135
CLARISSIMO SPECULO BONITATIS DEI: O MUNDO DE TOMÁS DE CELANO E A SUA LEITURA DE MUNDUS FLÁVIO AMÉRICO DANTAS DE CARVALHO

PROPOSTA DE PADRONIZAÇÃO DAS DISSERTAÇÕES · Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão ... (original latino e tradução). Conforme

  • Upload
    lamcong

  • View
    212

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

CLARISSIMO SPECULO BONITATIS DEI: O MUNDO DE TOMS DE CELANO E A

SUA LEITURA DE MUNDUS

FLVIO AMRICO DANTAS DE CARVALHO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PR-REITORIA DE PS-GRADUAO

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA MESTRADO

REA DE CONCENTRAO: HISTRIA E ESPAOS

LINHA DE PESQUISA: CULTURA, PODER E REPRESENTAES ESPACIAIS

CLARISSIMO SPECULO BONITATIS DEI: O MUNDO DE TOMS DE CELANO E A

SUA LEITURA DE MUNDUS

FLVIO AMRICO DANTAS DE CARVALHO

NATAL, 2011

FLVIO AMRICO DANTAS DE CARVALHO

CLARISSIMO SPECULO BONITATIS DEI: O MUNDO DE TOMS DE CELANO E A

SUA LEITURA DE MUNDUS

Dissertao apresentada como requisito parcial para

obteno do grau de Mestre no Curso de Ps-Graduao em

Histria, rea de Concentrao em Histria e Espaos,

Linha de Pesquisa Cultura, Poder e Representaes

Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

sob a orientao do Prof. Dr. Henrique Alonso de

Albuquerque Rodrigues Pereira.

NATAL, 2011

Catalogao da Publicao na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Carvalho, Flvio Amrico Dantas de.

Clarissimo speculo bonitatis Dei : o mundo de Toms de Celano e a sua

leitura de mundus / Flvio Amrico Dantas de Carvalho. 2011.

135 f.: il.

Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal do Rio

Grande do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Programa de

Ps-Graduao em Histria, Natal, 2011.

Orientador: Prof. Dr. Henrique Alonso de Albuquerque Rodrigues Pereira.

.

1. Minoritismo. 2. Hagiografia. 3. Igreja e o mundo. 4. Ascetismo. 5.

Celano, Toms. 6. Francisco, de Assis, Santo. I. Pereira, Henrique Alonso de

Albuquerque Rodrigues. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

III. Ttulo.

RN/BSE-CCHLA CDU 271.3

FLVIO AMRICO DANTAS DE CARVALHO

CLARISSIMO SPECULO BONITATIS DEI: O MUNDO DE TOMS DE CELANO E A

SUA LEITURA DE MUNDUS

Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre no Curso de

Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comisso

formada pelos professores:

_________________________________________ Prof. Dr. Henrique Alonso de Albuquerque Rodrigues Pereira

__________________________________________

Prof. Dr. Andr Luis Pereira Miatello

________________________________________ Profa. Dra. Mrcia Severina Vasques

____________________________________________ Prof. Dr. Renato Amado Peixoto (Suplente)

Natal, 15 de agosto de 2011

Essa obra, da primeira ltima linha,

E todo esforo que h nela

Dedicados so a quem vida sublinha

E por quem meu corao anela.

minha Neguinha

AGRADECIMENTOS

Agradecer , antes de tudo, lembrar. No francs, o verbo rapeller, que, entre outras

coisas, significa recordar, indica, na sua etimologia, um bom significado para saudade:

chamar (apeller) de novo (re-), fazer voltar.

Enquanto escrevo, volto aos momentos em que meu pai, Joo Amrico, ficava, na

chuva, me esperando voltar da Universidade. Mesmo j sendo tarde da noite, ele se abrigava

embaixo de uma sacada s para me proteger dos infortnios da vida. Parece que estou vendo,

ao lado dele, minha me, Maria de Lourdes, que, mesmo tendo a sade debilitada, acordava

cedo para trabalhar e conseguir aumentar a pouca renda da nossa casa e, assim, me permitir

gastar mais tempo e recursos nos estudos. Agradeo a vocs por, apesar de no terem

entrando na Universidade, me permitirem concluir o meu curso e meu mestrado.

Agora, vou a outros momentos, marcados pela cumplicidade e pelo amor. A Neguinha,

Jssica Rgis, a quem dedico esse trabalho, foi fundamental para a concluso, me ajudando

com notas de rodap e outras coisas mais. Tambm foram importantes o apoio, carinho e afeto

que ela me deu.

Chamo para que venham aqui, j, os momentos em que meu irmo (Fbio Henrique),

minha irm (Flaviana Nadir), meu cunhado (tambm Fbio Henrique) e minha sobrinha

(Sophia) me ajudaram com o trabalho por meio de incentivos e momentos de alegria, que me

ajudaram muito a caminhar.

Agradeo ao Professor Henrique Alonso pelas valiosas orientaes e pelas

bibliografias sugeridas. Tambm pela pacincia com os prazos e por todos apoio que me deu.

Obrigado por tudo, mestre.

Parece que posso ouvir o Professor Wicliffe de Andrade Costa conversando comigo.

Foram muitas conversas sobre Histria da Igreja, Teologia e Filosofia. Agradeo pela

amizade.

De fundamental importncia para esse trabalho, por isso est sendo chamado para

voltar ao presente, foram os vrios momentos de apoio que Andr Pereira, arguto pesquisador

sobre o Minoritismo, me deu. Quer seja em conversas, quer seja me disponibilizando

bibliografia sobre o assunto. Sem sua ajuda, esse trabalho teria sido bastante limitado pela

falta de dilogo com autores que estudam o incio da Ordem dos Frades Menores.

Deus, chamo novamente pelo Senhor. Em outros momentos, foi para pedir, como

tantas vezes fiz, principalmente quando as coisas ficavam feias. Agora, Te agradeo pela

proteo, mesmo que eu raramente a perceba. Esse agradecimento no pelo fato de ser

comum lembrar-se do Senhor nos Agradecimentos, nem por simples dever religioso, por

reconhecer que nada se move nesse mundo, que So Francisco tanto amou, sem o

consentimento do Criador.

CARVALHO, Flvio Amrico Dantas de. Clarissimo speculo bonitatis Dei: o mundo de

Toms de Celano e a sua leitura de mundus. Natal, 2011. 135 f. Dissertao (Mestrado em

Histria e Espaos) Faculdade de Filosofia, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio

Grande do Norte.

RESUMO

O objetivo desse trabalho entender a verso de So Francisco de Assis criada por Frei

Toms de Celano em suas obras hagiogrficas, para, a partir disso, analisar como a Ordem

dos Frades Menores e o Papado compreenderam a relao do cristo com o mundo e

transformaram essa compreenso em uma verso do Santo. Fatores como a substituio do

Neoplatonismo pelo Aristotelismo como paradigma filosfico e alteraes econmicas e

sociais contriburam para alterar a interpretao das ordens bblicas para no amar o mundo,

no mais interpretadas como materialidade, e sim como uma ordem para o cristo fugir do

pecado. O desprezo pelo mundo foi substitudo por um maior apreo pela natureza e pela

sociedade. Alm disso, cada vez mais, o corpo passou de inimigo a amigo, tornado-se o irmo

corpo. Tal anlise importante para rever a idia, to comum na historiografia, de que o que

Max Weber chamou de Ascese Intramundana, a vida crist vivida em sociedade, s surgiu no

Protestantismo, em oposio ao Monasticismo. As Ordens Mendicantes, sobretudo o

Minoritismo, tentaram, durante o sculo XIII, perodo de anlise desse trabalho, vivenciar o

Cristianismo amando a natureza e agindo, por meio da pregao e da caridade, nas cidades.

Para fazer esse trabalho, foram analisados os discursos hagiogrficos (sobre So Francisco)

feitos por Toms de Celano, Vita beati Francisci (chamada de Vita Prima) e Memoriale in

desiderio anime (chamada de Vita Secunda) para, a partir disso, entender a interpretao de

Celano de como deve ser a relao do cristo com o mundo. O mundo deixou de ser um

reflexo distorcido de uma realidade perfeita, passando a ser reflexo perfeito da bondade de

Deus.

Palavras-chave: Minoritismo, Hagiografia, Mundo, Ascese Intramundana.

ABSTRACT

The aim of this study is to understand the version of St. Francis of Assisi created by Friar

Thomas of Celano in his hagiographic works. That study also it examines how the Order of

Friars Minor and the Papacy have understood the relationship between Christians and the

world and turned thisunderstanding in a version of the Saint. Factors such as the replacement

of Neoplatonism byAristotelianism as philosophical paradigm and economic and social

changes have contributed to change the interpretation of the biblical mandate to not love the

world, no longer interpreted as materiality, but as an order for Christians to flee sin. The

rejection of the world was replaced by a greater appreciation of nature and society. Moreover,

increasingly, the body went from enemy to friend, becoming the brotherbody. Such analysis is

important to review the idea, so common in the historiography of what MaxWeber called

Worldly Asceticism, the Christian life lived in society, only emerged in Protestantism in

opposition to monasticism. The mendicant orders, especially the minority tried during the

thirteenth century, the period of analysis of this work, experience the loving nature of

Christianity and acting,through preaching and charity in the cities.To make this work, were

analyzed the hagiographic discourse (on San Francisco) made by Thomas of Celano, Vita

beati Francisci (called Vita Prima) and Memorial in desideiro anime (named Vita Secunda)

and, from this, understand the Celanos interpretation on how it should be the Christian's

relationship with the world. The world ceased to be adistorted reflection of a perfect reality,

becoming the perfect reflection of God's goodness.

Keywords: Minority, Hagiography, World, Asceticism worldly.

LISTA DE ILUSTRAES

Imagem 1: O sentido da palavra mundo 26

Imagem 2: Baslica de So Francisco de Assis 79

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Ad Admoestaes. Na edio de TEIXERA, Celso M. (et. al.). Fontes Franciscanas

e Clarianas. Petrpolis: Vozes, 2004.

AtF Atos do Bem-aventurado Francisco e companheiros. In.: Ibidem.

BJ Bblia de Jerusalm. In.: BBLIA. Portugus. A Bblia de Jerusalm. So Paulo:

Paulinas, 1993.

CA Compilao de Assis. In.: TEIXERA, Celso M. (et. al.). op. cit.

Exl Exortao ao louvor de Deus. In.: Ibidem.

FF Fontes Franciscanas (original latino e traduo). Conforme se encontra em:

PROVNCIA dos Capuchinhos de So Paulo. Fontes Franciscanas. Disponvel

em: . Acesso em: 13 de mar. de

2009.

LD Louvores ao Deus Altssimo. In.: TEIXERA, Celso M. (et. al.). op. cit.

Mn Carta a um ministro. In.: ______.

