimensionalidade do desenho animado. Em razão do plano bidimensional no qual são

criadas as ilustrações, o movimento da animação é rudimentar e não tem a pretensão de imitar

o mundo real.

Figura 18 – Estilo animação limitada

Fonte: TV Cultura

Se por um lado, a temática e a ambientação de Doug Funnie buscam verossimilhança

com o mundo exterior para legitimar a narrativa, a concepção visual da série tem natureza

própria. De acordo com Nesteriuk (2011, p. 170-171), estes recursos visuais são úteis para

“[...] romper as barreiras do realismo e propor de maneira fluida teorias, ideias e pensamentos

diversos, que talvez não pudessem ser assimilados do mesmo modo de outra forma”. No

desenho animado são permitidos personagens de pele colorida e animais de estimação com

personalidade inspirada na mimese do comportamento humano que serão novamente recriados

e (re)significados na fruição do telespectador infantil. Estas (re)significações do universo

narrativo, elaboradas com base nos contextos de vida da criança, serão descritas, interpretadas

e analisadas no capítulo V.

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Como pudemos passar tanto tempo tentando

compreender o sentido das mudanças na

comunicação, inclusive as que passam pelas

mídias, sem referi-las às transformações do

tecido coletivo, à reorganização das formas do

habitar, do trabalhar e do brincar? E como

poderemos transformar o “sistema de

comunicação” sem assumir sua espessura

cultural e sem que as políticas procurem

ativar a competência comunicativa e a

experiência criativa das pessoas, isto é, seu

reconhecimento como sujeitos sociais?

(MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 228).

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CAPÍTULO IV – RECEPÇÃO E MEDIAÇÕES

1. A gênese dos estudos de recepção: Stuart Hall e a Escola de Birmingham

O atual debate a respeito de como se estabelece a relação entre as audiências e os meios

de comunicação de massa foi despertado pelos estudos culturais. Para anteceder a discussão

acerca da proposta teórico-metodológica de Stuart Hall, vale um recorte dos estudos

realizados pelo Center for Contemporary Cultural Studies britânico, vinculados à

investigação da comunicação massiva. O intuito deste texto não é reconstruir o trajeto

histórico dos estudos culturais, tão pouco revisitar o rico repertório de temas discutidos pelos

pesquisadores com diferentes enfoques em períodos distintos; mas abordar pontos de vista,

modelos teóricos e metodologias de investigação que contribuíram para formar o panorama

dos estudos de recepção hoje.

Como movimento teórico-político, a Escola de Birmingham – fundada por Richard

Hoggart, Raymond Williams e Edward. P. Thompson – construiu um campo de estudos com

duas abordagens inéditas para aquele período: primeiro, a investigação social inserida e

praticada no contexto cultural; segundo, a interdisciplinaridade que sinalizou para a

convergência de diferentes visões e métodos “[...] a utilidade dessa convergência é que ela

nos propicia entender fenômenos e relações que não são acessíveis através das disciplinas

existentes [...]” (TURNER, 1990 apud ESCOSTEGUY, 1998, p. 88). Como movimento

intelectual, o Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) firmou compromisso com as

mudanças sociais que extrapolou os muros da academia e o território britânico para ancorar-se

em diferentes países, englobando os da América Latina.

A Escola de Birmingham centrou esforços para compreender a relação dialógica entre

comunicação massiva e cultura. A ruptura deste movimento intelectual e político está na

perspectiva teórica alinhada às práticas sociais com foco nos produtos da cultura popular e

nos mass media como forma de expressão da cultura contemporânea em oposição à cultura

elitista e a investigação das relações entre meios e audiências como fenômeno mecânico e

unidirecional (ESCOSTEGUY, 1998).

No campo acadêmico, este novo panorama teórico – interdisciplinar e contextualizado

social e culturalmente – exigiu repensar as práticas de investigação; assim, nos estudos

culturais a pesquisa passou a empregar metodologia qualitativa, com ênfase na etnografia,

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para analisar com profundidade os modos de vida dos atores sociais ou para citar Ana

Carolina Escosteguy (1998, p. 90), para compreender os sentidos da cultura na cotidianidade

Com a extensão do significado de cultura de textos e representações para práticas

vividas, considera-se em foco toda produção de sentido. O ponto de partida é a

atenção sobre as estruturas sociais (poder) e o contexto histórico enquanto fatores

essenciais para a compreensão da ação dos meios massivos, assim como, o

desprendimento do sentido de cultura da sua tradição elitista para as práticas

cotidianas.

Compartilhando deste pensamento teórico-metodológico, Stuart Hall foi quem mais se

dedicou aos estudos de recepção dos meios de comunicação massivos, em particular a

televisão, e às práticas de resistência das subculturas. Deste ponto de vista, Hall questionou,

por meio da crítica social, a manipulação dos mass media, a hegemonia cultural na televisão e

o papel passivo da audiência.

Nesta perspectiva são estudadas as estruturas e os processos através dos quais os

MCM sustentam e reproduzem a estabilidade social e cultural. Entretanto, isto não

se produz de forma mecânica, senão “adaptando-se” continuamente às pressões e

às contradições que emergem da sociedade, e “englobando-as” e “integrando-as”

no próprio sistema cultural (ESCOSTEGUY, 1998, p. 91).

Alinhado com a intensificação do consumo das mídias no final dos anos 1960, Stuart

Hall publicou, em 1973, Encoding and decoding in television discourse. O texto se tornou

uma das principais contribuições dos estudos culturais para a investigação da comunicação

social e, em particular, para os estudos de recepção.

Hall (2003) explica que Encoding and decoding in television discourse faz uma crítica

ao modelo positivista que pensa a comunicação como fluxo unidirecional – um circuito entre

emissor, mensagem e receptor isolados do contexto – no qual a mensagem que parte do

emissor e chega ao receptor é transparente.

A mensagem é uma estrutura complexa de significados que não é tão simples como

se pensa. A recepção não é algo aberto e perfeitamente transparente, que acontece

na outra ponta da cadeia de comunicação. E a cadeia comunicativa não opera de

forma unilinear (HALL, 2003, p. 354).

A noção de transparência da mensagem alerta para o fato de que o significado não está

unicamente vinculado ao entendimento – ou não – do receptor em relação ao conteúdo

midiático. Ao pensar desta forma unilinear, o positivismo despreza o repertório do

interlocutor e o contexto em que se dá a comunicação. Nos processos de apropriação dos

discursos midiáticos, a interpretação extrapola o sentido contido no produto cultural e deve

ser pensada na chave da compreensão e não apenas na perspectiva da decodificação e da

explicação.

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A transparência entre o momento da codificação e a decodificação é o que eu

chamaria de momento da hegemonia. Ser perfeitamente hegemônico é fazer com

que cada significado que você quer comunicar seja compreendido pela audiência

somente daquela maneira pretendida. Trata-se de um tipo de sonho de poder –

nenhum chuvisco na tela, apenas a audiência totalmente passiva (HALL, 2003, p.

366).

Além do modelo teórico-metodológico anunciado em Encoding and decoding in

television discourse, que segundo o próprio autor é frágil do ponto de vista do rigor científico,

o texto traz uma reflexão política na qual contesta a imposição ideológica da cultura

dominante pelos meios de comunicação. “É a noção de que o significado não é fixo, de que

não existe uma lógica determinante global que nos permita decifrar o significado ou o sentido

ideológico da mensagem contra alguma grade” (HALL, 2003, p. 354).

Hall (2003, p. 173), com base em Althusser, argumenta que “As ideologias constituem

estruturas de pensamento e avaliação do mundo – as ‘ideias’ que as pessoas utilizam para

compreender como o mundo social funciona, qual o seu lugar nele e o que devem fazer”.

David Morley (1996) argumenta que a posição ideológica dos meios de comunicação não

pode ser reconhecida tomando-se por base as dinâmicas de produção ou o texto, para

reconhecê-la é indispensável o estudo dos trajetos de leitura e do consumo midiático.

Partilhando da visão de que a ideologia concretiza-se na sociabilidade e na ritualidade, Hall

(2003, p. 173) completa

Igualmente importante é o lugar dos rituais e práticas de ação ou o comportamento

social, nos quais as ideologias se imprimem ou se inscrevem. A linguagem e o

comportamento são os meios pelos quais se dá o registro material da ideologia, a

modalidade de seu funcionamento. Esses rituais e práticas sempre ocorrem em

locais sociais, associados a aparelhos sociais. E por isso que devemos analisar ou

desconstruir a linguagem e o comportamento para decifrar os padrões de

pensamento ideológico ali inscritos.

Desta forma, o sentido da mensagem é sempre multireferencial. “Logo, sempre existirão

discursos na sociedade que são os meios pelos quais as pessoas tornam significativo o mundo,

dão sentido ao mundo” (HALL, 2003, p. 262). Morley (1996) reitera este pensamento,

sugerindo que os receptores imprimem um sentido particular ao sentido do mundo criado

pelos meios de comunicação. Roland Barthes (2011, p. 54) também compartilha desta visão,

especialmente, na significação das narrativas de ficção

A narração não pode com efeito receber sua significação do mundo que a usa,

acima do nível narracional, começa o mundo, isto é, outros sistemas (sociais,

econômicos, ideológicos), cujos termos não são mais apenas as narrativas, mas

elementos de uma outra substância (fatos históricos, determinações,

comportamentos, etc).

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Neste sentido, Encoding and decoding in television discourse traz uma nova perspectiva

para os estudos de recepção em virtude do mapeamento territorial, ou seja, dos processos

comunicativos contextualizados culturalmente nos quais os receptores negociam os sentidos

da comunicação, valendo-se da sua visão de mundo. Predominantemente, os conteúdos

midiáticos carregam consigo a intencionalidade de uma ideologia dominante que poderá – ou

não – ser legitimada pelo receptor.

A intencionalidade institucional contida na estrutura da mensagem, elaborada no campo

da codificação, é o que Hall (2003, p. 366) denominou leitura preferencial, “um exercício de

poder na tentativa de hegemonizar a audiência”. Para o autor, “O elemento da leitura

preferencial se situa no ponto onde o poder atravessa o discurso, está dentro e fora da

mensagem”. Morley (1996) amplia esta visão articulando a leitura preferencial ao interesse

dos mass media em obter eficácia na comunicação e explica que, em razão desta busca pela

efetividade, os meios de comunicação introduzem na estrutura das mensagens “direções” na

tentativa de estabelecer uma leitura dominante. Morley (1996) e Hall (2003) concordam que,

mesmo controlando os aparatos de produção, a pretensão de hegemonizar a audiência por

parte dos meios massivos nem sempre se mostra eficaz porque a codificação poderá não

comportar todas as apropriações e os significados descobertos pelo receptor na decodificação

da mensagem.

Por outro lado, um texto – midiático ou não – nunca é totalmente aberto, desprovido de

intenções. “Se não houvesse limites, as audiências poderiam simplesmente ler qualquer coisa

que quisessem dentro das mensagens” (HALL, 2003, p. 399). Para Morley (1996) o processo

de recepção é delineado pela interação entre duas estruturas que definem os parâmetros para a

interpretação – os mecanismos internos ao texto que convidam a certas leituras e restringem

outras – e a origem cultural do receptor.

Para contrapor a leitura preferencial, Hall (2003) descreve a leitura de oposição. Nesta

posição, a decodificação da mensagem tem significado oposto ao preferencial; o receptor

pode compreendê-la de maneira inversa ou pode, ainda, compreender a intencionalidade

institucional e formar sua opinião contrária à leitura preferencial, rejeitando-a. Entre a posição

preferencial e de oposição, está a leitura negociada que emana das subculturas nas quais se

realiza a cadeia comunicativa. Para Hall (2003), a negociação organiza a maior parte dos

processos comunicativos; quando as audiências operam na posição negociada, reconhecem a

legitimidade da comunicação – a tentativa de hegemonizar – no entanto, criam regras próprias

de significação, de acordo com a lógica situacional. Hall (2003, p. 371) esclarece que estas

leituras – preferencial, negociada e de oposição – não são estanques, “As audiências movem-

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se claramente entre as três posições; logo, elas são lugares em que se toma posição, não são

entidades sociológicas. Cabe ao trabalho empírico dizer, em relação a um texto particular e a

uma parcela específica da audiência, quais leituras estão operando”.

Considerando as três posições de leitura, a proposta teórico-metodológica formulada em

Encoding and decoding in television discourse sugere um processo comunicacional

sustentado pela articulação de momentos distintos e interligados que se desdobram em

produção, circulação, consumo e reprodução das mensagens.

O processo, desta maneira, requer, do lado da produção, seus instrumentos

materiais – seus "meios" – bem como seus próprios conjuntos de relações sociais

(de produção) – a organização e combinação de práticas dentro dos aparatos de

comunicação. Mas é sob a forma discursiva que a circulação do produto se realiza,

bem como sua distribuição para diferentes audiências. Uma vez concluído, o

discurso deve então ser traduzido – transformado de novo – em práticas sociais,

para que o circuito ao mesmo tempo se complete e produza efeitos. Se nenhum

"sentido" é apreendido, não pode haver "consumo". Se o sentido não é articulado

em prática, ele não tem efeito (HALL, 2003, p. 388).

Nesta perspectiva, uma vez que os discursos midiáticos utilizam como fonte de

informação outros discursos originados nas estruturas socioculturais, a produção cultural não

está limitada às estruturas institucionais dos meios de comunicação. Em momentos

autônomos, porém articulados, a recepção se torna também um processo de produção na

medida em que novos significados e sentidos são atribuídos às mensagens e legitimados

socialmente para, futuramente, serem reincorporados às práticas sociais (HALL, 2003;

ESCOSTEGUY, 2007). No contexto da estética ocorre uma nova poética. Valendo-se desta

abordagem, é factível admitir a comunicação como um processo de partilha, de comunhão.

Já que a nossa maneira de ver as coisas é literalmente a nossa maneira de viver, o

processo de comunicação, de fato, é o processo de comunhão: o compartilhamento

de significados comuns e, daí, os propósitos e atividades comuns; a oferta,

recepção e comparação de novos significados, que levam a tensões, ao crescimento

e à mudança (WILLIAMS apud HALL, 2003, p. 135).

Em discussão mais recente, José Luiz Braga (2006) propôs o “sistema de resposta

social” que se aproxima do processo comunicacional sustentado pelas articulações entre

produção, circulação, consumo e reprodução formulado por Hall, em 1973. Para Braga (2006,

p. 28), o enfrentamento entre mídia e sociedade se dá na circulação dos sentidos, ou seja, na

“movimentação social dos sentidos e dos estímulos produzidos inicialmente pela mídia”.

