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1 PROJETO SAFRA DO CAFÉ Escola Estadual de Ensino Médio Santíssima Trindade - IÚNA - ES Pesquisadoras: Heloisa Moulin de Alencar (Ufes/PPGP), Luciana Souza Borges (Doutoranda do PPGP), Barbara Frigini De Marchi, Mariana Santolin Romaneli e Mayara Gama de Lima (Alunas de iniciação científica do curso de Psicologia da Ufes). Relatora da Escola: Diná Silveira de Barros (Diretora – 2007-2010) Participantes entrevistados: Diretora, professora, três alunos, familiar de aluno e membro da comunidade externa. 1 "O primeiro respeito que tentamos passar para o aluno é por ele mesmo. Ao próprio corpo e à sua vida. Depois, que não deve ter vergonha do seu trabalho, pois o mesmo é digno”. (Diretora Diná) Figura 1: Bandeira do Brasil confeccionada com grãos de café pelos alunos da Escola de Ensino Médio Santíssima Trindade. 1 As entrevistas foram realizadas no mês de novembro do ano de 2010. As pesquisadoras e a relatora agradecem a acolhida e a significativa colaboração dos participantes entrevistados, sem os quais não seria possível este estudo e o presente relato. Informanos ainda que uma pesquisa foi realizada nos arquivos da escola onde foi possível acessar fotos, anotações e informações importantes para a elaboração do relato em questão.

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PROJETO SAFRA DO CAFÉ

Escola Estadual de Ensino Médio Santíssima Trindade - IÚNA - ES

Pesquisadoras: Heloisa Moulin de Alencar (Ufes/PPGP), Luciana Souza Borges (Doutoranda

do PPGP), Barbara Frigini De Marchi, Mariana Santolin Romaneli e Mayara Gama de Lima

(Alunas de iniciação científica do curso de Psicologia da Ufes).

Relatora da Escola: Diná Silveira de Barros (Diretora – 2007-2010)

Participantes entrevistados: Diretora, professora, três alunos, familiar de aluno e membro da

comunidade externa.1

"O primeiro respeito que tentamos passar para o aluno é por ele

mesmo. Ao próprio corpo e à sua vida. Depois, que não deve ter

vergonha do seu trabalho, pois o mesmo é digno”. (Diretora Diná)

Figura 1: Bandeira do Brasil confeccionada com grãos de café pelos alunos da Escola de Ensino Médio Santíssima Trindade.

1 As entrevistas foram realizadas no mês de novembro do ano de 2010. As pesquisadoras e a relatora agradecem a acolhida e a significativa colaboração dos participantes entrevistados, sem os quais não seria possível este estudo e o presente relato. Informanos ainda que uma pesquisa foi realizada nos arquivos da escola onde foi possível acessar fotos, anotações e informações importantes para a elaboração do relato em questão.

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Resumo

Trata-se da análise de uma experiência de educação moral, intitulada Safra do Café, que vem ocorrendo desde 2007 em uma escola estadual de ensino médio, localizada na mesorregião sul do Espírito Santo. A escolha da experiência justifica-se por fazer parte do Projeto Político Pedagógico da Escola, ocorrer por via de métodos democráticos, provocar mudanças nas ações e juízos dos alunos e ter longa duração. O relato origina-se de entrevistas realizadas com a coordenadora do Projeto/diretora da Escola, uma professora, três alunos, um familiar de aluno e um membro da comunidade externa. A experiência é executada no convívio

escolar, possibilitada, principalmente, pela divisão em subprojetos trabalhados por grupos de alunos, professores, funcionários e membros da comunidade externa, por meio da transversalidade dos conteúdos nas diversas disciplinas escolares e das disciplinas de

Sociologia e Filosofia. Os resultados obtidos indicam que, após o início da experiência, houve erradicação da evasão escolar, principalmente na época da safra do café, aumento da frequência às aulas e redução do índice de reprovação; atribuição de maior credibilidade à Escola por parte de alunos e da comunidade; aumento da cooperação entre alunos, professores, funcionários e comunidade externa, possibilitando o respeito mútuo; valorização da própria cultura; superação do sentimento de vergonha quanto a ser trabalhador rural; desenvolvimento do autorrespeito e da autoestima; criação de oportunidades para o exercício da cidadania, com conhecimento de direitos e deveres; aumento da responsabilidade e do conhecimento dos limites; valorização e incremento da solidariedade; estabelecimento de projetos de vida, como o de cursar o ensino superior, que levaria os alunos a terem esperança em uma vida melhor e a considerarem a possibilidade de ser pessoas melhores (busca de representação de si com valor positivo). Por sua vez, apontam algumas dificuldades e limites da experiência em questão, no que diz respeito aos procedimentos, à execução, aos participantes e à avaliação. No entanto, permitem concluir que, apesar desses limites e dificuldades, o Projeto Safra do Café pode ser considerado como bem sucedido tanto pelos resultados anteriormente mencionados quanto pela constatação de que esses resultados constituíram soluções para problemas sociomorais contextuais.