NTI Novo Testamento Interlinear. Conforme verso: BBLIA. Grego e portugus. Novo

Testamento Interlinear. So Paulo: Cultura Crist, 2003.

OFM Ordem dos Frades Menores.

RB Regra Bulada. In.: TEIXERA, Celso M. (et. al.). op. cit.

RnB Regra no Bulada. In.: ______.

SV Saudao s virtudes. In.: ______.

SUMRIO

LISTA DE ILUSTRAES 11

LISTA DE ABREVIATURAS 12

SUMRIO 13

INTRODUO 14

1 A GESTAO DE UMA NOVA SENSIBILIDADE 26

1.1 A TRANSCENDENTALIZAO DA SANTIDADE 29

1.2 OS CAMINHOS PARA A MUDANA DE SENSIBILIDADE 35

1.3 O SCULO E A SANTIDADE ANTES DO MINORITISMO 43

2 O MUNDO DO LEITOR 57

2.1 HAGIOGRAFIA: UMA LEITURA QUE EDIFICA A ORTODOXIA 57

2.2 A HAGIOGRAFIA CELANENSE 73

3 UMA LEITURA DE MUNDUS 91

3.1 SOCIEDADE 94

3.2 CORPO 113

3.3 NATUREZA 118

CONSIDERAES FINAIS 122

REFERNCIAS 127

14

INTRODUO

Os leitores so viajantes; circulam nas

terras alheias.1

Toda rosa rosa porque assim ela

chamada.2

O Cristianismo est profundamente ligado histria, afirmou certa vez o historiador

francs Marc Bloch,3 pois as Escrituras so livros histricos e as liturgias crists so

rememoraes de eventos do passado. Segundo Bloch, as outras religies, diferentemente do

Cristianismo, datam a maioria dos seus eventos sagrados em temporalidades inexistentes.

Alm disso, a vida crist pensada como uma peregrinao na histria, no tempo, no sculo.

Alm da questo temporal apontada por Bloch, a F Crist tambm se liga histria devido a

sua historicidade, sua capacidade de se transformar com o passar do tempo. Nisso ela se

assemelha s outras religies.

Essa capacidade de mudar ao longo da histria faz com que o Cristianismo apresente

diferentes idades e geografias, para usar uma expresso de Michel Foucault.4 A Hermutica

5

crist no a-histrica. Por isso os cristos, a partir de suas peculiaridades culturais,

apresentaram historicamente exegeses e prticas diferentes com relao a alguns pontos

doutrinais. Um exemplo pode ser notado na relao com o mundo.

Entre os evanglicos brasileiros, ainda se escuta expresses como no escuto msica

do mundo; pecado namorar menina do mundo; Fulano crente Raimundo: ele tem um

p na Igreja e o outro no mundo. Tambm possvel ouvir algo parecido no Catolicismo.

Nessas expresses, a palavra mundo significa aquilo que deve ser evitado pelo cristo. da

1 CERTEAU, Michel. A Inveno do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrpolis, Vozes, 1994. p. 259.

2 CAMELO, Marcelo. Todo Carnaval Tem Seu Fim. In.: Los Hermanos. Bloco do Eu Sozinho. Rio de Janeiro:

BMG, 2001. 1 CD (46 min 45 s). Faixa 1 (4 min 24 s). 3 Ver BLOCH, Marc. A apologia da Histria ou o ofcio do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,

2001. p. 42. 4 Ver FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. IX

5 A Hermenutica, por muito tempo, esteve ligada s tradies filosfica, teolgica e jurdica. Hoje, no entanto,

usada, como conjuntos de pressupostos que orientam o trabalho de interpretao de um texto. Outra palavra que

aparecer com freqncia nesse trabalho exegese, que, aqui, entendida como a hermenutica posta em

prtica, aqui podendo ser usada como sinnimo de interpretao. Sobre o conceito de hermenutica, ver:

RICOEUR, Paul. A Hermenutica bblica. So Paulo: Edies Loyola, 2006. e Ibidem. Ensaios sobre a

interpretao bblica. So Paulo: Novo Sculo, 2004; OSBORNE, Grant R. A Espiral Hermenutica. So

Paulo: Vida Nova, 2009; FEE, Gordon D.; STUART, Douglas. Entendes o que ls? So Paulo: Vida Nova,

2009; SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenutica: Arte e tcnica da interpretao. Petrpolis: Vozes,

2009.

15

que vem a palavra mundano, que significa aquilo que no se relaciona com o cu e se liga

ao pecado.

Alm da dicotomia cu/mundo, no Cristianismo tambm se encontra a oposio entre

carne/esprito. A palavra carne est ligada s coisas mundanas, enquanto o esprito est

ligado ao Cu. Tambm entra nessa relao de palavras que apontam para o desprezo pela

materialidade, o vocbulo sculo, que no tem s sentido temporal, mas que significa a

existncia fsica na histria, em oposio eternidade. Tal oposio gerou a palavra secular,

que aquilo que no tem relao com a eternidade.

Essa viso depreciativa da realidade foi baseada, dentre outros fatores, que veremos

depois, em interpretaes de textos bblicos como os que seguem: O mundo inteiro est sob

o poder do maligno;6 "no ameis o mundo, nem o que no mundo h [...]. Porque tudo o que

h no mundo a concupiscncia da carne, a concupiscncia dos olhos e o orgulho das

riquezas no vem do Pai, mas do mundo;7 no se conformem a esse sculo;

8 [cristos.]

no sois do mundo9 etc.

Alm desses textos, existem outros que contriburam para o desprezo de alguns

cristos pelo mundo, o que incluiu a materialidade dessa existncia de forma geral, fazendo

com que o Cristianismo, por muito tempo, depreciasse a natureza e colocasse como padro o

monasticismo anacoreta (vivncia isolada) e o monasticismo cenobtico (em pequenas

comunidades de religiosos), uma vez que se compreendia que necessrio fugir do convvio

com os outros homens para alcanar a salvao.

Essa viso depreciativa do mundo pode ser percebida na traduo que So Jernimo

(343 419/20) fez da Bblia para o Latim (Bblia Vulgata).10

Diversas palavras gregas,

como Gs (), Oikumne (), Ain () e Ksmos (), que possuem, cada

uma, muitos significados,11

foram traduzidas apenas em um vocbulo: mundus, que, por sua

vez, foi traduzido para as lnguas neolatinas como mundo, monde e mundo.12

Isso fez com que

6 I Joo 5:19 (BJ).

7 I Joo 2:15 (BJ).

8 BBLIA. Epstola de Paulo aos romanos. Latim. Bblia Vulgata: Antigo e Novo Testamento. Traduo de So

Jernimo. Disponvel em: . Acesso em: 11 de agosto de

2009. Est em latim no original: Et nolite conformari huic sculo. Traduo do Autor. Utilizei a verso latina

para mostrar que a palavra sculo tambm contribuiu para o desprezo pelo mundo. 9 Joo 15:19 (BJ). Nesse mesmo Evangelho, Jesus pede a Deus que no tire os discpulos do mundo, mas os livre

do mal. 10

Essa era a verso da Bblia lida pelos homens no medievo. 11

Alguns exemplos para mostrar a variedade de sentidos: o mundo conhecido; o solo; o Imprio Romano;

contexto histrico; existncia; vivncia na histria; a Eternidade; humanidade; a parte da humanidade afastada de

Deus; e o mundo ordenado. Para mais informaes, ver: COENEN, Lothar, BROWN, Colin. Dicionrio

Internacional de Teologia do Novo Testamento. So Paulo: Vida Nova, 1989. Vol. 3. 12

Respectivamente: portugus, francs e espanhol.

16

no amar o mundo fosse interpretado num sentido de desprezo pela materialidade, gerando

a idia de que a F Crist s pode ser vivenciada fora do convcio social, em uma posio

alienada da vida entre os homens, para que o cristo pudesse fugir das tentaes.

Mas o desprezo pelo mundo apresentou mudanas na Histria do Cristianismo. No

sculo XX, por exemplo, surgiram movimentos teolgicos que enfatizaram discusses sobre

questes sociais e ecolgicas. Dentro do Catolicismo, a Teologia da Libertao, cujo um dos

principais representantes , no Brasil, Leonardo Boff, enfatizou a questo do pobre e outras

questes sociais, alm de discutir questes sobre o meio ambiente. No Protestantismo, a

corrente teolgica que discute assuntos ligados sociedade e natureza a Teologia da

Misso Integral, que entende que a Igreja deve cuidar da Criao como um todo.13

importante notar que muitos desses pensadores, no caso dos catlicos, eram

franciscanos e dominicanos, ordens religiosas que contriburam, nos seus trabalhos de

rememorao da vida e obra de seus fundadores, para a construo de um Cristianismo mais

prximo da natureza e da vida social. No caso dos evanglicos, muitos dos telogos que se

preocupam com questes sociais, ecolgicas e por evangelizao possuem admirao pela

figura de So Francisco de Assis, que, em muitos aspectos, reflete a construo feita pela

hagiografia minorita aqui estudada e de outros matizes.14

Nos plpitos evanglicos, comum se atribuir a So Francisco de Assis a frase

evangelize sempre, quando necessrio fale,15

querendo dizer que a vida do cristo em

sociedade deve mostrar Cristo, mesmo quando no se utiliza palavras. Como exemplo,

menciono a apario dessa frase sendo atribuda ao Santo de Assis no livro O que Misso

Integral, de Ren Padilla: Francisco de Assis tinha razo quando, ao enviar seus discpulos

para proclamar o evangelho, lhes exortou a proclam-lo por todos os meios ao seu alcance e

que, se fosse realmente necessrio, tambm usassem palavras.16

Embora essa frase no

aparea em nenhuma obra hagiogrfica do santo em questo nem em seus prprios escritos,

seu contedo se aproxima da representao contempornea (construda desde o sculo XIII,

como mostraremos nesse trabalho) de que a vida de Francisco se ligou pregao e vida em

sociedade.

13

Sobre a Teologia da Misso Integral, ver PADILLA, C. Ren. O que Misso Integral? Viosa: Ultimato,

2009. 14

Ver: STEUERNAGEL, Valdir. Obedincia missionria e prtica histrica: em busca de modelos. So

Paulo: ABU Editora, 1993. O autor, um Pastor Luterano e ex-presidente da Fraternidade Teolgica Latino-

amaricana, dedicou um captulo inteiro de sua obra sobre as misses crists a So Francisco de Assis,

considerado por ele um modelo para os evanglicos contemporneos. 15

Ou com pequenas variaes, mas com a mesma idia. 16

PADILLA, C. Ren. Op. Cit., p. 21.

17

Mas de onde vem essa representao de So Francisco? Perguntando de outra forma,

que sistema de representao contribuiu para a construo de um So Francisco amante da

natureza e defensor da vida em sociedade? Em grande medida, das narrativas hagiogrficas

construdas pelos prprios seguidores do Santo de Assis durante o sculo XIII.

