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O Alentejo sentido de Deodato Guerreiro O alentejano Augusto Deodato Guerreiro é um reputado investigador e docente na área das ciências da informação. A sua especialidade é a Comunicação Alternativa, um ramo que tenta minorar as dificuldades comunicacionais das pessoas com deficiências. É ainda autor de livros de poesia e um apaixonado pelo “mágico Alentejo”. O único estrangeiro que actualmente orienta doutoramentos em Ciências da Informação na prestigiada Universidade Complutense de Madrid, é natural de Alvalade, concelho de Santiago do Cacém. "Surpreendeu-me bastante ter sido escolhido. Em primeiro lugar por ser português, depois por ser cego", confessa Augusto Deodato Guerreiro. Mas a escolha da universidade espanhola não aconteceu por acaso. Deodato Guerreiro, 58 anos, é especialista em Comunicação Alternativa, uma disciplina que procura minorar as dificuldades sentidas por pessoas com diversos tipos de deficiência, nomeadamente através do recurso às novas tecnologias. Possuidor de um extenso currículo, Deodato Guerreiro tem uma actividade multifacetada. Dirige o Gabinete de Referência Cultural, um serviço da Câmara Municipal de Lisboa vocacionado para o apoio a cidadãos com necessidades especiais. Lecciona na Universidade Lusófona, coordena parcerias entre a autarquia lisboeta e diversas instituições e dirige mestrados na área das linguagens especiais. É ainda autor de livros de poesia e um apaixonado pela região onde nasceu – o "mágico Alentejo". Augusto Deodato Guerreiro nasceu na herdade de Olhalva, nas imediações de Alvalade, onde o pai era feitor. Ali ocorreu o acidente que lhe provocou a cegueira. "Aos 14 meses, uma mula desfechou- me um coice violentíssimo na cara, que me fez perder a visão. Mais tarde escrevi um soneto a pensar nessa mula, intitulado ‘Graças’, pois se não fosse ela eu não seria o que sou hoje. Muito possivelmente teria emigrado como os meus três irmãos", afirma. Deodato Guerreiro procurou a independência desde muito novo. "Com

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O Alentejo sentido de Deodato Guerreiro O alentejano Augusto Deodato Guerreiro é um reputad o investigador e docente na área das ciências da info rmação. A sua especialidade é a Comunicação Alternativa, um ramo que tenta minorar as dificuldades comunicaci onais das pessoas com deficiências. É ainda autor de livros de poesia e u m apaixonado pelo “mágico Alentejo”.

O único estrangeiro que actualmente orienta doutoramentos em Ciências da Informação na prestigiada Universidade Complutense de Madrid, é natural de Alvalade, concelho de Santiago do Cacém. "Surpreendeu-me bastante ter sido escolhido. Em primeiro lugar por ser português, depois por ser cego", confessa Augusto Deodato Guerreiro. Mas a escolha da universidade espanhola não aconteceu por acaso. Deodato Guerreiro, 58 anos, é especialista em Comunicação Alternativa, uma disciplina que procura minorar as dificuldades sentidas por pessoas com diversos tipos de deficiência, nomeadamente através do recurso às novas tecnologias.

Possuidor de um extenso currículo, Deodato Guerreiro tem uma actividade multifacetada. Dirige o Gabinete de Referência Cultural, um serviço da Câmara Municipal de Lisboa vocacionado para o apoio a cidadãos com necessidades especiais. Lecciona na Universidade Lusófona, coordena parcerias entre a autarquia lisboeta e diversas instituições e dirige mestrados na área das linguagens especiais. É ainda autor de livros de poesia e um apaixonado pela região onde nasceu – o "mágico Alentejo".

