Upload
pedro-rocha-dos-reis
View
219
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
1/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 73
PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1. CICLO DOENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CINCIAS:
QUAL O IMPACTO DE UM ANO DE FORMAO?
TRAINING OF TEACHERS OF THE FIRST CICLE OF PRIMARYSCHOOL IN EXPERIMENTAL SCIENCE: WHAT IS THE IMPACT OF
ONE YAER OF TRAINING?
Dulce Pinto1
Pedro Rocha dos Reis2
RESUMO:O Programa de Formao em Ensino Experimental das Cincias pretendeu contribuir paraa melhoria da educao cientfica de base experimental no 1. Ciclo do Ensino Bsico em Portugal(alunos entre 6 e 10 anos) atravs do desenvolvimento do conhecimento cientfico e didctico dosprofessores. A investigao descrita neste artigo de ndole qualitativa e baseada em estudos de caso estuda as potencialidades e limitaes da estratgia de formao proposta por esse programa.Discute-se a situao particular de duas formandas que, tendo participado no 1. ano do Programa, nopuderam frequentar o 2. ano de formao. Pretende-se, assim, estudar o impacto de apenas um ano deformao no conhecimento profissional e nas prticas de sala de aula dessas formandas. Verificam-se,em ambos os casos, impactos positivos ao nvel do conhecimento cientfico das professoras e doreposicionamento das suas concepes sobre a importncia do ensino experimental. Contudo,detectou-se um conhecimento didctico limitado, especialmente no que respeita avaliao dasactividades experimentais e sua implementao com grupos heterogneos. Os dados obtidos revelam
a pertinncia do envolvimento das professoras num segundo ano de formao.
PALAVRAS-CHAVE: Educao em cincia; ensino experimental; formao de professores; 1. Ciclodo Ensino Bsico.
ABSTRACT: The Teacher Training Program on Experimental Science Teaching intended tocontribute to the improvement of experimental activities in primary science education through thedevelopment of teachers' scientific and pedagogical knowledge. This qualitative research based oncase studies aimed to study the potentialities and limitations of this teacher-training program. Wediscuss the particular situation of two trainees who were involved in only one year of the program. Theaim was to study the impact of just one year of training on the professional knowledge and classroompractices of these trainees. In both cases, there are positive impacts on teachers' scientific knowledgeand conceptions regarding the importance of experimental science teaching. However, it was detecteda limited pedagogical knowledge development, namely in what concerns the assessment ofexperimental science activities and its implementation with heterogeneous groups. The results showthe relevance of the involvement of teachers in a second year of training.
KEYWORDS: Science education; practical activities; teacher education; primary school.
1 Escola Secundria Anselmo de Andrade. E-mail: [email protected]
2 Instituto de Educao da Universidade de Lisboa. E-mail: [email protected]
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
2/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 74
O PROGRAMA DE FORMAO E O DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL
Actualmente, o desenvolvimento profissional descrito como um processo
complexo (baseado numa dialctica entre aco e reflexo) atravs do qual o professor,
individualmente ou com outras pessoas (por exemplo, colegas e investigadores), reformula as
suas orientaes pessoais relativamente s finalidades do ensino e desenvolve, de forma
crtica, o conhecimento indispensvel ao exerccio de uma prtica de qualidade no contexto da
escola (DAY, 1999). Trata-se de um processo interno de crescimento e desenvolvimento
gradual, fundamentado no pensamento e na aco dos professores, com uma dimenso
emocional considervel, uma vez que decorre apenas quando compensa afectivamente,
traduzindo-se em satisfao pessoal e profissional. Este processo tem sido objecto de vrias
investigaes que procuram identificar e estudar um conjunto de conhecimentos prprios da
profisso docente: o conhecimento pedaggico de contedo (SHULMAN, 1986; 1987) ou
conhecimento didctico (PONTE; OLIVEIRA, 2002; MARCELO, 2009). Segundo
Magnusson, Krajcik e Borko (1999), identificam-se cinco vertentes no conhecimento
pedaggico de contedo necessrio para o ensino das cincias:
a) As orientaes relativamente ao ensino e aprendizagem das cincias;b) O conhecimento acerca do currculo de cincias;c) O conhecimento relativo forma como os alunos aprendem tpicos especficos de
cincias;
d) O conhecimento sobre a avaliao em cincia;e) O conhecimento acerca das estratgias adequadas ao ensino das cincias em geral e
de cada tpico em particular.
