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Profissionais Invisíveis

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Grande reportagem, produto do TCC "profissionais invisíveis", que aborda um tema pouco falado: trabalhadores que são vistos, mas não são sentidos pela sociedade.

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MARIANA LEDO FERNANDA GALIB MARINA SAKOVIC MARÍLIA TORELLO MARIA CAROLINA CHRIST

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TRABALHO DE CONCLUSÃO

DE CURSO

EXPEDIENTE

Editor: Mariana Ledo

Editora Adjunta: Marília Torello Viera

Editor de Arte: Juliana Assunção

Assistente de Arte: Mariana Ledo

Fotos: Mariana Ledo e Marina Sakovic

Editor de Fotografia: Mariana Ledo e Juliana Assunção

Repórteres: Fernanda Galib Dezani, Maria Carolina Ferraz

Christ, Mariana Ledo, Marília Torello Viera e Marina Sakovic Galan

Revisora: Thaís Batista

EDITORIALPRECONCEITO PERIGOSO

Esta edição da Caros Amigos é o produto de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da Universidade Anhembi Morumbi de São Paulo-SP. Com uma única reportagem, o pre-sente exemplar vem para analisar um tema delicado: a invisibilidade social. Tudo começou quando uma das integrantes do grupo, Maria Carolina Ferraz Christ, entrevistou José Fir-mino da Silva, senhor que trabalhava como homem-placa na região central da capital paulistana. Ao conversar com o já idoso trabalhador, que levava propagandas como “com-pro ouro” no pescoço, Christ se deparou com uma realidade comum, mas pouco conhecida. A frase que chamou atenção para tal problema veio com ênfase e sentimento. “Eu não entendo por que as pessoas não me olham. Eu sou tão gente quanto elas. Eu tenho carne, eu tenho rosto, eu tenho nome e mais do que isso, eu tenho alma”, disse José Firmino da Silva à estudante.

A partir desse momento, Christ se atentou e pensou que aquele homem que estava diante dela não era o único a se sentir assim. O desprezo, desrespeito, descaso, precon-ceito e discriminação sofridos por trabalhadores de classes mais baixas são claros e estão explicitados em nossa reportagem, nas falas dos que entrevistamos e nas declarações dos especialistas que analisaram os porquês desse fenômeno social que reduz esses seres hu-manos a invisíveis.

Aqui, você poderá ter acesso às histórias de vida das pessoas que sofrem com isso e mesmo das que driblam o problema com a maior naturalidade e jogo de cintura. Aden-tramos profundamente no tema e nas nuances que o envolvem com um único objetivo: retratar fielmente o que ocorre, os porquês e as possíveis soluções para essa mazela que divide a sociedade desde sempre, o preconceito.

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Ellen Evelyn Barros de Ramos, 16 anos, brasileira. A menina franzina, de olhos expressivos e cabelos presos em um boné, conta como é a vida de mulher-placa, trabalho que realiza aos finais de semana para complementar a renda familiar. “Eles passam e me olham como se eu fosse um nada”, afirma. Comentários como esse mostram como é a realidade de Ellen outros trabalhadores invisíveis. Eles são vistos, mas não são percebidos como pessoas.

Todos os sábados e domingos, Ellen tem a mesma rotina: acorda cedo, pega o transporte fornecido pela empresa de empreendimentos imobiliários e segue até seu local de trabalho. É na Avenida Domingos de Moraes, na Vila Mariana, bairro de classe média na capital de São Paulo, que ela fica em pé por oito horas com uma placa pendurada no pescoço. Faça sol ou muito sol: é lá que a moça estará. A região tem grande fluxo de carros e, consequentemente, de pessoas. Todos os que passam por ali, mesmo a pé, conseguem ver a menina instalada no canteiro central. A placa é grande e, em dias ensolarados, um guarda-chuva a protege do calor e de uma possível insolação. É impossível não notar a presença dela e da enorme placa. A roupa colorida (calça azul e blusa laranja) também chama a atenção. Todos esses elementos servem justamente para isso. Afinal, o que a menina carrega no corpo é a propaganda de um novo condomínio de prédios que será lançado em breve, próximo dali.

Enquanto conversávamos, observamos a grande vontade dela em falar, desabafar, contar histórias, expor ideias. Depois de alguns minutos, nossa percepção sobre aquela menina muda. De adolescente para adulta. Fala concreta, palavras certeiras e pensamento firme. Ellen não se enquadra no estereótipo “menininha”. A vida transformou a adolescente de apenas 16 anos em uma mulher (ou quase isso).

“Eu trabalho desde sempre. Cheguei a pegar reciclável na rua com a minha mãe; quando ela ficou desempregada. Depois paramos porque era meio perigoso. Um dia, um segurança quase bateu em nós. A gente estava almoçando na calçada, na frente de um prédio e ele não queria a gente lá. Depois, minha mãe arranjou um emprego e eu comecei a trabalhar aqui nos finas de semana. Ganho R$ 40,00 por dia”, conta a jovem.

A menina, quase mulher, sempre ajudou em casa. Talvez tenha nascido daí sua postura firme em relação aos preconceitos e discriminações sofridos. Antes trabalhando como catadora de recicláveis, agora como

Brasil

Adolescente trabalha aos fins de semana divulgando novos projetos imobiliários

PROFISSIONAIS INVISÍVEISPreconceito, agressão, descaso, desvalorização. Trabalhadores que são

vistos, sem serem notados, enfrentam isso e um pouco mais

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mulher-placa.“Hora do intervalo. Estou louca para fumar um

cigarro, vamos?”, pergunta Ellen. O tempo não é muito, 20 minutos. Mas dá para conversarmos melhor. Vamos até uma rua ao lado, sem tanto movimento, procuramos uma sombra. Sentamos na calçada. Ela conta que, além desse rápido descanso, tem uma hora de almoço. “É um tempo precioso. Imagina se eu tivesse que ficar durante as oito horas em pé, sem parar?”, diz.

