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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
PRODUZINDO O “GÊNERO” COMO AÇÃO COLETIVA: CONDIÇÕES,
AGENTES E RETRIBUIÇÕES DO ENGAJAMENTO EM GRUPOS DE
ATIVISMO NA CIDADE DE PORTO ALEGRE/RS - BRASIL
Cristina Altmann1
Resumo: A problemática mais geral deste artigo está relacionada à discussão da variabilidade das
condições e recursos sociais que estão na origem de processos de engajamento social e político,
incluindo as variáveis contextuais, as dinâmicas interpessoais e as retribuições identitárias em jogo
quando se trata de analisar a constituição e a redefinição de grupos, causas, agendas e itinerários
militantes, que no caso empírico específico desta pesquisa, dizem respeito às redes de ativismo de
organizações não-governamentais que se reivindicam como “de mulheres” e “feministas” e que se
constituem ao longo dos anos 1990, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Em termos de
recursos metodológicos, o trabalho é desenvolvido com base na análise de trajetos, incluindo
variáveis como origem social e de socialização familiar, recursos escolares, experiências profissionais
e redes prévias de adesão. O conjunto de itinerários analisados evidencia lógicas distintas de produção
de organizações e de inserções militantes, assim como das retribuições simbólicas em jogo, que vão
desde a tecitura de fortes laços identitários e sentimentos de competência pessoal até o acesso para a
ocupação de posições de valorização profissional e social.
Palavras-chave: Engajamento, Trajetos, Mulheres, Organizações Não-Governamentais.
Os pontos de partida teórico-metodológicos dessa discussão estão situados no que poderíamos
chamar de uma “sociologia do engajamento”, onde as adesões sociais e militantes não podem ser
satisfatoriamente compreendidas como decorrências diretas de certos atributos como “classe”, “raça”
ou “gênero”, nem como reflexo mecânico de certas disposições adquiridas em meios de socialização
prévios (AGRIKOLIANSKI, 2001, p. 29) nem como reflexo de determinadas convicções ideológicas
(GAXIE, 2005, p. 176). O desafio dessa agenda de pesquisas reside no exame de lógicas sociais
variadas que convergem no sentido da construção e da manutenção de uma disposição ao “interesse”
por determinados “problemas sociais” e “causas” correlatas, disposição esta que tende a ser
convertida em adesões práticas via a mediação de contatos próximos, tais como redes familiares, de
amigos, colegas de trabalho, etc. (SAWICKI e SIMÉANT, 2011).
É justamente durante os percursos de participação e de socialização em atividades militantes
que são geradas formas de retribuições – vínculos afetivos, aprendizados, identificações, estilo de
vida, inserções profissionais, ocupação de cargos, entre outros – que reforçam e atualizam a
permanência em meios militantes e que estão fortemente relacionadas aos recursos de origem
1 - Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande
do Sul – Brasil.
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(econômicos e culturais) dos/as agentes que protagonizam tais empreendimentos (CORADINI,
2010).
Neste artigo, em especial, serve como base para a discussão a análise dos itinerários2 escolares,
profissionais e militantes das fundadoras3 e/ou coordenadoras de duas organizações não
governamentais constituídas na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, envolvidas com tais
organizações ao longo dos anos 1990. A primeira delas, fundada em 1989, é a Associação Cultural
de Mulheres Negras (Acmun), uma organização encabeçada por lideranças comunitárias de uma
região de periferia, cujas inserções religiosas e aproximações com as iniciativas da “pastoral afro” da
igreja católica servem como incentivos iniciais para a estruturação do grupo. A entidade, cujos
projetos desenvolvidos estão associados à promoção da valorização da cultura negra, de promoção
da saúde e de condições de empoderamento para mulheres da periferia, passou a ganhar mais
notoriedade e inserção nacional a partir da coordenação colegiada da Articulação de Organização de
Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), entre os anos de 2012 e 2016.