Para se ajustarem s constantes mudanas sociais e avanos tecnolgicos e
cientficos, os professores de cincias tm que desenvolver, de forma continuada, novos
conhecimentos, capacidades e comportamentos, numa atitude assumida de perito adaptativo(BRANSFORD; DARLING-HAMMOND; LEPAGE, 2005). Para que isso acontea, os
professores tm que encontrar formas efectivas de promoo de conhecimento e de
desenvolvimento pessoal durante o seu percurso profissional, que considerem o conhecimento
prprio de cada professor e que no passam necessariamente pela frequncia de cursos de
formao, por conhecimento externo ou resultante de investigao (PONTE, 1994; LOUCKS-
HORSLEY et al., 1998). Para Shulman (1992) o desenvolvimento profissional dos
professores d-se envolvendo os professores na partilha e na discusso sobre as prticas de
ensino e respectivos fundamentos tericos ou na reflexo sobre a sua prpria prtica ou as dos
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
3/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 75
seus colegas.
Vrios autores (ALARCO; TAVARES, 1987; ANDERSON;
MITCHENER, 1994) consideram que as experincias de desenvolvimento profissional
eficazes devem: (a) basear-se nos conhecimentos e nas capacidades dos professores no incio
dos processos de mudana; (b) fomentar a construo de conhecimento pelo prprio
professor, contribuindo, por exemplo, para o desenvolvimento do conhecimento de contedo
e do conhecimento didctico dos professores; (c) utilizar ou modelar as estratgias que os
professores iro utilizar com os seus alunos; (d) apoiar os professores a assumirem papis de
liderana; (e) proporcionar ligaes entre as vrias partes do sistema educativo; e (f) avaliar-
se e aperfeioar-se constantemente, de modo a influenciar a eficcia dos professores e da
aprendizagem dos alunos, a liderana e a comunidade escolar.
O Programa de Formao de Professores em Ensino Experimental das
Cincias (MARTINS et al., 2006) foi implementado em Portugal, entre 2006 e 2010, com o
objectivo de contribuir para o desenvolvimento de diferentes vertentes do conhecimento
profissional dos professores do 1. Ciclo do Ensino Bsico. Este programa nacional surgiu em
resposta a objectivos governamentais, associando a importncia da Educao em Cincias
neste nvel de ensino necessidade actual de um conhecimento cientfico-tecnolgico que
permita aos cidados participarem de forma activa, fundamentada e responsvel emprocessos decisrios de mbito democrtico. Foi pensado como um instrumento de
desenvolvimento social, pessoal e profissional do professor, privilegiando tambm a
integrao do conhecimento terico com o prtico, a promoo da inovao no ensino num
quadro de formao sobre e para novas prticas de sala de aula (MARTINS et al., 2006, p.
6). Este programa seguiu o modelo de formao reflexivo, propondo-se confrontar os
professores com as suas concepes sobre cincia e educao em cincia e lev-los a
reconhecer que o trabalho investigativo uma estratgia que promove a aprendizagemcientfica dos alunos, ao mesmo tempo que contribui para a formao de juzos crticos e que,
por isso, dever ser adoptado como estratgia privilegiada no ensino das cincias. Associa
vrias estratgias de desenvolvimento pessoal e profissional de professores, visando a criao
de situaes promotoras de construo de conhecimento de contedo e de conhecimento
pedaggico de contedo, que ajudem o professor a transpor o que aprendeu para a sua prtica
e que estejam focadas na sua prtica, como a imerso em actividades de aprendizagem, a
interaco com especialistas e colegas e o apoio personalizado e prolongado a cada professor
por um formador (LOUCKS-HORSLEYet al., 1998; REIS, 2004). Este apoio pretende: (a)
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
4/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 76
facilitar a superao das dificuldades e dos obstculos que surgem durante a actividade
profissional dos professores; (b) contribuir para a promoo de uma atitude reflexiva acerca
da sua actuao; e (c) ajudar os professores a enfrentarem os novos desafios com maior
confiana (ROTH; TOBIN, 2002).