Contexto

A Escola Estadual de Ensino Médio (EEEM) Santíssima Trindade está situada em uma

zona rural, no distrito de Santíssima Trindade, no município de Iúna, localizado na

mesorregião sul do Espírito Santo. Parte desse Município compõe o Parque Nacional do

Caparaó (inserido entre os estados do Espírito Santo e de Minas Gerais). A maior riqueza da

economia local é o café, principal gerador de emprego e renda. Durante muitos anos, o

Município foi o primeiro do Estado na produção do café Arábica.

A EEEM Santíssima Trindade foi fundada em 2006 e é a única que oferece ensino

médio no distrito. Funciona no período noturno, no primeiro andar do prédio. Atende, assim,

a 107 alunos que cursam os 1.º, 2.º e 3.º anos do ensino médio, contando para isso com um

corpo docente de treze professores. Nesse mesmo espaço físico funciona, durante o dia, a

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Escola Municipal Elza de Castro Scardini e, à noite, no segundo andar do prédio, uma turma

de alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA). As Figuras 2, 3, 4 e 5 retratam alguns

espaços internos e externos da EEEM Santíssima Trindade.

Figura 2: EEEM Santíssima Trindade.

Figura 3: Espaço interno da EEEM Santíssima Trindade.

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Figura 4: Espaço externo da EEEM Santíssima Trindade.

Figura 5: Espaço da EEEM Santíssima Trindade, em cujo entorno se observa uma plantação de café.

Por que e como o Projeto começou

O Projeto Safra do Café teve início em 2007, idealizado pela diretora da Escola, a

professora Diná Silveira de Barros, para prevenir a incidência do alto índice de evasão escolar

resultante do trabalho dos alunos no campo durante a colheita do café. Essa situação ocorria

tendo em vista o fato de a maior parte das famílias ter como principal fonte de renda a

produção de café. No período da colheita, os alunos apresentavam desânimo em estudar, além

de vergonha em dizer que eram trabalhadores rurais, conforme o relato da diretora:

“Quando começamos no ano de 2007, identificamos o problema: os funcionários

da Escola tinham medo de perder o aluno na época da safra do café, já esperavam

por isto. Era comum ouvir que, nesse período, pelo menos a metade dos

alunos evadiam. Até os alunos não usavam o nome safra com satisfação pela

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época da colheita dos frutos que lhe davam o sustento; eles usavam o termo

‘panha’ do café, com desânimo. E já falavam de forma temerosa: ‘Ah! vai chegar

a panha do café..." (Diretora Diná).

Então, esse Projeto decorreu do fato de vários alunos abandonarem a escola no período

da safra do café, costume justificado pelo trabalho árduo e improvisado que os envolve por

cerca de três meses. Depois dessa época, às vezes endividado e/ou doente, o aluno esperava

pelo início do ano letivo seguinte. A Escola, por sua vez, não se conformando com essa

realidade, propôs o Projeto a fim de modificar a visão do aluno, que se encontrava atrelada à

evasão que ocorria na instituição de ensino. Dessa forma, estabelecia como solução o

oferecimento de suporte para o trabalho que os alunos precisavam realizar por ocasião da

safra de café e, como necessidade, a permanência desses alunos na escola. Ou seja, informava

o trabalhador, que muitas vezes não sabia como melhor aproveitar a sua renda, deixando

assim de ter um ganho real, e atuava como seu colaborador.

