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A. Sedas Nunes Propostas para uma política universitária Contribuição para um debate 1. Introdução Em obra recente, Dragoljub NAJMAN 1 salientou de entre todas as políticas e reformas do ensino superior postas em prática nos diversos países em data recente a «Open University» do Reino-Unido e a organização do ensino superior no Mali. Como o seu livro o demonstra, trata-se das duas inovações mais promissoras de uma reconversão das estruturas e dos métodos universitários no sentido de uma profunda inserção na dinâmica do desenvolvimento socio-económico e cultural 2 . A «Open University» encontra correspondência em Portugal no projecto de criação da Universidade Aberta (UNIABE) 3 . Por outro lado, tomando por base a experiência do Mali, cremos possível conduzir, sobre a actual problemática universitária portuguesa, uma reflexão que leve a definir, em certos pontos fulcrais, soluções que se antolham as mais correctas no quadro de uma política universitária global e eficaz. O nosso país poderia, deste modo, vir a beneficiar das duas experiências de vanguarda que actual- mente se destacam no conspecto internacional. No presente texto, apenas intentaremos expor um contributo parcelar para aquela reflexão, na expectativa de que outros contributos concorram para que se instaure um largo debate sobre a política universitária em Portu- gal. Tocaremos em questões que — supomos — não serão julgadas vitais somente por nós. Limitações de espaço e considerações de método levar- -nos-ão, entretanto, a passar em silêncio sobre outros problemas que não consideramos nem menos cruciais, nem menos carecentes de debate aprofundado. 2. Uma experiência modelar Logo após a independência, o governo do Mali achou-se confrontado com o iproblema urgente da preparação de quadros superiores nacionais. Recusando seguir o exemplo da generalidade dos governos do Terceiro- 1 Director do Ensino Superior e da Formação do Pessoal da Educação, na UNESCO. 2 Vd. Dragoljub Najman, L`Enseignement supérieur, pour quoi faire?, Paris, Fayard, 1974. 8 Vd. «Para a criação de ama universidade aberta em Portugal», Análise Social, XI (41), 1975-1.°, pp. 161-171. 711

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A. Sedas Nunes

Propostas para uma políticauniversitária

Contribuição para um debate

1. Introdução

Em obra recente, Dragoljub NAJMAN 1 salientou — de entre todas aspolíticas e reformas do ensino superior postas em prática nos diversos paísesem data recente — a «Open University» do Reino-Unido e a organizaçãodo ensino superior no Mali. Como o seu livro o demonstra, trata-se dasduas inovações mais promissoras de uma reconversão das estruturas e dosmétodos universitários no sentido de uma profunda inserção na dinâmicado desenvolvimento socio-económico e cultural2.

A «Open University» encontra correspondência em Portugal no projectode criação da Universidade Aberta (UNIABE)3. Por outro lado, tomandopor base a experiência do Mali, cremos possível conduzir, sobre a actualproblemática universitária portuguesa, uma reflexão que leve a definir,em certos pontos fulcrais, soluções que se antolham as mais correctas noquadro de uma política universitária global e eficaz. O nosso país poderia,deste modo, vir a beneficiar das duas experiências de vanguarda que actual-mente se destacam no conspecto internacional.

No presente texto, apenas intentaremos expor um contributo parcelarpara aquela reflexão, na expectativa de que outros contributos concorrampara que se instaure um largo debate sobre a política universitária em Portu-gal. Tocaremos em questões que — supomos — não serão julgadas vitaissomente por nós. Limitações de espaço e considerações de método levar--nos-ão, entretanto, a passar em silêncio sobre outros problemas que nãoconsideramos nem menos cruciais, nem menos carecentes de debateaprofundado.

2. Uma experiência modelar

Logo após a independência, o governo do Mali achou-se confrontadocom o iproblema urgente da preparação de quadros superiores nacionais.Recusando seguir o exemplo da generalidade dos governos do Terceiro-

1 Director do Ensino Superior e da Formação do Pessoal da Educação, naUNESCO.

2 Vd. Dragoljub Najman, L`Enseignement supérieur, pour quoi faire?, Paris,Fayard, 1974.

8 Vd. «Para a criação de ama universidade aberta em Portugal», AnáliseSocial, XI (41), 1975-1.°, pp. 161-171. 711

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-Mundo que, ao criarem universidades, se limitaram a transpor para osseus países, mais ou menos fielmente, os modelos institucionais universitá-rios das antigas Metrópoles coloniais, o Mali decidiu organizar o seu ensinosuperior em moldes originais, adequados às suas próprias realidades e,mais especificamente, às suas concretas necessidades em pessoal altamentequalificado.