O Programa de Formao utilizou como recurso privilegiado um conjunto
de guies didcticos elaborados para o efeito. Estes guies, para alm de informao terica,
incluem sugestes de actividades susceptveis de se adequarem aos diferentes contexto de
trabalho dos professores formandos. Foi, ainda, distribuda por cada escola dos professores
formandos uma verba para aquisio de material de laboratrio.
O Programa propunha dois mdulos anuais de formao independentes
(podendo os formandos decidir participar apenas no primeiro ano), com sesses terico-
prticas que variavam quanto ao contedo de formao, ao nmero de professores envolvidos
e natureza das tarefas a executar por cada professor (MARTINS et al., 2006). Esta formao
foi implementada por uma Coordenao Nacional da Universidade de Aveiro e por
Coordenaes Regionais sedeadas numa Instituio de Ensino Superior de cada Distrito de
Portugal Continental. Cada equipa regional era responsvel pela formao dos docentes que
leccionavam no respectivo Distrito.
As diferentes sesses (sesses plenrias, sesses de grupo e sesses em salade aula) articulavam vrias estratgias de desenvolvimento pessoal e profissional de
professores (LOUCKS-HORSLEY et al., 1998; REIS, 2004), nomeadamente, a imerso em
actividades de aprendizagem, a interaco com especialistas e colegas e o apoio personalizado
e prolongado a cada professor por um formador. Este apoio pretendia: a) facilitar a superao
das dificuldades e dos obstculos que surgem durante a actividade profissional dos
professores; b) contribuir para a promoo de uma atitude reflexiva acerca da sua actuao; e
c) ajudar os professores a enfrentarem os novos desafios com maior confiana (ROTH;TOBIN, 2002).
Nas sesses plenrias, apresentavam-se e discutiam-se: a) os princpios
organizadores, as finalidades e os objectivos do Programa de Formao; b) os conceitos
associados s temticas das actividades experimentais. Recorreu-se a uma estratgia de
seminrio com a participao activa de especialistas.
Nas sesses de grupo, envolvendo entre 6 a 12 participantes, os professores
eram submetidos ao tipo de abordagem que se pretendia que viessem a implementar com os
seus alunos. Assim, diagnosticavam-se as concepes alternativas dos professores formandos
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
5/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 77
e realizavam-se actividades experimentais destinadas a promover a mudana dessas
concepes. Desta forma, os professores tinham a oportunidade de vivenciar como alunos (e
discutir) todo o processo que, posteriormente, utilizariam nas suas turmas. Nas sesses de
grupo tambm se apoiava cada um dos professores no planeamento de actividades
experimentais destinadas e adequadas s competncias e ao nvel etrio dos seus alunos.
As sesses realizadas nas escolas, destinavam-se a apoiar (intervindo em
situaes inesperadas e exemplificando abordagens ou clarificando conceitos) e observar os
professores durante a implementao das actividades experimentais previamente planeadas
nas sesses de grupo. No final de cada sesso procedia-se a uma reflexo conjunta entre o
formador e o professor com o objectivo de se salientarem os sucessos alcanados e
identificarem formas de melhorar as prticas realizadas.
Quanto ao contedo de formao, o Programa privilegiou trs dimenses
principais, a aprendizagem das cincias no quadro referencial do construtivismo, a natureza
do trabalho prtico a desenvolver pelas crianas do 1. Ciclo do Ensino Bsico e a avaliao
das aprendizagens (MARTINS et al., 2006, p. 6), realando a importncia da educao em
Cincias nos primeiros anos de escolaridade numa perspectiva humanista que integra os
saberes cientficos na cultura.
Aprendizagem das cincias no quadro referencial do construtivismo
O Programa de Formao atribua especial realce ao ensino das cincias
numa perspectiva construtivista, destacando a importncia da identificao e da reconstruo
das concepes alternativas (MARTINS et al., 2006). Quando as crianas chegam escola
apresentam estruturas cognitivas extremamente elaboradas que, no entanto, podem integrar
ideias que no esto de acordo com os conhecimentos cientficos actuais. Estas concepes
alternativas costumam ser fortemente resistentes mudana pois parecem explicar muito doque as crianas observam (REIS, 2008, p.18). Torna-se, por isso, fundamental ter em conta
as ideias e as explicaes sobre os fenmenos naturais que os alunos trazem para a escola e
que, muitas vezes, no so capazes de explicitar (MARTINS; VEIGA, 1999, p. 11). Os
professores devem, pois, identificar eventuais ideias alternativas e, posteriormente, conceber
actividades que facilitem a sua modificao (REIS, 2008, p. 19). Tambm Lunetta (1991, p.