A sua rotina não é fácil. Quando indagamos como ela se sente trabalhando ali, a resposta vem rápida, antes mesmo de terminarmos a pergunta. “Sinto-me humilhada, muito humilhada. Isso me irrita”,

diz com um sorriso amarelo. “Teve um dia que eu estava parada aqui, aí passou uma menina e ficou me olhando torto. Ela entrou no salão e fez a unha. Passou de novo e ficou olhando. Entrou na loja e continuou me olhando. Então, perguntei para ela o que ela tinha perdido. Comecei a xingá-la, na cara dela. Depois passou novamente e esbarrou em mim. Eu odeio isso. Ela me olhava com nojo, como se eu tivesse fazendo alguma coisa errada”, conta.

Atitudes como essa são comuns. São vários os carros que passam fazendo gracinhas porque a menina leva uma placa no pescoço. Os que passam não a percebem como pessoa. É como se Ellen fosse mais um elemento visual da cidade. A verdade é que ela é

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uma menina que trabalha para manter a família e os sonhos.

“Eu trabalho porque não gosto de depender de ninguém. Não entendo por que as pessoas que passam aqui me olham como se eu fosse um nada, uma noia, uma mendiga. É um trabalho como outro qualquer, honesto. Não estou roubando”, desabafa.

A garota tem planos e muitos sonhos. Ela e o namorado guardam dinheiro para montar uma casa juntos na favela Vietnã, comunidade onde mora com a mãe e mais duas irmãs, uma de 12 e outra de 10 anos. “Eu e meu namorado queremos ter a nossa casa. Depois, eu quero continuar meus estudos. Parei no primeiro colegial e me arrependo muito. Na época, não dava tanto valor. Hoje eu vejo que é importante. Só entrei para o farol porque não consigo outro serviço. Mas agora quero um emprego com carteira assinada. Eu penso em crescer, como todo mundo”, expõe.

Ellen garante que há um perfil específico de quem a encara com nojo. “As madames, as patricinhas. Geralmente as novinhas, por eu ser nova também. Elas comentam, ficam cochichando. Esse povo tem que abrir mais a mente. Pode não ser importante para eles, mas, para mim e para a minha família, é”.

O PSICÓLOGO GARIA indiferença sofrida pela adolescente tem causas

e consequências. O psicólogo Fernando Braga da Costa que o diga. Durante os anos nos quais passou trabalhando como gari, ele presenciou cenas e viveu situações que ficaram guardadas na memória.

Tudo começou na época em que Costa cursava psicologia na Universidade de São Paulo (USP). Um professor pediu aos estudantes que vivenciassem por um dia algum ofício que estivesse entre as opções de um indivíduo das classes menos favorecidas e que não precisasse de qualificação escolar ou técnica para ser exercido. Costa escolheu a profissão de gari e foi varrer as ruas da cidade universitária.

O que era uma simples experiência estudantil se transformou em inquietação. Logo, ele percebeu o quanto aqueles profissionais eram menosprezados e humilhados, tanto pelas condições de trabalho como pela sociedade. “No primeiro dia em que trabalhei como gari, constatei que estava diante de um tema enigmático. A primeira impressão fez com que eu fosse sugado. Eu queria saber por que os garis eram tão desumanizados por todos. E, depois, entender as consequências psicológicas que isso causaria nesses trabalhadores”, afirma.

Formado e já professor na mesma universidade, Costa decidiu mergulhar no tema “invisibilidade pública”, focando especificamente na profissão de gari. A experiência de um dia se transformou no objeto de estudo da sua dissertação de mestrado — “Garis: um estudo de psicologia sobre invisibilidade pública” (2002) — e, mais tarde, da sua tese de doutorado — “Moisés e Nilce: retratos biográficos de dois garis. Um estudo de psicologia social a partir de observação participante e entrevistas (2008)”.

O pesquisador sentiu na pele o mesmo preconceito

sofrido pela mulher-placa, Ellen. Durante seu estudo, Costa constatou que a invisibilidade pública, um fenômeno que abre espaço para a discriminação entre os indivíduos, tem raízes longínquas. “Há um registro histórico de que sempre existiram sujeitos impedidos na ação e no discurso. Mesmo na antiga Grécia, a meu ver uma sociedade mais democrática, havia escravos, por exemplo. E as mulheres não tinham direito à opinião e nem à livre circulação como os homens”, contextualiza.

Segundo ele, essa situação se acentuou a partir do momento em que o capitalismo ascendeu e se consolidou como modelo de produção e, por consequência, como modo de pensamento. “Na lógica do capitalismo existem sujeitos detentores dos meios de produção. E, obviamente, é essa a classe social que difunde suas ideias, carregadas de preconceito”, explica.

É assim que a ideologia do capital torna-se o pilar do pensamento excludente. “O pensamento capitalista nos diz que tudo se dá por mérito pessoal e que os pobres o são por falta de trabalho ou capacidade. Ou seja, a ideia disseminada é de que, se você trabalha como gari, é porque teve preguiça de estudar e por isso não conseguiu um emprego melhor. Isso segrega os indivíduos e abre espaço para o preconceito”, explica Costa.