Numa primeira fase, o governo do Mali criou sucessivamente cincoinstituições de ensino superior, correspondentes aos principais domíniosda vida económica e social do país. Todas essas instituições, na sua maiorparte pluridisciplinares, se destinam a formar categorias bem determinadasde profissionais: aquelas que se entendeu serem as de que o Mali tinhaimediata necessidade.

A primeira instituição que surgiu foi uma Escola Normal Superior,tendo por função essencial preparar docentes para os ensinos secundários.Este estabelecimento substitui as tradicionais Faculdades de Letras e deCiências e proporciona aos seus alunos uma formação simultaneamenteteórica e prática, de modo a constituir uma verdadeira escola de profissionaisda docência ao nível secundário. Tanto os alunos como os professores daEscola exercem, aliás, funções docentes em instituições de ensino desse nível.

Após a Escola Normal Superior, foi criada uma Escola Nacional deAdministração, cuja finalidade consiste em preparar os quadros directivose técnicos, quer para os serviços da administração pública, quer para asempresas. Este estabelecimento ocupa o lugar que, nas Universidadeslatinas, é preenchido pelas Faculdades de Direito, de Ciências Políticas eSociais, de Economia e de Gestão Empresarial.

Um Instituto Rural Politécnico foi seguidamente fundado. A suatarefa básica reside em formar quadros polivalentes paira o desenvolvimentoda agricultura. Engloba, nomeadamente, a Agronomia, a Silvicultura e aMedicina Veterinária, abordadas numa perspectiva que envolve o estudodos processos sociais e institucionais susceptíveis de promoverem o desen-volvimento agrícola e a transformação e elevação das condições de vidadas populações rurais.

Os dois últimos organismos instituídos foram uma Escola de SaúdePública, que forma as diversas categorias de pessoal médico e paramédico,e um Instituto Nacional de Obras Públicas, que prepara os engenheirosindispensáveis ao desenvolvimento das indústrias e dos transportes.

Em 1971, uma segunda fase se abriu porém, em função de um novoproblema que então se pôs às autoridades do Mali: o de como e ondepreparar o pessoal docente para as cinco instituições de ensino superioranteriormente implantadas. Vários foram os motivos que suscitaram talproblema.

Por um lado, a política, até então adoptada, de envio de jovensdiplomados para o estrangeiro, a fim de aí adquirirem as qualificaçõesindispensáveis, mostrara-se insatisfatória. Com efeito, os estudos no exteriorrevelavam-se frequentemente mais demorados do que o exigia a dinâmicainterna do ensino superior, e uma parte considerável dos estudantes depós-graduação enviados para universidades estrangeiras não retornavaao país. Perturbava-se, deste modo, o cumprimento dos programas estabe-lecidos e agravava-se o já elevado custo da formação de pós-graduados.Finalmente, a preparação assim obtida pelos futuros professores do ensinosuperior era não raro inadequada às necessidades nacionais e tendia a

712 «distanciar» os jovens que a recebiam dos problemas reais do seu país.

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Por outro lado, tornara-se evidente que as cinco instituições precedente-mente criadas não ofereciam condições, absorvidas como estavam pelastarefas do ensino de graduação, para assumir simultaneamente a funçãode preparar pós-graduados e docentes.

A solução adoptada consistiu em montar um sistema de formaçãodestinado a recém-diplomados do ensino superior maliano e capaz de lhespermitir obter, no seu próprio país, as qualificações teóricas e profissionaisnecessárias para ensinar, sem sacrifício do nível e eficiência da práticapedagógica, nos diversos institutos de estudos superiores. Tal sistemaconcretizou-se na fundação de um Centro Pedagógico Superior, organismode pós-graduação e investigação científica, que precisamente concentrouem si a função de preparar professores para as escolas de graduação.