O Minoritismo17

do sculo XIII teve sua viso quanto natureza e vida social

influenciada pelo paradigma filosfico aristotlico. Essa nova forma de entender a natureza,

diferentemente da viso dos cristos da Alta Idade Mdia, valorizava o mundo natural como

espao que possibilita o conhecimento. Isso fez com que os telogos desse perodo

realizassem pesquisas sobre fsica, botnica, ptica, zoologia e outras reas do conhecimento

que contriburam para o surgimento do pensamento emprico. Tambm contribuiu para o

surgimento de um amor pela natureza, como aconteceu, por exemplo, com So Francisco de

Assis e muitos dos seus seguidores, amor este desprovido de culpa ou do risco de ser

considerado, pela Igreja, um pago. Esses homens tambm valorizaram o convcio social,

inclusive defendendo que o cristo deve amar os pecadores e modificar as vidas deles

mediante a pregao e a caridade, entendida como amor que se d, ao invs do

enclausuramento monstico.

De forma geral, se atribui Idade Moderna, sobretudo o Calvinismo Puritano, a

Ascese Intramundana, ou seja, a idia de que o cristo deve viver no mundo. O principal

formulador dessa idia Max Weber, no livro A tica protestante e o Esprito do

Capitalismo.18

No entanto, a idia de que o cristo deve viver sua f em sociedade j est

presente na Idade Mdia, inclusive no Minoritismo. Da justificar-se esse trabalho, que

pretende mostrar que esse processo de aproximao da santidade e do sculo, completamente

inconciliveis no alto medievo, gerou profundas discusses dentor do Cristianismo Latino do

Sculo XIII, incluindo a participao papal e cismas no interior da Ordem dos Frades

Menores. A representao de So Francisco de Assis a que fizemos meno, a que o liga

natureza e ao convvio social (para pregar o Evangelho e cuidar do prximo), foi construda

no meio de um litgio que atingia a Cristandade de forma geral e o Minoritismo de forma

17

A historiografia sobre as origens da Ordem dos Frades Menores procura no utilizar mais o termo

Franciscanismo para se referir aos primrdios da fraternidade criada por So Francisco de Assis, uma vez que

esse vocabulrio estranho ao sculo XIII. Alm disso, com essa distino, procura-se evitar a confuso ao

adjetivar algo de franciscano, pois pode gerar a dificuldades de se entender se a referncia s idias do

fundador da Ordem ou aos desdobramentos da prpria OFM. Por isso, usaremos termos como minorita, menor e

Minoritismo. Para ampliar a discusso, ver: MIATELLO, Andr Luis Pereira. Retrica religiosa e cvica na

Itlia do sculo XIII: a composio e usos da hagiografia mendicantes nas polticas de paz. So Paulo, 2010.

242f. Tese (Doutorado em Histria Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade

de So Paulo. 18

WEBER, Max. A tica protestante e o esprito do capitalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2004.

18

especfica. A vida piedosa se aproximou da natureza (mundo natural) e da sociedade (mundo

social, urbano).

As hagiografias construdas pelos Frades Menores durante o sculo XIII tentavam,

dentre outras coisas, como veremos nesse trabalho, responder s questes sobre como deve

ser a relao de um menor com o mundo. Tais questes, como fica claro diante do exposto at

aqui, sempre perpassarem o Cristianismo, inclusive hoje, momento em que tal debate ainda

est presente entre os cristos brasileiros, com suas participaes na mdia, Estado,

universidades, questes ambientais19

e outras faces da vida no sculo, da vivncia no mundo.

Esse trabalho no se justifica apenas por questionar a opinio geral (iniciada por

Weber) que a Ascese Intramundana s teve incio no Protestantismo de linhagem puritana e

anglo-saxnica, uma vez que j estava presente no sculo XII, sendo mais bem sintetizada no

XIII. Esse trabalho se justifica tambm porque a discusso hermenutica sobre como deve ser

a relao do cristo com o mundo toca em muitos aspectos da Teologia e da vida do

Cristianismo, religio predominante no Brasil, tanto no seu ramo catlico quanto no seu ramo

evanglico. Entender como foi construda historicamente uma verso de So Francisco de

Assis, santo to usado pelos cristos catlicos e evanglicos para discutir as questes da

relao com o mundo, ajudar a compreendermos melhor a participao catlica e evanglica

nas questes seculares.

praticamente um consenso historiogrfico que as Ordens Mendicantes estavam

inseridas nas cidades no sculo XIII e que isso contribuiu para um maior apreo pela natureza.

Na verdade, as Universidades e a Arte Gtica, tambm nascidas no sculo XIII, bem como a

influncia do Aristotelismo, contriburam para o menor desprezo por esta vida. No entanto,

esse trabalho, diferentemente dos anteriores, procura analisar, dentre outros fatores, como isso

influenciou na exesege da palavra bblica mundus (Vulgata), sobretudo nas passagens que

orientam os cristos a fugirem dele. Ao reinterpretarem o que significa no amar o mundo,

os cristos do sculo XIII, cada vez mais, deixaram de necessariamente relacionar esse

mandamento com a materialidade.

Para entender o pensamento do homem medieval importante levar em conta a

influncia das Escrituras. Embora o texto lido no sculo XIII se assemelhasse ao lido

anteriormente, a exegese sofreu mudanas importantes. Segundo Christopher Hill, a Bblia

19

Sobre o envolvimento cristo em questes ambientais, o Rev. anglicano John Stott, ao criticar o dualismo

desastroso que muitos cristos insistem em manter entre o sagrado e o secular, o espiritual e o material, a alma e

o corpo, como se Deus s estivesse interessado na primeira parte, [...] e como se apenas estes merecessem ser

chamados de cristos, aponta para essa palta nas atuais discusses teolgicas. STOTT, John. Prefcio. In.:

HARRIS, Peter. A Rocha: uma comunidade evanglica lutando pela conservao do Meio Ambiente. So Paulo:

ABU Editora, 2001. p. 9-11.

19

teve um papel central em toda vida da sociedade: nos arriscamos ao ignor-la.20

Entender

porque ocorreram essas alteraes na interpretao e como elas influenciaram na contruo de

novas formas dos cristos se relacionarem com o mundo importante pelo fato desta ser uma

lacuna que ainda precisa ser preenchida na historiografia. A reinterpretao de mundus

gerou, portanto, modificaes nas relaes da Cristandade com a vida em sociedade, com a

natureza e com o corpo. Foi de fundamental importncia para esse processo as obras

hagiogrficas, principalmente s ligadas a So Francisco de Assis.

Dentre as construes hagiogrficas do sculo XIII que contriburam para a

sedimentao do So Francisco que geralmente se conhece hoje, se destaca a feita pelo Frei

Toms de Celano. No existem muitas informaes sobre a vida de Toms de Celano antes de

sua entrada na Ordem dos Frades Menores (OFM). Sabe-se que, quando ele entrou na Ordem,

j era adulto e que era um intelectual maduro, sendo provavelmente sacerdote. Celano foi o

responsvel pelas duas primeiras hagiografias oficiais de So Francisco, a Vita beati Francisci

(chamada de Vita Prima) e a Memoriale in desiderio anime (conhecida como Vita Secunda).

A primeira foi encomendada pelo Papa Gregrio IX, devido ao Processo de Canonizao de

Francisco. A "Vita Secunda" foi encomendada por Crescncia Iesi, Ministro Geral da OFM,

cerca de 18 anos depois, para afirmar uma verso original do Santo de Assis. Isso faz com que

suas duas vidas sejam importante para entendermos como o hagiogrfico entendeu como

deveria ser a relao dos Frades Menores com o mundo.

Por causa disso, tentaremos responder as seguintes perguntas nesse trabalho: como a

exegese de Toms de Celano quanto ordem bblica para no amar o mundo e sua

interpretao do significado de ser um frade menor influncaram na relao de So Francisco

de Assis com a sociedade, com o corpo e com a natureza?

Nosso objetivo entender como o Poverello aparece na Vita beati Francisci e na

Memoriale in desiderio anime, ambas escritas pelo frade Toms de Celano, para, a partir

disso, entender como o Minoritismo dialogou (tanto sofrendo influncia quanto

influenciando) com o processo de Ascese Intramundana da Baixa Idade Mdia. Esse estudo

de caso possvel pelo fato desse hagigrafo ter sido o primeiro representante oficial dessa

instituio para dizer quem So Francisco de Assis. Por causa disso, nosso recorte temporal

a primeira metade do sculo XIII, perodo em que foram redigidas essas obras.

20

HILL, Christopher. A Bblia inglesa e as revolues do sculo XVII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,

2003. p. 24. Embora esse trabalho se refira ao sculo XVII, sua observao tambm importante para o sculo

XIII.

20

Esse trabalho passa longe da preocupao de confrontar a vida do Santo de Assis com

as suas hagiografias, uma vez que no concorda com a idia da busca de um Francisco

histrico baseada na separao entre o real e o mitolgico nessas obras sacras, influncia do

modo de pensar iluminista, distinto da forma de pensar dos homens do sculo XIII. Tambm

no concorda com a idia de que as obras hagiogrficas so apenas invenes, palavra

inventada, como conceito, na historiografia que se ape historiografia do tipo que busca os

santos histricos, negando qualquer relao das hagiografias com a vida do Santo, uma vez

que so consideradas apenas mitolgicas, construes to somente discursivas.

Logo, ser diferenciado nesse trabalho Francisco de Bernardone, homem que nasceu

em Assis (Itlia) no final do sculo XII, de So Francisco de Assis. O primeiro, homem que

viveu na histria, aparecer sempre com esse nome. O Segundo, personagem hagiogrfico,

obra de rememorao, poder ser chamado com vrios nomes, inclusive Poverello.21

Para fazer este trabalho, mais precisamente para discutir a questo de como nos

relacionamos com o mundo, foram utilizados Arthur Schopenhauer22

e Martin Heidegger23

.

Do primeiro, foi importante a idia de que nossa relao com o mundo sempre mediada por

representaes, pois a relao dos homens com o mundo natural no somente de ordem

sensvel, mas tambm se liga ao pensamento. No se nega aqui a existncia do mundo fsico,

defende-se que o mundo s conhecido (s tem existncia para o sujeito) no processo de

representao da realidade. O mundo no nos chega de forma pura por meio dos sentidos, mas

atravs de representaes, pois nunca conhecemos a coisa em si buscada por Kant.

Por outro lado, o sujeito s existe no mundo, e, nesse aspecto, este trabalho tambm

tem como aporte terico Ser e Tempo, de Martin Heidegger.24

O sujeito sempre presena, o

conceito alemo de dasein, que, em francs, geralmente traduzido por prsence. A idia de

que o sujeito uma interioridade que conhece uma exterioridade criticada por Heidegger,

quando afirma que

A presena no sai de uma esfera interna em que antes estava encapsulada.