O papel de gari, que o psicológo desempenhava semanalmente por um ou dois dias no campus da USP, durou nove anos, ao longo dos quais ele viveu algumas situações embaraçosas que mudaram sua concepção sobre ser notado. “Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência”, afirma.

Costa não era reconhecido pelos colegas de trabalho e alunos quando estava com o uniforme laranja. “Vestido de gari pude sentir todo esse repúdio originário da burguesia. Professores que me abraçavam nos corredores da USP sequer notavam a minha presença quando eu estava varrendo as ruas. Às vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste ou em um orelhão”, conta.

Fatos como esse fizeram o pesquisador concluir que, além de discriminados, esses trabalhadores são, como os chama, socialmente invisíveis. Para ele, a invisibilidade social relaciona-se à forma como esses profissionais são percebidos pela classe dominante. “Por exercerem funções desprovidas de status, glamour e remuneração adequada, eles não são reconhecidos e, por isso, são vistos apenas como ‘elementos’ que realizam trabalhos aos quais membros das classes altas jamais se submeteriam. Resultado: o que não é reconhecido não é visto. Eles se tornam invisíveis”, conclui o Doutor.

A HISTÓRIA DE MARIAAs ruas de São Paulo estão cada vez mais repletas

de sujeira. Encontramos Maria José da Conceição, gari há oito anos, na região central da capital. Seu trabalho é limpar as calçadas e praças nas proximidades da

estação República do metrô de São Paulo. No início da conversa, ela estava inibida e sentia receio em falar. Após alguns minutos, mais solta, desabafou: “As pessoas que passam não costumam nem me desejar bom dia. É mais comum eu falar. Percebo que as pessoas praticamente ignoram a minha presença”.

Quando nos aproximamos da gari, ela estava conversando com outra mulher, que, ao notar a presença do gravador, mostrou-se um pouco incomodada com a situação e saiu de perto. Perguntamos à Maria como é a sua rotina. “É muito cansativa. Trabalho no sol e na chuva”. Aos 46 anos, ela já trabalhou, também, como diarista em casa de família e em outras empresas de terceirização de serviços de limpeza. “Trabalhava de segunda a sexta, mas não era cansativo igual a esse emprego”, comenta.

Trabalhar pesado faz parte da rotina dos garis. Eles têm uma jornada de oito horas por dia e ganham um salário de R$ 545, cesta básica, vale-transporte e convênio médico. Mesmo com esses benefícios, Maria demorou a adaptar-se à profissão. “No começo, pensei em desistir. Só fiquei firme no serviço porque eles me colocaram num lugar mais light [nos arredores da Rua Santa Ifigênia, no centro da capital paulistana]. Tinha gente humilde, um pessoal mais calmo. Fiquei uns três anos naquele setor. Aí eu fui me acostumando”, conta.

Além de trabalharem em pé, quase sem descanso (fiscais observam o seu desempenho e, se eles param, recebem advertência), os garis ainda têm de lidar com a indiferença dos transeuntes e, em alguns casos, com a audácia dos ladrões. Maria conta que o local onde trabalha não é muito seguro. Certo dia foi surpreendida por assaltantes quando estava jantando em um banco da praça. “Peguei meu celular para olhar a hora e já encostou dois para pegar ele. Aí eu tive que agir. Joguei pra cima deles o espeto [que utiliza para recolher folhas] e disse: “Vem roubá gari”. Eles saíram pulando para trás. Eu disse pra eles irem roubar os bancos. Agora eu não facilito mais, eu só olho a hora dentro de um bar”,conta Maria, sorrindo ao relembrar da história e mostrando-se contente por exercer alguma profissão.

A vida dessa pernambucana começou nos engenhos de cana-de-açúcar — em Massaguaçu/PE. “Eu trabalho desde meus sete anos. Naquela época, cortava e plantava cana. Nasci nos engenhos”. O valor do seu salário não chegava, então, a 20 cruzeiros por semana. “Dava para comprar uma roupa e um chinelo, e assim ia trabalhar”, relembra.

O salário baixo e as condições precárias de vida a motivaram a migrar para a capital. Maria queria melhores oportunidades e condições de trabalho. O seu maior projeto era completar o Ensino Médio, que não concluiu devido à dificuldade em encontrar uma escola nas proximidades do engenho. “Onde eu morava não tinha muitas escolas, era preciso andar muito pra estudar. Então, era mais fácil trabalhar do que estudar”, complementa.

Logo que chegou a São Paulo, Maria foi morar em Poá, município da Grande São Paulo, localizado próximo a Mogi das Cruzes, e por lá permaneceu

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durante três anos. Ela veio sozinha e tem orgulho quando lembra aquele momento de coragem. “Me joguei. De dia eu ia fazer faxina e à noite dormia numa pensão. Tentei arrumar emprego em empresa, mas foi complicado porque eu não sabia ler, nem escrever. Foi aí que consegui arrumar uma casa de família. Eles me ajudaram e deram uma oportunidade para estudar”, conta.

Maria morava com a família para qual trabalhava e contava com apoio e compreensão de sua patroa. Após o término do serviço, à noite, ela frequentava as aulas do supletivo e, então, conseguiu concluir o Ensino Médio. “A casa era uma mansão, tinha lugar de sobra e só morava ela e o marido porque as filhas já tinham casado. Eu fiquei lá durante cinco anos e depois vim para São Paulo”, diz

Varrer as ruas de uma cidade com mais de 14 milhões de habitantes não é uma tarefa fácil, muito menos prazerosa. Maria conta que até os próprios moradores de rua a tratam com desrespeito. “Eles mexem muito com a gente. Se a gente chega pra limpá, eles ficam bravos. Teve uma que queria me pegar na porrada quando fui limpar perto dela. Tava muito sujo”.