Dada a carência do Mali em pessoal habilitado ou disponível paraorientar a formação e as investigações de pós-graduados, o Centro temsido animado, na sua fase de arranque, por um conjunto de professores-- visitantes estrangeiros, dos mais reputados do mundo, que nele trabalhamdois a três meses por ano, geralmente repartidos por vários períodos maiscurtos. Durante as suas permanências no Centro, esses professores orientamde forma directa (praticamente individualizada) a preparação e os trabalhosde cada um dos jovens licenciados colocados sob a sua direcção de estudos.Nos intervalos entre as permanências dos seus professores-orientadores,aqueles jovens prosseguem as suas investigações, com vista à obtenção dedoutoramentos de especialidade. Os primeiros doutoramentos (em Mate-mática) tiveram lugar em Janeiro de 1973, ou seja: cerca de dois anosdepois de o problema da preparação dos docentes universitários ter sidoformulado a nível governamental. Esta celeridade só foi possível graçasà ajuda da UNESCO e a um certo número de acordos bilaterais de coope-ração cultural e científica com outros países.

«Testemunhámos neste país pobre do Sahel — nota D. NAJMAN — umempreendimento, no campo do ensino superior, destinado a satisfazer, nãosomente as necessidades imediatas e a médio prazo do desenvolvimentoeconómico e social, mas igualmente as próprias necessidades do ensinosuperior»4.

3. A opção política fundamental

Em primeira aproximação, pode sem dúvida afigurar-se que o quadroinstitucional que acabamos de descrever em linhas muito gerais, dificilmentepoderá ser tomado como termo de referência para uma reflexão útil sobreproblemas universitários portugueses, de tal modo o sistema educacionalsuperior instituído nesse quadro é diferente do que em Portugal se conhece.

Entretanto, não deixemos de notar que foram duas as finalidades essen-ciais que informaram a criação desse sistema. Por um lado, pretendeu-sefornecer ao país o pessoal com as habilitações profissionais superioresconcretamente requeridas pelo desenvolvimento nacional nos seus diversosdomínios. Por outro, quis-se garantir, às instituições incumbidas de formaraquele pessoal, um permanente recrutamento de agentes altamente quali-ficados para o exercício das respectivas funções docentes. Ora, posta a

4 Cfr. Dragoljub Najman, op. cit, p. 40. 713

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questão nestes termos, um paralelo com o caso português começa a fazerdesde logo sentido.

Teoricamente, o paralelo poderia estabelecer-se em relação a ambasas finalidades. Mas, no que à primeira respeita, ele seria sobretudo válidopara novas universidades —ou para novos estabelecimentos isolados deensino superior — já criadas ou a criar em Portugal. Mais especificamente:para novas universidades ou novos estabelecimentos universitários isoladosda província. Nas antigas Universidades de Coimbra, Lisboa e Porto, sóatravés de fortes traumatismos, de mais que duvidosa viabilidade política,esquemas institucionais desde longa data montados poderiam ser submetidosa um processo de reagrupamentos que profundamente alterassem a suaconfiguração geral.

Por outro lado, as não insignificantes disparidades sócio-económicase culturais entre Portugal e o Mali justificam inteiramente que na sociedadeportuguesa se conservem instituições que do Mali foram «a priori» banidas.É o caso, nomeadamente, das Faculdades de Ciências e de Letras. O quenão deveria, porém, ser elidido é o problema da perfeita clarificaçãodas funções que, no interior do sistema educacional, essas instituiçõesdeveriam conscientemente assumir e preencher, problema que implicae contém o da organização mais adequada ao exercício eficaz de tais fun-ções 5. De resto, uma revisão geral de objectivos, actividades e orgânicas,operada em função das exigências do desenvolvimento nacional revolu-cionariamente perspectivado, não é necessária somente nos ramos dasCiências e das Letras, que são apenas casos extremos de contradição internae inadaptação social, resultantes de prolongados anos de imobilismo insti-tucional e de política obscurantista: é igualmente indispensável em pratica-mente todos os sectores do sistema universitário.