O sistema de interação social sobre a mídia (seus processos e produtos) é um

sistema de circulação diferida e difusa. Os sentidos midiaticamente produzidos

chegam à sociedade e passam a circular nesta, entre pessoas, grupos e instituições,

impregnando e parcialmente direcionando a cultura. Se não circulassem, não

estariam “na cultura” (BRAGA, 2006, p. 27).

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Esta circulação diferida e difusa defendida por Braga (2006) refere-se justamente à

interação dos interlocutores capaz de provocar a ruptura temporal dos processos

comunicativos, em outras palavras, por meio desta circulação, os produtos midiáticos

produzidos em um determinado contexto histórico-social podem se propagar na sociedade

durante um longo período e, mais tarde, serem novamente consumidos em uma nova época,

possibilitando novas leituras.

Indiscutivelmente, o repertório teórico-metodológico formulado pelos estudos culturais

promoveu o avanço da pesquisa social no campo da comunicação ao sinalizar que o ato

comunicativo não se traduzia em um processo mecanicista focado no emissor e no suposto

poder dos mass media e seus aparatos de produção. Houve na Escola de Birmingham um

primeiro olhar para o papel relativamente autônomo do receptor na comunicação, ainda que

operando em posições de leituras pré-determinadas (preferencial, negociada ou de oposição).

Contudo, mesmo admitindo a recepção como processos de interpretação e significação

pautados no contexto cultural, Encoding and decoding in television discourse manteve o foco

de estudo na figura do receptor, ou seja, na audiência e não nos processos de recepção. Os

termos codificação e decodificação indicam um esforço por parte do receptor para recuperar o

sentido original – a intencionalidade institucional – do conteúdo midiático, especialmente, na

leitura preferencial. Mais que decodificação, é preciso falar em interpretação e produção de

sentidos.

2. Mediações comunicativas da cultura: perspectivas de Jesús Martín-

Barbero

No final do século XX, Jesús Martín-Barbero expandiu o repertório teórico-

metodológico no campo da comunicação, particularmente na América Latina, ao pensar as

experiências culturais e os fatores sociais como mediadores dos processos comunicativos. “A

comunicação, segundo Martín-Barbero, assume o sentido de práticas sociais onde o receptor é

considerado produtor de sentidos e o cotidiano, espaço primordial da pesquisa”

(ESCOSTEGUY; JACKS, 2007).

Pensar a indústria cultural, a cultura de massa, a partir da hegemonia, implica uma

dupla ruptura: com o positivismo tecnologicista, que reduz a comunicação a um

problema de meios, e com o etnocentrismo culturalista, que assimila a cultura de

massa ao problema da degradação da cultura. Esta dupla ruptura ressitua os

problemas no espaço das relações entre práticas culturais e movimentos sociais,

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isto é, no espaço histórico dos deslocamentos da legitimidade social que conduzem

da imposição da submissão à busca do consenso. E assim já não resulta tão

desconcertante descobrir que a constituição histórica do massivo, mais que

degradação da cultura pelos meios, acha-se ligada ao longo e lento processo de

gestação do mercado, do Estado e da cultura nacionais, e aos dispositivos que nesse

processo fizeram a memória popular tornar-se cúmplice com o imaginário da

massa (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 131-132, grifos do autor).

A dimensão cultural da comunicação experienciada nas práticas do cotidiano, pensada

pela Escola de Birmingham para compreender a movimentação dos sentidos da cultura na

sociedade contemporânea, também está presente no paradigma de Martín-Barbero quando o

autor faz o deslocamento dos “meios às mediações”

Assim, a comunicação se tornou para nós questão de mediações mais que de meios,

questão de cultura e, portanto não só de conhecimento, mas de reconhecimento.

Um reconhecimento que foi, de início, operação de deslocamento metodológico

para rever o processo inteiro da comunicação a partir de seu outro lado, o da

recepção, o das resistências que aí têm seu lugar, o da apropriação a partir de seus

usos (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 28, grifos do autor).

Na perspectiva do Uso social dos meios, o autor desloca a investigação dos processos

comunicacionais dos meios para os espaços de produção de sentidos para compreender como

os receptores se inter-relacionam com os conteúdos midiáticos nas práticas sociais. Nilda

Jacks (1996, p. 47) afirma que “Os ‘usos’, portanto, são inalienáveis da situação sociocultural

dos receptores, que reelaboram, ressignificam, ressemantizam os conteúdos massivos

conforme sua experiência cultural, suporte das apropriações”.

Do ponto de vista teórico, há duas outras aproximações entre os estudos culturais e o

paradigma das mediações: primeiro, tanto os pensadores da Escola de Birmingham quanto

Martín-Barbero veem nas resistências das subculturas formas de relativizar o suposto poder

dos mass media; segundo, a recepção compreendida como espaço para a produção de sentidos

que são articulados e reincorporados às práticas sociais. Do ponto de vista metodológico, a

similaridade entre estas correntes teóricas está na investigação inserida na cotidianidade. A

pesquisa empírica desenvolvida neste empreendimento investigativo, junto aos grupos de

receptores infantis, se assenta bem nessa perspectiva que articula comunicação, cultura e

cotidianidade.

Articular comunicação e cultura, nos estudos de recepção, pressupõe compreender o ato

comunicativo de maneira dialógica, mediado pela cultura, em que não há subordinação entre

emissores e receptores, ambos são interlocutores com competências para dialogar entre si e

dialogar com os conteúdos midiáticos, interpretá-los e produzir novos sentidos.

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A recepção passa a ser vista não mais como algo individual, mecânico e efêmero,

mas como processo que se prolonga no tempo e se difunde no contexto

sociocultural. A produção de sentidos se dá nas apropriações vivenciadas pelos

receptores em seu lugar social, em interação com seus pares, marcada por

experiências de interpretação, balizada por mediações socioculturais (BARROS,

2012, p. 80).

A crítica central de Uso social dos meios está justamente em superar a dicotomia entre

as lógicas de produção e a lógica dos usos, ou para citar Stuart Hall (2003), a dualidade entre

as lógicas de produção e de consumo dos produtos culturais. As mediações são, para Martín-

Barbero (2009), espaços que possibilitam compreender as interações entre interlocutores e as

articulações entre produção e reprodução dos significados sociais. “As mediações estruturam,

organizam e reorganizam a percepção da realidade em que está inserido o receptor, tendo

poder também para valorizar implícita ou explicitamente esta realidade” (ESCOSTEGUY;

JACKS, 2007).

Ao entenderem os produtos da cultura popular e os mass media como formas de

expressão cultural pós-modernas, os estudos de recepção superaram a dimensão cultural da

comunicação para propor a comunicação e o aparato midiático como elementos estruturantes

da cultura contemporânea (BARROS, 2012). Neste sentido, como lembram Hall (2003) e

Braga (2006), os meios de comunicação massivos movimentam os sentidos da cultura,

transversalmente, entre mídia e sociedade “[...] desde as primeiras interações midiatizadas, a

sociedade age e produz não só com os meios de comunicação, ao desenvolvê-los e atribuir-

lhes objetivos e processos, mas sobre os seus produtos, redirecionando-os e atribuindo-lhes

sentido social” (BRAGA, 2006, p. 22, grifos do autor). Assim, a comunicação e a mídia como

elementos estruturantes da cultura são inerentes à midiatização da sociedade na qual o sistema

de interação social é um sistema de circulação diferida e difusa.

[...] a sociedade contemporânea está estruturada em uma lógica midiática que dá

sustentação à consciência e à construção de identidades do indivíduo e do grupo. A

midiatização, portanto, vai além da mídia, em sua dimensão técnica. Ela se espalha

e se entranha na estrutura social, na constituição de uma cultura midiatizada

(BARROS, 2012, p. 85-86).

Neste contexto pós-moderno, Martín-Barbero (2004, 2009) revisou as mediações

culturais da comunicação e propôs as mediações comunicativas da cultura. Tal reformulação

teórica construiu um novo mapa no qual a comunicação é reinserida no centro das relações

sociais, culturais e políticas contemporâneas e as mídias caracterizadas como “espaço-chave

de condensação e interseção da produção e do consumo cultural [...]” (MARTÍN-BARBERO,

2004, p. 229).

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Enquanto ‘midiatização’ vem sendo pensada como uma nova forma de

sociabilidade, decorrente de uma lógica midiática, ‘mediação’ traz já de algum

tempo o sentido das interações sociais, que nos dias de hoje se dão essencialmente

– mas não exclusivamente – por intermédio da mídia (BARROS, 2012, p. 88).

No mapa reformulado, Martín-Barbero (2004, 2009) propõe discutir as mediações que

se estabelecem em torno da comunicação, cultura e política para compreender os novos usos

sociais da mídia. A dinâmica do mapa se dá em dois eixos.

Esquema 4 – Mapa das mediações

Fonte: MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 16.

No eixo diacrônico estão as matrizes culturais e os formatos industriais que captam as

mudanças históricas na articulação entre movimentos sociais e discursos públicos. Trata-se da

hibridação de culturas que leva à construção de novos formatos e gêneros midiáticos,

contemplando discursos hegemônicos e subalternos que implicam em linguagens plurais,

intertextualidade e intermedialidade. No eixo sincrônico estão as lógicas de produção e as

competências de recepção que envolvem processos de produção industrializada e consumo de

produtos culturais. As relações neste eixo apontam para a complexa rede de ideologias

profissionais e institucionais, articulando a competência comunicativa – do ponto de vista

empresarial – à competência cultural – na recepção (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 16-18).

As matrizes culturais e as competências de recepção são mediadas pela sociabilidade

que se refere à construção do sujeito – e suas identidades – imerso em práticas sociais nas

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quais se faz e se recria os sentidos da comunicação de forma coletiva. As competências de

recepção e os formatos industriais são mediados pela ritualidade que opera nas lógicas de

produção e de recepção. Constrói o nexo simbólico da comunicação que se vincula tanto à

memória histórica quanto à possibilidade de novas percepções de mundo, a partir dos usos ou

modos de relação com as mídias, por isso está em permanente construção, utilizando ora a

repetição, ora a inovação. Desta forma, é na ritualidade que se dão os múltiplos trajetos de

leitura, delineados pelas competências de recepção – classe, gênero, níveis de educação,

memória étnica, hábitos familiares e experiências cotidianas (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.

231-233).

Os formatos industriais e as lógicas de produção são mediados pela tecnicidade. Na

contemporaneidade, as tecnologias não são somente suportes para a comunicação, mas

também criadoras e facilitadoras de novas formas de sociabilidade que possibilitam o uso de

diferentes linguagens que se alinham às práticas sociais e renovam as percepções e

sensibilidades; tais transformações espelham formas inéditas de produzir, consumir e circular

informações. Em síntese, a tecnicidade evolui de instrumental para estrutural (MARTÍN-

BARBERO, 2004, p. 228-229).

As lógicas de produção e as matrizes culturais encontram-se mediadas pela

institucionalidade que permeia os processos comunicacionais nos âmbitos da produção e da

recepção, antagonizando valores de instituições sociais distintas. De um lado, estão as

ideologias profissionais inerentes à estrutura empresarial dos mass media, de outro, as

ideologias resultantes de diferentes matrizes culturais. Para Martín-Barbero (2009, p. 17-18),

a institucionalidade é

[...] uma mediação densa de interesses e poderes contrapostos, que tem afetado, e

continua afetando, especialmente a regulação dos discursos que, da parte do

Estado, buscam dar estabilidade à ordem constituída e, de parte dos cidadãos –

maiorias e minorias –, buscam defender seus direitos e fazer-se reconhecer, isto é,

reconstituir permanentemente o social.

Na articulação entre mediações e midiatização o que fica em evidência é a relação de

interdependência entre mídia e sociedade na qual a dicotomia produção-recepção é superada.

Para estas perspectivas teóricas, nos processos da comunicação contemporânea, a

interpretação se converte em apropriação, extrapolando as referências contidas nas mensagens

midiáticas, para circular na sociedade de maneira diferida e difusa, desdobrando-se, mais

tarde, em produção de novos sentidos que serão legitimados e reincorporados às práticas

sociais.

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Neste sentido, a relação dialógica entre interlocutores, abordada por Martín-Barbero

(2004) e Braga (2006), se aproxima da perspectiva da estética da recepção, formulada por

Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, na Escola de Konstanz. Para a estética da recepção, cujos

estudos estão inseridos no campo da literatura, o sentido da obra não pertence unicamente ao

autor, na interpretação do leitor encontra-se uma multiplicidade de sentidos que excedem a

produção da obra.

Quando o leitor contemporâneo ou as gerações posteriores receberem o texto,

revelar-se-á o hiato quanto à poiesis, pois o autor não pode subordinar a recepção

ao propósito com que compusera a obra: a obra realizada desdobra, na aisthesis e

na interpretação sucessivas [sic], uma multiplicidade de significados que, de muito,

ultrapassa o horizonte de sua origem (JAUSS in: LIMA, 2002, p. 102, grifos do

autor).

A poiesis é inerente à estética produtiva, quando “o individuo, pela criação artística,

pode satisfazer a sua necessidade geral de ‘sentir-se em casa, no mundo’, ao ‘retirar do mundo

exterior a dura estranheza’ e convertê-la em sua própria obra” (JAUSS in: LIMA, 2002, p.

100-101, grifos do autor). A aisthesis expressa o prazer estético da percepção diante da obra,

portanto, está na recepção, na relação fruitiva entre obra e leitor. Assim, para compreender a

produção dos sentidos, Maria Tereza Cruz (1986, p. 57) sugeri “a passagem de uma ‘poiesis’

para uma ‘aisthesis’, isto é, a passagem de uma problemática da produção [...] para a

problemática da recepção e do confronto com a obra [...]”.

A recepção seria, portanto, também, de uma certa forma, uma produção, cujas

determinantes se trata de novo de descobrir, já não pelo lado do autor, mas pelo

lado do leitor. Um discurso, pois, que poderíamos tanto apelidar de “estética da

recepção” como de “poética da recepção”. Se num caso temos um pleonasmo, no

outro teremos algo de aparentemente paradoxal, em função do antigo dualismo,

tratando-se aqui, na realidade, da tentativa de sua dissolução: uma recepção que, no

limite, se confunde com uma produção. Uma obra cujo sentido é tanto produto de

quem o codifica como de quem o descodifica; um sentido, portanto, que já não é

dado; uma obra que já não existe independentemente do sujeito que com ela se

confronta (CRUZ, 1986, p. 57-58).