Ela fala também sobre a falta de estímulo da própria Prefeitura, que contrata fiscais para acompanhar o serviço dos garis, mas não elogia ou melhora as condições de trabalho. O desprezo da sociedade não passa despercebido. Maria diz que muitas pessoas vêem que está limpando e descartam propositalmente o lixo na rua. “Sempre têm aqueles que me olham, pegam um papel e jogam no chão. Parece que fazem de propósito. Podiam pelo menos pedir para jogar no meu saco de lixo”.

O sonho dessa trabalhadora, mãe de três filhos, não é nada ostensivo. “Se eu tivesse a chance de ter estudado há muito tempo atrás, eu gostaria de estudar as máquinas elétricas, para poder abrir uma televisão e descobrir seu defeito”, conta.

Maria é a prova de que as oportunidades podem fazer mais diferença do que a falta de vontade de estudar.

UM SISTEMA QUE EXCLUI“O sistema é excludente por si só”, avalia o Doutor

em história pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), José Amilton de Souza. Segundo ele, o sistema educacional brasileiro não oferece as mesmas oportunidades a todos os cidadãos. “Por muito tempo, a educação pública foi deixada de lado. A parcela do dinheiro destinada a essa área, importantíssima para a construção de um país menos desigual, ainda não é suficiente para que as escolas estaduais e municipais se equiparem às particulares”, comenta.

O professor refere-se ao fato de atualmente o Brasil destinar cerca de 5% do valor do PIB (Produto Interno Bruto) nacional para a educação. Comparados aos últimos quatro anos, os investimentos na área aumentaram timidamente. Em 2007, cerca de 4% de toda a riqueza que o país produziu foi direcionada ao

setor. De acordo com estudo divulgado em 2007 pela

Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil é o país que menos gasta com educação, entre os 34 analisados no total. O investimento anual por estudante (do primário até a universidade), em média, é de R$ 2.488. No Chile, o único outro país sul-americano incluído no estudo, o mesmo gasto chega a R$ 5.470.

Para Souza, a realidade ainda é muito distante da situação ideal, a começar pelos salários dos professores do ensino básico, passando pelas péssimas condições físicas de algumas escolas, até chegar à falta de vagas para todos os alunos. “Diante desse quadro, como podemos comparar um aluno de escola pública a um aluno da escola particular? Impossível. As oportunidades são claramente distintas”, observa.

A verdade, diz ele, é que o sistema exclui a partir do momento em que os detentores de maior poder aquisitivo conseguem pagar por vagas em escolas particulares, claramente melhores que as públicas. “É um ciclo. O aluno da escola particular sempre tem vantagem em comparação ao aluno da escola pública. E isso está mais do que provado. Se você perguntar em uma sala de aula da USP quantos vêm de escola pública, verá que é um número muito pequeno em relação aos que vieram de escola particular”, afirma.

Segundo Souza, a ideia de que os trabalhadores alocados em cargos que não necessitam de formação acadêmica o são por escolha ou por mau desempenho escolar é mais uma forma de o sistema se eximir de responsabilidade. “O sistema capitalista vende essa ideologia da meritocracia para se esquivar da culpa. Dessa forma, as pessoas se tornam estritamente responsáveis pelas condições de vida que conquistam. A responsabilidade passa do sistema para a população”,

Fonte: Inep/MEC

analisa.O Doutor afirma ainda que a elite brasileira,

pautada na ideologia do capital, sempre foi excludente e, por consequência disso, preconceituosa. Para ele, esse ideário poderia ser alterado se o consciente coletivo começasse a perceber o outro como igual, independentemente de classe social ou nível escolar. “Os preconceitos partem da elite. Sempre foi assim no Brasil. Para essa elite, o fato de esses trabalhadores não terem um diploma já os torna menos gente. O que é preciso entender é que todos nós, mesmo os que não têm título acadêmico, temos inteligência, conhecimento, cultura, experiência de vida. Todos possuímos saberes. E é isso que tem de ser valorizado”.

Há debates atuais que podem esclarecer o modo como a elite pensa. Discutir, por exemplo, a inclusão de jovens do Ensino Médio que vêm de escola pública ou mesmo a questão de cotas (para negros e indígenas) nas faculdades públicas é um incômodo para muita gente. “Como um pobre vai estudar em universidade pública? Eles estão tirando o lugar de quem estudou para estar aqui. É essa a forma preconceituosa como a elite vê a inclusão social”, explica Souza. Uma visão que se materializa nas classes sociais mais baixas, que não detêm conhecimento acadêmico. A principal questão que permeia o mundo dos profissionais invisíveis é o descaso e, algumas vezes, a discriminação, ambos provenientes desse tipo de concepção.

VIDA DE ENGRAXATEAndré Trindade Ribeiro, 71 anos, 46 deles

engraxando sapatos na Praça da Sé, centro de São Paulo. “Cada sapato que eu engraxo, recordo os meus tempos de criança, que eu só pensava em brincar. Eu ia pra escola e não ligava para estudar. Hoje sou adulto. E só resta lamentar. Quem não tem estudo nesta terra,

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não pode trabalhar. Quero me inscrever no Senai. Eu quero é me formar. Aí a vida vai melhorar”, rima o trabalhador em tom descontraído.

Alguns passos à frente está o carrinho de Sandoval Rodrigues, 83 anos, vestido com um terno simples e antigo, corte discreto. Ao contrário de seu André, seu Sandoval é um homem de poucas palavras.