Inicialmente, foi realizado um levantamento com os alunos sobre a jornada de trabalho

necessária para a colheita do café e também sobre seus horários de aula. Assim, por meio de

um questionário, os alunos responderam, entre outras perguntas, a questões relativas aos

seguintes conteúdos: se trabalhavam na lavoura; caso trabalhassem, que atividades

desenvolviam; qual o horário de saída do trabalho; em que horário chegavam a casa após o

trabalho; que condução utilizavam para ir à escola; de que ajuda necessitavam para poder

permanecer na escola. Posteriormente, esses alunos foram atendidos individualmente para

tratar dessas questões. Dessa forma, como primeira ação resultante do diagnóstico do

problema principal (evasão), todos os professores foram avisados de que alguns alunos não

estariam presentes no início das aulas, necessitando, portanto, de algum tempo de tolerância,

tendo em vista seu horário de trabalho no campo. De acordo com a diretora, esse processo

acontecia da seguinte forma:

“A gente entrevistava aluno por aluno: se ele trabalhava na lavoura, o que

fazia, a que horas saía, a condução que usava para vir para a escola... Era

aquela entrevista pessoal mesmo. Antes de chegar à safra, se precisaria de

ajuda para poder permanecer na escola... Aí eles foram colocando: às

vezes, entrar na segunda aula ou chegar 15 minutos atrasado; se perdesse

alguma prova, ter o direito de fazer novamente ou de requerer uma segunda

chamada; se perdesse uma atividade avaliativa, ter a chance de fazê-la

novamente. Aí nós levantamos os dados todinhos... até temos arquivadas

algumas respostas bem interessantes deles.” (Diretora Diná)

É importante ressaltar que, no período anterior ao do Projeto, a Escola havia começado

o ano letivo com um número de alunos e terminou com a metade, o que demandou, de fato,

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uma urgente proposta de mudança nessa condição. Com a realização do levantamento das

necessidades dos estudantes e o posterior prognóstico, detectou-se o desafio a ser enfrentado

pela Escola. Então a diretora começou a construir o Projeto, juntamente com os professores e

o pedagogo da Instituição. Depois da elaboração do Projeto, os alunos foram informados

sobre os objetivos e orientados sobre as atividades propostas no planejamento.

A constituição do Projeto: temas, meios e atividades desenvolvidas

O Projeto Safra do Café inclui-se no Projeto Político Pedagógico da Escola. Dele

participam diretora, professores, alunos, funcionários e a comunidade externa. Um dos

objetivos que se propõe alcançar é promover a aproximação da Escola com a comunidade

local. A diretora expõe a esse respeito:

“A experiência já faz parte da escola, dá certo. Todo ano, o aluno tem que

se envolver com a comunidade também. Faz bem para a escola, faz bem

para o aluno, faz bem para a comunidade. O Projeto desenvolve tudo isso.

Ele traz a comunidade para a escola.” (Diretora Diná)

A experiência ocorre no convívio escolar, possibilitada, principalmente, pelo

desenvolvimento de subprojetos, que vêm sendo trabalhados por grupos de alunos,

professores, funcionários e membros da comunidade externa, por meio da transversalidade

dos conteúdos nas diversas disciplinas escolares e das disciplinas de Sociologia e Filosofia.

Os temas dos subprojetos que se realizam a cada ano são planejados pelos professores

e discutidos posteriormente com os alunos. A Figura 6 expõe um painel com os títulos dos

subprojetos apresentados no Projeto Safra do Café I desenvolvido em 2007. Por sua vez, as

Figuras 7 e 8 retratam cartazes sobre o Projeto implementado nos anos de 2008 e 2010,

respectivamente.

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Figura 6: Subprojetos do Projeto Safra do Café I de 2007.

Figura 7: Cartaz do Projeto Safra do Café II de 2008.

Figura 8: Cartaz do Projeto Safra do Café IV de 2010.

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Os procedimentos mediante os quais os temas são trabalhados também são discutidos

entre professor e alunos. É a partir dessa dinâmica, ou seja, por meio do diálogo, de debates e

de discussão, que a melhor proposta de execução é escolhida.

Até o presente momento, durante os quatro anos de desenvolvimento do Projeto,

foram realizadas atividades, tais como exposições (Figura 9), montagem de maquetes (Figuras

10 e 11), apresentação de poesias (Figura 12), teatro de fantoches (Figura 13) e de peças

teatrais, além de entrevistas, crônicas, textos, músicas e paródias. Uma das atividades que se

vem repetindo todos os anos é a “mostra culinária”: pratos que levam o café em seu feitio e a

alimentação necessária ao trabalhador rural são experimentados e analisados nessa atividade.

Neste último caso, o Projeto apresentou alimentos que o trabalhador deveria levar para a

lavoura e consumir em casa, discutindo sobre eles, de maneira a privilegiar uma forma mais

econômica e mais viável de se alimentar (Figura 14).

Figura 9: Exposição de pés de café (Safra do Café I – 2007).

Figura 10: Maquete representando uma fazenda de café (Safra do Café I – 2007).