Já a ong Themis, fundada em 1993, é organizada a partir do encontro entre militantes oriundas
de redes prévias de ativismo estudantil e partidário, especialmente advogadas, que diversificam seus
engajamentos e investem na fundação de um novo grupo. Reconhecida e recebedora de vários
prêmios promovidos por instâncias nacionais e internacionais, a entidade atua há anos em projetos de
formação de promotoras legais populares, para a capacitação e a atuação de agentes multiplicadoras
de noções de cidadania e relativamente aos direitos das mulheres em suas comunidades. Além disso,
a ong estimula a publicação de estudos e promove eventos de formação direcionados ao poder público
e à sociedade em geral.
Os grupos, que se reivindicam como situados em um campo de mobilização feminista e pelos
direitos das mulheres negras, são reconhecidos pelo “pioneirismo” no sentido da construção de
estratégias mais institucionalizadas e profissionalizadas de mobilização política que perpassam a
defesa de populações até então sem grupos militantes e porta-vozes mais específicos. Apesar desse
traço em comum, como espera-se demonstrar, as condições e os recursos sociais que estão na base
2 - Foram realizadas entrevistas em profundidade com um grupo mais amplo de militantes, mas para fins desse artigo, são analisados em especial os percursos de seis agentes, três de cada organização. Ficam os meus sinceros agradecimentos pela disponibilidade de participação na pesquisa e pelo compartilhamento de experiências e de leituras tão pessoais, em especial para: Denise Dora, Márcia Soares, Maria da Glória Kopp, Francisca Bueno, Elaine Soares e Simone Cruz. 3 - Depois de passados mais de 25 anos quando do momento de “fundação” dos empreendimentos profissionais-militantes das “ongs”, as próprias definições em torno de quem seriam as “pioneiras” dessas iniciativas e as sugestões de nomes reivindicados como “importantes” e “dignos” de serem entrevistados traduzem um acúmulo de vivências e de alianças pessoais que permaneceram mais ou menos amistosas com o tempo.
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dos itinerários analisados diferenciam-se, sobretudo, em relação às origens sociais, aos recursos de
afirmação de uma expertise intelectual-militante e às retribuições simbólicas que perpassam as
dinâmicas de engajamento das agentes em questão.
O ambiente da “redemocratização” e as “fundações” das organizações
Os eventos políticos que marcam a década de 1980 - a começar pela reforma partidária de
1979 que extingue o “bipartidarismo”, passando pelo processo de “abertura democrática” e depois
pela promulgação de uma nova constituição para o país, em 1988 - têm um efeito de conjuntura
importante no que se refere à uma série de rearranjos organizativos e de releituras forjadas no interior
dos meios intelectuais4 e das organizações partidárias e militantes. Com relação ao contexto percebido
pelas agentes em questão, ou seja, em se tratando das percepções elaboradas a partir das experiências
em voga nos itinerários analisados, há leituras coletivas distintas no sentido das motivações e dos
propósitos que teriam levado à fundação das duas organizações, leituras estas que não podem ser
desvinculadas de suas portadoras e de suas credenciais sociais.
No caso da Themis, as avaliações a respeito das “tarefas” colocadas no período mais geral do
“pós-redemocratização” servem como narrativas de justificação para a fundação da entidade.
Fortemente inscritas em discussões no âmbito universitário e inseridas em redes prévias de ativismo
estudantil e partidário (mais associado ao PT), as agentes empenhadas na construção desta
organização reivindicada como de assessoria feminista mobilizam diagnósticos associados às
necessidades do desenvolvimento de entidades que ajudassem simultaneamente a fortalecer a
capacidade de organização da sociedade civil (especialmente das mulheres) e a elaborar aparatos
qualificados de sustentação de políticas públicas, considerando o engessamento das estruturas
partidárias e a incapacidade das estruturas estatais diante das demandas renovadas do pós-
redemocratização:
A criação da Themis se dá muito a partir da ideia de que a gente tinha feito essa transição de
uma ditadura para uma democracia que precisava ser construída. Tinha um conjunto de
direitos no campo da igualdade das mulheres que tinham sido conquistados na constituição
de 1988 no qual a gente se envolveu ativamente. (...) E criamos a Themis, que é a
representação da deusa da justiça, dizendo bom, nosso próximo passo agora, se tu tens uma
carta de direitos, é garantir o acesso a estes direitos e a justiça cumpre um papel importante
4 - Como apontou Pécaut (1990, p. 257-308), os núcleos vanguardistas, em meio às medidas progressivas de “abertura democrática”, são levados a situar-se no campo geral das discussões sobre as estratégias de “democratização” que deveriam ser empreendidas, incluindo as posturas - não excludentes - de uma escalada democrática via atuações mais direcionadas à ocupação de espaços eleitorais e institucionais e aquelas centradas na defesa de processos de auto-organização de setores populares.