Duas figuras de comportamento totalmente distinto, e ainda assim compartilhando da mesma opinião sobre a profissão. Engraxar é um orgulho para esses dois senhores. É possível notar, pelo brilho nos olhos, que eles realmente têm paixão pelo que fazem, mesmo sabendo que é uma profissão que não tem o merecido reconhecimento.

Seu André é daqueles que fazem poesia com tudo. Quando estamos por perto, ele se distrai, conversa com um, com outro, sempre querendo se enturmar nas conversas. A boca, quase sem dentes, está sempre pronta para esboçar um sorriso. Entre poemas sobre diversos temas, como futebol, a cidade de São Paulo e o amor, o engraxate expõe o que o trabalho significa para ele. “Trabalho faz bem pra saúde, não é verdade? O trabalho não é só necessidade. O trabalho é bom pra mente, pro corpo. Nos ocupa”, diz.

Perguntamos também ao Sr. Sandoval qual é a sua impressão sobre seu trabalho. De cabelos brancos, mãos cheias de graxa e expressões faciais tímidas, ele nos conta um pouco sobre sua vida e como se transformou em engraxate. Casado há 60 anos, com uma filha formada em publicidade, o mineiro de Lavras foi até soldado da Reserva da 4ª Região Militar de São João Del Rey e já fez de tudo. “Ah, já fui tudo menos ladrão. Já vendi de tudo nessa vida para sustentar minha família. Sempre na honestidade”. Quando migrou de Minas para São Paulo, o engraxate tinha 40 anos. “Fiquei três meses rodando, rodando e rodando. Procurei emprego, mas não me contrataram. Resolvi ser engraxate e graças a Deus tô aqui. Só vou sair se eu morrer”, afirma.

Para os dois engraxates, a profissão veio para satisfazer as necessidades de sobrevivência. Eles ganham a vida com R$ 5 por engraxada. Na região onde ficam, perto da Catedral da Sé, existem muitos outros engraxates. Quase todos têm uma espécie de carrinho equipado com uma cadeira, um apoiador para os pés dos clientes e um guarda-chuva embutido para protegê-los nos dias mais ensolarados. Eles pagam R$ 60 por mês para guardar toda a parafernália. “A gente

paga esse valor para a prefeitura. É bom porque eles cuidam dos carros, vigiam quando a gente não está. E também tem uma pessoa que leva e traz o carro todos os dias”, explica seu Sandoval.

Trabalhar como engraxate fez de seu André um falador, como ele mesmo diz. Todo dia muitas pessoas sentam diante dele para engraxar os sapatos. Ele tem diversos tipos de clientes, desde os que estão com pressa e não falam nada até os que abrem a alma. “A história que eu já ouvi mais contar aqui nessa cadeira, sabe qual que é? É o cara falar que se separou da mulher. Dor de cotovelo. É aquela dor ruim e ele fala pra desabafar. Agora tem gente que nem olha direito, que está lendo jornal ou que vem só engraxar o sapato e não puxa papo”, conta.

Sandoval engraxa os sapatos de sargentos, coronéis, advogados, médicos, executivos, aposentados. A maioria dos clientes o trata bem, mas existem aqueles que insistem em criticar. “Têm pessoas que são mal-educadas. Elas vêm aqui e desdenham da gente. Mas, quando vejo que não me agrada, eu fico fora. Tento não me importar. O pior é quando falam que eu manchei o sapato delas”, desabafa.

Perguntamos a ele se acha que a profissão de engraxate é valorizada. Sem titubear, a resposta é direta: “O problema é que engraxate não é profissional com diploma. Por isso não somos tão valorizados. Mas somos profissionais autônomos. Eu até me aposentei no INSS como autônomo porque paguei desde cedo”, diz.

Assim como seu Sandoval, seu André já trabalhou com vendas e alguns outros bicos para se sustentar. Mas diferentemente do colega, não é casado nem tem

Poesia de engraxate:

O engraxate passa a graxa no sapato pra ficar bem engraxado/ cada movimento que o pano dá/ vem um

chiado e em seguida/ vem um brilhando!/ o cidadão está bem- vestido/ mas tá todo desajeitado/ está

faltando uma coisa nele/ o sapato engraxado/ e ele não encontrou um engraxate/ e ficou apavorado/ o

serviço ficou adiado/ a profissão engraxate é um serviço de utilidade/ pra exercer a sua profissão/ tem

que ter a liberdade/e eu ainda faço uma poesia/ pra agradar a freguesia/ e pra ter essa inteligência tem

que ser da Bahia.

André Trindade Ribeiro

André, engraxate há 46 anos e brincalhão de nascença

filhos. “Eu tenho uma amiga, mas não moro junto, não”. Ele gosta de ser livre. Saiu de casa muito cedo para não ter que dar satisfação para ninguém. “Como eu não estudei, fui trabalhar. Gosto de liberdade. Então, aprendi a engraxar com um paraibano, que era um bom engraxate que tinha aqui na Praça da Sé”, lembra.

Os engraxates da Praça da Sé trabalham das dez da manhã às cinco da tarde. André, o poeta, não se deixa abalar com o que chama de má educação das pessoas. “A gente não pode ligar pra conversa dos outros. Já engraxei o sapato de muita gente importante, mas não é muita gente que sabe isso. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, já veio aqui. O ex-secretário de segurança pública já engraxou o sapato comigo. É um serviço de utilidade pública. A gente que lida com o público tem que ser educado, comunicativo e não ligar para o que alguns dizem ou fazem. Se tem um mal-educado, a gente deixa pra lá”, desconversa.