82) refere que o aluno chega Cincia Escolar com conceitos que geralmente no coincidem
com os conceitos das disciplinas convencionais, pois encontram-se influenciados pelos
contextos social e cultural conceito de Cincia Popular , muito importantes na
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
6/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 78
aprendizagem. Logo, o ensino e os programas eficazes devem interceptar o mundo da Cincia
Organizada e o da Cincia Popular possibilitando que cada aluno comprove as disparidades
entre os seus conceitos e os ensinados na escola, (re)formulando-os, em funo dessa
verificao.
Natureza do trabalho prtico a desenvolver pelas crianas do 1. Ciclo do Ensino Bsico
A educao em cincias implica, tambm, o desenvolvimento de
capacidades e atitudes e no s a apropriao de conhecimentos (REIS, 2008), o que poder
ser promovido pela utilizao do trabalho prtico investigativo, como preconiza o Programa
de Formao. Para Reis (2008, p. 17), este tipo de estratgia promove muitas competncias
cientficas [...] levando ao desenvolvimento do pensamento crtico, da autoaprendizagem e da
capacidade de resolver problemas que tm forte aplicabilidade no s em situaes de
natureza cientfica e tecnolgica mas tambm em muitos outros contextos do dia-a-dia.
Tambm Lunetta (1991, p. 88) menciona as vantagens das actividades laboratoriais na
aprendizagem de conceitos cientficos e no desenvolvimento da capacidade de resoluo de
problemas, apresentando algumas instrues de planeamento, de motivao, de gesto, de
estrutura e de ensino para estas actividades prticas, referindo que elas podem aumentar a
probabilidade de ocorrer uma aprendizagem significativa.O programa de Formao atribua especial relevo planificao, ao
desenvolvimento e avaliao ao trabalho prtico investigativo pelo prprio aluno,
promovendo o seu envolvimento na definio de questes-problema, no planeamento e
execuo dos procedimentos a seguir e, por fim, na discusso dos limites de validade das
concluses alcanadas. Possibilitava, ainda, a orientao do trabalho investigativo segundo
diferentes grau de abertura e exemplificava as abordagens proposta atravs dos Guies
Didcticos.
Avaliao das aprendizagens
O Programa de Formao contemplava a avaliao formativa e sumativa das
aprendizagens alcanadas pelos alunos, no mbito do Trabalho Experimental (MARTINS et
al., 2006). Reconhecia a complexidade da avaliao de competncias prticas e processos
cientficos, pelo que propunha uma diversidade de tcnicas de avaliao, algumas das quais
exemplificadas nos Guies Didcticos. Salientava o papel da observao, considerada uma
tcnica de avaliao importante, que os professores e os prprios alunos podem desenvolver.
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
7/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 79
METODOLOGIA
A investigao descrita neste artigo constitui parte de um projecto mais
alargado de ndole essencialmente qualitativa e baseado em estudos de caso centrado no
estudo das potencialidades e limitaes da estratgia de formao proposta pelo Programa de
Formao em Ensino Experimental das Cincias no desenvolvimento profissional de
formandos que nele participaram. Neste artigo discute-se a situao particular de duas
formandas Carla e Dora que, depois de terem frequentado o 1 ano do Programa, no
puderam frequentar o segundo ano de formao. Apesar de desejarem continuar a sua
formao, no puderam faz-lo atendendo insuficiente capacidade de resposta da instituio
formadora face aos imensos pedidos de formao. Nestes dois casos, pretendeu-se estudar o
impacto de um ano nico do Programa de Formao no seu conhecimento profissional e nas
suas prticas de sala de aula.
