Programa de Tópicos - Serge Gruzinski

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/24/2019 Programa de Tpicos - Serge Gruzinski

    1/6

    1

    Universidade Federal do ParPrograma de Ps-graduao em Histria

    Programa de curso (45 horas)

    Turma de 2014 (Mestrado/Doutorado) Agosto a Outubro de 2014

    Da histria colonial histria global:

    a mundializao ibrica e a histria da Amaznia (sculos XVI-XXI)

    Prof. Dr. Serge GruzinskiEcole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Frana)Princeton University (EUA)

    Introduo

    Que histria escrever no contexto de um mundo globalizado quando as abordagens nacionais

    e continentais tornam-se insuficientes para alimentar a reflexo sobre o passado e o mundo

    contemporneo? Consideraremos primeiro o caminho metodolgico aberto pelos estudos sobre

    mestiagens, logo analisaremos as questes especificas colocadas por uma abordagem

    sistematicamente luso-espanhola o laboratrio imperial constitudo pela Unio das coroas

    (1580-1640)antes de centrarmo-nos sobre o caso amaznico.

    A antropologia histrica e a histria global: a perspectiva das mestiagens

    Novos paradigmas historiogrficos: os limites da World Historye das histrias conectadas;

    o caminho da histria global; a herana da antropologia histrica.

    O estudo da formao das sociedades coloniais nos leva a estudar os processos de

    mestiagem e a explorar horizontes que implicam pelo menos quatro continentes. No livro O

    pensamento mestio, partimos de textos e imagens para mostrar de que maneira a construo

    social, poltica e cultural no Novo Mundo mobilizou dinmicas europeias, amerndias, africanas

    e asiticas que interagiram nos espaos americanos durante vrios sculos.

  • 7/24/2019 Programa de Tpicos - Serge Gruzinski

    2/6

  • 7/24/2019 Programa de Tpicos - Serge Gruzinski

    3/6

    3

    abordagem global dos mundos ibricos ajuda a reconstituir as dinmicas que animavam os

    novos espaos percorridos pelas naves ibricas tanto no Atlntico quanto no Pacfico. Convm

    lembrar que uma das manifestaes cruciais da modernidade europeia consistiu em abrir rotas

    transformando o globo numa rede, cada vez mais densa, de movimentos de dinheiro,

    mercadorias, crenas e ideias.

    Tentaremos explorar aqui os papis respectivos e complementares da Amaznia, porta do

    Peru, da Flrida porta do serto norte-americanoe caminho setentrional para a sia, e das

    Filipinas, porta da China. Colocaremos os trs casos no contexto de uma expanso ibrica

    que procurou de maneira sistemtica identificar e desenvolver vias estratgicas para estabelecer

    redes de comrcio, monopolizar circulaes continentais e ocenicas e fortalecer bases de

    invaso militarCuba para o Mxico no Caribe, Malaca na Indonesia para a China, a Flrida

    e o Gro Par e Maranho frente aos intrusos franceses, holandeses e ingleses.

    A Amaznia Porta do Peru

    Vejamos agora como a histria da bacia amaznica pode ser lida na mesma perspectiva. A

    carta do cronista Gonzalo Fernndez de Oviedo ao cardeal Bembo (1543) colocou muito cedo

    a zona do rio das Amazonas num contexto planetrio, mas o fez privilegiando o ngulo da rota

    fluvial, falando da navigazione del grandssimo fiume Maragnon. Considerou que a proezaera uma coisa nova para os cristos e per se to grande e maravilhosa. A navegao sobre o

    rio aparece to importante quanto a circum-navegao que fez a nave Vittoria, carregada com

    os sobreviventes da expedio de Magalhes. O cronista que escreve de Santo Domingo para

    Veneza insiste sobre os fabulosos recursos da zona percorrida: a canela (que compara com a

    canela asitica) e o ouro to cobiado. Cabe observar que a preocupao por esta parte do

    mundo foi exatamente contempornea das expedies para a Flrida e as ilhas Filipinas.

    Escreve o cronista Lpez de Gmara :

    El ro de Orellana, si es como dicen, es el mayor ro de las Indias y de todoel mundo, aunque metamos entre ellos al Nilo. Unos lo llaman mar Dulce, y

    le ponen de boca cincuenta y ms leguas; otros afirman ser el mismo queMaran, diciendo que nace en Quito, cerca de Mullubamba.1

    Com o descobrimento das fabulosas minas peruanas (1547), o rio e a bacia cobrem uma

    importncia sem precedente.E alimentam esperanas que atraem muitas naes europeias. No

    1Francisco Lpez de Gmara,Historia de las Indias, Antwerpia, Martn Nucio, 1554, cap. LXXXVI

  • 7/24/2019 Programa de Tpicos - Serge Gruzinski

    4/6

  • 7/24/2019 Programa de Tpicos - Serge Gruzinski

    5/6

    5

    No entanto nos anos 1640 o panorama poltico muda por completo. A regio deixa de ser

    um espao de rivalidades constantes entre as potncias europias. A Inglaterra, a Frana e a

    Holanda se retiram da zona e dirigem os seus olhos e navios para outros horizontes. A

    Restaurao portuguesa acabou com os sonhos de navegao entre o Peru e o Par.