Ao articular a teoria das mediações aos estudos da Escola de Konstanz, Barros (2012)

propõe o deslocamento das poéticas da mídia às estéticas da recepção, “Se entendermos que

no campo da recepção se opera um novo processo criativo, podemos, então, afirmar que a

experiência estética se desdobra em experiência poética”. Esta perspectiva dos processos de

recepção implica reconhecer que a interpretação e a produção de sentidos concretizadas na

fruição não estão limitadas ao universo do texto e serão reinterpretadas e (re)significadas

infinitas vezes. Assim, a experiência estética espelha a interação entre a obra e o espectador

“o interno ao literário, implicado pela obra, e o mundivivencial, trazido pelo leitor de uma

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determinada sociedade” (JAUSS in: LIMA, 2002, p. 73). Wolfgang Iser compartilha deste

pensamento

[...] o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é

esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, interpretá-lo. [...] não

importa que novas formas o leitor traz à vida: todas elas transgridem [...] o mundo

referencial contido no texto (ISER in: LIMA, 2002, p. 107).

Para compreender a experiência da interação fruitiva entre obra e espectador, Jauss

(2002) propõe o confronto entre o horizonte de expectativa interna ao texto e o horizonte de

expectativa social, assim, “a obra pauta o processo sígnico, propondo um campo temático

para o processo interpretativo. Já o leitor, o ‘fruidor’, projeta na obra as suas expectativas e

interesses, em uma relação especular, no sentido de espelhamento” (BARROS, 2012). O

conceito de horizonte de expectativa se aproxima de duas formulações relevantes presentes

nos estudos de recepção. Primeiro, no que tange à significação, o campo temático implícito na

obra para estimular determinadas leituras assemelha-se à ideia de leitura preferencial

trabalhada por Hall (2003) e Morley (1996) na recepção televisiva; depois, a noção de

mundivivencial pode ser pensada como uma mediação cultural, já que ambas estão

contextualizadas na cotidianidade.

Quando Martín-Barbero (2004, 2009) sugere repensar as mediações como espaços

para a interação entre interlocutores e para as articulações entre produção e recriação dos

significados sociais, o autor se distancia da comunicação unidirecional e instrumental em que

os sentidos estão restritos à mensagem e devem ser decodificados pelo receptor. Na cultura

mediatizada há o deslocamento das poéticas da mídia às estéticas da recepção uma vez que os

processos de recepção são também processos de produção à medida que os interlocutores

interagem com os produtos midiáticos, redirecionando-os e atribuindo-lhes novos sentidos.

3. Enfoque integral da audiência: contribuições de Guillermo Orozco

Gómez

Valendo-se do modelo teórico-metodológico de Stuart Hall, discutido em Encoding and

decoding in television discourse, e do paradigma das mediações de Martín-Barbero, elaborado

em Dos meios às mediações e revisado em Ofício de cartógrafo, Guillermo Orozco Gómez

propõe estudar os processos de recepção por meio do enfoque integral da audiência. De

acordo com Orozco (2005) esta perspectiva teórica é conduzida pela pergunta “Como se

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realiza a interação entre TV e telespectador?” em um espaço social com múltiplas

mediações. Nesta visão, os estudos de recepção, em particular a recepção televisiva, são

orientados por três premissas básicas: primeiro, a recepção é sempre interação; segundo, esta

interação está mediada de múltiplas maneiras; e por último, esta interação não está

circunscrita ao momento de ver TV.

O enfoque integral da audiência assume o receptor como um sujeito em situação,

condicionado individual e coletivamente, por isso Orozco (2005, p. 28) argumenta que “o

público não nasce, mas se faz” por meio da interação com a TV e das múltiplas mediações

que contornam o complexo processo de recepção.

Orozco (2005, p. 29-30) reconhece que a televisão em seu duplo papel – meio

tecnológico e instituição social – tem influência legítima na construção do telespectador,

“Essa dualidade da TV confere à mesma um caráter especial e a distingue de outras

instituições sociais, ao mesmo tempo em que lhe dá certos recursos para aumentar seu poder

legitimador em relação ao telespectador”; contudo, o autor não acredita na influência

totalizadora da TV em razão da natureza polissêmica dos conteúdos midiáticos e da

criatividade empregada na produção televisiva que podem levar o receptor à múltiplas

interpretações.

Pela ótica da produção e do consumo de bens culturais, a TV em razão de seus recursos

tecnológicos é capaz de reproduzir a realidade de forma verossímil e esta representação do

“acontecer social”, resultado de uma linguagem denotativa universalizada, desperta

percepções racionais e emocionais nos receptores. Orozco (2005) associa a mediação

videotecnológica aos aparatos de produção da TV, apontadas por Stuart Hall (2003), e à

institucionalidade, defendida por Martín-Barbero (2004, 2009), expondo que a linguagem

televisiva compreende códigos orientadores dos processos de recepção que demandam

recursos técnicos, manejo profissional e elementos ideológicos. Aproximando-se da

concepção de leitura preferencial de Stuart Hall (2003), Orozco (2005) admite a

intencionalidade de um significado dominante nos conteúdos midiáticos, porém, alerta para o

fato de que não há garantias de que a mensagem será interpretada pelo receptor da mesma

maneira como foi idealizada pelos meios.

Justamente o paradoxo da TV consiste em que quanto mais polissêmica (ou menos

monossêmica), mais popular entre os diferentes segmentos da audiência, mas ao

mesmo tempo, menos contundente para impor seu significado dominante. Este

existe, mas não há garantia de que seja o significado (re)produzido pelo

telespectador (OROZCO, 2005, p. 30).

Do ponto de vista da institucionalidade, a televisão coexiste com outras instituições

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sociais como a família e a escola, particularmente no caso da criança, com as quais a TV

compete na socialização dos telespectadores. Orozco (2005) e Morley (1996) concordam que,

ao sentar em frente à tela, o receptor não despreza seu repertório histórico-cultural e não está

isolado do contexto sociocultural ao qual pertence. Se o receptor é um sujeito social

condicionado individual e coletivamente, os processos de recepção ocorrem em ritmos

diferentes para cada um e as interpretações das mensagens midiáticas estão associada aos

elementos externos, situados no espaço social, e elementos interiorizados ao longo do tempo.

Mentalmente, os telespectadores frente à televisão se vêm partícipes de uma

sequência interativa que implica diversos graus de envolvimento e processamento

do conteúdo televisivo. Essa sequência começa com a atenção, passa pela

compreensão, seleção, valoração do que foi percebido, seu armazenamento e

integração com informações anteriores, e finalmente se realiza uma apropriação e

produção de sentido (OROZCO, 2005, p. 31).

Este conhecimento interiorizado pelo receptor, resultante de fatores genéticos e

culturais, se transforma na mediação cognitiva. Nos estudos de recepção, a cognição é

definida por Orozco (2005, p. 31-32) como script. Os scripts enfatizam a atuação do sujeito

face aos diferentes cenários sociais e “[...] prescrevem para o atuante formas ‘adequadas’,

culturalmente aceitas para a interação dele com os outros”, desta forma, constituem-se em

orientadores das interações sociais. A relevância dos scripts para os processos de recepção

está na esfera da significação, em que o sentido é elaborado por intermédio das interações

sociais que elegem um consenso cultural e/ou institucional.

A mediação situacional compreende duas esferas da recepção, primeiro, em uma lógica

mais simples, a situação na qual se dão os processos de recepção – o lugar de assistir à

televisão, o nível de atenção dispensado ao conteúdo exibido e a solidão do telespectador são

condições que impactam nas formas de interação do receptor com a TV. Por outro lado,

existem as situações criadas pelo próprio conteúdo midiático – reais na tela da TV mas que

não existem concretamente no tempo e no espaço do receptor – que atuam nos processos de

compreensão, apropriação e produção de sentidos uma vez que estão contextualizadas social e

culturalmente (OROZCO, 2005, p. 33).

Entre os espaços de recepção, a família constitui-se em uma mediação institucional. É

no ambiente doméstico que se dão as primeiras negociações – conceito utilizado por Hall

(2003) – entre o telespectador, a TV e os membros da família; neste sentido, a família é uma

“comunidade de apropriação”. Especialmente para o telespectador infantil, a escola é também

uma “comunidade de apropriação” ao possibilitar o intercâmbio entre alunos no qual os

conteúdos televisivos são recriados. Desta modo, a família e a escola possuem esferas de

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significação que são responsáveis por legitimar – ou não – os significados institucionalizados

pela televisão; e esta legitimidade está associada aos valores e atitudes que mantêm o receptor

coeso às instituições sociais (OROZCO, 2005, p. 33). Para Martín-Barbero (2009, p. 295-297)

a família é a unidade básica de audiência porque se trata de “um dos espaços fundamentais de

leitura e codificação da televisão”. A cotidianidade familiar extrapola o campo da recepção

para se espelhar no discurso televisivo como técnica de aproximação entre interlocutores,

ficção e realidade, por meio da transparência, simplicidade e economia narrativa.

Por fim, os telespectadores estão inscritos em parâmetros que embora mais objetivos,

interferem nos modos de interpretar a TV. A mediação de referência envolve das questões

primárias mais simples – como as de gênero, idade, etnia e localização geográfica – até as

segmentações de classe e os referentes culturais que se mostram mais complexos porque

englobam tanto fatores objetivos, como o acesso aos produtos culturais, quanto subjetivos

como valores, tradição familiar, a orientação educacional e preferências em relação à TV.

A produção de sentido que o telespectador realiza depende, então, da combinação

particular de mediações em seu processo de recepção; combinação que, por sua

vez, depende dos componentes e recursos de legitimação, por meio dos quais se

realizam cada uma das mediações (OROZCO, 2005, p. 36).

Para sustentar a proposição de que a recepção não está circunscrita ao momento de ver

TV, Orozco (2005) argumenta que, apesar de o ato de ver TV ser uma ação individualizada, a

significação no processo de recepção é social, coletiva. Assim, é na relação dialógica com

outros sujeitos que os significados são apropriados e se desdobram em produção de sentidos.

Em uma sociedade midiatizada, de acordo com Braga (2006, p. 28, grifos do autor) “o que

mais importa é a circulação posterior à recepção [...]”. Para Orozco (2005, p. 34), é na

circulação, diferida e difusa, que

[...] o processo de recepção “sai do lugar” em que está a televisão e “circula” em

outros cenários, em que seguem atuando os telespectadores. Em todos esses

cenários, o processo de recepção vai sendo mediado tanto pelas novas situações,

como pelos agentes e instituições envolvidos.

Ainda que a mediação cultural não esteja inserida na metodologia da mediação múltipla,

o modelo está fundamentado no paradigma das mediações de Martín-Barbero, no qual a

mediação cultural é o espaço “onde as demais mediações tomam seu lugar e onde se

configuram, pois aí todas as informações se originam, o consumo se efetiva, o sentido é

produzido e a identidade se constrói” (ESCOSTEGUY; JACKS, 2007). Do ponto de vista da

investigação social, o enfoque integral da audiência se consolidou como metodologia de

investigação da teoria das mediações.

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Este capítulo buscou compreender, de uma perspectiva teórica, como se dão os

processos de recepção na sociedade midiatizada, alinhando pensamentos de diferentes autores

que convergem sempre para o papel ativo do receptor na interação com os mass media e

produtos culturais. Hall (2003), Morley (1996) Martín-Barbero (2004, 2009), Braga (2006) e

Orozco (2005), mesmo com visões teórico-metodológicas distintas, concordam que os

sentidos da comunicação não estão contidos nos conteúdos midiáticos, mas na cotidianidade,

para serem compartilhados em espaços sociais. Especialmente, os discursos da narrativa de

ficção quando apropriados pela cultura, circulam na sociedade, são reinterpretados,

impregnados de novos sentidos e novamente reincorporados às práticas sociais. Neste sentido,

a experiência estética é também uma experiência poética, se considerado que na recepção

ocorre uma nova criação por parte do interlocutor. No capítulo V este referencial teórico será

aplicado à investigação empírica para compreender, na prática, como se realiza a interação

entre o telespectador infantil e o desenho animado.

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A recepção passa a ser vista não mais como

algo individual, mecânico e efêmero, mas

como processo que se prolonga no tempo e se

difunde no contexto sociocultural. A produção

de sentidos se dá nas apropriações

vivenciadas pelos receptores em seu lugar

social, em interação com seus pares, marcada

por experiências de interpretação, balizada

por mediações socioculturais (BARROS, 2012,

p. 80).

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CAPÍTULO V – PESQUISA DE RECEPÇÃO

1. Procedimentos metodológicos

Para a realização desta pesquisa empírica, que tem como objeto os processos de

recepção de produtos culturais e a produção de sentidos por parte do telespectador infantil, foi

utilizada como técnica de investigação o grupo de discussão, cujo diálogo com os

participantes foi norteado pelo modelo teórico-metodológico da mediação múltipla formulado

por Guillermo Orozco (2005).

Para Carlos Colina Salazar (1994, p. 211, tradução nossa) “O grupo de discussão é uma

técnica analítica que incorpora aportes da linguística, da psicanálise e da sociologia e dedica-

se aos estudos das opiniões sociais”. Portanto, uma técnica de pesquisa qualitativa que

favorece a reprodução da realidade social representada pelos sujeitos de um grupo. Salazar

(1994) explica que os fenômenos ideológicos e de representação social originam-se nos

processos comunicativos e por isso manifestam-se concretamente nos discursos sociais. Desta

forma, conclui-se que o grupo de discussão é a técnica científica mais adequada para captar e

compreender as representações ideológicas, os valores e o imaginário incorporados aos

processos de recepção de determinados grupos sociais, no caso específico deste estudo, os

processos de recepção televisiva realizados por crianças em idade escolar. Em razão da faixa-

etária dos estudantes pesquisados, foram acrescentados às técnicas utilizadas no grupo de

discussão outros métodos de investigação, como a ilustração e perguntas direcionadas aos

temas de estudo.

Para a execução desta investigação foram selecionadas duas escolas que ofertam o

ensino fundamental. Uma instituição de ensino da rede pública – Escola Estadual José

Mamede de Aquino – e outra da rede privada – Colégio Engler Abelhinha Feliz.