Não tem geralmente faltado, nas populações docentes e discentes, umaconsciência aguda de tal necessidade. Nem por isso é menos certo que,na maior parte dos estabelecimentos que integram o sistema, essa consciên-cia — dividida e conflitual— não encontrou ainda as formas de umaadequada e estável objectivação. Apesar de sob certos aspectos a revoluçãoter agido nas instituições universitárias desde muito antes do «25 de Abril»,não lhe foi possível, por enquanto e por via de regra, ultrapassar aberta-mente a fase negativa (da crítica, da recusa, da negação), situando-se depleno na da definição e construção de projectos positivos (consubstanciadosna firme determinação e consolidação de novas orientações e novos esque-mas operatórios). Simplesmente: por motivos óbvios, a viabilidade e omomento dessa passagem estão por completo dependentes do desenrolar,em todos os níveis, do processo político global em que o país se achaenvolvido. Assim, pode prognosticar-se que, dum modo geral, as escolas irãomanter-se em estado de busca e revisão por tempo não previsível — e quea sua reivindicação essencial, perante o poder público, será, por todo essetempo, precisamente a de autonomia para prosseguir no seu movimento de

5 Já em 1968 tocámos neste ponto em: A. Sedas Nunes, «O sistema univer-sitário português: alguns mecanismos, efeitos e perspectivas do seu funcionamento»,Análise Social, vi (22-23-24), pp. 406-415. Vd. também: J. P. Miller Guerra e A. SedasNunes, «A crise da universidade em Portugal: reflexões e sugestões», Análise Social,

714 VII (25-26), 1969, pp. 29-31.

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reiterada procura. Uma política, por parte do poder público, que pusesseem causa essa autonomia e o processo de «auto-reforma» que nela se sus-tenta, não seria apenas inútil por inoperante. Seria, de facto, indesejável,na medida em que, além de perturbar e complexificar ainda mais aqueleprocesso, iria reduzir as escassas possibilidades que restam de cooperaçãofecunda entre o poder público e as escolas. Por todos estes motivos, torna-seclaro que reflexões de carácter geral6 acerca da primeira das finalidadesacima enunciadas, seriam por ora parcamente promissoras de conduzir aalgum resultado mais que académico. A não ser —insistamos— no querespeita a novas universidades ou novos estabelecimentos universitáriosisolados, em especial da província.

Objectivamente, a política do poder público em relação às universi-dades tradicionais está colocada, presentemente, no nosso país, ante umaopção fundamental Ou intervir a fundo nos ensinos de graduação (ou depré-graduação, como queira dizer-se), isto é: nos que preparam bacharéis elicenciados—, o que, além de desaconselhável por todas as razões querapidamente acabamos de evocar, implicaria, dadas as dimensões e ocrescimento dos efectivos escolares, uma intensiva e desgastante mobilizaçãodos docentes disponíveis, para a função de ensinar a esse nível, no quadrode um ensino de massas. Ou intervir preferentemente na formação pós--graduada de especialistas e de futuros docentes universitários cientifica-mente bem equipados — o que pressupõe, dadas as notórias insuficiênciasquantitativas e qualitativas que se verificam no actual corpo docente doensino superior, aceitar que, durante algum tempo, o ensino de pré-gradua-ção não possa averbar substanciais melhorias de qualidade directamenteinduzidas por acções do poder público, ficando sobretudo dependente dascapacidades autónomas de «auto-reforma» e «auto-organização» de que asescolas se revelem detentoras e que poderão, aliás, ser administrativamentereforçadas (por exemplo, no que se refere a recrutamento de docentes).

A primeira alternativa, se pudesse ter sucesso, sacrificaria, em princípio,o futuro das universidades ao seu presente imediato. Mas, por força dequanto acabamos de sucintamente expor, não ofereceria afinal quaisquergarantias de, no presente, poder efectivamente produzir resultados nãomedíocres, verdadeiramente compensadores do volumoso consumo deenergias e do pesado desgaste de competências que necessariamente iriaocasionar. A segunda alternativa, pelo contrário, prepararia decididamenteo futuro, um futuro próximo de resto, sem que se lhe possa assacar quelhe sacrificaria o presente imediato, pois que faltam de todo os motivosque pudessem assegurar que, optando pela alternativa oposta, o poderpúblico viria a alcançar, desde logo ou em curto prazo, resultados signifi-cativamente mais vantajosos e «económicos» que os que pode produzir ainiciativa autónoma das escolas.