    Porm no se esgotou a capacidade da regio para alimentar projetos planetrios. Ao

    contrrio, carregou-se de um potencial de esperanas e ameaas metafsicas para os espritos

    desejosos de conhecer a histria do futuro. Em Camet, em 1659, o padre Antnio Vieira

    redige as esperanasde Portugal, famoso programa anunciador do Quinto imprio. Em 1661,

    o mesmo Vieira denuncia a existncia no Gro Par da ptria do Anticristo: o teatro das

    palavras em Vieira e a teatralizao do universo, no barroco em geral, fizeram do Gro Par o

    locus do fim dos tempos.6Estes episdios no so nada anedticos, pois, por uma parte, nos

    lembram o papel constante que tiveram as esperanas messinicas e milenaristas relacionadas

    Amrica na expanso ibrica e na difuso duma conscincia-mundo: desde Cristovo

    Colombo at Frey Jaboato, passando pelo limenho Francisco de la Cruz e os apstolos

    franciscanos do Mxico.7Ao mesmo tempo vemos como a Amaznia de porta do Perutorna-

    se porta do cu ou do inferno segundo Vieira.

    Na verdade, esta poderosa dimenso imaginria representa outro trao que liga a regio

    amaznica com a Flrida e as Filipinas numa histria global do Novo Mundo, a capacidade de

    despertar sonhos de riquezas ilimitadas e de salvao da humanidade.

    Como escrever uma histria global da Amaznia

    Podemos contar a histria da Amaznia desde Belm ou desde Manaus. Podemos abordla

    desde Braslia ou de qualquer outra parte do Brasil. O que pretendemos fazer aqui distinto.

    Nos queremos estud-la desde fora, como parte de uma histria internacional e mesmo mundial.

    Hoje, na mdia, fala-se muito da globalizao, insistindo sobre as relaes, os laos que se tecem

    entre todas as partes do globo. Se sabe menos que a Amaznia foi uma das zonas nas quais

    diferentes pases e distintas sociedades do mundo comearam a encontrar-se e a conectar-se.

    Pois bem, desde o sculo XVI, a Amaznia cristalizou a ateno, nunca desinteressada, das

    naes europeias que viram nela uma zona chave do globo que estavam descobrindo,

    explorando e colonizando.

    6Geraldo Mrtires Coelho, A ptria do Anticristo ; a expulso dos jesuitas do Maranho e Gro Par eo mesianismo milenrista de Vieira,Luzo-Brazilian Review, XXXVII, 2000, p. 29.

    7Serge Gruzinski, Qu horas sol, no outro lado ?, Belo Horizonte, Autntica, 2012.

  • 7/24/2019 Programa de Tpicos - Serge Gruzinski

    6/6

    6

    Porque insistir tanto sobre a dimenso global do passado da regio? Como dar conta da

    relevncia deste lugar to privilegiado e ameaado sem entender a singularidade do seu destino

    histrico? No passado a canela, as drogas do serto, a mo de obra indgena barata j que

    escrava atraram colonos, empresas e estados para a Amaznia. A regio sempre teve uma

    existncia fora dela mesma: os espanhis do sculo XVI sonhavam com as espcies e as

    amazonas da floresta, os ingleses esperavam chegar ao Dourado, os portugueses do sculo XVII

    achavam que encontrariam produtos facilmente aproveitveis, enquanto os jesutas acreditavam

    que aqui estava a base do quinto imprio No sculo XIX, os europeus no podiam fazer sem

    a borracha e hoje os metais raros e a diversidade biolgica alimentam a cobia do resto do

    planeta.

    Esta outra histria fica pouco conhecida. Para muitos Brasileiros, a Amaznia s uma

    periferia do pas, uma regio extica, distante e pobre que no se visita, em grande parte coberta

    pela floresta. Para o resto do mundo, a Amaznia exclusivamente conhecida como uma terra

    de ndios onde reina ainda uma natureza virgem, mesmo se muito ameaada pelo

    desmatamento, pelos garimpeiros e pela cobia das grandes empresas multinacionais. Todos

    esquecem que a partir do momento em que os Europeus tiveram conhecimento, mesmo se muito

    superficial e distante, desta regio, a Amaznia chegou a ocupar um lugar singular na histria

    da Amrica e do mundo. Um lugar que desde aquele tempo no perdeu nunca.

    Bibliografia

    Serge Gruzinski.A Guerra das imagens. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.

    . O pensamento mestio. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

    . Que horas so l, no outro lado? Amrica e Isl no limiar da poca moderna. Belo

    Horizonte: Autntica, 2012.

    .Las cuatro partes del mundo. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 2011.. From The Matrix to Campanella: cultural hybrids and globalization.European Review,

    vol. 14, issue 1 (2006), pp 111-127.

    A.J.R. Russel-Wood. Um mundo em movimento: os portugueses na Africa, Asia e Amrica

    (1415-1808). Miraflores: DIFEL, 1998

    Peter Sloterdijk.Esferas II. Madrid: Siruela, 2004, tomo II.

    Carl Schmitt.El nomos de la tierra. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1979.