No tempo em que ficamos na Sé conversando e rindo das histórias desses dois senhores, pudemos perceber que, além de muito bem-humorados, eles têm uma trajetória parecida, apesar de se expressarem diante do mundo de formas totalmente diferentes. Enquanto o Sr. Sandoval nos contava que as árvores da Praça da Sé foram plantadas depois da inauguração do metrô, em 1979, e que a catedral tem um cemitério embaixo do altar, o Sr. André dava dicas de saúde. “Tem cãibra? Banana é bom pra cãibra . Mas tem que ser a nanica. Eu já sei um bocado de remédio caseiro. Cenoura é bom pras vistas, laranja é bom pra regular o intestino. A gente aprende essas coisas na vida”, se orgulha o engraxate.

CORRENTES DO PASSADOTodos os trabalhadores cujas histórias foram

contadas aqui realizam seu trabalho de forma manual. Ellen, a mulher-placa, utiliza o corpo para pendurar um anúncio. Maria, a gari, recolhe o lixo e as folhas das árvores com as mãos. André e Sandoval engraxam os sapatos dos clientes.

Segundo Luiz Guilherme Brom, doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e especialista em sociologia do trabalho, as tarefas manuais sempre foram mal vistas. “Essa desvalorização do trabalho braçal é muito forte, principalmente no Brasil, onde tivemos um longo período escravidão. Nessa época esse tipo de trabalho era reservado a pessoas obrigadas a isso, que sequer

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eram consideradas pessoas. O desprezo sofrido por esses trabalhadores tem origem aí”, argumenta.

Para ele, a origem histórica da desvalorização do trabalho braçal no Brasil se reflete nos dias de hoje. Você nunca ouviu ninguém dizer que joga papel na rua porque sabe que cabe a alguém limpar isso? Se você for procurar um apartamento de dois dormitórios, com 60 m², verá um quarto de empregada. Isso vem de uma mentalidade escravagista, completa.

Segundo Brom, a verdade é que as classes mais altas sentem necessidade de sinalizar para a sociedade que existem trabalhos aos quais não se submetem.

O especialista explica que, quando os escravos foram alforriados pela Lei Áurea, em 1888, não houve nenhuma iniciativa para reposicioná-los ou incluí-los na sociedade. A partir daquele momento, os ex-escravos se viram em uma situação complicada, pois embora tivessem se libertado das rédeas de seus donos, ao buscarem trabalho para se sustentar, conseguiam empregos nos quais exerciam funções semelhantes aos tempos de escravidão. “Como o trabalho braçal já tinha esse ranço de ser desprestigiado, o valor econômico embutido nele também era”, conclui Brom.

Estamos em 2011 e o quadro continua semelhante. Faxineiras, lixeiros, cobradores, ascensoristas, panfleteiros, empacotadores, entre muitos outros, são mal remunerados e destratados, tanto por exercerem trabalhos braçais, quanto por não alcançarem um padrão parecido com o da classe média.

“TÔ PAGANDO”Em alguns casos, o preconceito se mostra de

maneira mais sutil. É o que percebemos quando conversamos com Maria de Jesus Riberio Souza, 53 anos, ou Jesuína, apelido para os mais íntimos. Há 34 anos ela é responsável pela limpeza de um prestigiado instituto de psicanálise na cidade de São Paulo e logo abre o jogo. “O pessoal que trabalha aqui me trata bem no geral. É um ou outro que nem dá bola. O problema é quando chega gente de fora. Esses olham meio esquisito, até com ar de superioridade. Como se eu tivesse aqui simplesmente para limpar a sujeira que eles fazem”, dispara.

Maria de Jesus diz que procura trabalhar com amor para que sua tarefa seja cumprida plenamente, evitando reclamações futuras. Apesar de seu salário não ser dos melhores e do jeito rude de algumas pessoas, ela se mostra tranquila, mas confessa que às vezes perde a paciência. “Tem uns e outros que não querem sair da sala quando eu tô limpando. Aí ficam reclamando e vigiando. Já pensei muito o porquê disso. Não sou ladra, não vou ficar fazendo barulho, nem nada. É complicado ter de lidar com pessoas diferentes da gente”, enfatiza.

Trabalhando no mesmo lugar desde que chegou a São Paulo vinda da Bahia, Maria de Jesus conta que nunca quis mudar de emprego. Sentimos que por trás dessa declaração existe um receio. Constrangida, ela admite: “É melhor trabalhar num lugar onde eu já conheço todo mundo. Aqui têm pessoas boas, que me tratam bem. Não são todos, mas tem. Ruim vai ser se

CONTRA O PRECONCEITO, O APRENDIZADO VIVIDO

Professora do Colégio Maria Imaculada Dr. Piero Rovers,

Marta Medrado acha que há uma maneira de mudar o

pensamento que coloca certas categorias de trabalhadores

em um patamar inferior: aproximar-se e conhecer a realidade

deles. E ilustra sua crença com um caso prático.

Um dos alunos de Marta vivia dizendo que não gostava de pobre

e espalhava seu preconceito por todos os cantos da escola. O

menino rico ia para a aula cada dia em um carro diferente. “Ele

dizia que o pai perguntava: ‘com que carro você quer ir hoje?!’”,

relata a educadora. Depois de convidá-lo inúmeras vezes para

ser professor voluntário no Centro de Apoio a Juventude (CAJ),

projeto idealizado e desenvolvido na própria escola com o objetivo

de ajudar crianças e adolescentes que não conseguiram vagas

em escolas públicas, ele acabou aceitando. “Em dois anos, esse

menino mudou tanto com a experiência que vocês precisavam

ver. Ele mudou a concepção sobre as pessoas e sobre o que ele

pensava delas. Ele viu, sentiu e presenciou a realidade. Hoje em

dia ele não pronuncia as palavras preconceituosas de antes”,

orgulha-se a professora.