Parece-nos claro que o poder público deverá optar decididamente pelasegunda alternativa. Ela abre-lhe um campo de acção onde as suas iniciativase intervenções se podem exercer com satisfatória segurança e eficácia,porque com muito maior independência relativamente aos difíceis problemase complexas situações específicas com que a maioria dos estabelecimentos

8 É claro que só num plano de generalidades nos podemos situar aqui. 715

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universitários de ensino de pré-graduação se defrontam 7. Por outro lado,só ela permite que a valiosa «reserva de competências universitárias)) deque, apesar de todas as limitações já referidas, o país continua a dispor,seja, ao menos em parte considerável, efectivamente investida num esforçocolectivo de que a não longo prazo toda a universidade beneficiará, e nãodesperdiçada em consumos imediatos, largamente improdutivos e, a nívelindividual, extremamente frustrantes e deseneorajadores.

Espontaneamente, ocorre aqui estabelecer o paralelo — em que dora-vante procuraremos fixar-nos — com a segunda das finalidades essenciaisque informaram a modelação do sistema educacional superior do Mali ecom a fórmula institucional nele adoptada para a prossecução de talfinalidade. Relembre-se que se tratava de instaurar, para além dos esta-belecimentos e ensinos de pré-graduação, um processo permanente e institu-cionalizado de preparação de docentes universitários altamente qualificados.E recorde-se que o processo instituído foi confiado, não às próprias escolasde pré-graduação, mas a um organismo de investigação científica e deformação pós-graduada que, aparentemente colocado à margem delas (poisque institucionalmente estabelecido a seu lado), se tornou no entanto, emvirtude das funções de que se viu investido, no verdadeiro cerne de todoo sistema.

Obviamente, não está nem poderia estar em causa copiar a fórmulado Mali, em si mesma. O que importa frisar é tão-só que, se o poderpúblico pode esperar desenvolver nas actuais circunstâncias, em Portugal,uma política que contribua eficazmente para a reconstrução e a reconversãodo ensino superior, essa política, no que toca às antigas universidades,terá de incidir principalmente sobre determinadas margens institucionaisdo sistema, atribuindo-lhes estatuto e funções e proporcionando-lhes ins-trumentos de acção e recursos que precisamente lhes permitam passar dasituação de franca marginalidade que as tem caracterizado a uma posiçãode relativa centralidade funcional — o que de modo algum significa proe-minência ou centralidade institucional — no sistema. Há, com efeito, todauma cercadura «apontoada» de institutos, centros, gabinetes e núcleos deinvestigação que, por assim dizer, rodeiam e marginam as nossas universi-dades tradicionais. Uma política e uma prática apropriadas poderão con-

T Já em 1970 sublinhámos uma distinção à qual importa hoje atribuir umrelevo incomparavelmente maior. Escrevemos, então, que «em Portugal, como emmuitos outros países, as universidades atravessam uma crise estrutural, que resultasem dúvida das desadaptações e disfunções que podemos imputar-lhes. Ao mesmotempo, porém, são atravessadas por conflitos sociais que as transcendem», conflitosque «têm que ver com as estruturas económicas, sociológicas, institucionais e culturaisda sociedade global e com todo o processo de tensões e de mudanças a que essasestruturas estão submetidas» (cfr. A. Sedas Nunes, O Problema Político da Univer-sidade, Lisboa, Dom Quixote, 1970, p. 276). Actualmente, o elemento «conflitossociais» sobreleva por forma esmagadora (e, por assim dizer, absorve) o elemento«crise estrutural», apesar de este ser muito evidente, por exemplo, no aspecto deinadequação dos quadros docentes e das instalações ao volume da população estudan-til. Ao mesmo tempo, porém, o poder público aparece hoje como parte muito maisdirectamente e diversificadamente envolvida do que antes nos «conflitos» (anterior-mente, era tão-só o «representante legal e repressivo» do «inimigo comum»). Estacircunstância impedi-lo-á de ser um agente eficaz de superação da «crise» (por muitocorrectas que sejam as medidas que tome), enquanto, mantendo-se intensa a confli-tualidade social global, as suas intervenções se focarem no campo privilegiado demanifestação expressiva de «conflitos sociais» que são exactamente as escolas de

716 graduação.