Em seu modo de ser originrio, a presena j est fora, [...] no o

conhecimento quem cria pela primeira vez um commercium do sujeito

com um mundo e nem este commercium surge de uma ao exercida pelo

21

So Francisco de Assis recebe alguns nomes, como Santo de Assis, O Santo (especialmente nos documentos

minoritas), Poverello (palavra italiana que significa pobrezinho); Padroeiro da Ecologia. Usaremos nesse

trabalho essas vrias formas para nos referismos ao personagem principal das hagiografias aqui analisadas. 22

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representao. So Paulo: Editora UNESP,

2005. 23

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrpolis: vozes, 2008. 24

Ibidem.

21

mundo sobre o sujeito. Conhecer, ao contrrio, um modo da presena

fundado no ser-no-mundo. 25

Os cristos medievais (incluso est Toms de Celano) eram fruto do mundo em que

viviam. Ao mesmo tempo, modificaram o mundo em que viviam atravs das construes e

circulao de suas representaes, como foi o caso da representao da idia de relao do

cristo com essa existncia do Minoritismo oficial que Celano representava.

O Minoritismo, assim como o Cristianismo, tambm tentou caminhar para frente

sendo orientado com um olhar para trs, para a vida do seu fundador, tentando perceber na

sua vida e no incio da histria da fraternidade criada por ele orientaes para o caminhar no

presente e no futuro. Esse olhar histrico tambm tentou ver como deve ser a relao do frade

menor com a natureza, com a sociedade e com o corpo, ou seja, com o mundo. Por isso,

necessrio entender o contexto do qual cada um dos hagigrafos de Pobre de Assis direcionou

seus olhares para as Escrituras e para a vida dele. Entender esses contextos e como eles

influenciaram nas formas de se pensar e viver o mundus importante pelo fato da leitura

no ser uma atividade passiva, mas, pelo contrrio, dinmica, como defende Roland Barthes.26

O texto passvel de muitas interpretaes, pois, embora um autor tente deixar o texto

claro a ponto de no gerar dvidas quantos a sua interpretao, ou seja, embora ele tente guiar

o leitor interpretao correta, o leitor possui liberdade, fazendo com que a leitura, assim

como a interpretao de um mesmo texto, seja uma atividade dinmica.

Mas antes desse perodo da hermenutica marcada pela forte idia de liberdade do

leitor, os hermeneutas iluministas/positivistas defendiam a idia de que o texto s tem uma

interpretao correta. Segundo Franois Dosse,27

depois de Schleiermacher, a hermenutica

tornou-se um programa geral de elaborao de regras universalmente vlidas, afim [...] de

ultrapassar a distncia cultural [entre autor e leitor].28

Foi a tentativa de aplicar a lgica

cartesiana interpretao dos textos, gerando a idia de que s existe uma interpretao

correta, j que baseada em regras de validade universal. Mas essa forma de entender o

processo de leitura e interpretao, que desprezava o leitor e colocava toda nfase nas

intenes do autor, foi substituda por novas teorias sobre o processo de leitura, que no

desprezavam o papel ativo de quem l.

HEIDEGGER, Martin. Op. cit. p. 109. 26

BARTHES, Roland. O prazer do texto. 4. ed. So Paulo: Perspectiva, 2006. 27

DOSSE, Franois. Paul Ricouer Rvolutionne lhistoire. EspacesTemps: rflchir les sciences sociales, Paris,

n. 59,60,61. 1995. p. 12 28

Traduo do autor : programme gnral dlaboration des rgles universelles valides, afin [...] de dpasser la

distance culturelle [entre autor e leitor].

22

Michel de Certeau,29

Paul Ricoeur,30

Roger Chartier31

e Robert Darnton32

concordam

que a leitura uma maneira de se estabelecer significado e que apresenta variaes culturais.

Nesse aspecto, importante a contribuio de Clifford Geertz33

, que defende que cultura um

complexus de significados que os prprios homens traaram. Pessoas de uma mesma cultura

possuem significados para as palavras em comum: umas so tabus, outras so recorrentes,

outras estruturam a forma de pensar, ou seja, eles possuem um vocabulrio compartilhado.

Portanto, para entender o sentido do texto, mister descobrir o complexus de significados em

que o autor est inserido. Para Michel de Certeau, as leituras (tanto do historiador quanto do

telogo) so feitas de certo lugar, que o contexto institucional, poltico e cultural do leitor,

fazendo com que seu trabalho de significao do texto seja peculiar, fugindo uma

padronizao a-histrica.34

Sendo assim, o historiador deve ter em mente que as interpretaes se alteram quando

ocorrem mudanas no mundo mental dos leitores. Ao historiador cabe buscar entender essas

mudanas, pois s assim ele ter a possibilidade de se aproximar dos sentidos utilizados pelos

leitores de outras temporalidades. importante, nessa parte do texto, traar comentrios a

cerca da relao entre leitura e poder. Segundo Michel de Certeau, a leitura pode ser usada

como uma forma de dominao. Para o autor jesuta, o texto (e a mdia) encarado pelas

elites como uma possibilidade para informar a populao, isto , dar forma s prticas

sociais.35

As relaes de poder tambm aparecem no processo de leitura no que tange idia,

defendida por uma elite social, de literalidade do texto, que uma forma de manuteno do

poder, pois esse grupo, sendo letrado, julga deter o verdadeiro sentido do texto,

desprezando, segundo Certeau, as outras interpretaes. De acordo com o historiador francs:

[Essa elite] Levanta entre o texto e seus leitores uma fronteira que

para ultrapassar somente eles entregam os passaportes, transformando

29

CERTEAU, Michel de. A escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1982. e Iden. A

Inveno do Cotidiano: Artes de Fazer, Petrpolis, Vozes, 1994. 30

RICOEUR, Paul. A Hermenutica bblica. So Paulo: Edies Loyola, 2006. e Iden. Ensaios sobre a

interpretao bblica. So Paulo: Novo Sculo, 2004. Esse autor, como filsofo e historiador, escreveu obras

sobre teoria da interpretao. Como telogo, escreveu sobre exegese bblica. 31

CHARTIER, Roger. A Histria Cultural: entre prticas e representaes. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro:

Bertrand, 1990. e Ibidem. beira da falsia: A histria entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. Da

Universidade/ UFRGS, 2002. 32

DARNTON, Robert. Histria da Leitura. In.: BURKE, Peter. A escrita da Histria. So Paulo: UNESP,

1992. e Ibidem. O grande massacre de gatos: e outros episdios da Histria Cultural francesa. 5. ed. Rio de

Janeiro: Graal, 1986. 33

GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1989. p. 14-66. 34

CERTEAU, Michel de. A escrita da Histria, p. 30-119. 35

CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano, p. 260. (Grifo no original).

23

a sua leitura [...] em uma literalidade ortodoxa que reduz as outras

leituras [...] a ser apenas herticas ou destitudas de sentido.36

Certeau, para exemplificar a relao entre dominao e literalidade do texto, usa o

exemplo da Igreja. Na sua relao com a Bblia, o clero ou vetou o acesso s Escrituras ou

coagiu (atravs da Inquisio e das excomunhes) os leitores interpretao que ela julgava

ortodoxa. Mas segundo ele, os leitores sempre conseguem formas de burlar essas tentativas de

coero, pois sua liberdade no cerceada to facilmente, apesar de a elite pensar que o foi.37

Com relao ao processo de aproximao da santidade do mundo, a Igreja Medieval

considerou herticos alguns movimentos anteriores s Ordens Mendicantes do sculo XIII. A

maioria desses movimentos, ao mesmo tempo em que pregavam o desapego aos bens

materiais e criticavam a hierarquia da Igreja, enfatizavam a ajuda aos necessitados e a

pregao, ou seja, a vivncia de santidade no meio do povo. Nisso, entravam em choque com

a exegese da relao do cristo com o mundo da Igreja.

No sculo XIII, os Papas Inocncio III e Gregrio IX tentaram fortalecer uma

religiosidade mais prxima do povo, canonizando santos leigos, como discutiremos depois.

No entanto, importante notar que os movimentos de aproximao da santidade do sculo do

sculo XIII foram acolhidos e tolhidos pela Igreja num perodo em que a Hermenutica

passou a sofrer influncias que transformaram a exegese do vocbulo bblico mundus. A

interpretao do sculo XIII, especificamente a minorita, no ser conflituosa apenas com

relao s Escrituras, mas tambm com relao Regra da Ordem e ao Testamento de So

Francisco.

Diante da idia de que o leitor constri o sentido do texto, surge a questo de como o

historiador pode descobrir que sentindo um homem da Baixa Idade Mdia deu ao ler uma

passagem dos Evangelhos. Essa pergunta de difcil resposta, tendo em vista que ns mesmos

no entendemos a maneira como ns lemos, apesar dos esforos dos psiclogos e

neurologistas para traarem os movimentos dos olhos e mapearem os hemisfrios do

crebro.38

Na leitura, a relao entre a interpretao do leitor e as intenes do autor como a

relao de Portugal (durante muitos sculos) e D. Sebastio: Assim como o monarca morto, o

objetivo do autor buscado e desejado, ele est sempre interferindo na leitura, mas nunca

36

CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano., p. 267. 37

Certeau discute em sua obra as formas que as camadas mais pobres possuem da manifestar sua liberdade, que

construda no cotidiano, no obstante as tentativas da elite de subjug-las. 38

DARNTON, Robert. Histria da Leitura, p. 218.

24

aparece de fato, na sua totalidade, ele est encoberto. Ele uma presena fugidia. A relao

entre a objetividade do autor e a subjetividade dos leitores muito tensa, mas deve ser

enfrentada. Se o pesquisador desprezar uma delas, estar mutilando a realidade. A

objetividade est presente na relao entre escritor e leitor, pois, sem ela, no haveria

comunicao. Portanto, a leitura uma atividade dinmica, que se d na interao entre as

intenes do autor, e suas formas de tentar orientar o leitor para uma interpretao correta; e

o leitor, que faz a leitura transformar-se em uma atividade criadora, pois a sua maneira de

interpretar o texto influenciada pela sua prpria histria, que singular. Portanto, nas

palavras de Chartier, abordar a leitura [...] considerar, conjuntamente, a irredutvel

liberdade dos leitores e os condicionamentos que pretende refre-la.39

Uma vez conscientes das influncias tericas desse trabalho, faz-se mister entender

que caminhos sero trilhados ou abertos na busca dos seus objetivos desse trabalho (entender

a verso de So Francisco criada pela Ordem Minorita da primeira metade do sculo XIII na

sua tentativa de criar uma viso ortodoxa da relao do cristo com o mundo).