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nisso, como que o poder judiciário, os órgãos de defesa de direitos, eles podem se organizar
para garantir os direitos das mulheres. (Entrevista concedida por Denise Dora, em setembro
de 2016)
Naquela época, nós fizemos a reflexão de que a gente achava que os partidos não iam dar
conta do que o país precisava, da complexidade que era esse país e que a luta política exigia.
E fundamentalmente, em função do engessamento que tinham os partidos políticos de
esquerda e que eles não iam dar conta, e não deram. (...) O estado não sabia fazer, não sabia
lidar com a aids, não sabia lidar com as mulheres, não tinha políticas públicas e não sabia o
que fazer. O estado precisava pagar pela expertise e as ong surgem nesse vácuo. (...) E as
ongs começam a se firmar como instituições que estavam entrando num vácuo de ineficiência
e de incapacidade do estado de dar conta de demandas importantes num momento em que o
país está se democratizando e o movimento social crescendo e de necessidades da população
que o estado não conseguia dar conta. (Entrevista concedida por Márcia Soares, em abril de
2017)
No caso da Acmun, entidade fundada em uma região de periferia da cidade de Porto Alegre e
encabeçada por “Dona Nelma”, uma técnica de enfermagem que era uma liderança comunitária e
religiosa simpatizante de grupos mais à esquerda no espectro político, a narrativa predominante é
aquela de “empoderamento” das mulheres negras que vivem em situação de vulnerabilidade social e
de violência e que esperam fazer algo a mais por suas comunidades e famílias, mulheres estas que,
segundo as narrativas de fundação do grupo, inicialmente se encontram imersas em suas inserções
religiosas, mas a partir de determinado momento passam a apostar em uma estratégia de auto-
organização onde finalmente há um papel de “protagonismo” e independência em relação às
lideranças masculinas que conduziam as atividades dos agentes da pastoral negra, promovidas por
grupos vinculados à igreja católica:
A Dona Nelma trabalhava já com aquelas mulheres, que costuravam, ela arrumou máquinas,
elas faziam costura para sobreviver, rezavam o terço, se queixavam dos maridos, porque
apanhavam dos maridos, mais comunitário mesmo. E aí com a Elaine (filha) ela começa a se
contaminar positivamente e aí a liderança vem embora. Ela sentiu a necessidade de ter essa
ong para poder caminhar com as próprias pernas. Porque lá nos agentes de pastoral afro, que
eram comandados por homens, a igreja católica jamais iria abrir né? E eu posso falar nisso
sem problema nenhum, ainda é muito forte a questão do machismo dentro da igreja católica.
Como que um grupo de mulheres vai ser coordenado por um homem? Nós não temos nada
contra os homens, que os homens venham junto conosco, mas o que a dona Nelma trouxe e
eu lembro perfeitamente... Quando ela volta de uma formação que ela foi, se não me engano
em Minas Gerais, ela volta empoderadíssima e diz, “Nós não podemos ser comandadas por
homens, nós vamos fundar uma ong de mulheres negras, de, com, e para mulheres negras”.
Nós é que tínhamos que discutir os nossos problemas de mulheres, nós que tínhamos que
tentar achar alternativas, achar caminhos, e estarmos na liderança. (Entrevista concedida por
Francisca, março de 2017)
Quando a minha mãe inicia junto com as outras mulheres, no início era um grupo que o padre
pediu para elas fazerem um grupo para rezar, e aí elas viram que só rezar não ia resolver os
problemas delas. (...) No início teve uma influência muito forte da igreja, elas eram APNs,
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mas depois elas viram que tinha uma outra linha política importante que precisava ser
construída, especialmente no fortalecimento de uma organização de mulheres, porque dentro
dos APNs elas não tinham uma expressão enquanto mulheres, e as decisões, até sobre os
encontros de mulheres, eram dos homens. (Entrevista concedida por Elaine, em março de
2017)
A participação em fóruns nacionais que reúnem lideranças do movimento de mulheres negras
especialmente de grupos do Rio de Janeiro e de São Paulo, cujos referenciais de militância já estão
mais vinculados ao “feminismo negro”, cria as condições para que as lideranças mais escolarizadas
da Acmun passem a incorporar novos referenciais de mobilização e se afastem progressivamente das
relações de apoio forjadas com grupos da igreja católica.