Em cada uma destas escolas formou-se dois grupos de crianças com idade entre 8 e 12

anos, ou seja, estudantes que cursam entre a 3a e a 5 séries do ensino fundamental. A faixa

etária dos estudantes pesquisados foi definida com base nas perspectivas social e de produção

e consumo de bens culturais. Para Piaget e Inhelder (2012), entre 7-8 e 11-12 a criança está na

fase das operações concretas na qual a socialização e a conquista da personalidade individual

tornam-se relevantes para o campo das relações interpessoais, principal temática da série de

animação Doug Funnie. Alinhada a esta concepção de Piaget e Inhelder (2012), foram

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observados os critérios de segmentação praticados pela indústria do entretenimento que, de

acordo com Nesteriuk (2011), classificam-se em toddlers (até três anos de idade),

preschoolers (de três a seis anos), kids (seis a oito anos), tweens (8 a 12 anos) e teens (12 a 15

anos). Assim, as crianças envolvidas na pesquisa vivenciam a fase das operações concretas e

integram o segmento tweens.

No total, trinta e nove crianças participaram dos grupos de discussão, sendo vinte da

escola pública e dezenove da instituição particular. Os estudantes foram selecionados de

maneira aleatória e divididos em quatro grupos, como descrito abaixo.

Grupo 1 (G1): Estudantes da 3a série da Escola Estadual José Mamede de Aquino;

Grupo 2 (G2): Estudantes da 4a série da Escola Estadual José Mamede de Aquino;

Grupo 3 (G3): Estudantes da 4a série do Colégio Engler Abelhinha Feliz;

Grupo 4 (G4): Estudantes da 5a série do Colégio Engler Abelhinha Feliz.

Para preservar a identidade das crianças, nos relatos desta pesquisa os estudantes foram

nomeados por uma sigla composta pelo grupo de discussão do qual participaram somado a um

número, como demonstram as tabelas a seguir:

Tabela 4 – Grupo 1: Caracterização dos estudantes por idade e gênero

G1 – ESCOLA ESTADUAL JOSÉ MAMEDE DE AQUINO

ESTUDANTE CARACTERIZAÇÃO POR IDADE E GÊNERO

IDADE GÊNERO

G1-E1 8 anos Feminino

G1-E2 10 anos Feminino

G1-E3 9 anos Feminino

G1-E4 8 anos Masculino

G1-E5 8 anos Masculino

G1-E6 8 anos Masculino

G1-E7 8 anos Feminino

G1-E8 8 anos Masculino

G1-E9 8 anos Feminino

G1-E10 12 anos Feminino

Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).

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Tabela 5 – Grupo 2: Caracterização dos estudantes por idade e gênero

G2 – ESCOLA ESTADUAL JOSÉ MAMEDE DE AQUINO

ESTUDANTE CARACTERIZAÇÃO POR IDADE E GÊNERO

IDADE GÊNERO

G2-E11 9 anos Feminino

G2-E12 11 anos Masculino

G2-E13 9 anos Masculino

G2-E14 9 anos Masculino

G2-E15 11 anos Masculino

G2-E16 9 anos Feminino

G2-E17 8 anos Feminino

G2-E18 10 anos Masculino

G2-E19 12 anos Masculino

G2-E20 9 anos Feminino

Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).

Tabela 6 – Grupo 3: Caracterização dos estudantes por idade e gênero

G3 – COLÉGIO ENGLER ABELHINHA FELIZ

ESTUDANTE CARACTERIZAÇÃO POR IDADE E GÊNERO

IDADE GÊNERO

G3-E21 10 anos Feminino

G3-E22 10 anos Masculino

G3-E23 9 anos Feminino

G3-E24 10 anos Feminino

G3-E25 9 anos Feminino

G3-E26 10 anos Feminino

G3-E27 9 anos Feminino

G3-E28 9 anos Feminino

G3-E29 10 anos Feminino

Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).

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Tabela 7 – Grupo 4: Caracterização dos estudantes por idade e gênero

G4 – COLÉGIO ENGLER ABELHINHA FELIZ

ESTUDANTE CARACTERIZAÇÃO POR IDADE E GÊNERO

IDADE GÊNERO

G4-E30 10 anos Feminino

G4-E31 11 anos Feminino

G4-E32 10 anos Masculino

G3-E33 10 anos Masculino

G4-E34 10 anos Feminino

G4-E35 10 anos Feminino

G4-E36 10 anos Masculino

G4-E37 11 anos Feminino

G4-E38 11 anos Masculino

G4-E39 10 anos Masculino

Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).

Todos os participantes dos grupos de discussão responderam a um questionário no

primeiro contato com a pesquisadora. Os grupos (G1, G2, G3 e G4) assistiram aos episódios

O tênis de Doug e Doug cai no rock. Após a exibição do desenho animado, foi proposta uma

discussão entre as crianças cuja descrição, análise e interpretação serão apresentadas no

decorrer das próximas páginas.

2. Seleção das instituições de ensino

A Escola Estadual José Mamede de Aquino está localizada em um bairro periférico de

Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, chamado Jardim Aeroporto, que fica a

aproximadamente 13 quilômetros do Centro da cidade. A escola da rede pública estadual

oferece, além do ensino fundamental – nos períodos matutino (5a a 9a séries) e vespertino (1a

a 5a séries) –, o ensino médio e a educação de jovens e adultos (EJA) no período noturno. Ao

total, cerca de 930 estudantes são atendidos pela instituição. De acordo com o depoimento da

professora Diana Pilatti Onofre, diretora da escola, a região ainda é bastante carente de

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infraestrutura e a população residente é de baixa renda22; parte das crianças que frequentam a

escola são de famílias beneficiadas pelo programa Bolsa Família e vivem em um núcleo

familiar não tradicional.

A segunda escola selecionada foi o Colégio Engler Abelhinha Feliz localizado no Novo

Jardim Pagani, bairro tradicional da cidade de Bauru, interior de São Paulo. O colégio da rede

particular de ensino atende cerca de 200 crianças na educação infantil – nos períodos

matutino, vespertino e integral – e no ensino fundamental – 1a e 2a séries nos períodos

matutino e vespertino e 3a, 4a e 5a séries no período matutino. Há ainda a opção de período

integral para todas as séries. A escola possui gestão familiar e a principal característica do

modelo pedagógico é respeitar o ritmo de aprendizagem individual dos estudantes; é

reconhecida pelo vínculo de afetividade com os alunos e seus respectivos familiares. A

mensalidade para o ensino fundamental é de R$ 600,0023.

Referente aos aspectos econômicos, a renda per capta do município de Bauru é de R$

905,6524, bastante superior à renda per capta da região do Jardim Aeroporto (MS) que é de

R$ 420,79.

3. Corpus da pesquisa

3.1. Escola Estadual José Mamede de Aquino

Na Escola Estadual José Mamede de Aquino a investigação foi realizada com alunos de

3a e 4a séries do ensino fundamental. Após definição da faixa-etária pela pesquisadora, foi

solicitado à diretora Diana Pilatti Onofre que selecionasse os estudantes de forma aleatória. O

primeiro grupo (G1) de dez integrantes foi composto por alunos da 3a série, sendo seis

crianças do sexo feminino e quatro do sexo masculino; dos dez participantes, sete com 8 anos

de idade e os demais entre 9 e 12 anos. O segundo grupo (G2) foi formado por dez estudantes

22 De acordo com o censo demográfico do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010),

divulgado pelo PLANURB – Instituto Municipal de Planejamento Urbano da Prefeitura Municipal de Campo

Grande, 38,01% da população local tem rendimento nominal mensal domiciliar entre ½ e 1 salário mínimo e

23,40% entre 1 e 2 salários mínimos, 22,25% dos domicílios têm renda inferior a ½ salario mínimo e a renda per

capita da região é de R$ 420,79. 23 Mensalidade vigente no segundo semestre de 2014. 24 Dados do censo demográfico do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010).

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da 4a série, quatro meninas e seis meninos, com idade entre 8 e 11 anos, sendo cinco

participantes com 9 anos.

O primeiro contato com os estudantes da Escola Estadual José Mamede de Aquino

ocorreu no dia 13 de novembro de 2014. Na abordagem inicial com cada um dos grupos de

discussão, junto a uma conversa informal, foi aplicado um questionário simplificado (ver

apêndice A) às crianças com o objetivo de conhecer os hábitos de consumo midiático dos

pesquisados, além das vivências de lazer no ambiente familiar. Estas informações são

pertinentes para a investigação para compreender em qual contexto sociocultural se dá o

processo de recepção televisiva.

Por meio do referido questionário foi constatada a informação de que parte dos

estudantes da escola vive em um núcleo familiar não tradicional. Dos vinte alunos que

participaram da pesquisa, onze não se enquadram no modelo tradicional de família, afirmando

morar apenas com a mãe ou com parentes próximos como tios e avós.

Em relação aos hábitos de consumo midiático, assistir à TV todos os dias é uma prática

comum entre os estudantes. Chamou atenção a resposta de uma aluna da 3a série que

respondeu não ter tempo para a televisão porque ajuda nas tarefas domésticas. Os alunos

afirmaram que geralmente assistem aos programas acompanhados dos irmãos e primos. Na

maioria dos domicílios, a sala é o espaço principal para ver TV o que indica que as crianças

não possuem TV no quarto e uma única televisão é compartilhada por toda a família. Quando

questionados em relação aos canais e programas preferidos, as opiniões se dividem. Os alunos

da 3a série elegeram o SBT e as atrações favoritas são Bom Dia e Cia, Chiquititas e Rebeldes

– neste caso é possível identificar que a família não possui TV por assinatura – enquanto os

alunos da 4a série disseram preferir as séries como iCarly, exibida pela Band, Chiquititas e os

canais infantis da TV paga nos quais os desenhos animados são a atração principal. As

crianças não souberam explicar quais motivos as levam a gostar destes programas televisivos.

Tabela 8 – Programas televisivos preferidos pelas crianças (Grupos 1 e 2)

ESTUDANTE PROGRAMA

G1-E1 Bom Dia e Cia, Chiquititas, Rebeldes, Domingo Legal

G1-E2 Chiquititas, Rebeldes, Sábado Animado

G1-E3 Chiquititas, Rebeldes

G1-E4 Bob Esponja

G1-E6 Chiquititas

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Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).

Ao observar as preferências pela programação televisiva, é perceptível o gosto comum

entre os estudantes de uma mesma turma. Chiquititas foi citada como a atração favorita por

nove crianças. Com menos frequência foram lembrados como programas preferidos o Pica-

Pau, Bob Esponja, Padrinhos Mágicos, Drake & Josh, Hora de Aventura, além de programas

não específicos para o público infantil como as novelas e o futebol. No que diz respeito ao

monitoramento da programação televisiva por parte dos pais ou responsáveis, as crianças

disseram não ter permissão para assistirem aos programas com conteúdo adulto.

Ainda referente ao consumo cultural, foi indagado sobre o cinema e a pesquisa revelou

dados curiosos. Algumas crianças afirmaram nunca ter ido ao cinema, outras tantas somente

vivenciaram esta experiência porque a escola promove excursões periódicas e apenas quarto

estudantes disseram frequentar o cinema com a família. Quanto ao hábito de leitura, embora

as crianças tenham afirmado gostar de ler, poucas souberam dizer qual tipo de literatura

preferem, as respostas foram evasivas. Apenas três alunas da 4a série mencionaram o livro

Diário de um Banana e uma aluna da 4a séria comentou gostar de ler e escrever poemas.

Quanto às tecnologias digitais, a pesquisa indicou que muitas crianças não têm internet

disponível em casa. As principais formas de acesso são os computadores da escola e o celular

da mãe e as atividades online mais frequentes são jogar, conversar com os amigos e navegar

no Facebook. Duas alunas da 3a série e uma da 4a série declararam não acessar a internet.

A respeito das atividades de lazer no ambiente familiar, foi perguntado para as crianças

quais são as brincadeiras favoritas, com quem elas costumam brincar e o que fazem nos finais

de semana. Nenhuma das crianças citou brinquedos eletrônicos como passatempo preferido,

foram lembradas brincadeiras como pega-pega, esconde-esconde, futebol, boneca, casinha e

G1-E7 Bom Dia e Cia

G1-E9 Bom Dia e Cia, Chiquititas, Rebeldes

G1-E10 Chiquititas, Rebeldes

G2-E11 Chiquititas, ICarly

G2-E12 Pica-Pau

G2-E15 Hora de Aventura, O Incrível Mundo de Gumball

G2-E16 ICarly, Drake & Josh, A Família Hathaways

G2-E17 Chiquititas, Padrinhos Mágicos

G2-E20 Chiquititas, Violetta

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carrinho com primos e amigos. Pelas respostas dadas pelas crianças foi possível perceber que

aos finais de semana não acontecem atividades de lazer com a participação dos pais.

3.2. Colégio Engler Abelhinha Feliz

No Colégio Engler Abelhinha Feliz a investigação foi conduzida com estudantes de 4a e

5a séries do ensino fundamental. Nesta escola, as crianças também foram selecionadas de

maneira aleatória pela diretora Margareth Negrão Nicoletti. A direção da instituição de ensino

autorizou um único encontro entre pesquisadora e estudantes. O terceiro grupo (G3) de

pesquisa foi formado por nove estudantes da 4a série, sendo oito crianças do sexo feminino e

uma do sexo masculino; dos nove participantes, quatro com 9 anos de idade e cinco com 10

anos. O quarto grupo (G4) foi composto por dez estudantes da 5a série, cinco meninas e cinco

meninos, sete participantes com 10 anos e três com 11 anos de idade.

A investigação com os estudantes do Colégio Engler Abelhinha Feliz foi realizada no

dia 05 de dezembro de 2014. Na abordagem introdutória, o mesmo questionário (ver apêndice

A) foi aplicado aos alunos com o objetivo de conhecer os hábitos de consumo midiático do

grupo e as vivências de lazer no ambiente familiar. Após a conversa inicial, cada grupo

assistiu a um episódio de Doug Funnie.

Dos dezenove estudantes pesquisados, catorze vivem em um núcleo familiar tradicional.

De acordo com os questionários, são comuns as atividades de lazer envolvendo pais e filhos,

as crianças citaram como diversão aos finais de semana: ir ao shopping com os pais, ir às

compras, ir ao clube, passear com a família, jogar futebol, jogar videogame com o pai,

almoçar fora com os pais e andar de bicicleta com os irmãos. Apenas uma estudante (G4-E37)

respondeu que aos finais de semana auxilia a mãe com as tarefas domésticas.