Como metodologia de recolha de dados, foram efectuadas duas entrevistas
semi-estruturadas a cada uma das professoras e observadas vrias aulas envolvendo
actividades experimentais durante dois anos consecutivos, ou seja, aquele em que decorreu a
formao e o ano seguinte. As transcries integrais das entrevistas foram submetidas a uma
anlise de contedo de tipo categorial (BARDIN, 1977). Ambos os estudos de caso foramconstrudos a partir da triangulao das informaes obtidas atravs das entrevistas e da
observao das aulas.
OS CASOS DE CARLA E DORA
Carla e Dora so professoras do 1. Ciclo h, respectivamente, dezanove e
vinte e cinco anos. Ambas possuem a mesma habilitao acadmica a licenciatura efectuada
em complemento de formao, sem qualquer especializao em Educao em Cincias. Atao ano lectivo de 2007-2008 nico ano de participao no Programa de Formao em
Ensino Experimental das Cincias nunca haviam frequentado qualquer formao no mbito
do ensino experimental das cincias.
Carla professora h dezanove anos. Est colocada numa escola de quatro
lugares, pelo quarto ano consecutivo, onde lecciona um grupo de quinze alunos (onze do 2.
ano e quatro do 4. ano). Dora professora h vinte e cinco anos. Est colocada h dois anos
numa escola de lugar nico onde responsvel por um grupo de nove alunos, distribudos
equitativamente pelo 2., 3. e 4. ano de escolaridade. Estas duas professoras trabalham numa
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
8/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 80
zona rural do Distrito de Santarm.
No ano seguinte participao no Programa de Formao (ano lectivo de
2008-2009), continuaram a realizar actividades experimentais nas suas aulas, embora de
forma menos frequente e rigorosa. Nesse ano lectivo, Carla realizou uma actividade e Dora
duas. Estas actividades incidiram nos temas do programa de Estudo do Meio includos nos
guies didcticos disponibilizados pela Coordenao Nacional do Programa de Formao.
Carla refugiou-se num tema que considera dominar do ponto de vista cientfico, no tendo
recorrido aos temas abordados nos guies do segundo ano de formao (o ano que ainda no
frequentou). Reconhece que a frequncia de um segundo ano de formao seria essencial para
aprofundar o seu conhecimento cientfico sobre os temas abordados. Dora, pelo contrrio,
implementou actividades experimentais sobre temticas exploradas no segundo ano de
formao do Programa, baseando-se nos respectivos guies consultados naInternet.
As duas professoras trabalharam com grupos heterogneos, constitudos por
crianas em anos de escolaridade diferentes e adoptaram estratgias distintas, de acordo com
as suas prprias percepes relativamente s especificidades dos respectivos grupos de
alunos.
Carla realizou a actividade experimental para o grupo-turma e os alunos
limitaram-se a observar e registar os resultados obtidos. Para isso, organizou a sala de aula emU, no centro do qual colocou algumas carteiras onde, conforme ela refere, executou os
procedimentos experimentais. Apesar de reconhecer o trabalho em pequenos grupos como o
mais adequado a este tipo de actividades, justificou a sua opo com a necessidade de
trabalhar, em simultneo, com dois anos de escolaridade. Elaborou as actividades e as folhas
de registo de acordo com as competncias dos alunos mais novos.
Dora dinamizou as duas actividades experimentais em grande grupo, num
crculo. Os alunos realizaram as actividades e ela orientou fortemente o trabalho dos alunosatravs de perguntas dirigidas, garantindo a explorao dos vrios passos do trabalho
investigativo e a execuo correcta dos procedimentos previstos. A professora controlou todo
o processo e no deu autonomia aos alunos para a realizao das actividades. Os guies das
actividades foram adaptados por Dora pois, apesar de seguir o esquema proposto pela
formao, considera as fichas originais pouco atractivas, preferindo acrescentar uma
gracinha de maneira a que sejam mais apelativas. Planeou as actividades e adaptou os
materiais de acordo com os nveis de competncias dos alunos mais velhos, o que justifica
com o excesso de trabalho. Contudo, valoriza esta opo pelo facto destes alunos ajudarem
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
9/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 81
os mais novos. Na sua opinio, considera que a formao contribuiu imenso ao nvel dos
registos das actividades experimentais pois, anteriormente, costumava fazer tudo oralmente.