O trabalho se limitar a analisar as duas primeiras hagiografias oficiais do Minoritismo

do sculo XIII, ambas escritas por Celano, uma vez que essas obras nos apresentaro tanto a

verso de So Francisco que interessava ao Papado (principalmente com relao questo da

relao do cristo com o mundo) quanto para entender como a Ordem dos Frades Menores

entendeu os ensinos de Francisco de Bernardone quanto relao do frade com o mundo. As

obras aqui analisadas so a Vita beati Francisci e a Memoriale in desiderio anime. A primera

foi feita para o Processo de Canonizao do Santo e tambm para por fim a algumas disputas

dentro da ordem, a segunda teve sua feitura ligada necessidade de uma verso oficial sobre o

Poverello (inclusive no que se refere relao dele com o mundo) diante de um crescente

conflito sobre a verso original do fundador do Minoritismo.

As citaes bblicas so da Bblia de Jerusalm, verso considerada a mais acadmica

entre as tradues. Tambm ser utilizada a Vulgata (traduo latina de So Jernimo), pois

era a utilizada por Toms de Celano. Em alguns casos, se necessrio, ser usada a verso

Grega (Nestle-Aland), para analisar a traduo feita por So Jernimo.40

Com relao s

tradues dos textos em outras lnguas, sempre sero apresentados os textos originais. As

tradues feitas pelo autor desse trabalho sero sempre indicadas em notas de rodap, junto ao

texto original. Quando no for dele, ser apresentada a fonte de onde for retira. Com relao

39

CHARTIER, Roger. A Histria Cultural, p. 123. 40

A verso bblica na lngua original s ser usada no Novo Testamento, pois s consigo ler o Grego. No caso

do Antigo testamento (Hebraico e Aramaico), no tenho como realizar uma anlise da traduo da Vulgata.

25

s obras de Toms de Celano para anlise, foram confrontadas as tradues da Provncia dos

Capuchinhos de So Paulo41

e das Fontes Franciscanas e Clarianas42

com o texto latino

original.43

No primeiro captulo, narrada e discutida a gestao de uma nova sensibilidade crist

diante da sociedade, do corpo e da natureza, apontando para uma aproximao da santidade e

do sculo. Isso ser feito para se mostrar que o Minoritismo do sculo XIII estava inserido

numa discusso sobre a interpretao correta quanto ao significado da ordem bblica para

no amar o mundo que j acontecia desde, pelo menos, o sculo XI.

O segundo captulo pretende historiar brevemente como o Cristianismo entendeu a

santidade at o sculo XIII, procurando mostrar que, quando Celano construiu sua obra, as

formas de ser santo no mundo estavam sofrendo uma profunda mudana. Diante da

necessidade de justificar um novo modelo de vida religiosa; participar da inteno papal de

combate as heresias e aproximar a Igreja do mundo laico; e apaziguar as disputas internas da

Ordem dos Frades Menores quanto maneira deles se relacionarem com o mundo, Celano

redigiu duas Vidas de So Francisco. No segundo captulo, estudaremos como ele as fez.

No terceiro e ltimo captulo, discutiremos como o celanense interpretou as ordens

bblicas para no amar o mundo, discorrendo sobre como ele entendeu a relao do

Minoritismo com a sociedade, com o corpo e com a natureza. Isso ser feito analisando as

diversas histrias contadas pelo hagigrafo para ensinar a maneira correta de interpretar o

legado espiritual do Pobrezinho de Assis.

No inteno desse trabalho esgotar a discusso. Se, todavia, ele contribuir para

levantar novas questes sobre o assunto, ter cumprido o propsito para o qual foi feito.

41

PROVNCIA dos Capuchinhos de So Paulo. Fontes Franciscanas. Disponvel em: . Acesso em: 13

de mar. de 2009. 42

TEIXERA, Celso M. (Comp. e Trad.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrpolis: Vozes, 2004. 43

PROVNCIA dos Capuchinhos de So Paulo. Op. cit.

26

1 AQUM DO QUE SE V: A GESTAO DE UMA NOVA SENSIBILIDADE

Imagem 1: O sentido da palavra mundo.

44

O Papa Joo Paulo II, no dia 29 de novembro de 1979, afirmou, atravs da Bula Inter

Sanctus, que entre os santos e os homens ilustres que tiveram um singular culto pela

natureza, como magnfico dom dado por Deus a humanidade, se incluiu justamente Francisco

de Assis 45

. Essa bula deu ao Poverello o ttulo de Patrono dos cultivadores da ecologia,

com todas as honras e privilgios litrgicos inerentes 46

; apontando para a idia, recorrente

nos nossos dias, de que Francisco de Bernardone era muito ligado ao que chamamos hoje de

Meio Ambiente.

Se caminharmos nas proximidades da Lagoa da Pampulha (Belo Horizonte MG),

encontraremos outro discurso contemporneo ligando o Poverello ao mundo natural

(natureza), a saber, o painel da fachada da Igreja de Francisco de Assis, de autoria de Cndido

Portinari, que nos mostra o Santo cercado por pssaros e na presena de um lobo, personagens

que aparecem com certa freqncia nos escritos minoritas do sculo XIII e primeira metade

do XIV. Tambm possvel ver o Santo compartilhando a capa com um mendigo,

representando sua relao com os pobres, tambm bastante recorrente nas hagiografias e

iconografias minoritas desde o sculo XIII.

Com relao representao do lobo, importante notar que este geralmente

amansado pelo Santo nos relatos, deixando de ser smbolo de uma natureza que amedronta,

uma natureza cada, passando a ser como um cordeiro (como aconteceu na converso do Lobo

de Gbbio, relatada nos Atos do bem aventurado Francisco de Assis e de seus

44

QUINO (Joaquim Lavado). Toda Mafalda. So Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 490. 45

Traduo do autor. PAPA JOO PAULO II. Inter Sanctus. Disponvel em: .

Acesso em: 30 de abril de 2008: Entre los santos y los hombres ilustres que han tenido un singular culto por la

naturaleza, como magnfico don hecho por Dios a la humanidad, se incluye justamente a San Francisco de

Ass. 46

Traduo do autor. Ibidem.: celestial Patrono de los cultivadores de la ecologa, con todos los honores y

privilegios litrgicos inherentes.

27

companheiros47

). Transformou-se, ento, em um irmo da Cristandade, tornou-se o irmo

lobo.

Os pssaros, por outro lado, geralmente so retratados como os bons amigos de

Francisco de Assis. Traziam-lhe prazer com o canto e a alegria. O Santo lhes pregava o

Evangelho e lhes fazia ninhos, como aconteceu na histria em que ele salvou algumas

rolinhas que seriam vendidas por um jovem. O Santo convenceu o carrasco das pobres aves a

solt-las, afirmando que elas so como almas castas. Quando as soltou, o Poverello construiu

um ninho para elas, a fim de que cumprissem a ordem do Criador quanto multiplicao da

espcie, diferindo da viso da Alta Idade Mdia, que considerava ruim a concepo da vida

terrena, j que via esse mundo como tenebroso.48

Alm dessas representaes medievais e contemporneas, muitas outras contriburam

para a construo do Padroeiro da Ecologia, pois a maioria dos bigrafos do Santo

(hagiografias e biografias) o representou como um amante da natureza. Essa forma de ver o

Santo de Assis foi fruto de uma re-significao, dentro do Cristianismo, da forma de entender

a palavra bblica (na Bblia Vulgata) mundus.49

Os cristos, ao longo da histria, guiaram e

justificaram suas aes com relao ao corpo, sociedade e natureza a partir do que

entenderam como no amar o mundo, inclusive durante o incio da representao de So

Francisco de Assis e dos seus ideais para a Religio50

por ele criada e durante o perodo em

que ele viveu. Por isso, discordando da idia da Mafalda apresentada na tirinha do incio do

captulo, muito importante saber de onde vem a palavra mundo (o seu sentido), pois isso

nos permite compreender, como dito na Introduo, como o Cristianismo chegou s atuais

formas de entender a relao com essa vida.

A palavra mundo uma palavra polissmica. De forma geral, ela significa,

biblicamente falando, aquilo que deve ser evitado pelo cristo. O que muda o sentido do que

essa coisa que deve ser evitada, haja vista que se altera aquilo que deve ser desprezado a

47

AtF. In.: TEIXEIRA, Celso M. (et. al.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrpolis: Vozes, 2004. p. 1171

1172. 48

Ibidem. p. 1169-1173. 49

O cientificismo de base cartesiana/newtoniana entende que o significado espacial est nele mesmo, fazendo

com que seja necessrio o sujeito se anular para perceber a verdade. No entanto, o sentido do espao, como se

entende hoje, est tambm aqum do que se v, pois tambm se liga ao sujeito que olha o mundo. Isso no quer

dizer que o mundo no existe nem que impossvel algum tipo de conhecimento acertado sobre ele, mas que a

relao com o espao tensamente afetiva, pois, meus sentimentos/pensamentos sobre o mundo influenciam na

minha forma de v-lo, embora eu, por outro lado, seja afetado pela exterioridade. Essa complexidade/relao

pode ser percebida na obra do gegrafo sino-americano Yi-Fu Tuan, sobretudo em TUAN, Yi-Fu. Espao e

Lugar: a perspectiva da experincia. So Paulo: Difel, 1983. Nela, o autor defende que podemos conhecer o

mundo de forma ntima e conceitual, a primeira, inclusive, apresentando, muitas vezes, dificuldades de

comunicao. 50

Religio, nesse sentido, o que os medievais chamavam quando se referiam a um grupo de homens que levava

uma vida regrada, isto , baseada numa regra. Cf. MERLO, Grado Giovanni. Op. cit.

28

partir da reinterpretao da palavra mundo. Um dos sentidos desta palavra mais comuns na

Histria da Teologia Crist foi o de materialidade ou existncia fsica. Existem textos bblicos

que foram interpretados dessa forma, fazendo com que alguns cristos desprezassem o mundo

(contemptus mundi), isto , essa existncia de forma geral, causando, no Cristianismo um

desprezo pela natureza e pelo corpo, alm de gerar a idia de que santidade viver isolado

(Monasticismo Anacoreta) ou em pequenas comunidades de religiosos que seguem uma regra

(Monasticismo Cenobtico), mas tambm apartados do mundo. Na sua Regra, Bento de

Nrsia afirmou o seguinte:

sabido que h quatro gneros de monges. O primeiro o dos cenobitas,

isto , o monasterial, dos que militam sob uma Regra e um Abade. O

segundo gnero o dos anacoretas, isto , dos eremitas, daqueles que, no

por um fervor inicial da vida monstica, mas atravs de provao diuturna no

mosteiro, instrudos ento na companhia de muitos, aprenderam a lutar

contra o demnio e, bem adestrados nas fileiras fraternas, j esto seguros

para a luta isolada do deserto, sem a consolao de outrem, e aptos para

combater com as prprias mos e braos, ajudando-os Deus, contra os vcios

da carne e dos pensamentos.51

Os outros dois tipos citados por So Bento so considerados por ele desprezveis. Os

sarabatas (sarabaitarum), porque eram fiis ao sculo, j que no possuam uma regra ou um

Abade e faziam o que desejavam; e os girvagos (gyrovagum) porque, como o nome j indica,

vagavam em crculo, no tendo estabilidade.