Em relação às brincadeiras preferidas, curioso notar que os brinquedos eletrônicos

também não foram lembrados pelos estudantes como favoritos, as brincadeiras tradicionais

como esconde-esconde, pega-pega, bicicleta, boneca e esportes como o futebol são

predominantes no grupo, sempre envolvendo irmãos e amigos. Chamou a atenção, a resposta

do estudante G4-E39 que elegeu como brincadeira preferida desenhar histórias em quadrinho

com o melhor amigo. É perceptível que a amizade entre as crianças destes grupos extrapola o

espaço escolar, em conversa informal, as crianças revelaram que costumam se encontrar fora

da escola para atividades de entretenimento e lazer.

Em relação aos hábitos de consumo midiático, a TV está presente no cotidiano destas

crianças. Seis estudantes afirmaram não assistir à TV todos os dias. Dezesseis crianças

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disseram que assistem aos programas televisivos acompanhadas da família, enquanto três

afirmaram ver televisão sozinhas. Quanto ao espaço para ver TV, a sala foi indicada como

local principal, porém, seis estudantes também mencionaram o quarto – o que indica que estas

crianças possuem um aparelho de TV exclusivo – e uma estudante citou a cozinha.

Quando questionadas em relação aos canais de televisão favoritos, diversas emissoras

foram lembradas: Globo foi citada sete vezes; SBT, nove vezes; Cartoon Network, seis;

Nickelodeon foi mencionada cinco vezes; Disney Channel, oito vezes; Gloob, três vezes; e os

canais Boomerang, History Channel, ESPN Brasil, TNT e Fox foram lembrados uma vez.

Importante observar que, diferente do ocorrido na Escola Estadual José Mamede de Aquino,

não houve divisão nítida entre as preferências dos dois grupos, as opiniões convergem e

divergem, independente da idade e série que frequentam.

Em relação aos programas televisivos favoritos, as opiniões também são diversificadas.

Sete crianças mencionaram os gêneros preferidos, são eles: desenho animado com três

citações; seriado, mencionado duas vezes; e novela, citada uma vez. Um estudante (G4-E38)

não soube responder. E as demais crianças foram específicas, dizendo o programa televisivo

preferido e porque gostam de assisti-lo, conforme exposto na tabela abaixo:

Tabela 9 – Programas televisivos preferidos pelas crianças (Grupos 3 e 4)

ESTUDANTE PROGRAMA MOTIVO

G3-E21 Malhação Porque aparecem vários jovens

G3-E26 Chiquititas Porque é super legal

G3-E27 Chiquititas É engraçado

G3-E29 Boogie Oogie Porque é uma novela super legal

Liv e Maddie Porque são irmãs gêmeas muito legais

G4-E30 No ritmo Porque é legal e ele ensina a dançar

G4-E31 Austin e Ally Porque tem a ver com música e eu gosto de

música

G4-E32 Simpson Porque é legal assistir

G4-E34 Gaby Estrella Porque é legal e ela canta

G4-E35 No ritmo Porque passa dança e eu gosto

G4-E37 Tem criança na cozinha Porque eles ensinam a cozinhar

G4-E39 Chaves Porque ele nunca perde a graça

Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).

Textos transcritos conforme respostas dos estudantes.

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Parte das crianças afirmou não ter permissão para assistir programas violentos, filmes

de terror e programas com conteúdo adulto. Três estudantes disseram não haver qualquer tipo

de proibição em relação à TV. E uma estudante (G4-E37) disse não poder assistir Violleta,

Gaby Estrella – programas voltados para o público infanto-juvenil – e Império (novela

exibida pela rede Globo).

A respeito do consumo de produtos culturais, foi perguntado às crianças se costumam

frequentar o cinema. Dezesseis estudantes responderam que sim e que vão acompanhados das

famílias. Ao serem questionados sobre o último filme que assistiram, citaram produções

exibidas recentemente como: Malévola, O que será de nozes? e Como treinar o seu dragão 2.

Quanto ao hábito de leitura, um estudante (G3-E22) afirmou não gostar de ler. Quatro

crianças disseram gostar um pouco, leem gibis e os livros da escola. Nove estudantes

afirmaram gostar de ler e o gibi é a principal leitura. Enquanto quatro estudantes foram

bastante específicos, citando os livros que já leram e/ou estão lendo, são eles: Como caçar

monstros, O pequeno príncipe, Diário de um banana, A menina que roubava livros, A

invenção de Hugo Cabret.

Quanto ao uso das tecnologias da comunicação, foi identificado que as crianças

possuem fácil acesso à internet. Cinco estudantes citaram como principal forma de acesso o

computador doméstico; quatro disseram acessar à rede pelo celular; um citou o tablet. E sete

crianças possuem mais de uma forma de acesso à internet, combinando computadores,

celulares e tablets. Entre as atividades realizadas online, estão jogar e assistir vídeos e, com

menos frequência, conversar pelo WhatsApp, navegar no Facebook e ouvir música.

4. Dinâmicas na exibição dos episódios

4.1. Escola Estadual José Mamede de Aquino

Após o diálogo inicial, no dia 13 de novembro de 2014, os estudantes do G1 receberam

as orientações e foi exibido no primeiro dia de pesquisa o episódio O tênis de Doug. Os

alunos da 3a série tiveram dificuldade para se concentrar no desenho animado, alguns se

distraíram durante a exibição e ocorreram conversas paralelas. Dos dez estudantes, apenas três

conheciam a série, para os demais Doug Funnie era novidade. Os meninos demonstraram

mais interesse pelo episódio.

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Depois da exibição, iniciou-se a discussão. No entanto, o debate não fluiu de maneira

espontânea. Foram necessárias provocações e intervenções por parte da pesquisadora para

desenvolver o diálogo. Durante a discussão os alunos estavam inquietos e falavam sobre

assuntos diversos, sempre em tom de voz alto. É perceptível a prática de brincadeiras

agressivas e ofensas verbais entre as crianças. Assim, para promover o debate, algumas

perguntas referentes ao episódio foram feitas aos alunos do G1, os comentários estão

registrados a seguir. Todos os diálogos das crianças pesquisadas foram transcritos como

verbalizados, sem correções gramaticais, para não haver o risco de distorção das falas que

pudesse modificar a interpretação realizada pelos estudantes.

A respeito do episódio:

As crianças disseram ter gostado do desenho animado, no entanto, a maioria não soube

explicar o porquê, relatando apenas que o desenho animado era legal. Dois alunos fizeram

uma pequena explanação sem relação próxima com o conteúdo assistido.

G1-E2

Ensina a obedecer.

G1-E6

Por causa que eles brincam, ele ensina nós fazer as coisas.

Importante registrar que quando questionados sobre o que mais gostaram na animação,

muitas crianças responderam a casa do Doug e a quadra de tênis (na realidade uma quadra de

basquete). Alguns comentários como o “os parentes dele” e “o Natal” também surgiram,

nestes casos, personagens e situações que não estavam presentes no universo narrativo.

Sobre a interpretação de O Tênis de Doug:

Os alunos narraram partes pontuais do enredo como o jogo de basquete e a compra do

novo calçado. Não conseguiram sintetizar a mensagem central do episódio. Não houve uma

interpretação mais aprofundada que revelasse algum tipo de apropriação do conteúdo.

Também não associaram fragmentos da narrativa às situações do cotidiano.

G1-E2

Ele viu que ele tinha um sapato feio e os outros tinham um sapato bem bonito, aí

ele queria um sapato mais bonito e foi na loja pra comprar mas não deu o dinheiro

dele.

Em relação aos personagens:

Houve dificuldade para identificar os personagens pelo nome. Algumas crianças não se

lembravam do nome Doug minutos depois de terem assistido ao episódio. Para se referir aos

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personagens, usaram adjetivos como “o cara mau” quando falavam do Roger ou aspectos da

composição visual como “a menina de cabelo amarelo” para se referir à Patti Maionese. O

personagem Costelinha foi o preferido pelas crianças, no entanto, elas não explicaram com

clareza o motivo desta preferência.

G1-E6

Daquele cara mau. Por causa que ele era muito mau. Por causa que ele dava azar

pro outro.

G1-E2

Do cachorro porque ele é legal.

Em seguida, foi apresentado o mesmo episódio de Doug Funnie ao G2. As crianças da

4a série, embora inseridas no mesmo ambiente escolar e contexto sociocultural, se

comportaram de modo diferente ao do G1 durante a exibição do desenho animado e na

discussão dos temas propostos. As crianças eram mais disciplinadas e amigáveis, não houve

agressões verbais ou brincadeiras violentas, embora nas conversas tenham surgido

comentários de brigas na turma. Um aluno (G2-E15) revelou que depois das brigas, eles

pedem desculpas uns aos outros. Dois estudantes (G2-E14 e G2-E18) se mostraram bastante

desambientados em relação ao grupo, afastados de todos, se sentaram ao fundo da sala de TV

e não interagiram com os colegas, nem mesmo no decorrer da discussão. Durante a exibição,

as crianças ficaram focadas na animação e as conversas que ocorreram eram referentes ao

episódio.

A respeito do episódio:

No G2, dos dez participantes, quatro conheciam Doug Funnie e sabiam o canal e

horário de exibição do desenho animado – atualmente exibido pela TV Cultura –, alguns já

haviam assistido ao episódio O tênis de Doug. Nove dos dez participantes afirmaram gostar

da série, embora tenham admitido assistir à animação com o irmão mais novo. Os principais

motivos são por considerar a animação legal e divertida, ter comédia e os personagens,

especialmente o Skeeter, serem engraçados. Quando questionados a respeito do que mais

gostaram no episódio exibido, o tênis de Doug foi o mais mencionado.

G2-E17

Da parte que ele foi trocar o tênis. Porque o tênis ficou grande.

G2-E11

Eu gostei do tênis que ficou grande.

G2-E15

Eu gostei na hora que o tênis falou.

G2-E12

Eu gostei da parte quando ele encontrou aquele cara, como é?

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Um aluno de 12 anos comentou não ter gostado do desenho animado. Quando

perguntado o motivo, ele disse não saber. Os colegas explicaram que ele se considerava

“grandinho” para os temas abordados na série e o estudante acabou revelando que achava o

desenho “sem graça”.

G2-E19

Eu não gostei do desenho.

Eu assistia quando era menor. Não tem mais graça parece.

Sobre a interpretação de O tênis de Doug:

Neste grupo, as crianças encontraram verossimilhança entre a história narrada e as

situações experienciadas por elas no ambiente escolar, criando nexos entre ficção e realidade.

Nos discursos, os temas bullying e rejeição foram recorrentes.

G2-E13

É bullying. G2-E17

Nunca troque seu tênis por outro.

G2-E14

Eu não gostei porque todo mundo rejeitava ele por causa do tênis.

G2-E17

O tênis tava chorando porque não queria que abandonasse ele.

G2-E20

Eu entendi que mesmo se você, se alguém não goste do seu tênis não precisa

abandonar porque a pessoa não gosta, só se você gostar você pode ficar com ele.

Não é porque as pessoas não gosta que você tem que não gostar do tênis.

G2-E13

Cada um tem seu gosto.

G2-E19

Não se deve julgar pelas aparências.

G2-E15

Ele não precisou comprar o tênis para ganhar o autógrafo.

Curioso observar que o consumo infantil, tema principal deste episódio, não foi

mencionado de maneira espontânea pelas crianças. Após provocação da pesquisadora a

respeito de necessidades de consumo da turma, apenas um aluno (G2-E15) mencionou querer

um Xbox, para os demais, especialmente para os meninos, o objeto mais desejado são as

cartinhas, uma espécie de cartas decoradas colecionáveis que são disputadas em um jogo com

as mãos25. As meninas não manifestaram nenhum desejo de consumo. De maneira geral, o

tema consumo não animou a turma para o debate. Porém, as crianças ficaram frustradas por

25 Conhecido como jogo do bafo, as cartas colecionáveis ficam depositadas em um monte e cada participante do

jogo deve movê-las apenas com o vento provocado pela batida das mãos na base sólida onde estão as cartas

empilhadas. Cada competidor ganha as cartas que são viradas pela ação de suas mãos. O objetivo principal do

jogo é aumentar a coleção destas cartas.

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Doug não ter conseguido – na ficção – comprar um par de tênis novos. Mas, fato é que para

estas crianças o consumo não é significativo.

Em relação aos personagens:

Quanto aos personagens, os comentários foram muito similares aos do G1. Houve

dificuldade para memorizar os nomes, o Roger foi lembrado por suas maldades e Costelinha

também foi o preferido entre as crianças deste grupo.

G2-E15

O Doug não conseguiu comprar o tênis, mas aí o cara conseguiu.

G2-E13

Porque ele é mau pra caramba.

Como esta turma se mostrou mais receptiva e participativa em relação à pesquisa, foi

feita uma nova provocação, desta vez a respeito da construção dos personagens. Foi

perguntado qual era a percepção dos estudantes sobre os personagens de pele colorida. As

crianças enxergaram com naturalidade esta composição diferenciada das animações limitadas

o que leva a crer que o limite entre realidade e ficção é bastante claro para esta faixa-etária.

G2-E20

São ETs.

G2-E13

Em desenho acontece tudo.

No segundo dia de pesquisa, 14 de novembro de 2014, o episódio Doug cai no rock foi

exibido para cada uma das turmas da Escola Estadual José Mamede de Aquino.

Neste dia, por medida disciplinar, as crianças da 3a série não tiveram permissão para o

recreio. Quando chegaram à sala de TV estavam muito agitadas. Depois de alguns minutos de

conversa, se acalmaram para a exibição de Doug cai no rock. Ao assistir às imagens gravadas

para a pesquisa, é possível perceber uma das crianças (G1-E3) provocando os colegas com

conversas e brincadeiras agressivas. Aos 7 minutos de exibição, tornou-se impossível

controlar os estudantes. Brigas, brincadeiras de luta e gritos tomaram conta da turma.

Após a apresentação do episódio, inúmeras foram as tentativas de iniciar uma discussão.

Foi perguntado ao grupo o que entenderam da narrativa e as crianças criaram diferentes

histórias sem nenhuma relação com Doug cai no rock.

G1-E5

Ele estava assistindo TV.

G1-E7

Eu vi, ele tava com um sapatão.