Tanto Carla como Dora afirmam preocuparem-se com a identificao prvia
das concepes alternativas dos seus alunos, reconhecendo a importncia da formao na
aprendizagem deste aspecto. Contudo, relativamente a este aspecto, utilizaram metodologias
muito diferentes:
1. Carla preferiu pedir aos alunos que escrevessem, na ficha respectiva, umahiptese explicativa da questo/problema em estudo. No entanto, como passou imediatamente
realizao das actividades prticas, sem conhecer ou discutir as hipteses formuladas pelos
alunos, estes no tiveram possibilidade de as testar. As ideias prvias tambm no foram
discutidas depois da realizao das actividades nem confrontadas com os resultados obtidos.
Carla limitou-se a realizar algumas actividades ilustrativas para os seus alunos observarem,
restringindo fortemente as potencialidades educativas das actividades prticas.
2. Dora iniciou as duas actividades experimentais solicitando aos alunosque interpretassem, por escrito, uma situao real relacionada com o tema em estudo. As
diferentes interpretaes foram depois apresentadas oralmente pelos alunos, permitindo que a
professora detectasse concepes alternativas e preparasse as actividades experimentais
adequadas sua superao. Durante as actividades, Dora promoveu a discusso das ideiasprvias dos alunos e a sua confrontao com os resultados finais.
Ambas as professoras recorreram a materiais de uso corrente para a
realizao das actividades experimentais, baseando-se nas sugestes dos guies didcticos.
Apesar das professoras considerarem que implementaram actividades experimentais nas suas
aulas, a natureza do trabalho prtico realizado foi bem distinta.
Carla optou por uma investigao fechada (MARTINS et al., 2006).
Definiu a questo/problema para estudo, indicou o mtodo a seguir, seleccionou os materiais erealizou a actividade, mesmo os procedimentos mais simples. Orientou os alunos no registo
dos resultados atravs de perguntas fechadas e ditando as concluses.
Na opinio desta professora, a formao frequentada despertou-a para a
importncia do ensino experimental das cincias, tornando-a mais rigorosa na implementao
das experincias de acordo com as etapas de investigao propostas pelos materiais de apoio
fornecidos. Revela que gostaria de ter continuado a formao para consolidar o
conhecimento adquirido e que no realiza mais actividades experimentais porque o programa
de Estudo do Meio, para o 2. ano de escolaridade, no se adequa realizao de trabalho
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
10/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 82
experimental, apesar da obrigatoriedade de realizao deste tipo de actividade imposta pelo
Ministrio da Educao.
Dora tambm seguiu uma metodologia fechada de trabalho investigativo,
tendo sido ela a planear todo o procedimento experimental de acordo com as ideias prvias
detectadas. Os alunos realizaram a actividade (tal como a professora a concebeu) e a
observao, o registo e a discusso dos resultados. A discusso baseou-se, fundamentalmente,
no confronto das ideias prvias dos alunos com os resultados obtidos, tendo em vista a
superao de concepes alternativas.
Esta professora reconhece que o Programa de Formao influenciou
decisivamente a sua prpria percepo relativamente ao ensino experimental, uma vez que
actualmente lhe reconhece maior importncia face s actividades das outras reas
disciplinares. Este facto motiva-a a aplicar a abordagem experimental em contedos distintos
dos que o Programa de Formao abrange e afirma que no realiza mais actividades
experimentais devido heterogeneidade do grupo de alunos.
Salienta-se que nenhuma das professoras apoiou os seus alunos na
organizao de uma carta de planificao conforme proposto pelo Programa de Formao
(MARTINS et al., 2006). A planificao das actividades foi realizada, exclusivamente, pelas
duas professoras.A avaliao realizada por Carla e Dora das actividades prticas centrou-se
exclusivamente em contedos, ignorando outras dimenses como as capacidades e as atitudes.
Esta avaliao foi feita de forma oral, sem qualquer registo escrito, alguns dias depois das
actividades terem sido realizadas. As professoras reconhecem a inadequao deste
procedimento mas utilizam-no por ser mais simples. Afirmam que fariam uma avaliao
diferente se continuassem envolvidas no Programa de Formao pois, nesse caso, tambm
teriam que avaliar o desempenho dos alunos relativamente a capacidades e atitudes. TantoCarla como Dora limitaram-se a avaliar os conhecimentos finais dos alunos e no atriburam
avaliao qualquer dimenso formativa.