Muitos cristos entenderam que era necessrio fugir do convvio social para alcanar a

Salvao, gerando uma Religio que valorizava apenas a transcendncia em detrimento da

imanncia. Essa forma de pensar apresentou variaes na histria. No entanto, em alguns

momentos, mundo deixou de ser interpretado no sentido material e passou a significar pecado,

num sentido mais intimista, mais ligado aos desejos humanos e a um sistema do mal que

atinge toda a humanidade.

O perodo aqui estudado, primeira metade do sculo XIII, foi muito importante para a

reinterpretao da palavra mundo no Cristianismo. Tambm o foi para a interpretao da

herana deixada por Francisco de Bernardone. Foram vrios os fatores que contriburam para

51

SO BENTO. A Regra de So Bento: Edio bilnge Latim e Portugus. 3. Ed. Trad. D. Joo E. Enout.

Juiz de Fora: Edies Subiaco, 2008. p. 34-37. Original latino: Monachorum quattuor esse genera manifestum

est. Primum coenobitarum, hoc est monasteriale, militans sub regula vel abbate. Deinde secundum genus est

anachoritarum, id est eremitarum, horum qui non conversationis fervore novicio, sed monasterii probatione

diuturna, qui didicerunt contra Diabolum multorum solacio iam docti pugnare, et bene exstructi fraterna ex acie

ad singularen pugnan eremi, securi iam sine consolatione alterius, sola manu vel brachio contra vitia carnis vel

cogitationum, Deo auxiliante, pugnare sufficiunt.

29

essa mudana de interpretao da palavra mundus presente nas Escrituras e na Ordem dos

Frades Menores.

Vejamos primeiro, no entanto, como surgiu o desprezo pelo mundo na Cristandade

Latina, pois, antes de entendermos a mudana, precisamos entender o que foi mudado, ou

melhor, qual a viso dos cristos com relao ao mundo antes do perodo aqui estudado.

1.1 A TRANSCENDENTALIZAO DA SANTIDADE

Durante a Alta Idade Mdia, predominou na Cristandade e influncia do

Neoplatonismo como paradigma filosfico. Ele se diferenciava do Platonismo por ter um

carter mais mstico e espiritual. Um dos seus primeiros representantes, e para alguns o

prprio criador, foi Plotino, filsofo egpcio do sculo III, que, utilizando-se do Idealismo de

Plato, criou a idia de que o princpio espiritual, transcendente e perfeito, chamado de Uno,

criou o mundo.

A transcendncia da divindade no implicava no afastamento dela com relao ao

mundo, pois ela continuava controlando essa existncia. Deus era considerado o transcendente

absoluto por ser incognoscvel, uma vez que estaria infinitamente alm do conhecimento

humano. A razo era importante na F Crist, mas esta tinha primazia sobre aquela. Segundo

essa corrente filosfica, o homem pode voltar a ter contato com a divindade atravs de uma

interiorizao contemplativa, de um olhar para o seu interior. O Cristianismo, sobretudo Santo

Agostinho, relacionou a F Crist com as idias neoplatnicas. Para o Bispo de Hipona,

segundo Manoel Vasconcelos, Deus e a alma no so conhecimentos diferentes, pois esto

ligados intimamente. A alma de onde o homem parte para chegar ao conhecimento de Deus,

uma vez que ele no pode fazer isso por meio da razo, apenas pela f. A alma, o homem

interior [...] pode ser conhecida pela razo e partindo dela que o homem poder, no encontro

consigo mesmo, encontrar tambm a Deus.52

Para o Bispo de Hipona, a alma humana est fadada a sofrer enquanto no encontrar o

seu princpio criador, ou seja, Deus. Tal idia pode ser percebida quando ele afirma dirigindo-

se a Deus: fizeste-nos para ti, e inquieto est nosso corao, enquanto no repousar em ti.53

Essa forma de pensar se aproxima muito da idia de amor como falta, que to presente no

52

VASCONCELLOS, Manoel. A interioridade como via de acesso a Deus no pensamento de Santo Agostinho.

In.: Dissertatio. Pelotas, n 10, p. 45 53, vero de 1999. p. 46. 53

AGOSTINHO. Confisses. So Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 37.

30

livro O Banquete,54

de Plato, em que so contados os mitos do nascimento de Eros: como

filho de Pnia, a pobreza, explicando o amor como, em certos aspectos, essencialmente

carncia; a explicao dos andrginos, que explica o porqu dos humanos viverem buscando

uma espcie de cara-metade; e a idia de que Eros (amor) a busca pela imortalidade. Isso fez

com que a Patrstica,55

que vai do sculo I at aproximadamente o sculo XI, quando comea

a surgir a Escolstica, interpretasse essa busca incessante humana como uma carncia por

Deus. Juntamente com Agostinho, muitos outros telogos da Patrstica fundiram a F Crist

com o Neoplatonismo.

Essa fuso fez com que muitos cristos, baseados no Neoplatonismo, pensassem que

Deus uma luz que est acima do esprito, s podendo ser atingida pelo homem na medida

em que este transcende o que h de mais elevado nele. [... nesse contexto] que se vai

fundamentar a percepo agostiniana da diferena absoluta entre Deus e o homem.56

O Neoplatonismo tambm apresentou um carter dualista, focado na oposio entre o

mundo e Deus, pois foi influenciado pela idia platnica de que essa vida apenas reflexo

da verdadeira existncia.57

Para Plato, a realidade perfeita o mundo das idias, para os

neoplatnicos no-cristos o Uno e para os cristos, o prprio Deus.

Esse dualismo neoplatnico fez com que o Cristianismo desprezasse o mundo,

alterando completamente a relao da Igreja com a sociedade, com o corpo e com a natureza.

Sobre essa transformao na forma de olhar e viver a f, Ins C. Incio e Tania Regina de

Luca afirmam que, na Alta Idade Mdia, a matria seria de onde provm o mal, seria ela,

absoluto no ser, e o descenso dos seres encontra a seu ltimo limite, cessando a

decadncia. O homem e a natureza deixaram de ser o centro das especulaes, tornando-se

apenas intermedirios em um processo de conhecimento que tinha no Uno sua origem e seu

objetivo ltimo; a matria, o mundo natural, no eram seno fonte de todo erro, de todo mal,

de todo pecado.58

54

Ver PLATO. O Banquete. So Paulo: Rideel, 2005. Para ver a influncia de Plato e do Neoplatonismo de

Plotino em Agostinho, ver AGOSTINHO. A Cidade de Deus: contra os pagos, Parte II. 7 ed. Petrpolis:

Vozes; So Paulo: Federao Agostiniana Brasileira. 2010. 2009. Nessa obra, Agostinho discorre sobre as

aproximaes e os distanciamentos entre o Platonismo/Neoplatonismo e o Cristianismo. 55

Patrstica o nome dado a uma corrente filosfica crist do incio do Cristianismo. Seu nome deriva dos Pais da

Igreja, que foram os filsofos desse perodo que combateram, usando principalmente o Neoplatonismo, os

filsofos pagos e os hereges. Os Pais da Igreja foram os responsveis pelo estabelecimento da ortodoxia crist. 56

VASCONCELLOS, Op. cit. p. 48. 57

Sobre essa idia, ler o chamado Mito de Caverna, que se encontra em PLATO. Livro VI. In.:______. A

Repblica. So Paulo: Editora Nova Cultural, 1997. p. 191-224. 58

INCIO, Ins C.; DE LUCA, Tania Regina. O pensamento Medieval. So Paulo: tica, 1994. Segundo

Nachman Falbel, o homem medieval veria no mundo da matria a razo da decada do homem, assim como no

esprito a sua possibilidade de salvao. A plena realizao religiosa era possvel negando a matria e afirmando o

31

As idias neoplatnicas influenciaram o Cristianismo desde a exegese dos textos

bblicos, interferindo na forma de interpretar as Escrituras, at aspectos prticos da vida

crist, ou seja, nas formas de se viver a f.

No que se refere interpretao dos textos bblicos, importante ressaltar que, para o

Neoplatonismo, as palavras se ligavam de tal forma com as coisas a ponto de no se

distinguirem entre si, sendo praticamente a mesma coisa. Usando a idia grega de

smbolo,59

os homens da Alta Idade Mdia no diferenciavam Verba de res,60

pois as

consideravam uma coisa s, que estavam apenas divididas. De acordo com esse pensamento,

os homens deveriam olhar para o mundo e perceber as relaes entre as palavras e as coisas e

as ligaes dessas como a Eternidade, quer fossem com a Vida Eterna, quer fossem com a

danao sem fim.

Essa forma de ver as palavras/coisas fez com que muitas passagens bblicas fossem

interpretadas como ordens para que a materialidade fosse rejeitada, como aconteceu na

seguinte passagem: No ameis o mundo nem o que h no mundo.61

A palavra mundus, que

hoje entendida, por muitos cristos, como pecado, foi ligada diretamente a essa existncia.

importante diferenciar a idia de interpretao simblica de hoje com a do Neoplatonismo.

Para o homem hodierno, simblico algo que lembra outra coisa, mas que diferente dela.

apenas uma representao. Para o homem da Alta Idade Mdia, significava a unio de duas

coisas indissociveis. Portanto, mundo no era, no perodo influenciado pelas idias

neoplatnicas, uma alegoria para pecado como se entende na maior parte dos crculos

cristos atuais; era a mesma coisa de afastamento de Deus, de queda, isto , aquilo que

contrrio santidade.

Os exegesetas de hoje interpretam a passagem de I Joo baseados na idia de que a

palavra no original desse versculo cosmos,62

que no significa apenas mundo, mas a

esprito. FALBEL, Nachman. Os Espirituais Franciscanos. So Paulo: Perspectiva : FAPESP : EDUSP, 1995.

p. XIV. 59

Segundo Le Goff, basta pensar na etimologia da palavra smbolo para compreender o lugar ocupado pelo

pensamento simblico no apenas na teologia, literatura e arte, mas na prpria utensilagem mental do Ocidente

medieval. Entre os gregos, o symbolon era um sinal de reconhecimento, representado pelas duas metades de um

objeto dividido por duas pessoas. [...] Era a referncia a uma unidade perdida, lembrando e nomeando uma

realidade superior e oculta. No pensamento medieval, cada objeto material era considerado como a figurao de

alguma coisa que lhe corresponderia num plano mais elevado, e tornava-se, deste modo, seu smbolo. LE

GOFF, Jacques. A sociedade do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2005. p. 331-332. 60

Palavra e coisa, respectivamente, em latim 61

I Joo 2:15 (BJ). 62

I Joo 2:15 (NTI): M agapte tn ksmon mede ta em to ksmo. (Grifo nosso). Transferncia dos

caracteres gregos para os latinos feita pelo autor.