Origens sociais, recursos escolares e itinerários profissionais
A análise das origens sociais e dos itinerários escolares e profissionais dos/as agentes que
passam a se dedicar às atividades militantes constitui uma estratégia privilegiada para a compreensão
das lógicas que contribuem para as dinâmicas de engajamento, variáveis em sua intensidade e duração
ao longo dos percursos individuais (FILLIEULE, 2001). Além disso, as relações cada vez mais
imbricadas entre investimentos escolares e inserções militantes apontam para a intensificação dos
usos políticos dos títulos escolares como trunfos de legitimação social e de justificação para a
ocupação de uma diversidade de posições de autoridade em distintos domínios de inserção,
especialmente em cargos públicos e políticos.
Em termos de origens sociais – a variável utilizada diz respeito às atividades de cunho
profissional exercidas pelos pais – é possível perceber, a partir dos seis itinerários analisados, uma
nítida diferenciação entre origens sociais mais elevadas e escolarizadas, para o caso das fundadoras
da Themis (pais jornalistas e militares, mães professoras) e recursos de origem mais escassos, para o
caso das fundadoras da Acmun (cujos pais exercem atividades mais manuais como gari, peão de
estância, por exemplo, e mães trabalhadoras do lar e costureira).
Quanto aos recursos escolares, a maior parte dos itinerários envolve uma formação
universitária em instituições de âmbito privado, em áreas bastante heterogêneas, com uma
concentração maior de áreas como direito e ciências sociais no caso das agentes da Themis e áreas
como enfermagem, psicologia e biologia no caso das agentes da Acmun. As experiências de formação
em um curso mais tradicional (direito) de uma instituição pública (UFRGS) e de circulação
internacional para a realização de um curso de mestrado no exterior aparecem apenas para um caso
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da Themis, revelando trunfos acadêmicos diferenciados e as possibilidades ampliadas de entrar em
contato com referências e com redes externas de ativismo.
As atividades profissionais desempenhadas ao longo dos itinerários são bastante heterogêneas
e envolvem o acesso a redes de inserção diferenciadas. Francisca, professora de ciências e de biologia,
uma das militantes fundadoras da Acmun e com maior tempo de vínculo com a organização, não
chegou a atuar profissionalmente em projetos financiados pela mesma. Depois de lecionar por muitos
anos na rede privada, Francisca passou a trabalhar como professora da rede pública, foi diretora de
escola, especializou-se em supervisão e orientação escolar e depois em relações étnico-raciais e
direitos humanos e educação. Também trabalhou em funções administrativas na coordenadoria
regional de educação da região de Passo Fundo, tendo, portanto, suas atividades profissionais
relacionadas com o exercício do magistério.
Elaine, que assumiu a coordenação das atividades do grupo após o falecimento da mãe
(Nelma, fundadora da entidade), apesar de ter formação na área da saúde, primeiro como técnica em
enfermagem e depois como enfermeira, não chegou a atuar diretamente na profissão. Dedicou-se à
coordenação e estruturação de projetos para a ong e depois foi aprovada em um concurso público da
prefeitura de Porto Alegre, onde trabalha até então, como funcionária envolvida em projetos de saúde
da população negra. Mais recentemente, Elaine passou a se dedicar aos estudos, em um curso de
mestrado na área de saúde coletiva.
Simone, a psicóloga que passou a dirigir a Acmun após a saída de Elaine, desde o início
recrutada profissionalmente para a coordenação de um projeto, teve as suas relações profissionais
(após o título universitário) mediadas via projetos da entidade, especialmente em áreas como saúde e
educação. O ativismo profissionalizante de Simone envolveu também investimentos em cursos de
pós-graduação, primeiro em psicooncologia e em saúde coletiva. Depois de muitos anos na
coordenação dos projetos da entidade e de experiência à frente da coordenação da Articulação de
Organizações de Mulheres Negras do Brasil, Simone foi convidada para trabalhar no órgão de
ouvidoria da Defensoria Pública do estado, onde atua hoje.