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Neste clima de desordem, a discussão se tornou impraticável e a pesquisa com o G1 foi

encerrada. Preliminarmente, presume-se que alguns fatores tenham conduzido o grupo a agir

de forma não receptiva à pesquisa, especialmente nos aspectos que se referem ao debate: 1)

não houve identificação com a série Doug Funnie; 2) é característico das crianças desta turma

a falta de concentração e a dificuldade de elaboração discursiva; e 3) a medida disciplinar

aplicada ao grupo no segundo dia de pesquisa prejudicou o desempenho dos alunos.

A segunda turma a assistir ao episódio Doug cai no rock foi a 4a série. As crianças

repetiram o comportamento do dia anterior, de maneira disciplinada e com pouca dispersão,

observaram atentamente ao desenho animado. Importante registrar que no segundo contato

com este grupo, um dos estudantes (G2-E14) que havia permanecido afastado dos colegas na

primeira discussão se juntou ao grupo, interagindo por diversas vezes durante o debate. O

outro aluno (G2-E18) continuou isolado, sentado ao fundo da sala, e em nenhum momento

conversou com outras crianças ou contribui para a discussão.

A respeito do episódio:

O episódio Doug cai no rock agradou às crianças. O fragmento da narrativa mais citado

como preferido foi o encontro de Doug e Skeeter com a banda The Beats.

G2-E15

Eu gostei da última parte quando eles viram mais de perto e ainda ganharam o

brinde.

G2-E15

Eu gostei na hora que eles viram o cantor e ganharam a camiseta.

G2-E14

Eu gostei da hora que eles dançaram porque eu achei legal.

A música despertou o interesse do grupo, além de sinalizar que houve mais

identificação com o tema se comparado ao O tênis de Doug que aborda o consumo no

universo infantil. Um dos estudantes (G2-E12) cantou a canção Mingau matador durante a

discussão, fazendo gestos como se estivesse tocando uma guitarra imaginária – assim como

Skeeter e Doug fazem no início episódio.

Para complementar o debate foi feita uma provocação, estimulando o grupo a falar a

respeito de seus ídolos musicais. Os comentários foram surpreendentes. Em um cenário em

que o sertanejo é o ritmo predominante, as crianças apresentaram um repertório diversificado

em termos musicais. O estudante G2-E15 mencionou como ídolos Snoop Dogg e James

Brown. A estudante G2-E17 disse ser fã de Luan Santana – ícone das jovens adolescentes – e

dos Beatles que aprendeu a ouvir com a tia, esta aluna associou com facilidade The Beets –

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banda fictícia criada para a série Doug Funnie – aos The Beatles. O estudante G2-E13

comentou gostar de Charlie Brown Jr. Importante destacar que estes artistas mencionados não

possuem canções específicas para o público infantil. Das dez crianças, três afirmaram não ter

um ídolo. As demais crianças mencionaram como preferência musical a Roberta, integrante

da série Rebeldes e da banda RBD.

Sobre a interpretação de Doug cai no rock:

Parte das crianças sintetizou a narrativa em uma única mensagem e diferentes leituras

surgiram.

G2-E17

Eu entendi que ele sempre se dá bem por causa que ele acreditou que ia conseguir

ver os Beatles e ele conseguiu.

G2-E13

Ele não deixou o amigo dele para trás.

No discurso da estudante G2-E17 fica evidente a associação entre The Beatles e The

Beets. Na interpretação da aluna Doug é sempre favorecido, mesmo em situações adversas,

porque acredita naquilo que deseja. Para o grupo, a noção de “se dar bem versus se dar mal”

está relacionada à atitude e ao comportamento pessoal. Roger foi citado como exemplo de “se

dar mal” porque tem características de vilão; por outro lado, Doug, protagonista da série, é

exemplo de “se dar bem” porque tem boa conduta, como ser solidário e companheiro ao não

abandonar o amigo que está de castigo, como comentou o estudante G2-E13.

Outro ponto discutido foi justamente o castigo. As crianças pareceram não levar a sério

tal ação punitiva. O estudante G2-E15 associou a postura do pai de Skeeter a de sua mãe.

G2-E13

Eu gostei na hora que o pai dele brigou com ele... porque ele tirou ele do castigo.

G2-E15

Minha mãe também faz isso. Ela me deixa de castigo, daí eu faço bagunça, ela

manda eu vazar.

Estas interpretações evidenciam como o telespectador infantil busca, no momento da

fruição, referências em seus contextos de vida para legitimar o universo ficcional.

Especificamente para a série Doug Funnie, esta interdependência entre ficção e realidade –

que Todorov (2011) descreve como nível apreciativo – é coerente porque a estrutura de

sentido do desenho animado interioriza as convenções sociais do mundo exterior para

significar os códigos da narrativa.

A fala da estudante G2-E16 revela uma interpretação denotativa da narrativa. Em um

fragmento do episódio, no concurso da rádio K-Bluf, Doug pega o telefone e fala “sem ideia”

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porque desconhece a resposta correta, no entanto, por sorte, acaba acertando a última pergunta

e ganha o prêmio. Tal sutileza não foi percebida pelo grupo.

G2-E16

A parte que eu mais gostei foi aquela parte que ele liga pra rádio pra conseguir os

ingressos. Por causa que a última pergunta ele não sabia, aí o outro foi lá, pegou o

telefone e acertou.

O estudante G2-E19 disse não ter entendido a história.

G2-E19

Eu só entendi a música. Eu prestei a atenção no desenho, mas não entendi.

Em relação aos personagens:

O grupo teve a mesma percepção a respeito dos personagens. Roger foi considerado o

mais “chato” da série. Esta rejeição está associada a fisionomia de vilão, expressa pelas

dinâmicas visual e psicológica do personagem, especialmente, por suas ações que são amorais

e em benefício próprio.

G2-E14

O outro queria se achar.

G2-E15

Mas aquela hora ele foi mais gentil com a mãe do outro lá... do que com os

meninos.

G2-E17

Só pra se achar.

G2-E13

Porque ele tava com fome né.

Costelinha é o mais querido. Esta afetividade com o personagem não foi esclarecida

pelo grupo. De maneira geral, a tipologia de Costelinha tende a ter boa aceitação por parte dos

interlocutores.

G2-E12

Porque ele é um bicho né, ele pode considerar como de estimação.

Após 55 minutos de debate no segundo dia de investigação, a pesquisa empírica foi

encerrada na Escola Estadual José Mamede de Aquino.

4.2. Colégio Engler Abelhinha Feliz

No Colégio Engler Abelhinha Feliz a pesquisa de recepção foi realizada em 05 de

dezembro de 2014. O G3 foi composto por alunos da 4a série. Dos nove participantes deste

grupo de discussão, oito conheciam a série. As crianças eram comunicativas e receptivas.

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Durante a exibição de Doug cai no rock, ficaram atentas ao desenho animado e não houve

distração. Após assistirem ao episódio, iniciou-se a discussão e os estudantes participaram

ativamente. Os diálogos a seguir foram transcritos como verbalizados, sem correções, para

descrever de maneira fidedigna as interpretações realizadas pelas crianças.

A respeito do episódio:

As crianças disseram gostar do desenho animado. A principal razão é porque a série é

divertida. O fato de Doug ter descoberto uma banda favorita foi citado como a melhor parte

do episódio.

G3-E29

Porque ele descobriu a banda que ele gostava.

Em um primeiro momento, os estudantes não se projetaram no universo da ficção,

afirmando não haver verossimilhança entre Doug Funnie e o mundo real. Depois de alguns

minutos, algumas associações foram feitas e a sequência entre Skeeter e o pai foi citada como

verossímil. As crianças comentaram que as medidas disciplinares com a quais estão

habituadas são ficar sem o celular e não ter permissão para passear. No entanto, reforçaram

que raramente acontece. O fato de animais de estimação não poderem frequentar a escola

também foi mencionado. Outros exemplos de situações verossímeis surgiram.

G3-E28

Aqui tem uma coisa igual ao amigo do Doug, aquele que maltrata ele. Uma coisa

que aqui na escola tem um pouco né, em algumas salas, é a ser metido.

As crianças compararam o universo narrativo de Doug Funnie aos ambientes escolar e

familiar nos quais vivem, apontando aspectos da série que são possíveis somente na ficção.

Múltiplas leituras foram realizadas.

G3-E25

E uma coisa que não é parecida é que o cachorro não sabe dançar, não usa peruca.

G3-E22

Porque eles estão em outro país.

G3-E22

Diferente dos Estados Unidos que é onde se passa. Nos Estados Unidos o jeito de

viver é diferente do Brasil, o castigo, o quarto.

G3-E27

O gato roxo.

G3-E26

O menino, ele é verde.

G3-E25

O outro amigo dele também é verde.

G3-E25

E o cabelo deles é um fiozinho de cada lado.

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Apesar de observar a natureza própria do estilo de animação da série, as crianças

disseram achar normal a concepção visual destes personagens.

G3-E25

É para deixar o desenho engraçado.

Sobre a interpretação de Doug cai no rock:

Os estudantes interpretaram como mensagem principal do episódio a relação de ajuda

entre Doug e Skeeter e a importância de incentivar um amigo em circunstâncias adversas.

G3-E28

Porque o Doug, ele não era roqueiro, aí o amigo dele incentivou ele a conhecer os

Beets e ele ficou roqueiro.

G3-E24

Que o amigo dele incentivou ele.

G3-E25

Ajudou ele a saber que banda ele gostava, que tipo de música.

Explorando a temática do desenho animado, foi perguntado aos estudantes a respeito

dos ídolos musicais. As crianças apresentaram gosto musical diversificado e as bandas

internacionais foram as mais lembradas: Underreaction, Big Tiger Rush, RDB, Demi Lovato

e Selena Gomez. Luan Santana – do gênero sertanejo universitário – e Bruna Karla – cantora

gospel – também foram citados.

Em relação aos personagens:

Doug e Costelinha foram apontados como os personagens favoritos pela maioria das

crianças. Um aspecto diferente desta turma é a lembrança dos nomes dos personagens após

assistir ao episódio. Skeeter também foi indicado como preferido.

G3-E25

Eu gostei do Skeeter porque que ele incentivou o Doug a gostar de uma banda.

Fedido e Roger foram os personagens que tiveram rejeição.

G3-E25

O gatinho porque ele é feio. G3-E29

Do Roger porque ele é muito chato.

Após a discussão, a pesquisa foi encerrada com o G3. As crianças permaneceram na

sala de TV por mais alguns minutos e conversaram sobre os programas televisivos, histórias

em quadrinhos e personagens preferidos. Um gosto comum aos estudantes é o gibi da Turma

da Mônica Jovem, segundo eles, a temática voltada aos adolescentes, cujas experiências eles

esperam vivenciar, é principal razão da leitura.

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O G4 foi composto por dez alunos da 5a série. As crianças, muito disciplinadas e

educadas, estavam receptivas à pesquisa. Após as orientações iniciais, foi exibido o episódio

O tênis de Doug. Durante a exibição, os estudantes permaneceram atentos à animação e não

houve dispersão. No debate, foram participativos e demonstraram boa capacidade de

interpretação e de elaboração discursiva.

A respeito do episódio:

As crianças afirmaram gostar da série de animação Doug Funnie. Dos dez estudantes,

três conheciam o episódio O tênis de Doug.

G4-E37

Eu gostei deste episódio porque ele não muda por causa da gracinha dos outros.

G4-E33

Eu gostei da parceria que ele fez com aquele jogador de basquete.

G4-E33

As vezes ele é educativo.

No entanto, os alunos comentaram que as experiências de Doug na ficção não

apresentam verossimilhança com realidade vivenciada por eles no cotidiano escolar.

G4-E33

Eu não tenho um colega chato igual aquele.

G4-E39

Ele tem tipo um negócio de detetive quase.

A capacidade inventiva de Doug para enredar fatos reais à fantasia foi considerada pelos

alunos como algo verossímil que está presente no dia-a-dia das crianças. De fato, o imaginário

infantil, segundo Sarmento (2002), revela as formas de interação e ação da criança com o

mundo para expressar seus contextos de vida ou negar esta realidade.

G4-E39

Uma única coisa, imaginação.

Sobre a interpretação de O Tênis de Doug:

Os estudantes apresentaram competências de recepção para compreender a história e

interpretá-la. Após assistirem ao episódio, sintetizaram a narrativa em um único pensamento,

elaborando discursos com base nas apropriações e recriações do desenho animado.

G4-E31

Não é nossas roupas que faz a gente ser legal. Nós temos que ter nossas opiniões. E

não é por causa da opinião de uma pessoa que você tem que mudar.

G4-E33

A opinião dos outros não vale por nada de mudar uma pessoa.

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Interessante pontuar que neste grupo um aluno (G4-E39) identificou a relação de

complementaridade entre os fatos narrados como reais na série e o imaginário de Doug

Funnie. A cena do tênis dialogando com o protagonista e a sequência em preto e branco em

que os personagens se afastam de Funnie foram interpretadas como imaginação de Doug.

Mesmo compreendendo que a cena faz parte do imaginário de protagonista, as crianças

disseram sentir pena do tênis quando estes expressam tristeza por conta da separação.

G4-E39

Eu acho engraçado, em todo episódio eu acho que mostra a imaginação dele,

parece algo absurdo.

G4-E33

No final do episódio ele sempre escreve o que acontece no diário.

Aproveitando a fala sobre o diário de Doug, foi perguntado às crianças se elas têm o

hábito de escrever em um diário. Apenas uma estudante (G4-E37) respondeu que sim. Foi

perguntado também se elas registram o dia-a-dia no Facebook, todas as crianças responderam

que não fazem este tipo de postagem, de acordo com os depoimentos, a rede social é utilizada

para jogar e conversar com os amigos. Um aspecto curioso foram as críticas feitas pelos

estudantes a respeitos de postagens no Facebook que relatam tarefas rotineiras do cotidiano.

Elas disseram não gostar deste tipo de postagem e satirizaram, dizendo que algumas pessoas

escrevem “acabei de acordar”, “escovei meus dentes”, “acabei de respirar”.

O tema consumo despertou o interesse do grupo. Em um primeiro momento, as crianças

não assumiram ser consumistas e afirmaram não sofrer influências dos amigos para se vestir

ou comprar brinquedos. No decorrer do diálogo, foram surgindo marcas favoritas e formas de

negociação com os pais para adquirir os bens desejados. A marca Melissa é unanimidade

entre as meninas, embora tenham negado qualquer influência na hora de escolher um produto,

todas elas usavam uma Melissa no dia em que a pesquisa foi realizada. Já os meninos citaram

como marcas preferidas Adidas e Puma. E segundo as crianças, o tênis Vans é a marca da

moda. Os estudantes se mostraram conscientes em relação aos preços e disseram que em

algumas ocasiões esperam pela promoção para comprar um produto. Outra forma de

negociação com os pais é o auxílio nas tarefas domésticas em troca do bem desejado.