Para Marta, quando nos conectamos com o outro e

experimentamos sair da visão periférica que transforma esses

profissionais em “invisíveis”, passamos a respeitá-los como

pessoas. “O cerne da questão é que esses trabalhadores são

invisíveis porque são descaracterizados, desumanizados. A

partir do momento em que eu conheço aquela realidade, eu

humanizo, eu entendo, eu percebo o outro”.

A professora defende o aprendizado vivido, aquele que

ultrapassa os livros. “As escolas deveriam investir em educar

o aluno, no sentido de levá-lo a conhecer realidades diversas.

Ensinar utilizando a vivência. Sair da sala de aula e ir a museus,

asilos, creches de crianças carentes, viagens históricas. Não

adianta formar uma pessoa sábia em matemática ou física,

mas sem noção de cidadania”.

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eu ‘ir’ pra outra empresa e passar por tudo de novo, de ter que conquistar todo mundo mais uma vez”, prevê.

Não muito diferente dessa, é a realidade das camareiras Graça Graça dos Santos (34 anos) e Francisca Silvânia (35 anos) que trabalham em um hotel grande e sofisticado na zona sul de São Paulo. Conseguimos autorização para entrevistá-las, com a condição de não citarmos o nome do estabelecimento. Todos são muito receptivos. A gerente nos leva para conversar com elas em um ambiente mais calmo, uma suíte sem hóspede. O quarto é espaçoso e bem decorado. Cortinas em tom bege delicado, combinando com os lençóis aveludados. Graça é a primeira a se soltar e nos descrever como é seu dia a dia ali. Ela passa a maior parte do tempo cuidando dos apartamentos de moradores e conta como é seu relacionamento com eles. “Com morador, eu tenho que ter muita paciência. Temos que ouvir e às vezes engolir tudo que eles falam. Tem alguns que reclamam muito e se a gente argumenta, eles já falam: ‘tô pagando´. Aprendi que é melhor me fazer de surda pra continuar trabalhando aqui. Imagina se eu explodisse todas as vezes que alguém me xingasse”, reflete.

Graça trabalha no mesmo hotel há dez anos. Depois de trabalhar os sete primeiros, ela pediu demissão e foi tentar uma chance fora do Brasil, na Itália. “Não me dei muito bem lá. É muito diferente. Tive que aguentar muita humilhação. Aqui a gente aguenta, mas sabe revidar. Lá eu tinha que abaixar a cabeça. Aí me cansei e voltei pra cá. Sorte que consegui voltar para esse mesmo emprego”, conta.

Depois de certo tempo, Silvânia, companheira de trabalho de Graça, se sente mais à vontade e começa a falar. Há oito meses trabalhando como camareira, sua função é cuidar dos quartos de hóspedes não moradores, pessoas que ela diz nem ver. “Não tenho muito contato com eles. No horário que eu faço minhas arrumações, eles já saíram pra trabalhar. Quando eu termino, fecho a portinha deles, deixo tudo direitinho e vou embora”, analisa.

Ao perguntarmos qual é a sensação de entrar no quarto de pessoas sobre as quais não sabe nada, ela declara: “Não sinto nada. Eu entro e penso em fazer o meu trabalho direito pra não ter reclamação. Dou o máximo que posso”. Mesmo sem ser questionada, Silvânia diz, porém, que se sente invisível, pelo menos na maior parte do tempo. “Eles não conhecem a camareira deles. Não sabem nada de mim. Agora, se eu faço algo de errado, aí sim eles vão buscar saber meu nome. Aí eu passo a ser visível”, comenta.

Esse é o momento do desabafo, em que as camareiras dizem que não há gratidão pelo trabalho bem-feito por elas. “A gente limpa com tanto carinho para nada”. E Graça ainda relata o pior constrangimento pelo qual passou na vida profissional: ser acusada de roubo por um hóspede, que até chamou a polícia. “A corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Ele me culpou dizendo que uma corrente de ouro tinha sumido do quarto dele. No outro dia, ele encontrou o colar na casa de um parente. Ele até pediu desculpa. Só que depois que já feriu não tem mais jeito”, relata.

AS MARCAS DA INDIFERENÇAA ferida causada pela humilhação e pelo

desrespeito deixa cicatrizes profundas e pode levar a consequências desastrosas. Foi exatamente essa conclusão a que chegou o psicólogo-gari, Fernando Braga da Costa, ao término de sua pesquisa.

No começo, seus colegas de labor ficaram um tanto desconfiados com a sua presença, pois não sabiam direito o alvo dos seus estudos nem os motivos de ele estar ali. O pesquisador preferiu não falar de primeira para não melindrá-los. Com o passar do tempo e dos episódios vexatórios, se sentiu mais à vontade para contar o que pretendia.

Costa recorda-se quando expôs a Nilse, um dos garis, seus reais objetivos. Naquele dia, eles estavam varrendo os arredores do restaurante dos professores. Em dado momento, um carro passou em alta velocidade, espalhando o lixo que eles tinham recolhido. “Tivemos que subir na calçada para não sermos atropelados. Depois, conversando sobre o ocorrido, perguntei a Nilse se ele sabia o que eu estava estudando. Ele respondeu ‘agronomia’. Então, eu disse: ‘não, estou aqui para estudar essa humilhação’”, conta.