Augusto Deodato Guerreiro nasceu na herdade de Olhalva, nas imediações de Alvalade, onde o pai era feitor. Ali ocorreu o acidente que lhe provocou a cegueira. "Aos 14 meses, uma mula desfechou-me um coice violentíssimo na cara, que me fez perder a visão. Mais tarde escrevi um soneto a pensar nessa mula, intitulado ‘Graças’, pois se não fosse ela eu não seria o que sou hoje. Muito possivelmente teria emigrado como os meus três irmãos", afirma.

Deodato Guerreiro procurou a independência desde muito novo. "Com

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oitos anos já ganhava dinheiro. Como aprendi a tocar acordeão muito cedo, comecei a abrilhantar bailes na minha zona: em Alvalade, Ourique, Fornalhas. As pessoas mais velhas recordam-se com certeza do miúdo tocador de acordeão!". Aos 14 anos foi para Lisboa. Entrou para o Instituto Branco Rodrigues, um estabelecimento de reabilitação, onde fez a quarta classe e a antiga admissão ao liceu, aprendeu piano e solfejo. Ainda hoje a música é uma das suas paixões. "Nas tertúlias que eu e outros amigos alentejanos organizamos no Feijó, onde vivo, costumo levar o meu acordeão".

No Centro de Reabilitação de Nossa Senhora dos Anjos, que frequentou dos 17 aos 18 anos, recebeu ensinamentos práticos. "Aprendi a trabalhar em carpintaria, mecânica, metalo-mecânica. E também coisas do dia-a-dia, como passar a ferro, cozinhar, etc.". O seu primeiro emprego foi numa fábrica de máquinas de escrever, em Mem Martins. "Estive lá quatro anos, entre 1969 e 1973, como operário metalo-mecânico. Trabalhava na montagem dos carretos das máquinas, utilizando fresas, tornos mecânicos, prensas. Fiz trabalhos que hoje já não faria, por medo. Colegas houve que chegaram a perder dedos. Mas nessa altura arrisquei, porque queria ganhar a vida e ser independente".

"O Mundo da Vida" pela Internet

A entrada para a Câmara Municipal de Lisboa, como auxiliar de catalogação, abre-lhe novas perspectivas. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras de Lisboa, em 1979, e obteve uma pós-graduação em Ciências Documentais, na Faculdade de Letras de Coimbra. Em 1999 doutora-se em Ciências da Comunicação, na especialidade Comunicação e Cultura, pela Universidade Nova de Lisboa. Desde aí, o seu tempo reparte-se pelo trabalho na autarquia, como coordenador do Gabinete de Referência Cultural, pelo ensino universitário, como professor e orientador de mestrados e doutoramentos, e pela investigação cientifica.

O Gabinete de Referência Cultural, que Deodato Guerreiro dirige desde 1994, é um pólo interactivo de recursos especiais que se preocupa com questões de natureza sócio-profissional, técnico-científica e psico-social que envolvem cidadãos portadores das mais variadas dificuldades. Embora situado em Lisboa, o Gabinete está aberto a pessoas de todo o País. Empresta livros em formato digital

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ou audio, em braille, caracteres ampliados ou caracteres comuns. Quem tenha dificuldades sensoriais, motoras, cognitivas ou qualquer outra necessidade especial, pode solicitar o empréstimo de materiais.

O Gabinete possui uma revista mensal, a "Dinamização Cultural", e inaugurou recentemente na Internet o fórum interactivo "O Mundo da Vida" (http://mundodavida.cm-lisboa.pt). "Trata-se dum espaço aberto a todos, que visa a partilha do conhecimento e a igualdade de oportunidades no acesso à informação e à cultura", explica Deodato Guerreiro. Em cada sessão, na primeira quinta-feira de cada mês, entre as 11 e as 13 horas, "é transmitida uma conferência, a cargo de um especialista. A originalidade está no facto de todas as sessões terem registo de som e de imagem, tradução simultânea em linguagem gestual e serem transmitidas pela Internet".