A estrutura da Formao, com sesses tericas intercaladas com sesses
prticas, a possibilidade de adquirir material para a implementao de actividades
experimentais e de trocar experincias e a disponibilizao dos guies didcticos foram
aspectos positivos da Formao reconhecidos pelas duas professoras. Na sua opinio, a
formadora teve um papel importante no decurso da formao, criando condies de sucesso,
apoiando, esclarecendo e colaborando com os professores, ou seja, assumindo as funes de
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
11/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 83
mentor (LOUCKS-HORSLEY et al., 1998; MARCELO, 1999; ROTH; TOBIN, 2002).
CONSIDERAES FINAIS
Os casos de Carla e Dora evidenciam alguns impactos resultantes da sua
participao no 1. ano do Programa de Formao em Ensino Experimental das Cincias. Em
ambos os casos, estes impactos so particularmente evidentes no reconhecimento da
importncia educativa da realizao de actividades experimentais, no aprofundamento de
algum conhecimento cientfico, na seleco dos temas e dos materiais de registo para as
actividades prticas que propem, no recurso a material de uso corrente para a realizao
dessas actividades e na tomada de conscincia da existncia de concepes alternativas nos
alunos e da sua importncia no processo educativo. Contudo, o impacto do Programa no
conhecimento didctico necessrio implementao de actividades experimentais foi distinto
entre as professoras. Carla limitou-se a realizar uma actividade demonstrativa, sem se
preocupar com as ideias prvias dos alunos e restringindo fortemente a participao destes nas
actividades e, consequentemente, o desenvolvimento das suas competncias de raciocnio e de
comunicao. Manteve-se presa a uma concepo de cincia como um conjunto de factos e
termos que os alunos devem memorizar. Dora, pelo contrrio, envolveu os seus alunos na
realizao das actividades (nomeadamente, na formulao de hipteses e na observao,discusso e registo dos resultados) e estimulou o confronto das ideias prvias dos alunos com
os resultados obtidos. Revelou uma concepo de cincia ligeiramente diferente da sua colega
atravs da explorao dos processos da cincia. No entanto, centrou a avaliao das
actividades experimentais exclusivamente em aspectos substantivos da cincia: os termos, os
fenmenos e os conceitos.
Ambas as professoras evidenciam pouco conhecimento didctico
relativamente dinamizao das actividades experimentais em pequeno grupo e com turmasconstitudas por alunos de diferentes anos de escolaridade. Trata-se de um indicador forte da
necessidade dos formadores trabalharem mais e melhor na promoo de competncias de
concepo e gesto de actividades experimentais destinadas a grupos heterogneos de alunos.
Outro aspecto do conhecimento profissional pouco desenvolvido em ambas as professoras
relaciona-se com a avaliao de capacidades e atitudes durante a realizao das actividades
experimentais.
Apesar das duas professoras revelarem impactos resultantes da participao
num ano do Programa, os dados obtidos neste estudo revelam a pertinncia e a necessidade do
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
12/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 84
envolvimento num segundo ano de formao que reforce o desenvolvimento do seu
conhecimento cientfico e didctico. As dificuldades reveladas pelas professoras dificilmente
sero ultrapassadas sem um apoio mais prolongado e especializado.
A discusso destes dois casos em contexto de formao contnua poder
constituir um bom catalisador de reflexo e discusso sobre as concepes e dificuldades dos
professores relativas integrao da componente experimental nas suas aulas.
Simultaneamente, a anlise deste tipo de estudos poder ser particularmente til aos
formadores envolvidos no Programa, permitindo-lhes reflectir sobre formas de melhorar a sua
actuao e o consequente impacto no desenvolvimento pessoal e profissional dos professores.
A discusso de casos permite que tanto os professores como os formadores repensem as suas
concepes e, eventualmente, mudem as suas prticas educativas nos diferentes contextos de
trabalho (PRESKILL; JACOBVITZ, 2001; REIS, 2004).
REFERNCIAS
ALARCO, I.; TAVARES, J. Superviso da prtica pedaggica. Uma perspectiva dedesenvolvimento e aprendizagem. Coimbra: Almedina, 1987.