Em relação aos personagens:

Os personagens preferidos são Doug e Costelinha – identificado pelos estudantes como

“o cachorrinho”. Quando perguntado o motivo da preferência por estes personagens, as

crianças disseram que são engraçados. O grupo também teve dificuldade para identificar os

personagens pelos nomes e atribuíram adjetivos para distingui-los.

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Um estudante (G4-E39) associou a fisionomia de Costelinha a de Snoop (Peanuts). E o

que mais atraiu a atenção das crianças em Costelinha é a mimese do comportamento humano.

G4-E39

Ele é tipo o Snoop.

G4-E35

Ele parece meio humano. Dança.

G4-E37

Ele dança. Ele escreve.

A respeito do protagonista, os comentários foram curiosos. As crianças, mesmo

negando a verossimilhança da ficção em relação à realidade, compararam o personagem

principal a si próprias, afirmando que a independência de Doug não é permitida nesta idade.

O principal ponto destacado pelos estudantes é que Funnie tem permissão para “sair sozinho”.

G4-E39

Apesar dele parecer quase um adolescente, ele não parece ser da nossa idade, né?

G4-E32

Ele sai muito, vai pro shopping.

G4-E34

Ele sai sozinho.

Sobre a concepção visual dos personagens, as opiniões se dividem:

G4-E37

Eu acho estranho, é meio doido.

G4-E33

Eu nem percebo. A gente acostuma.

G4-E37

Mas eu queria entender por que o gato é rosa.

Ao final da discussão, surgiram comentários a respeito de outros episódios da série. Os

estudantes falaram sobre a relação entre Doug e Patti Maionese; a timidez e a dificuldade de

Funnie para se declarar e o modo desastrado como ele age diante de Patti foram lembrados.

As crianças se reconhecem e se projetam nestas situações narrativas, identificando

verossimilhança com a realidade. Após esta conversa sobre outros episódios de Doug Funnie,

a pesquisa foi encerrada no Colégio Engler Abelhinha Feliz.

5. Articulações entre o referencial teórico e a pesquisa de recepção

O propósito da análise a seguir consiste em articular a pesquisa empírica de recepção –

realizada com crianças inseridas em diferentes contextos socioculturais – ao paradigma das

mediações, de Jesús Martín-Barbero (2009), e ao modelo teórico-metodológico da mediação

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múltipla, de Guillermo Orozco Gómez (2005). Norteada por estas perspectivas teóricas, a

investigação trabalhou a recepção televisiva contextualizada nas práticas sociais, assumindo o

telespectador infantil não como um mero decodificador da mensagem audiovisual, mas como

um interlocutor em interação no processo comunicacional, capaz de múltiplas interpretações

que levam à apropriação e produção de novos sentidos.

A pesquisa empírica foi realizada no ambiente escolar. A escola é para Orozco (2005)

uma “comunidade de apropriação”, especialmente para o telespectador infantil. De fato, nos

diálogos com as crianças, constatou-se a fala frequente sobre programas televisivos e

personagens preferidos. Na Escola Estadual José Mamede de Aquino, estudantes que

frequentam a mesma série revelaram um gosto comum em relação às atrações da TV, este

horizonte comum de gosto evidencia o intercâmbio de conteúdos audiovisuais entre as

crianças e a circulação dos sentidos produzidos pelos meios no espaço social da escola onde

são apropriados e recriados coletivamente nos discursos e nas brincadeiras infantis. De acordo

com Sarmento (2002), o imaginário infantil presente no ato de brincar – explorado na

animação Doug Funnie – retrata a relação da criança com o mundo e é delineado pelas

mediações socioculturais e cognitivas.

Em ambas as instituições, o espaço utilizado para interação com os grupos de

investigação foi a sala de audiovisual. Na Escola Estadual José Mamede de Aquino, a sala de

TV estava com cadeiras escolares; para propiciar a interação entre os estudantes, assim como

um ambiente mais confortável, as cadeiras foram substituídas por um tapete em EVA.

Durante a exibição dos episódios, foi permitido aos estudantes se acomodarem da maneira

que julgassem a mais apropriada, nenhuma regra foi estabelecida. Um hábito comum às

crianças, que se repetiu nas duas escolas, é tirar os sapatos para assistir à TV.

Embora situados em espaços físicos similares – a sala de audiovisual da escola – o nível

de atenção dos estudantes mostrou-se particular, tanto na comparação entre as duas escolas,

como se observado os dois grupos – G1 e G2 – da instituição de ensino da rede pública.

Na Escola Estadual José Mamede de Aquino, o comportamento dos grupos – G1 e G2 –

foi completamente distinto. No primeiro dia de pesquisa, os alunos do G1 apresentaram

dificuldade para manter a concentração, houve alto nível de dispersão. Na exibição do

episódio e durante a discussão, algumas crianças menos receptivas provocaram os colegas

com brincadeiras agressivas. As meninas não demonstraram interesse pelo desenho animado.

O debate não fluiu e intervenções foram necessárias. Para incentivar a participação do grupo

no debate, foi preciso uma moeda de troca: cada criança ganhou um chocolate. No segundo

encontro com esta turma, a situação se agravou, a indisciplina dos estudantes – incluindo

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brigas, lutas e ofensas verbais – inviabilizou a conversa após a exibição do episódio e a

investigação com o grupo foi encerrada. Se a construção do imaginário se dá com base nos

contextos de vida como explica Sarmento (2002), possivelmente, estas crianças estão imersas

em um ambiente social e familiar agressivo, no qual brincadeiras violentas26 são assimiladas

como formas de relacionamentos culturalmente aceitas.

As crianças do G2 eram mais disciplinadas, estavam atentas ao desenho animado e uma

pequena dispersão ocorreu somente na conversa a respeito dos episódios. Este comportamento

se repetiu nos dois encontros com a turma.

No Colégio Engler Abelhinha Feliz, os dois grupos – G3 e G4 – se comportaram de

modo semelhante. As crianças foram receptivas e se concentraram na exibição dos episódios,

não houve brincadeiras ou diálogos fora do tema da pesquisa. Os estudantes da 3a série

possuíam uma dinâmica própria para o debate – levantar a mão e aguardar ser chamado para

expressar suas opiniões – provavelmente utilizada em sala de aula.

Nas duas escolas foi visível a fragmentação das turmas – 3ª, 4ª e 5ª séries – em

pequenos grupos, possivelmente, esta divisão se dá pelas relações de amizade estabelecidas

no ambiente escolar. Houve também, como relatado, estudantes que não interagiram e

permaneceram isolados do grupo. Tanto na Escola Estadual José Mamede como no Colégio

Engler Abelhinha Feliz foi possível identificar diferentes níveis de aprendizagem em uma

mesma série.

Este comportamento díspar entre os grupos – e entre estudantes de uma mesma série –

ratifica que os processos de recepção se dão em ritmos diferentes para cada telespectador.

Segundo Orozco (2005), assistir à TV implica em uma sequência interativa que inicia-se com

a atenção, caminha para a interpretação do conteúdo audiovisual para depois converter-se em

apropriação e reelaboração dos sentidos. Observando os estudantes da 3a série do G1 durante

a exibição dos episódios de Doug Funnie, a ausência da atenção prejudicou o processamento

das demais etapas da recepção; e esta é uma das razões que impossibilitou a compreensão das

narrativas.

A pesquisa indicou que a idade é também um fator de mediação na interpretação do

conteúdo midiático. Crianças da 3ª série, turma em que a idade predominante é 8 anos, não

apresentaram competências para interpretar e discutir o desenho animado Doug Funnie. Neste

grupo, não houve compreensão dos episódios, as crianças apenas descreveram sequências

26 Em entrevista, Diana Pilatti Onofre confirmou a existência de brincadeiras violentas no ambiente escolar.

Segundo a diretora, esta forma de interação agressiva é consensual entre as crianças. Uma reportagem publicada

no portal Campo Grande News (ver anexo 1), em setembro de 2012, relata uma agressão a um estudante de sete

anos.

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específicas da animação. Um aspecto relevante é que, de acordo com a diretora Diana Pilatti

Onofre, os estudantes desta série estão em fase de alfabetização.

Os estudantes da 4ª série, com idade entre 9 e 12 anos, de ambas as escolas,

conseguiram interpretar os episódios e elaborar discursos baseados na temática de Doug

Funnie. No entanto, os alunos do Colégio Engler Abelhinha Feliz não reproduziram

fragmentos da narrativa para explicar o que haviam compreendido da história, os discursos

foram elaborados a partir do repertório individual ou de experiências coletivas.

Alunos da 5ª série, na faixa etária de 10 a 11 anos, além da competência interpretativa e

discursiva, se mostraram críticos em relação aos conteúdos midiáticos.

Na Escola Estadual José Mamede de Aquino, as crianças do gênero masculino

demonstraram mais interesse pelos episódios de Doug Funnie. Entre os meninos dos grupos 1

e 2, a dispersão durante a exibição da animação foi menor e quando incomodados pelos

colegas, pediram silêncio e atenção. Não houve pistas que evidenciassem os motivos desta

preferência, uma explicação plausível é a representação dos personagens principais associada

ao gênero masculino. No Colégio Engler Abelhinha Feliz não houve preferências associadas

ao gênero.

Os estudantes da rede particular de ensino que, como relatado no corpus da pesquisa,

costumam frequentar o cinema, estão habituados à leitura e possuem fácil acesso à internet e à

TV por assinatura apresentaram amplo repertório midiático. Este repertório, proveniente da

interação com diferentes produtos culturais, favoreceu a apropriação e a recriação dos

sentidos realizadas acerca dos episódios da série Doug Funnie; isso porque, nos processos de

recepção, o telespectador recupera experiências acumuladas a cada nova interação com a TV.

Nas palavras de Orozco (2005, p. 31, grifos do autor), “A razão principal é que a sequência de

atividades mentais conduz a uma série de associações de conteúdo – neste caso, entre a

informação transmitida na tela, e portanto, externa ao sujeito – e a informação previamente

assimilada na mente do telespectador”.

Uma questão visível, em todos os grupo, foi a não identificação entre as crianças

participantes da pesquisa e os seres ficcionais do desenho animado. De acordo com Eco

(2011), a tipicidade de um personagem nasce na construção de sua fisionomia e é autenticada

na fruição do telespectador. Como analisado no capítulo III, os criadores de Doug Funnie se

preocuparam em construir tal fisionomia para cada um dos personagens da série. Porém, aos

olhos do telespectador infantil, Doug, Costelinha, Roger, Skeeter e Patti não criaram nexos

entre realidade e ficção para que fossem sentidos como verdadeiros. Assim, o reconhecimento

e a projeção do interlocutor diante destes personagens não se concretizaram. Em alguns

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momentos os estudantes dos grupos 2, 3 e 4 encontraram verossimilhança entre a narrativa e

as experiências cotidianas, especialmente, no ambiente familiar e na escola, como por

exemplo o castigo de Skeeter e a relação de amizade entre os personagens no episódio Doug

cai no rock e o bullynig em O tênis de Doug.

Outro aspecto relevante é a própria linguagem da animação. A TV, como meio de

comunicação de massa, tem como características intrínsecas a linguagem universalizada e as

técnicas de produção capazes de representar o acontecer social com alto grau de veracidade

(OROZCO, 2005, p. 29). Quando a linguagem em tela é da animação, a ludicidade das

narrativas infantis e, particularmente, o estilo animação limitada de Doug Funnie, podem

tornar o desenho animado menos verossímil para o telespectador. Para as crianças, no mundo

ficcional das narrativas animadas tudo é permitido porque, segundo elas, o desenho animado

não é real “Em desenho acontece tudo” (G2-E13).

No G1, como registrado anteriormente, não houve compreensão, apenas entendimento e

descrição das ações realizadas pelos personagens em determinados fragmentos da narrativa.

Portanto, os processos de recepção não se converteram em apropriação e produção de novos

sentidos. Devido à dificuldade de elaboração discursiva, especificamente para as crianças

deste grupo, foi solicitado que fizessem um desenho para representar o que mais gostaram na

história de O tênis de Doug. Abaixo, estão algumas das ilustrações elaboradas pelos

estudantes da 3a série.

Figura 19 – Representação do episódio O tênis de Doug criada por alunos da 3a série

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Figura 20 – Representação do episódio O tênis de Doug criada por alunos da 3a série

Figura 21 – Representação do episódio O tênis de Doug criada por alunos da 3a série

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Figura 22 – Representação do episódio O tênis de Doug criada por alunos da 3a série

Figura 23 – Representação do episódio O tênis de Doug criada por alunos da 3a série

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Dos dez estudantes, oito participaram espontaneamente da atividade proposta. Os

alunos demonstraram preocupação em relação ao exercício e ao entregarem as ilustrações,

questionaram se estavam corretas (“Eu fui bem professora?” “A senhora gostou do meu

desenho?”). Os desenhos criados pelas crianças do G1 para representar o episódio O tênis de

Doug retrataram exatamente o discurso realizado antes, reforçando que os processos de

interpretação e apropriação não se concretizaram na fruição do desenho animado. A quadra de

basquete e o personagem Doug foram as principais associações, Costelinha aparece em

apenas uma das ilustrações (Figura 19). Interessante notar que, ao comparar os desenhos

elaborados pelos estudantes, é perceptível que o grupo utilizou os mesmos elementos para a

composição da imagem: a casa, a quadra, a bola – estes presentes na animação. Alguns

elementos comuns às ilustrações, como o sol e as árvores, não faziam parte do episódio, ou

seja, estes símbolos integram o imaginário das crianças e estão enraizados na cultural infantil

quando se trata de representar – por meio do lápis e do papel – a realidade ou a ficção. Outra

questão curiosa a ser observada são os traços que compõem o desenho e as formas de

representação dos objetos e das pessoas semelhantes em todas as ilustrações.

Com os grupos G2, G3 e G4 a investigação confirmou os pressupostos teóricos de que

os sentidos da comunicação se concretizam – e se propagam – na cotidianidade; um espaço

pleno de mediações no qual os seres sociais interagem entre si e com os meios. Martín-

Barbero (2009, p. 230-231) denomina esta dinâmica cultural de sociabilidade, ou seja, “a

multiplicidade de modos e sentidos nos quais a coletividade se faz e se recria, a polissemia

das interações sociais”.