32

ordem63

que vigora no mundo, que, no caso, o sistema do pecado que alcanou a

humanidade com Ado. Portanto, o texto pretende ensinar que os cristos no devem amar o

sistema do pecado que governa esse mundo, sendo um equvoco associar esse desprezo com a

natureza e a sociedade nas concepes teolgicas atuais, sobretudo s mais ligadas s

questes sociais e ecolgicas.

Essa viso depreciativa da vida terrena no foi fruto apenas dos princpios

hermenuticos dos leitores medievais, mas da prpria traduo de que eles dispunham, uma

vez que, segundo Andr Vauchez, na Vulgata, as posies escriturrias eram radicalizadas e

empobrecidas por tradues inadequadas; foi assim que a anttese semtica entre a Carne e o

Esprito se reduziu a um antagonismo entre o corpo e a alma, ao passo que ela recobre, na

verdade, realidades muito mais complexas.64

A prpria traduo feita por So Jernimo

refletiu sua viso dualista influenciada pelo Neoplatonismo, fazendo com que a Vulgata

contribusse para o desprezo pela materialidade atravs de passagens que ensinavam a ojeriza

por essa existncia.

Alm disso, outro fator que levou os homens medievais ao desprezo da materialidade

foi a definio de ascese da Alta Idade Mdia, que era influenciada profundamente pelo

conceito estico65

de ascese, que era baseada na idia de que se deveria buscar uma

insensibilidade diante do mundo. Segundo o Estoicismo, o homem deveria aprender a

conviver com todas as situaes da vida. Quando ele no dependesse mais de fatores externos

para ser feliz, ele teria alcanado a felicidade. Assim ensinava o filsofo latino Lcio Anneo

Sneca na epstola Da brevidade de vida:

Os maiores bens demonstram inquietude, e as maiores fortunas so as menos

confiveis. Outra felicidade necessria para conservar a felicidade, e, para

os mesmo votos realizados, devem ser feitos novos votos. [...] Nunca

faltaro motivos, felizes ou infelizes, para a preocupao. A vida ocorrer

atravs das ocupaes; nunca o cio ser obtido, sempre desejado.66

Diante da impossibilidade de controlar o futuro, cabe ao homem, segundo o

Estoicismo, aprender a se conformar ao presente, seja ele bom ou ruim. Esse esprito de

63

Ksmos tambm significa ordem, que deu origem palavra cosmtico, que serve para harmonizar,

ordenar o rosto. 64

VAUCHEZ, Andr. A Espiritualidade na Idade Mdia Ocidental: sculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor, 1995. p. 42. 65

O Estoicismo foi fundado por Zeno no sculo III. Na sua verso romana, enfatizou a interiorizao do homem

como forma de negao do mundo e de busca da felicidade. O Cristianismo neoplatnico levou essa idia at as

ltimas conseqncias. Para mais informaes, ler INCIO, Ins C.; DE LUCA, Tania Regina. Op. cit. 66

SNECA, Anneo Lcio. Sobre a brevidade da vida. Porto Alegre: L&PM, 2006. p. 73 e 75. Ainda sobre a

indiferena diante do mundo, ver EPICURO. Carta sobre a felicidade: a Meneceu. So Paulo: UNESP, 2002.

33

resignao, de apatia, influenciou o ideal monstico cristo, que ensinou que era nobre

aprender a conviver com a carestia, sendo, inclusive, algo almejado. Uma forma de aprender a

viver com pouco era atravs da prtica do muito trabalho; pouco sono e comida; e a aplicao

de castigos fsicos.

Outra matriz filosfica que contribui para a forte oposio entre mundo e Cu e entre a

carne e o esprito no Cristianismo desse perodo foi o Maniquesmo,67

que polarizava o

mundo colocando, de um lado, o Cu dominado por Deus, do outro, a terra, que embora

tambm fosse considerada de propriedade de Deus, estava muito sujeita a atuao do Diabo,

do mal.

A Idade Mdia se viu, ao mesmo tempo, combatendo o Maniquesmo, por ser uma

heresia que foi combatida no incio do Cristianismo, j que colocava o Diabo em p de

igualdade com Deus; e sendo influenciada pelas idias de Maniqueu. Segundo Le Goff, a

grande heresia medieval foi o Maniquesmo (sob formas e nomes diversos). O grande erro

maniquesta foi pr Deus e Satans em p de igualdade. Todo o pensamento e o

comportamento dos homens da Idade Mdia eram dominados por um maniquesmo mais ou

menos consciente, mais ou menos sumrio.68

Assim como afetou a interpretao bblica, fazendo com que ela ressaltasse um

desprezo pelo mundo, o Neoplatonismo tambm influenciou a forma de se vivenciar a F

Crist, pois muitos cristos julgaram que se separar da sociedade e desprezar a natureza

(mundo fsico) seriam formas de se aproximar de Deus. Isso fez com que o Monasticismo

fosse encarado como ideal de vida crist. A diviso social em trs grupos ocorrida durante a

Idade Mdia reproduzia o privilgio de que dispunham os religiosos no perodo. Em primeiro

lugar, vinham os Oratores (os que oram), seguidos dos Bellatores (os que lutam) e os

Laboratores (os que ralam). O fato do clero vir em primeiro lugar nessa diviso aponta

claramente para quem tinha a primazia nessa sociedade. Essa tripartio consagra a utilidade

social da prece, indispensvel para assegurar a sobrevivncia e a salvao do mundo. [... ela

favorecia] os monges que, aos olhos dos homens daquele tempo, eram os que rezavam mais e

melhor.69

Existiam motivos econmicos e polticos para se entrar num mosteiro. Os filhos da

nobreza que, por no serem os primognitos, no tinham direito s terras senhoriais,

67

O Maniquesmo era uma religio sincrtica fundada por Maniou Maniqueu na Prsia no sculo III. Segundo

essa idia, o universo foi criado por duas foras equivalentes, mas opostas. Uma boa e outra m. Embora os Pais

da Igreja tenham combatido o Maniquesmo, ele continuou influenciando o Cristianismo por muitos sculos. Cf.

INCIO, Ins C.; DE LUCA, Tania Regina. Op. cit. 68

LE GOFF, A sociedade do Ocidente Medieval. p. 154. 69

VAUCHEZ, Op. cit. p. 33.

34

comumente, acabavam como monges ou bispos. A vida religiosa na Idade Mdia (no muito

diferente da de outros perodos) era marcada por questes ligadas economia e poltica. No

entanto, no possvel despreza o verdadeiro terror pela morte e pelo inferno que os homens

do medievo tinham.

Nas complexas relaes mentais dos europeus medievais, juntou-se o desejo de ir para

o Cu com a idia de que esse mundo e sua materialidade separam suas almas do Criador.

Essa unio fez com que a santidade fosse separada, distanciada, da vivncia no mundo. Vida

secular e vida santa, nesse perodo, se tornaram coisas antagnicas, inconciliveis.

No final do sculo X e durante o XI, com a Reforma Gregoriana, o desprezo pelo

mundo (contemptus mundi) se acentuou devido ao desejo, por parte da Igreja, de superar a

secularizao do clero ocorrida no sculo IX e incio do X, pocas ligadas unio entre o

clero e o Poder Imperial.70

Como conseqncia, o ideal monstico como quintessncia da vida

crist, que esteve presente durante quase toda a Alta Idade Mdia, por influncia do

Estoicismo, Maniquesmo e do Neoplatonismo, passou a ser ainda mais valorizado.

Os mosteiros, desde o sculo IX, passaram a ser reformulados, a partir do que Georges

Duby chamou de reforma monstica, efetuada por Lus, o Piedoso, usando-se como modelo

de perfeio a Regra de So Bento. Os mosteiros se apresentavam como cidades fechadas.

Muros em primeiro lugar, um claustro (claustrum), cujo acesso devia ser estritamente

controlado, uma nica porta, aberta ou fechada em certas horas,71

para controlar o contato

com o mundo.

As palavras de Andr Vauchez representam bem como era a relao dos cristos com

o mundo nesse perodo, que se afasta do incio da Ordem dos Frades Menores por

aproximadamente dois sculos. Para os homens da Alta Idade Mdia, a vida do claustro era

superior todas as outras formas de viver, pois que elas eram vividas no mundo, isto , em

meio a sociedade pecaminosa.

A vida monstica, afirma Vauchez, era considerada um estado privilegiado, que

permitia o retorno da criatura para o seu criador, atravs de um servio fiel a Ele prestado.

Por meio das preces litrgicas, os monges se esforavam para juntar as vozes ao coro formado

pelos anjos. Pela prtica da ascese e da mortificao, procurava levar uma vida angelical,

70

Ver LE GOFF, Jacques. So Francisco de Assis. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 27; e Ibidem. Em

busca da Idade Mdia. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008. p. 74-76. 71

DUBY, Georges. A vida privada nas casas aristocrticas da Frana feudal. In.: ______. Histria da Vida

Privada: da Europa feudal Renascena. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. (Histria da Vida Privada). p.

52.

35

longe dos prazeres e das tentaes deste mundo. O mosteiro [...] se tornava uma antecipao

do paraso, um pedao do cu sobre a terra.72

A exegese depreciativa da palavra mundo comeou a ser alterada com a entrada do

Aristotelismo no Ocidente, bem como devido a uma srie de mudanas na cultura e na

sociedade medievais.

1.2 OS CAMINHOS PARA A MUDANA DE SENSIBILIDADE

Durante a Alta Idade Mdia, o saeclum73

e a sancttas74

eram consideradas, como

vimos, coisas irreconciliveis. Para um cristo desse perodo, s era possvel alcanar as

virtudes crists, a santidade, a partir de uma vida longe do mundo (sculo), ou seja, da

sociedade, pois cada um tinha que fugir de sua prpria gerao. Com a influncia do

Aristotelismo e do crescimento urbano e econmico, a Cristandade comeou a valorizar mais

a vida terrena.

No se entenda essa maior valorizao da vida terrena como um distanciamento da

transcendncia ou preferncia pela imanncia. No significou falta de religiosidade mstica ou

qualquer tipo de aproximao de uma viso que despreze Deus; antes, foi a idia de que amar

ao Criador no implicava em odiar sua criao. A aproximao que os minoritas fizeram do

sculo representou uma tentativa de conciliar a vida de santidade com a vida de pregao

entre os homens e uma vida de amor natureza como um todo, sem significar a descrena em

Deus ou fim de uma religiosidade mstica. Foi o fim da idia de que o voto de claustro a

nica condio para a santidade, bem como contribuiu para a partilha da santidade e do ensino

entre os leigos, antes exclusivamente nas mos da Igreja.