Já as inserções profissionais das agentes vinculadas à Themis demonstram uma maior
imbricação e circulação em posições e cargos políticos. Denise, depois de atuar como advogada
sindical, de fundar e coordenar a ong por alguns anos e fazer mestrado em direito internacional dos
direitos humanos pela University of Essex (2000), atuou como programer officer da Fundação Ford
na pasta de direitos humanos, uma entidade de filantropia social que no Brasil financiou e incentivou
inúmeros projetos de universidades, de programas de pós-graduação, de órgãos de pesquisa e também
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de grupos da sociedade civil associados às lutas antidiscriminatórias, por exemplo. A atuação como
professora universitária na área do direito começou na década de 1990 e foi retomada após o retorno
das atividades profissionais no âmbito da Fundação Ford, no Rio de Janeiro. Mais recentemente,
Denise atua como ouvidora-geral da Defensoria Pública do estado do Rio Grande do Sul, onde atua
hoje.
Glória, historiadora, também fundadora da ong que chegou a coordenar por um breve período
após a saída de Denise, chegou a trabalhar por um curto período como professora em universidades
do interior e cursinhos de pré-vestibular, mas na maior parte do tempo esteve envolvida
profissionalmente com projetos governamentais implementados por gestões petistas em municípios
de Porto Alegre e de Canoas, e também no governo do estado, ao longo dos anos 1990 e 2000. A
retomada dos investimentos acadêmicos veio mais tarde (2013), quase como uma espécie de extensão,
agora sob a forma de uma maior reflexão e aprofundamento acerca de problemas com os quais havia
se deparado politicamente durante os anos de trabalho em gestões de projetos governamentais.
Márcia, advogada e também fundadora da Themis, atuou inicialmente na assessoria e da
defesa de causas intermediadas pela ong, e depois passou trabalhar na gestão de projetos em
instituições públicas e governamentais, reforçando uma expertise jurídica mais associada às causas
de direitos humanos e de populações em situação de vulnerabilidade social. Foi secretária adjunta da
Secretaria Nacional da Criança e do Adolescente (2006-2011) e depois coordenou, por quatro anos,
um programa de erradicação do trabalho infantil em lavouras de tabaco, promovido e financiado pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Recursos sociais, itinerários militantes e retribuições do engajamento
Longe de serem conscientemente e estrategicamente perseguidas enquanto tais, as
gratificações simbólicas estão relacionadas simultaneamente aos sentidos, às motivações e às
posições forjadas pelos/as agentes tendo em vista as inserções nas formas mais variadas de ativismo
e de engajamento. A diversidade das remunerações simbólicas relacionadas à atividade militante pode
incluir desde sentimentos de reconhecimento, de prestígio e de satisfação de agir sobre o mundo para
transformá-lo, até sentimentos de autoridade para intervir em espaços públicos ou ainda laços
afetivos, de estima e de amizade (GAXIE, 2005, p. 162).
Vários estudos vêm explorando de forma importante este aspecto e apontando para a
heterogeneidade das formas de satisfação em jogo nos engajamentos militantes a depender dos
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públicos que protagonizam certos tipos de mobilizações e das variáveis contextuais que influenciam
os percursos individuais. Como reforçou Coradini (2010, p. 456), o entendimento acerca dos
processos que orientam as adesões e dos recursos sociais que os/as agentes possuem é fundamental
para a compreensão das retribuições simbólicas do militantismo e das permanências em redes de
ativismo social e político.
As redes de contatos interpessoais forjadas via inserções em grupos e meios militantes, além
de contribuírem decisivamente para as dinâmicas de début na defesa de causas de ordens variadas,
também estão na origem de uma série de motivações e de identificações tecidas tanto em direção à
permanência nesses circuitos ou às desistências e às rupturas processadas5. No caso dos itinerários
considerados para este esforço de análise, há formas distintas de acesso aos meios militantes e
também de retribuições forjadas ao longo dos seis percursos que foram previamente apresentados no
item anterior.