ANDERSON, R.; MITCHENER, C. Research on science teacher education. In: GABEL, D.L. (Ed.).Handbook of research on science teaching and learning. New York: MacMillan.1994, p. 3-44.
BARDIN, L.Anlise de contedo. Lisboa: Edies 70, 1977.
BRANSFORD, J.; DARLING-HAMMOND, L.; LEPAGE, P. Introduction. In: DARLING-HAMMOND, L.; BRANSFORD, J. (Ed.). Preparing teachers for a changing world. SanFrancisco: Jossey-Bass Publishers, 2005, p. 1-39.
DAY, C. Developing teachers: the challenges of lifelong learning. London: The FalmerPress, 1999.
Departamento da Educao Bsica [DEB]. Organizao curricular e programas: ensinobsico 1. ciclo. 4. ed. rev. Lisboa: ME, 2004.
LOUCKS-HORSLEY, S. et al.Designing professional development for teachers of scienceand mathematics. Thousand Oaks, CA: Corwin Press, 1998.
LUNETTA, V. N. Actividades prticas no ensino das cincias.Revista de Educao, II(1), p.81-90, 1991.
MAGNUSSON, S.; KRAJACIK, J.; BORKO, H. Nature, sources and development of
pedagogical content knowledge for science teaching. In: GESS-NEWSOME, J.;LEDERMAN, N. (Ed.).Examining pedagogical content knowledge. Dordrecht: kluwerAcademic Publishers. 1999, p. 95-132
8/2/2019 PROGRAMA DE FORMAO DE PROFESSORES DO 1.o CICLO DO ENSINO BSICO EM ENSINO EXPERIMENTAL DAS CI
13/13
Nuances: estudos sobre Educao. Ano XVII, v. 19 , n. 20, p. 73-85, mai./ago. 2011 85
MARCELO, C. Desenvolvimento profissional docente: passado e futuro. Ssifo. Revista deCincias da Educao, 08, p. 7-22, 2009. Consultado em Junho, 2009 emhttp://sisifo.fpce.ul.pt
______. Formao de professores: para uma mudana educativa. Porto: Porto Editora, 1999.
MARTINS, I. P.; VEIGA. M. L. Uma anlise do currculo da escolaridade bsica naperspectiva da educao em cincias. Lisboa: IIE, 1999.
MARTINS, I. P. et al.Educao em cincias e ensino experimental: formao de professores.Lisboa: MEDGIDC. 2006. Acedido em 14 de Abril, 2008, de http://sitio.dgidc.min-edu.pt/experimentais/Paginas/default.aspx
PONTE, J. P. O desenvolvimento profissional do professor de matemtica.Educao e
Matemtica, 31, p. 9-12, 1994.
PONTE, J. P.; OLIVEIRA, H. Remar contra a mar: a construo do conhecimento e daidentidade profissional na formao inicial.Revista de Educao, 11(2), p. 145-163, 2002.
PRESKILL, S.; JACOBVITZ, R. Stories of teaching: a foundation for educational renewal.Upper Saddle River: Merril Prentice Hal, 2001.
______. Controvrsias scio-cientficas: discutir ou no discutir? Percursos de aprendizagemna disciplina de Cincias da terra e da vida. 2004. Tese. (Doutoramento em Didctica dasCincias). Universidade de Lisboa, Faculdade de Cincias, Departamento de Educao, 2004.
______.Investigar e descobrir: actividades para a educao em cincia nas primeiras idades.Chamusca: Edies Cosmos, 2008.
ROTH, W. M.; TOBIN, K.At the elbow of another: learning to teach by coteaching. NewYork: Peter Lang, 2002.
SHULMAN, L. Those who understand: Knowledge growth in teaching.EducationalResearcher, 15(2), p. 4-14, 1986.
______. Knowledge and teaching: Foundations of the new reform.Harvard EducationalReview, 57, p. 1-22, 1987.
______. Toward a pedagogy of cases. In: SHULMAN, J. H. (Ed.). Case methods in teachereducation. New York: Teachers College Press, 1992, p. 1-30
Recebido em dezembro de 2010Aprovado junho de 2011