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Figura 11: Maquete: composteira orgânica e secador ecológico/não ecológico

(Safra do Café III – 2009).

Figura 12: Varal de poesias (Safra do Café I – 2007).

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Figura 13: Atividade com fantoches (Safra do Café III – 2009).

Figura 14: Atividades envolvendo culinária, economia e vida saudável

(Safra do Café II – 2008).

Os alunos vinculados ao Projeto contam com a participação da comunidade externa

nos momentos tanto de confecção quanto de exposição dos trabalhos realizados. São

desenvolvidas atividades de pesquisa sobre objetos ligados à produção do café ou

confeccionados a partir de sua madeira, e ainda entrevistas com os moradores da comunidade.

Os temas trabalhados por meio dessas atividades estão sempre ligados ao contexto

sociocultural dos alunos. Nesse sentido, envolvem a valorização do trabalho específico da

safra do café e buscam a melhoria da autoestima e do autorrespeito (LA TAILLE, 2009) dos

trabalhadores. Além disso, o Projeto preocupa-se em realizar o levantamento dos gastos com a

produção do café, do ponto de vista do proprietário e do meeiro, em propiciar a

conscientização ambiental e, acima de tudo, em buscar a valorização da cultura local.

Principais resultados

Um dos principais resultados alcançados com a realização do Projeto foi a erradicação

da evasão escolar, ou a garantia da permanência do aluno na escola. Desde 2007, quando teve

início o Projeto, a evasão dos alunos vem diminuindo gradativamente, de tal modo que, em

2010, não houve relatos de estudantes que tivessem abandonado a escola por causa do

trabalho. Além disso, também pôde ser constada uma redução no índice de reprovação

escolar.

Os alunos e toda a comunidade passaram a acreditar no ensino ministrado pela

Instituição, considerando que ela pode oportunizar-lhes melhores condições de vida. Os

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estudantes que participam do Projeto mencionam a possibilidade de poder aplicar os

conhecimentos adquiridos na escola em sua realidade cotidiana. Ademais, informam a

respeito das mudanças ocorridas no relacionamento entre si e entre eles e os professores,

mudanças que proporcionam o respeito mútuo.

Com a diminuição da evasão escolar e maior participação dos alunos na escola

também foi possível observar uma melhoria no desempenho desses alunos em avaliações do

Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e da Programa de Avaliação da Educação Básica

do Espírito Santo (PAEBES), por exemplo. Esses resultados valorizaram a Escola diante da

comunidade, que também passou a participar de forma mais frequente da dinâmica da

Instituição.

Destaque-se, ainda, que os resultados alcançados foram publicados no jornal local A

Notícia, em matéria intitulada Arraiá da alegria movimenta Escola da Santíssima Trindade,

2010, fato que despertou a curiosidade e o interesse das autoridades e também de

representantes de outras escolas.

Assim, foram alcançados até o presente momento os seguintes resultados: erradicação

da evasão escolar, principalmente na época da safra do café, com aumento da frequência às

aulas e queda do índice de reprovação; atribuição de credibilidade à escola por parte de alunos

e da comunidade, e aumento da cooperação entre alunos, professores, funcionários e

comunidade externa, possibilitando o respeito mútuo. Por sua vez, verificaram-se outros

resultados2:

(1) valorização da própria cultura (ARAÚJO, 2000; GOERGEN, 2007);

(2) superação do sentimento de vergonha quanto a ser trabalhador rural (ARAÚJO, 1999; LA

TAILLE, 2002);

(3) desenvolvimento do autorrespeito e da autoestima (LA TAILLE, 2006, 2009);

(4) criação de condições propícias para o exercício da cidadania, com conhecimento de

direitos e deveres (CAMINO et al., 2004);

(5) aumento da responsabilidade e do conhecimento dos limites (LA TAILLE, 1998);

(6) valorização e incremento da solidariedade (D’AUREA-TARDELI, 2006; TOGNETTA,

2006; VALE, 2006; VALE; ALENCAR, 2008) e

(7) estabelecimento de projetos de vida (ABREU, 2009; ANDRADE, 2009; MIRANDA,

2007), como, por exemplo, o de cursar o ensino superior, que levaria os alunos a terem

2222 Relacionamos aspectos dos resultados da experiência ora relatada a alguns autores que discutem o

conteúdo destacado no contexto de seus respectivos estudos.

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esperança em uma vida melhor e a considerarem a possibilidade de ser pessoas melhores, ou

seja, busca de representação de si mesmo com valor positivo (LA TAILLE, 2009).