No G2, em O tênis de Doug, várias leituras foram realizadas pelas crianças. O consumo

simbólico, temática principal do episódio, não foi percebido pelos estudantes. Uma das

interpretações da turma foi o bullynig sofrido por Doug no ambiente escolar. Outra leitura foi

a rejeição 27 em função da aparência. Nestas interpretações, são visíveis as mediações

cognitivas e de referência.

No G4, no mesmo episódio, houve também diferentes percepções. As crianças falaram

sobre a construção da identidade, reforçando a importância da personalidade, abordaram o

imaginário de Doug na animação e questionaram a independência do personagem que é

incomum nesta faixa etária. Neste grupo, um estudante (G4-E39) associou o personagem

Costelinha ao Snoop (Penauts) por ambos possuírem fisionomias criadas com base na mimese

do comportamento humano.

27 O rejeição foi interpretada pelo estudante G2-E14 que se manteve isolado do grupo no primeiro dia de

pesquisa.

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Um único episódio, dois grupos, vinte crianças e diferentes percepções. Estas múltiplas

interpretações, a partir do mesmo conteúdo audiovisual, são organizadas pelas ritualidades

que marcam os processos comunicacionais, nos quais a significação e os sentidos são

resultado do confronto entre a memória individual e coletiva e a possibilidade de novas

descobertas.

[...] as ritualidades remetem aos múltiplos trajetos de leitura ligados às condições

sociais do gosto, marcados pelos níveis e qualidade de educação, pelos haveres e

saberes constituídos em memória étnica, de classe ou de gênero, e pelos hábitos

opm, familiares de convivência com a cultura letrada, a oral ou audiovisual, que

carregam a experiência do ver sobre o ler, ou vice-versa (MARTÍN-BARBERO,

2009, p. 233).

Em Doug cai no rock, os múltiplas trajetos de leitura se repetiram no G2. Valores como

superação – acreditar para conseguir – e amizade – não deixar o amigo para trás – foram as

interpretações da narrativa.

No mesmo episódio, a interpretação comum às crianças do G3 foi a relação de ajuda

entre Doug e Skeeter. As crianças rememorizam diferentes situações em que tiveram o

incentivo de um amigo para realizar uma tarefa ou mudar um hábito.

G3-E25

A Júlia come fruta, come todas as frutas que existe quase. Aí eu não comia fruta.

Como ela comia, eu comecei a comer.

Este foi o único grupo no qual a interpretação se deu de forma homogênea, preservando

parte do significado original da mensagem. Se resgatado a análise estrutural da narrativa de

Doug cai no rock, capítulo III, com base no modelo predicados de base a relação estabelecida

entre Doug e Skeeter é de participação que expressa exatamente esta relação de ajuda

interpretada pelas crianças.

A categorização dos personagens como bons ou maus, por parte dos estudantes, indicam

um conceito socialmente legitimado. Esta fisionomia atribuída aos personagens no campo da

produção foi compreendida como idealizada pelo autor nos processos de recepção.

Possivelmente, porque as narrativas de Doug Funnie buscam referências no mundo exterior

para autenticar a lógica interna da trama.

O papel da televisão como instituição social na formação do telespectador infantil

também se confirmou na investigação. As crianças dos grupos G2 e G3, situadas em um

espaço geográfico em que o ritmo sertanejo é predominante, possuem um amplo repertório

musical e preferência por bandas internacionais. Segundo os estudantes, a TV é o principal

meio para conhecer e se informar sobre música e artistas.

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Por fim, esta investigação comprovou as propostas teóricas de Martín-Barbero (2004,

2009) e Orozco (2005). A cada interação com os conteúdos midiáticos estão em jogo

múltiplas mediações que circundam e conduzem a recepção. É factível admitir que os

produtos culturais – particularmente os da indústria do entretenimento – carregam

implicitamente códigos de significação que orientam a interpretação, entretanto, como

defendem Hall (2003) e Orozco (2005), a mensagem midiática não é transparente, a natureza

polissêmica da comunicação e os contextos histórico, social e cultural nos quais se dão os

processos de recepção possibilitam recria-la e (re)significa-la, portanto, já não é possível

pensar em dinâmicas de codificação e recodificação, nas quais estas mensagens serão

compreendidas da mesma forma que foram idealizadas pelos mass media. O receptor, em

especial o infantil, não está isolado frente à tela da TV, na relação fruitiva com os produtos

culturais as crianças revelam a sua maneira de ver o mundo.

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CONCLUSÃO

Este estudo se propôs a investigar como as crianças com idade entre 7 e 12 anos

interagem com as narrativas audiovisuais, especialmente com o desenho animado, para desta

forma compreender como se dão os processos de apropriação e de produção de sentidos no

campo da recepção, tomando-se por base a interpretação da série de animação Doug Funnie.

A pesquisa concluiu que, como defendem Martín-Barbero (2004, 2009) e Orozco

(2005), os sentidos da comunicação não estão contidos no conteúdo das mensagens

midiáticas, mas são construídos coletivamente por meio das práticas sociais difundidas e

incorporadas na cotidianidade. Esta asserção se comprovou nas dinâmicas junto aos grupos de

discussão quando estudantes inseridos em diferentes contextos de vida realizaram leituras

distintas acerca do mesmo episódio da série Doug Funnie.

É evidente que em cada narrativa audiovisual – e especialmente nos produtos culturais

da indústria do entretenimento – está implícita uma intencionalidade. Como aponta Jauss

(2002) existe em cada obra a proposta de um campo temático para o processo interpretativo,

no entanto, a pesquisa verificou que estes códigos orientadores dos processos de recepção são

(re)significados pelo telespectador infantil em função dos repertórios individual e coletivo e

do contexto sociocultural no qual ele está inserido. O estudo sinalizou também que a

institucionalidade dos produtos culturais – que segundo Martín-Barbero (2004, 2009)

confronta as ideologias dos mass media e as ideologias de diferentes matrizes culturais – não

se sobrepõe às outras instituições como a escola e a família que são para as crianças

“comunidades de apropriação”. Assim comprovou-se, como bem observa Orozco (2005), que

a influência da TV não é totalizadora visto que as interpretações se deram em diferentes

direções em cada grupo pesquisado.

Na Escola Estadual José Mamede de Aquino, a experiência com os alunos foi relevante

porque pôde identificar culturas e competências de recepção díspar entre os dois grupos de

pesquisa.

No G1, embora a investigação tenha sido complexa e de difícil controle, os resultados

foram ricos para compreender como as múltiplas mediações permeiam os processos de

recepção do desenho animado. As crianças da 3a série não demonstraram competências para

interpretar os episódios O tênis de Doug e Doug cai no rock exibidos para estudo. Por

intermédio dos diálogos e das ilustrações (Figuras 19, 20, 21, 22 e 23) criadas pelos alunos,

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constatou-se que as crianças memorizaram e reproduziram fragmentos da narrativa

audiovisual. Vários fatores contribuíram para a não compreensão dos episódios. Segundo

Orozco (2005), a atenção é o primeiro passo para determinar o grau de envolvimento e

processamento do audiovisual, assim, o baixo nível de atenção durante a exibição do desenho

animado impediu que as demais etapas da recepção fossem concretizadas – compreensão,

apropriação e produção de sentidos. Outro fator relevante é a idade. E aqui há duas situações:

primeiro as crianças deste grupo estão em fase de alfabetização o que sinaliza que as

competências de leitura e interpretação ainda estão em desenvolvimento; depois, a idade

também está associada à mediação cognitiva se considerado que a cognição corresponde às

informações internalizadas pelas crianças ao longo da vida que são reintegradas a cada nova

interação midiática para favorecer os processos de compreensão.

No episódio O tênis de Doug, a leitura realizada pelas crianças do G2 foi o bullying

sofrido por Doug na escola em razão de sua aparência. Isso porque, frente à tela, o

telespectador não despreza suas experiências e não está isolado do contexto sociocultural ao

qual pertence (OROZCO, 2005; MORLEY, 1996). Deste modo, a pesquisa indicou que as

crianças buscam referências no mundo exterior à ficção para legitimar o conteúdo

audiovisual. Há pistas de que o bullying é uma realidade vivenciada pelos estudantes da

Escola Estadual José Mamede de Aquino (ver anexo I). Diferente do G1, neste episódio, os

estudantes do G2 foram capazes de compreender o desenho animado e recriar os sentidos da

narrativa.

Vale lembrar que as crianças do G1 e G2 vivem em uma região periférica de Campo

Grande, onde o acesso à cultura e às tecnologias da comunicação é restrito, e são de famílias

de baixa renda e socialmente desfavorecidas. Este contexto também influenciou as percepções

dos estudantes a respeito da série Doug Funnie o que mais uma vez confirma que as

mediações de referência pautam a interpretação e a (re)significação dos produtos midiáticos

com os quais as crianças interagem.

Ao assistir ao mesmo episódio, as crianças do G4, alunos do Colégio Engler Abelhinha

Feliz, realizaram leituras completamente distintas comparadas às do G2. Baseadas em seus

mundos de vida, as crianças perceberam na narrativa animada a importância da identidade

individual o que sinaliza quais valores morais são compartilhados pelo grupo. Verificou-se

ainda que estas crianças estão inseridas na cultura do consumo visto que demonstraram ser

conhecedoras das marcas da moda e conscientes em relação aos preços, além de possuírem

amplo acesso aos dispositivos tecnológicos como celulares e tablets.

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Em relação à tecnicidade, como sugere Martín-Barbero (2004,2009) as tecnologias

digitais são de fato elementos estruturantes da comunicação no universo infantil uma vez que

são espaços para socialização. Importante ressaltar que, independente do contexto

sociocultural, o uso da internet é semelhantes entre as crianças, de acordo com o questionário

respondido pelos estudantes, as atividades online mais frequente são bate-papo e jogos. O

mesmo ocorre com as brincadeiras e jogos de faz-de-conta, o significado de brincar é igual

para as diferentes infâncias, assim, a boneca, a casinha e o carrinho são as brincadeiras

preferidas entre as crianças, além de constituírem-se em modos de expressar, por meio da

ludicidade, as formas pelas quais elas percebem o mundo, ora reproduzindo as experiências

da vida real, ora representando as fantasias da ficção.

A categorização dos personagens como bons ou maus, percepção compartilhada por

pelos estudantes de ambas as escolas, reforçou a noção de que as crianças tomam emprestadas

as convenções sociais do mundo real e as interiorizam na estrutura de sentido da narrativa.

Este consenso que estabelece formas culturalmente aceitas de interação com o outro, ganha

significação na mediação cognitiva, em outras palavras, a compreensão atribuída ao desenho

animado se dá por meio das interações sociais e são elaboradas coletivamente.

A discussão a respeito do episódio Doug cai no rock confirmou, novamente, que o

caráter polissêmico dos conteúdos audiovisuais e a criatividade empregada na produção do

desenho animado levam o telespectador às múltiplas interpretações.

Neste episódio, os estudantes do G2 não chegaram a recriar os sentidos da narrativa. Em

vários momentos da discussão, reproduziram sequências da animação, sinalizando que o

repertório e as mediações cognitivas não forneceram elementos para a compreensão do

desenho animado. No G3, as interpretações da animação se deram em torno da relação de

ajuda ente Doug e Skeeter. É oportuno notar como as crianças se deslocaram do tema

principal do episódio – a banda The Beets – para captar significados implícitos da história. Há

coerência nestas percepções distintas a respeito do episódio se observado o cotidiano de cada

uma destas escolas.

Outro aspecto a ser destacado são as competências das crianças desta faixa etária para

distinguir realidade e ficção. Certamente o fato de se tratar de uma animação com natureza

própria na concepção visual contribui para esta distinção. Na visão das crianças, o desenho

animado permite situações absurdas porque não é real. Uma pesquisa futura poderia

investigar se esta distinção se repete em produtos audiovisuais que utilizam uma linguagem

universalizada para reproduzir a realidade de forma autêntica, como por exemplo, as

telenovelas.

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A título de conclusão, esta investigação ratifica que a figura do telespectador infantil

passivo frente à tela da TV está superada. A criança pós-moderna encontrou o seu lugar nos

contextos midiático e tecnológico, desenvolvendo competências para interagir com os

produtos audiovisuais, rejeitá-los e criticá-los. Sua atuação nos processos comunicacionais

está longe de ser reprodutiva, as infâncias são hoje produtoras da cultura. Por outro lado, falta

à geração adulta, e especialmente à escola, a compreensão desta realidade que já não implica

em proteção ou exclusão geracional, mas em preparar a criança para uma relação mais

produtiva e crítica em relação aos meios.

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______. As estruturas narrativas. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

VER TV DEBATE A PROGRAMAÇÃO INFANTIL NOS CANAIS ABERTOS. Ver TV. Brasília, TV Brasil,

21 de abril de 2014. Programa de TV. Disponível em <http://www.ebc.com.br/infantil/para-

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VILCHES, Lorenzo. La lectura de la imagem: prensa, cine, televisión. 10.ed. Barcelona: Paidós

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APÊNDICE A

A) IDENTIFICAÇÃO

Instituição de ensino:__________________________________________________________

Grupos: ( ) G1 ( ) G2 ( ) G3 ( ) G4

Idade:

( ) 8 anos ( ) 9 anos ( ) 10 anos ( ) 11 anos ( ) 12 anos

Sexo

( ) masculino ( ) feminino

Com quem você mora? B) CONSUMO MIDIÁTICO

Você assiste à TV todos os dias?

( ) sim( ) não

Em qual horário costuma ver TV?

Em quais lugares da casa você assiste à TV?

Geralmente, quem assiste à TV com você?

Quais são os seus canais de televisão preferidos?

E quais programas televisivos você mais gosta de assistir? Por que?

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Existe algum programa de TV que você seja proibido de assistir? Quem o proíbe?

Você gosta de ir ao cinema? Com que vai? E qual foi o último filme que assistiu no cinema?

Você gosta de ler? O que costuma ler?

Você conhece a internet? ( ) sim( ) não. Onde acessa à internet?

O que você costuma fazer na internet?

Se você pudesse ser um personagem da TV qual gostaria de ser? Por que?

C) COTIDIANO

Quais são suas brincadeiras preferidas? E com quem costuma brincar?

Quais atividades costuma fazer aos finais de semana? Quem participa destas atividades?

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ANEXO 1

Reportagem publicada, em 05 de setembro de 2012, no portal Campo Grande News.