Para Max Weber,75

a Idade Mdia foi marcada pelo que ele chamou de Ascese

Extramundana. J o Calvinismo, por outro lado, sobretudo o puritano, pela Ascese

Intramundana. Eis o sentido que Weber d palavra ascese:

Um mtodo sistematicamente arquitetado de conduo racional da vida com

o fim de suplantar o status naturae, de subtrair o homem ao poder dos

impulsos irracionais e dependncia em relao ao mundo e natureza, de

sujeit-lo supremacia de uma vontade orientada por um plano, de submeter

permanentemente suas aes auto-inspeno e ponderao de sua

envergadura tica, e dessa forma educar o monge objetivamente como

72

VAUCHEZ, Op. cit. p. 39. 73

Em latim, significa: era, gerao, mundo e vida terrena. 74

Santidade, no sentido de separao, em latim. Mas tambm pode significar virtude e pureza de costumes. 75

Ver WEBER, Max. Op. cit.

36

um operrio a servio do reino de Deus e com isso lhe assegurar

subjetivamente a salvao da alma.76

A ascese, portanto, pode ser entendida como autocontrole. Para Weber, a ascese

catlica medieval se distingue da ascese puritana moderna pelo fato desta ltima ser

plenamente intramundana. Weber reconhece que a vida metdica no estava restrita ao

claustro monstico, citando inclusive a Ordem dos Frades Menores como uma tentativa de

aproximao da vida asctica da vida cotidiana. Mas, segundo ele, o que foi decisivo para que

no existisse ascese intramundana plena na Idade Mdia foi o fato de que o indivduo que

par excellence levava uma vida metdica no sentido religioso [busca da santidade] era e

continuou sendo, nica e exclusivamente, o monge,77

pois, segundo o socilogo alemo,

quanto mais ligado ascese, mais apartado do mundo, pois a santidade era considera a

superao da moralidade intramundana. Para Weber, Lutero, mesmo que de forma parcial, foi

quem comeou a superar a idia de Ascese Extramundana e o Calvinismo Puritano foi quem

tornou plena a Ascese Intramundana, atravs da idia de se viver a santidade

profissionalmente (idia j em Lutero) e da manipulao de dinheiro e lucro sem ter a

conscincia incomodada com o conceito de pecado.78

Weber est completamente certo se o conceito de Ascese Intramundana se restringir

idia de se buscar uma vida santa (metdica no sentido de fuga constante do pecado) como

um profissional e idia de que no pecado o uso de dinheiro; mas seu conceito est

bastante limitado (no sentido de no ter atribudo aos Frades Menores e outros movimentos

medievais o conceito de Ascese Intramundana) se considerarmos que a busca por santidade

(prtica asctica), para ser considerada extramundana, no se limita ao exerccio profissional e

manipulao monetria, mas se liga tambm ao interesse maior pelo mundo natural

(Criao), pelo corpo e pela sociedade (preocupao com os necessitados e problemas da

cidade, bem como preocupao com a pregao do Evangelho). Nesse sentido, ampliamos a

idia de Weber ao afirmar que a Ascese Intramundana era um processo em avanada

construo na Idade Mdia, sendo o Minoritismo um dos principais produtos/produtores desse

processo.

Como conseqncia, a sociedade, que era muito religiosa, ansiava por formas de viver

a F Crist que permitissem a conciliao entre a vida piedosa e a vida secular, pois fez com

76

Cf. Ibidem. p. 108. (Grifos no original). 77

WEBER, Max. Op. cit. p. 110. 78

Lutero, segundo Weber, era contrrio manipulao de dinheiro e contrrio a uma srie de prticas

econmicas.

37

que a santidade, que antes s podia ser alcanada atravs de prticas extramundanas, entrasse,

cada vez mais, no mundo. No foi apenas no Calvinismo Puritano, como afirmou Max Weber,

que a santidade foi encarada como Ascese Intramundana, uma vez que esse processo havia

comeado na Baixa Idade Mdia. As igrejas calvinistas, principalmente as do sculo XVII,

apenas representaram, atravs de novas prticas e doutrinas, um nvel mais elevado dessa

aproximao da piedade do saeclum. No entanto, essa aproximao foi iniciada em meados

do sculo XI e foi bastante vivida entre as Ordens Mendicantes do sculo XIII, principalmente

a minorita.

Uma das principais mudanas para a alterao da sensibilidade crist diante do mundo

na Idade Mdia foi a substituio do paradigma filosfico neoplatnico pelo aristotlico, pois

a Teologia Crist estava mudando devido substituio do sua forma de olhar para o mundo e

para as Escrituras. Existem diversos significados para a palavra paradigma. Nesse trabalho,

ser usado o sentido dado por Thomas Kuhn no livro A estrutura das revolues cientficas.79

Dentre os significados que o fsico norte-americano d e esse vocbulo, um ser de

fundamental valor para as anlises aqui feitas: o que o homem v depende tanto daquilo que

ele olha como daquilo que sua experincia visual-conceitual prvia o ensinou a ver.80

Segundo essa conotao, paradigma o conjunto de formas de ver e interpretar partilhados

por um grupo que recebeu a mesma educao, que no necessariamente educao formal.

Isso faz com que, embora o mundo no mude, afirma Kuhn, o cientista (os homens, de forma

geral) passa a trabalhar em um novo mundo. Segundo ele, quando o cientista usa um novo

paradigma, passa a ver como se usasse lentes inversoras; defrontado com a mesma

constelao de objetos que antes e tendo conscincia disso, ele os encontra, no obstante,

totalmente transformados em muitos de seus detalhes.81

Kuhn utiliza esse conceito principalmente para a Cincia, no entanto, tambm o utiliza

para a Filosofia. Isso faz com que seja vlida a sua utilizao para o processo de interpretao

textual, ou seja, para a Hermenutica filosfica e teolgica (profundamente ligadas no sculo

XIII). Uma vez alterado o paradigma filosfico, muda a forma de olhar o texto, embora este

ltimo continue sendo o mesmo; no nosso caso, a Vulgata.

Portanto, paradigma, nesse trabalho, significa a rede de concepes filosficas que

modificam a forma de ver o mundo, as coisas e as palavras, alterando todas as esferas da vida,

79

KUHN, Thomas. A estrutura das revolues cientficas. 9. ed. So Paulo: Perspectiva, 2005. (Debates). 80

Ibidem, p. 150. (Grifo nosso). 81

Ibidem, p. 159.

38

como, por exemplo, a arte, a economia e o cotidiano. Na Baixa Idade Mdia, o paradigma

filosfico neoplatnico, que era uma forma de olhar, foi substitudo pelo aristotlico.

Aristteles era conhecido pelos cristos desde o incio da Patrstica. No entanto, a

maior parte das suas obras se perdeu e muitas, que eram neoplatnicas, foram erroneamente

atribudas ao filsofo estagirita. Segundo tienne Gilson, o desenvolvimento filosfico e

teolgico do sculo XIII seguiu-se invaso do Ocidente latino pelas filosofias rabes e

judaicas e [...] pelas obras cientficas, metafsicas e filosficas de Aristteles.82

Somente a partir do contato com a filosofia rabe, atravs da presena muulmana na

Pennsula Ibrica, que Aristteles voltou a influenciar o Ocidente novamente. Esse contanto

filosfico teve incio durante a transio do sculo X para o XI. Segundo Ins C. Incio e

Tania Regina De Luca, a escola de Toledo transformou-se em um grande centro tradutor e

difusor dessa cincia [sobretudo a medicina de Avicenas] e filosofia, atraindo estudantes

vindos de todos os pontos.83

Os dois pensadores rabes aristotlicos que mais influenciaram os filsofos e telogos

medievais foram Avicenas e Averris. O primeiro teve a obra marcada por uma profunda

relao entre o Aristotelismo e o Neoplatonismo. O segundo tentou expurgar a influncia

neoplatnica na filosofia aristotlica. Avicenas foi importante por suas obras de Medicina,

que foram a base desse conhecimento durante muitos sculos e por suas idias sobre o

Aristotelismo, obras que influenciaram muitos os pensadores cristos. Averris nasceu em

Crdoba (Espanha) no incio do sculo XII. Desde muito cedo, se dedicou ao estudo das obras

de Aristteles. Ele recebeu, durante a Idade Mdia, inclusive do prprio Dante Aleguieri, o

ttulo de o comentador, por ter sido muito arguto na interpretao e explicao do

pensamento aristotlico.

Mas no foi sem conflitos que o Aristotelismo entrou no Ocidente Medieval. Muitas

idias de Aristteles eram incompatveis com o Neoplatonismo agostiniano sedimentado por

sculos na Cristandade. Uma das idias do filsofo estagirita que no eram aceitas pela Igreja

a de que o mundo eterno e no criado. Entretanto, as idias aristotlicas que mais

influenciaram, embora tenham sido rebatidas por vrios cristos por muito tempo, foram as de

que Deus no interfere muito nessa existncia e que o objeto de estudo do filsofo esse

mundo, pois sua funo explicar os fenmenos e a realidade natural, cabendo filosofia

indagar os princpios e as causas dos seres enquanto seres.84

82

GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Mdia. So Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 466. 83

INCIO, Ins C.; DE LUCA, Tania Regina. Op. cit. p. 50-51. 84

Ibidem. p. 52.

39

Ao invs de olhar para esse mundo como reflexo distorcido da realidade perfeita, os

cristos, cada vez mais, olhavam para esse mundo como fonte de conhecimento verdadeiro.

De acordo com Etienne Gilson, o Aristotelismo foi utilizado como forma de compreender o

funcionamento da realidade.85

Com o passar das dcadas, o pensamento aristotlico foi penetrando o mundo cristo,

alterando as cincias que nasciam, a Teologia, a Filosofia e a vida crist como um todo. A

idia de que essa realidade no serve para nada foi substituda por uma viso mais otimista. O

mundo, que no transmitia nenhuma verdade, j que no passava de sombra do real, passou a

ter regras de funcionamento e lgicas que deveriam ser investigadas pelos filsofos.

Essa mudana trouxe novas formas de interpretar as Escrituras e alteraes na

Teologia e no viver no Ocidente Cristo Medieval. No que se refere ao pensamento teolgico,

o Aristotelismo gerou uma escola teolgica bastante heterodoxa: a Escola de Chartres, que,

durante os sculos XII e XIII, teve alguns membros que defendiam que Deus criou o mundo,

mas o abandonou aos cuidados dos homens, que devem estudar suas regras de funcionamento;

para outros membros dessa escola, o mundo sempre existiu e sempre existir; e tudo

passvel de conhecimento, at o prprio Deus.

O mundo deixou de ser u