Dificuldades e limites

Uma das principais dificuldades apontadas por alunos, professores, familiares e a

própria direção escolar é o fato de o aluno ser também trabalhador e, por isso, não ter tempo

suficiente para dedicar-se aos estudos. No contexto de uma escola situada na zona rural, a

maior parte dos alunos reside em localidades distantes. Por terem que trabalhar durante todo o

dia na plantação de café e só poderem voltar para casa no final do dia, já chegam bastante

cansados à escola no início da noite. Além disso, devido à distância entre a residência e a

escola, os alunos dependem de transporte específico, que é fornecido pela instituição de

ensino de modo que cheguem a tempo para o início das aulas. Essa situação torna-se ainda

mais complexa quando os alunos são solicitados a levar algo diferente para a escola, ou a

realizar alguma visita externa com o objetivo de entrevistar alguém. Nesses casos, há

necessidade de se solicitar transporte para tais finalidades, o que se torna mais um desafio

para a instituição escolar.

Outra dificuldade citada refere-se ao horário das reuniões de professores para o

planejamento das atividades, já que a maioria deles leciona em três horários e em escolas

distintas. Por serem professores contratados por designação temporária, precisam lecionar em

escolas e turnos diferentes para completar a carga horária. Com vistas a contornar essa

situação, a diretora sugere que o planejamento deva ser elaborado por grupo de professores de

determinado turno, em dias diferentes. Nesse caso, seu papel passaria a ser o de intermediária

nas possíveis discussões que advêm desses momentos. Quanto aos alunos, são orientados a se

reunirem no horário do recreio, de forma que possam discutir as questões relativas à

continuidade e ao bom funcionamento do Projeto.

Um limite encontrado diz respeito à ausência de registro da avaliação do Projeto

propriamente dito. Segundo as palavras da diretora Diná:

“Nós temos uma avaliação assim: Quando nós realizamos Conselho de Classe, a gente sempre faz avaliação do trabalho. Foi bom? O que poderia ter melhorado? Pontos positivos, pontos negativos... Mas não foi registrado isso não. É coisa mais verbal entre a gente que conversa: ‘Aquilo ali eu fiz e não deu certo, da próxima vez eu vou fazer de outro jeito’. Então isso ocorre nas reuniões de planejamento, de Conselho de Classe. Essas reuniões ocorrem a cada três meses. Mas temos reuniões de planejamento a cada

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quinze dias, por área. Aí tem mais contato com o professor e pode se discutir”.

Considerações gerais

Araújo (2000) e Goergen (2007) argumentam que a escola é uma instituição muito

importante para a formação de saberes escolares, mas que também se constitui como um

espaço em que se compartilham valores culturais e sociais, ou seja, é um local privilegiado

para o desenvolvimento de experiências de educação moral. Sendo assim, compreendemos

que a escola é uma das responsáveis pela formação moral dos indivíduos.

Tendo como fundamento esse pressuposto, o Projeto Safra do Café chamou a atenção

das pesquisadoras principalmente por três razões: trabalha valores ligados ao contexto

sociocultural dos alunos, vem sendo realizado por um período de quatro anos consecutivos e

faz parte do Projeto Político e Pedagógico da Escola.

Araújo (2001) investigou a relação entre o ambiente escolar cooperativo e o

desenvolvimento do juízo moral infantil, ressaltando a importância que programas de

educação moral têm na aquisição da autonomia do juízo moral pelos alunos quando a

cooperação entre eles é incentivada.

Nesse sentido, o Projeto em questão fornece indícios de que contribui para que os

alunos se tornem cidadãos, na medida em que eles desenvolvem o respeito mútuo e a

cooperação enquanto participam das atividades que lhes são propostas. A esse respeito, foram

relatadas formas de trabalho vinculadas ao Projeto, em que se valorizou a participação dos

alunos, inclusive na sugestão de temas e de maneiras de discuti-los, não parecendo haver,

nesse sentido, imposição de tarefas apresentadas pela direção e pelos professores. Esse tipo de

procedimento vem ao encontro das ideias de Piaget (1030/1996), para quem as atividades

escolares em grupo são as mais indicadas para o desenvolvimento moral, uma vez que

estimulam a cooperação e a descentração. Logo, consideramos que a EEEM Santíssima

Trindade, por meio do Projeto Safra do Café, vem colaborando para que seus alunos tenham

oportunidades de uma construção moral voltada para a autonomia.

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