Daí em diante, já mais íntimo dos companheiros, o psicólogo passou a analisar os efeitos que o preconceito provoca nesses trabalhadores. “Constatei que os danos são depreciadores e podem causar depressão e alcoolismo. A violência emocional é muito drástica, muito severa, está o tempo todo ali”, explica Costa.

Segundo ele, quem sofre a humilhação não faz a relação de causa-efeito com a depressão, por exemplo. É um processo inconsciente, mas as marcas ficam e vão gerando novas feridas, que, às vezes, culminam em autodestruição. “Depois de ser tão ignorada e rebaixada, a pessoa começa a se sentir realmente não digna. E, por isso, começa a se autodepredar, o que é um absurdo. Mais uma vez, o ideário burguês se expressa na consciência daqueles que sofrem por consequência dele”, conclui.

A ASCENSORISTA ELEGANTETérreo. As portas se abrem e com um enorme

sorriso a ascensorista impõe sua presença. É impossível não notar que ela está ali. Luzinete Maria dos Ramos, 55 anos, consegue transformar o elevador, aquela máquina fria e cinzenta, em um ambiente agradável. “Bom dia! Tudo bem?”, indaga a todos os passageiros.

Estamos no elevador de um prédio no qual funciona, do primeiro ao quarto andar, a superintendência de um dos maiores bancos do país e uma de suas agências. Localizado na Praça da Sé, o marco-zero da cidade de São Paulo, o edifício acolhe todos os tipos de público, pois também abriga um centro cultural mantido pelo banco. Além disso, entram ali moradores de rua que precisam ir ao banheiro, entregadores de comida que vão cumprir seu ofício e pessoas influentes, como o governador do Estado ou o prefeito da cidade de São Paulo, que promovem ações sociais ou inauguram alguma nova exposição no museu. O sobe e desce não para um minuto sequer.

Cabelos presos em um coque, maquiagem discreta, pulseiras, brincos, anéis e uniforme impecável, Luzinete é uma mulher vaidosa. Ela conta que ingressou na profissão depois de ficar por um ano desempregada e seguindo a sugestão de uma amiga. Desde então, tornou-se ascensorista e, mesmo já sendo aposentada, não deixa de lado o ofício.

O importante para se tornar um bom ascensorista, segundo Luzinete, é a habilidade em lidar com pessoas de valores e classes sociais distintas. “Não é profissão para qualquer um. Você tem que ter jogo de cintura para fazer um bom trabalho”, afirma.

Para a ascensorista, não é a profissão que torna as pessoas invisíveis. “Eu acho que você tem que fazer valer sua presença, se não o outro não vai mesmo te ver. Sempre falo ‘bom dia’, ‘boa tarde’ e sempre me respondem. Quando não respondem, eu falo de novo e as pessoas acabam respondendo. Faço eles perceberem que estou aqui”.

Luzinete relata também que a maneira como se senta, a forma como se veste e fala, se está alegre ou não, tudo isso conta para que ela seja notada. “Se você está bem arrumada, as pessoas te notam mais. Outro dia eu peguei um senhor que precisou do elevador e elogiou o meu broche. Disse que estava elegante e que as outras ascensoristas não se preocupam tanto com a aparência”, conta.

Durante mais de uma hora de entrevista, percebemos a diferença entre as pessoas que utilizam o elevador onde estávamos. Alguns ocupantes de cargos altos no banco responderam ao “boa tarde” da ascensorista, mas não deram muita importância. Era como se respondessem a um robô. Outros, por sua vez, exaltaram o trabalho dela e a maneira como se porta.

Entre o vai e vem do elevador, um funcionário da retaguarda do banco nos acompanha. O nome dele é Antonio Carlos. Ao ver que é Luzinete quem controla a máquina, ele logo sorri e contribui com sua opinião a respeito da ascensorista. “Oh, meu bem! É você que está aqui hoje? Quando você está nesse elevador até o dia fica mais feliz”.

Embora a entrevista tenha sido marcada por uma série de elogios, houve momentos em que a ascensorista precisou ser mais enérgica. Um garoto de 16 anos, entregador de comida de um restaurante próximo, entrou no elevador. A princípio foi educado. Com o passar do tempo e das visitas ao prédio para entregas (umas três) naquele dia, ele começou a querer interferir na entrevista. Toda vez que a ascensorista parava no meio de uma frase para pensar no que e em como dizer, ele grosseiramente dizia: “Fala logo, tia”. A situação gerou desconforto para ela, que declarou que não gosta de pessoas que se metem em assuntos que não lhes dizem respeito e que esse tipo de comportamento (o do garoto) costuma estressá-la um pouco. Nesses casos, segundo ela, o jeito é responder de maneira educada, mas impondo o respeito. Ao garoto ela disse apenas: “Calma, rapaz. Eu estou pensando. Você precisa ter mais respeito com as pessoas e não se intrometer nas conversas dos outros”, repreende.

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ENSAIOMariana Ledo e Marina Sakovic

Quem são aqueles que passam despercebidos? Eles têm rosto? Têm sentimentos? Sim. Todos. A seguir, veja um ensaio fotográfico que fizemos enquanto conhecíamos cada um desses trabalhadores pela cidade de São Paulo. Veremos que, muitas vezes, o que não conseguimos perceber com palavras, fica evidente num olhar. A esperança e a alegria transparecem entre sorrisos e gestos tímidos de quem nunca foi clicado tão de perto. As fotos são registros de um maravilhoso mergulho que fizemos, durante um ano, em um universo rico de experiências e novas visões de mundo.

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Por Juliana Assunção

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