Francisca, fundadora e militante da Acmun, começou a frequentar o clube negro de sua cidade
no interior do estado junto com a família, que tinha uma forte vinculação também com a igreja
católica. Foi assim que Francisca se aproximou de pessoas da capital envolvidas com as ações dos
Agentes da Pastoral Negra (APNs) e depois participou, junto com um grupo de mulheres da Vila
Maria Conceição (Porto Alegre), da fundação da Acmun. Professora e funcionária pública estadual,
sem ter relações profissionais mediadas via a organização, Francisca fundou a Acmun de Passo
Fundo. Foi a primeira mulher negra presidente do Conselho Municipal de Saúde de sua cidade. Na
igreja, atuou e atua como cursilhista e participa de um grupo de pesquisas da Confederação Nacional
de Bispos do Brasil sobre a população negra; participa ativamente de fóruns e de encontros nacionais
e já esteve em encontros internacionais (programa de intercâmbio de ativistas de uma universidade
dos Estados Unidos); integra a comissão de seleção de cotas raciais da Universidade de Passo Fundo;
além de dar palestras e de participar de eventos em espaços os mais variados (universidades,
encontros sindicais, de mulheres negras, igreja, câmara de vereadores). Na década de 1980,
aproximou-se de pautas mais à esquerda via contato com o padre que era responsável pela paróquia
de sua cidade, e na década de 1990, já funcionária pública estadual e participando das mobilizações
do magistério estadual, acabou filiando-se e reforçando laços de identificação com o PT, embora sem
maiores envolvimentos ou militâncias com as instâncias internas do mesmo.
5 - A obre coletiva “Le désengagement”, organizada por Olivier Fillieule (2005), é a principal referência para ter contato com esforços de análise sobre os processos de desengajamento e as lógicas que convergem no sentido do afrouxamento de vínculos e do afastamento de relações e de meios militantes.
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Elaine, que começou a participar desde bastante jovem das atividades comunitárias e da
pastoral negra junto com a sua mãe, no início da década de 1980 passou a ter contato com integrantes
do movimento negro, o que contou para o seu progressivo afastamento das identificações mais
religiosas. Desde jovem filiada ao PT, assim como a sua mãe, começou a participar de encontros
nacionais onde teve a oportunidade de conhecer referências do movimento de mulheres negras, tais
como Lúcia Xavier e Sueli Carneiro, fundadoras de outras ongs de mulheres negras no Brasil, no final
dos anos 1980 e início dos anos 1990 (Geledés, de São Paulo, em 1988, e Criola, do Rio de Janeiro,
em 1992) e que passaram a ser amigas, primeiro de sua mãe, depois também de Elaine. A coordenação
da Acmun no início dos anos 1990 veio acompanhada de inserções em espaços de participação
política local como o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher da cidade de Porto Alegre, do qual
foi presidente por quatro anos. Após ser aprovada em um concurso público municipal, mais
recentemente, foi convidada para ajudar a estruturar um programa de saúde direcionado para a
população negra, justamente em função de suas experiências de militância prévias.
Diferentemente de Francisca e de Elaine, as aproximações de Simone com as atividades de
militância vieram mais tarde e após a sua primeira experiência profissional na coordenação de um
projeto da Acmun. Na família, seu pai e um tio eram identificados com o PT e com as mobilizações
do movimento negro da cidade, e o assunto “política” era familiar – embora sem maiores
envolvimentos pessoais. Já depois de formada no curso de Psicologia, Simone foi indicada por uma
amiga de faculdade para participar de um projeto da Acmun, organização que depois dirigiu por
muitos anos e cujas atividades frequenta e participa cotidianamente ainda hoje. Mais recentemente,
após a estruturação de uma rede nacional de organizações de mulheres negras e a participação da
Acmun como entidade coordenadora desta rede, já nos anos 2000, a Articulação de Organizações de
Mulheres Negras do Brasil, Simone intensificou contatos com lideranças de entidades nacionais e
também as suas participações em eventos internacionais. Participou de audiências da Organização
dos Estados Americanos (OEA) para intervir e falar sobre a condição das mulheres negras no Brasil;
tornou-se próxima de lideranças do movimento negro de mulheres; viajou pelo país para conhecer os
projetos de outras entidades participantes da AMNB e participou de fóruns nacionais de discussão de
políticas públicas como o Conselho Nacional de Saúde e a Rede de Saúde da População Negra.