Mais apoio aos deficientes

Ao analisar a situação dos deficientes portugueses e a política a eles dirigida, Deodato Guerreiro chama a atenção para "três vectores significativos". O primeiro "é o facto de estamos no Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos"; em segundo lugar, "a importante mais-valia que representa a presidência portuguesa da EU"; por último, "a política de inclusão seguida pela Presidência da República". Estas realidades "devem juntar-se, para uma melhor satisfação das necessidades dos cidadãos com necessidades especiais". Pode-se ainda "tirar partido da imigração. Os conhecimentos de muitos imigrantes podem ser aproveitados no trabalho em favor das pessoas com dificuldades".

No que se refere aos cegos, Deodato Guerreiro não tem dúvidas em afirmar que o acesso à informação melhorou muito nos últimos tempos. "Existem hoje boas tecnologias, que permitem estar em igualdade de circunstâncias com os cidadãos normo-visuais", aqueles que vêem normalmente. "Falo de equipamentos como os computadores equipados com poet compact, uma espécie de scanner que lê e digitaliza os documentos que nele se colocam".

Em matéria de apoio aos deficientes, lembra "o exemplo positivo que está a ser dado por muitas câmaras, por instituições como o Instituto Nacional para a Reabilitação, associações como a Acapo (Associação

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de Cegos e Amblíopes de Portugal), a Associação Promotora de Emprego para Deficientes Visuais, a Associação Promotora do Ensino dos Cegos, etc.".

Quanto ao acesso ao emprego, "verifica-se que muitas empresas pagam estágios a deficientes para irem buscar dividendos ao Estado. Terminados os estágios, mandam-nos para casa. Por isso há muitos deficientes a viverem de cursos de formação continuada". Segundo Deodato Guerreiro, "é preciso uma política que faça a sociedade perceber que os cidadãos portadores de deficiência não são incapazes. Mas para isso é preciso a colaboração desses mesmos cidadãos. É quem sente na pele os problemas que tem de demonstrar, de forma inequívoca, o que é capaz de fazer, para que a sociedade não tenha dúvidas".

"O Alentejo é qualquer coisa de mágico"

A prova de que a deficiência pode ser compatível com trabalhos altamente especializados é dada pelo próprio Deodato Guerreiro e por outros investigadores privados de visão. "Há um cego português, o professor Vítor Almada, doutorado em comportamento de peixes. Dirige um centro de investigação no Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Temos um doutorado em Ciências da Educação, o professor José Manuel Rodrigues Alves. Outro que trabalha em Matemática Pura, o professor José Batista, que leccionou na Faculdade de Ciências".

No Alentejo, "a situação não é muito famosa, porque tem existido pouco investimento. Em Portalegre há algumas preocupações com cegos, embora de forma muito pontual". Registe-se, no entanto, "um projecto de investigação em comunicação alternativa desenvolvido por um professor do Instituto Politécnico de Beja, que foi premiado pelo Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência, actualmente Instituto Nacional para a Reabilitação".

A falta de visão não impede Deodato Guerreiro de desfrutar do Alentejo e de nutrir por ele uma forte paixão. "O Alentejo é qualquer coisa de mágico. Gosto dos aromas, do ar, da temperatura. Na paisagem sinto umas vezes a vegetação, outras a aridez. Não é só com os olhos que apreciamos, os outros sentidos também são

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importantes". Para "dar um maior contributo no plano cultural", pensa comprar uma casa em Alvalade, o que será também uma forma de retribuir o afecto que a vila lhe dedica. Junto com Eduardo Olímpio e Domingos Carvalho, outros dois autores naturais de Alvalade, Deodato Guerreiro foi recentemente homenageado pela Junta de Freguesia local.

Casado e pai de dois filhos, o investigador considera-se uma pessoa feliz, porque faz o que gosta e capta com a sensibilidade o mundo que o cerca. Porque, como escreve em Nas Asas dos Sentidos , o seu último livro de poemas, "Para ver bem o que são,/Basta olhar dentro dum riso:/Com os olhos da audição/Vejo sempre o chão que piso".

Entrevista ao semanário “Diário do Alentejo”