No caso das agentes da Acmun, dotadas de recursos econômicos e culturais mais frágeis em
termos de origem familiar, as retribuições associadas às inserções militantes incluem a tessitura de
fortes laços identitários e afetivos no sentido da construção de uma rede de relações de apoio e de
aprendizados. A militância reforça simultaneamente sentimentos de competência pessoal, de uma
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formação humana diferenciada e, principalmente, de fortalecimento para superar as situações de
exclusão social e de racismo – que passam a ser politizadas justamente a partir de suas inserções
militantes. O “empoderamento” é ao mesmo tempo um sentimento individual de superação das
adversidades e dos sofrimentos experimentados nos próprios percursos e um projeto de identificação
coletiva que precisa ser multiplicado e levado adiante:
E palestras aqui, palestras ali, vai por aí pela região, normalmente eu não paro, porque assim,
alguém disse que eu tenho condições de falar sobre a 10.639 (lei), “Ah, o município precisa
de formação”, tranquilamente eu estou lá, muitas vezes sem ganhar um centavo, mas por
prazer, porque eu acho que se eu, que me qualifiquei, que tenho uma militância, não fizer,
quem que vai fazer? Nós precisamos nos qualificar, nós precisamos estar à frente de, e
ninguém fala por mim, a minha história eu conto, de mulher, de negra, de mãe, de militante.
Eu não quero que ninguém conte e fico furiosa da vida quando alguém resolve ir lá e querer
me defender, não, deixa que as mulheres negras, nós sabemos falar de mulher negra, nós
sabemos disso. (Entrevista concedida por Francisca, março de 2017)
Eu não tenho dúvidas de que, eu sei que eu vou continuar aqui nesse lugar e sempre ativista,
sabe? É muito difícil pensar... Isso faz parte da minha vida e eu não consigo mais me imaginar
como uma Simone não ativista, isso não tem mais... Porque muita coisa mudou, várias coisas.
Eu acho que sou outra pessoa, eu me tornei outra pessoa, no sentido de que eu me politizei
mais, eu passei a compreender, comecei a ver as coisas de uma outra forma. Eu reconheci
coisas que eu não reconhecia antes. Se me perguntassem antes se eu tinha sofrido com o
racismo eu ia dizer que não, que nunca, mas hoje eu já consigo me dar conta. (Entrevista com
Simone, concedida em fevereiro de 2017)
Os percursos das agentes vinculadas à Themis, por sua vez, revelam itinerários militantes e
redes de adesão distintas. Denise, estudante de direito na UFRGS, entrou em contato com o
movimento estudantil e participou dos grupos Peleia e Liberta. Militante também do PT, ajudou a
fundar o núcleo de mulheres do partido em Porto Alegre e a comissão de mulheres da CUT. A
participação em eventos internacionais de promoção dos direitos humanos e a atuação como
professora universitária reforçaram simultaneamente os investimentos acadêmicos e profissionais que
estão na origem da fundação da Themis, ong que coordenou nos seus primeiros seis anos. A formação
no exterior (o mestrado na Inglaterra), a coordenação do programa de direitos humanos da Fundação
Ford e a carreira docente são indicativos dos recursos e das possibilidades diferenciadas de circulação
e de ocupação de posições associadas à uma expertise ao mesmo tempo intelectual e militante.
Glória, que começou a militar como secundarista em uma tradicional escola pública da cidade
de Porto Alegre, reconhecida como um berço de inúmeras personalidades do cenário político gaúcho,
se aproximou do grupo Peleia e também participou do Liberta e do PT. No curso de história na PUC
continuou a militar no movimento estudantil. Depois de formada, em função das suas redes de
relações interpessoais, foi chamada para trabalhar como assessora da Comissão de Direitos Humanos
da Assembleia, onde intensificou ainda mais os contatos com a Themis, que coordenou por um breve
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período após sair da Assembleia. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, Glória atuou em inúmeros
projetos governamentais de gestões petistas, no âmbito dos governos estadual e municipal (em Porto
Alegre e em Canoas). A retomada da vida acadêmica veio mais tarde com a conclusão do mestrado
em ciências sociais que havia começado nos anos 1980 e o ingresso no curso de doutorado em ciências
sociais na PUC.
Márcia começou a militar também ainda como secundarista na cidade de Santa Maria, em um
grupo de juventude vinculado ao PRC do qual participava o seu irmão mais velho. Em Santa Maria,
Márcia e outras colegas de militância tinham um grupo que chamaram de Germinal, onde discutiam
e estudavam autoras feministas. Em Porto Alegre, já estudante do curso de direito, estreitou relações
com a Denise e participou da fundação da Themis. Atuante como advogada voluntária no Gapa
(Grupo de Apoio à Prevenção da Aids), Márcia seguiu profissionalmente advogando e passou a atuar,
assim como Glória, em cargos de indicação política, primeiro no âmbito do governo estadual e depois,
bem mais recentemente, em Brasília. Também atuou como coordenadora de projetos de agências
como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), de erradicação do trabalho infantil.
As retribuições das inserções militantes, no caso dos percursos das agentes vinculadas à
Themis, dotadas de recursos culturais de origem familiar e escolares relativamente mais elevados,
envolve um conjunto prévio de relações pessoais e de identificação política no âmbito de grupos de
esquerda que se desdobram em possibilidades de circulação diferenciadas em relação à ocupação de
posições profissionais e políticas, seja em órgãos governamentais e/ou em agências privadas de
execução de projetos de intervenção social. Mais do que laços de caráter identitário ou de superação
individual, as retribuições do ativismo parecem mais associadas ao sentimento da aquisição de um
conjunto de autopercepções de competências intelectuais e técnicas que autorizam e justificam as
inserções profissionais e as ocupações dos cargos exercidos.
Eu nem considero o que eu faço hoje como uma militância, eu tomo isso, como é que eu vou
te dizer... Não é uma militância, é o meu sentido de vida. É um ativismo? Pode ser, mas é o
que me faz feliz, esse é o sentido da minha vida e eu me preparei para isso, me preparei
tecnicamente, emocionalmente e politicamente. Eu não escolhi o partido, senão estaria lá
dentro, agarrada em uma bandeira. Não teria nem tempo, nem disposição e possivelmente
nem capacidade de me preparar tecnicamente para isso. Eu escolhi isso. Eu escolhi cuidar
das pessoas, das mulheres, das crianças, e não do partido. (Entrevista concedida por Márcia
Soares, em abril de 2017)
Como pôde-se depreender a partir da análise dos seis itinerários analisados, as retribuições
das inserções militantes estão profundamente relacionadas com os recursos sociais e com as redes de
adesão e de afinidades tecidas e mobilizadas pelos/as agentes ao longo de seus percursos. As lógicas
sociais que estão associadas aos ativismos de gênero são bastante distintas e comportam tramas de
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
significados e de identificações variadas, incluindo desde sentimentos pessoais de fortalecimento e
de aquisição de referenciais identitários, afetivos e políticos até sentimentos de competência
intelectual e técnica que autorizam e reforçam formas variadas de intervenção política e o acesso para
a ocupação de posições de valorização profissional e social.
Referências Citadas
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2011 (texto traduzido).
Producing "gender" as collective action: conditions, agents and retributions of engagement in
activism networks in the city of Porto Alegre / RS – Brazil
Abstract: The general problem of this article is related to the discussion of the variability of the social
conditions that are in the origin of processes of social and political engagement, including the
contextual variables, interpersonal dynamics and identity retributions at stake when it comes to
analyzing the constitution and redefinition of groups, causes, agendas and militant itineraries, which
in the specific empirical case of this research concern the activist networks of "womens" and
"feminists" non-governmental organizations that are formed between the late 1980s and early 2000s
in the city of Porto Alegre, Rio Grande do Sul. In terms of methodological resources, the work is
developed based on the analysis of paths, including variables such as social origin and family
socialization, school resources, professional experiences and previous accession networks. The
diverse set of itineraries analyzed reveals the multiplicity of the conditions that act in the production
of the engagements and also the departures more or less temporary from the networks of activism in
question, as well as of the meanings and the identity retributions that are at stake.
Keywords: Engagement, Paths, Womens, Non-governmental Organizations.