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vertê-la num eficiente conjunto de órgãos produtores não só de investigaçõese de estudos, mas também de pessoal especialmente habilitado para o exer-cício da docência universitária e de materiais pedagógicos inovadores e dealta qualidade.

Se essa orla institucional —actualmente frágil, insegura, dispersiva,assimétrica, inconsistente — for efectiva e decididamente consolidada, refor-çada, reajustada e formalmente incumbida de atribuições de pós-graduaçãoe de elaboração de instrumentos de ensino universitário, há motivo paraencarar sem graves apreensões o futuro das universidades tradicionais por-tuguesas, contanto que, paralelamente, se criem condições exteriores a essasuniversidades que conduzam a reduzir a pressão da procura estudantila que têm estado submetidas. A breve trecho, as suas escolas começarãoa beneficiar de um valorizante influxo de novos conhecimentos e especiali-zações, de novos docentes cientificamente bem preparados e de novosmeios para a sua prática pedagógica. De resto, estão aí bem à vista expe-riências concretas portuguesas que, mau grado as suas limitações e oscondicionalismos desfavoráveis que lhes foram impostos, não deixammargem a dúvidas quanto a este ponto — indicando assim o caminho queconvém trilhar.

Uma prévia opção política muito clara é, porém, como já ficou dito,indispensável. As orientações ambíguas, os compromissos eivados decontradições, as decisões irrealistas fundadas no puro esquematismo ideoló-gico, essas só de facto poderão servir o fomento ou prolongamento de situa-ções desprovidas de virtualidades para criar formas positivas de garantiro eficiente funcionamento futuro das universidades e para simultaneamenteo associar, de modo adequado, às novas exigências revolucionárias do desen-volvimento e da cultura nacionais. E não se sairá de tal enredo, em queas energias e recursos do poder público se esgotam e as suas mais bemintencionadas iniciativas se esboroam, enquanto a opção política efectiva —se não explicitamente tomada, ao menos implicitamente acolhida — for ade se continuar a atribuir ao ensino de pré-graduação a primazia que oregime deposto pelo «25 de Abril» herdou de tempos mais recuados e porsua vez consagrou. Em qualquer bom sistema universitário de qualquer partedo mundo, o ensino de pré-graduação é um produto derivado, por uma ououtra forma, de actividades de pós-graduação estreitamente associadas àinvestigação científica — e agora cada vez mais ligadas também à pesquisa,invenção e experimentação de novos modelos de prática pedagógica e denovos meios de comunicação de conhecimentos8.

Insistamos, todavia, em que importa aliviar a pressão quantitativa daprocura estudantil a que as universidades tradicionais se têm encontradosujeitas. Em tal procura, há duas componentes a destrinçar: a que éconstituída por trabalhadores-estudantes e a que é formada por estudantes«tout court». Ora, a pressão dos primeiros pode ser muito sensivelmenteminorada pela entrada em funcionamento da Universidade Aberta. Quantoà pressão dos segundos, poderá ver-se fortemente reduzida em consequência

8 Quanto a este último ponto, assinale-se que as teorias pedagógicas contem-porâneas estão evolucionando rapidamente no sentido de considerarem o professor,não já propriamente como o agente da aprendizagem estudantil, mas como ummediador num processo de auto-aprendizagem. Por outro lado, a relevância confe-rida à metodologia do ensino universitário é hoje tal que já não é raro, em univer-sidades «de ponta», aceitarem-se, nos departamentos científicos, teses de doutora-mento sobre a pedagogia de determinada ciência (seja a física, a matemática, etc). 777

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da abertura de novas universidades, de novos estabelecimentos universitáriosisolados e de escolas normais superiores, conquanto instaurem uma efectivadescentralização espacial do sistema universitário.

No que toca a este último ponto, será útil acrescentar que julgamosseria errado conceber e montar as novas universidades da província (e o quese diz das novas universidades é extensível a novos estabelecimentos uni-versitários isolados) em termos demasiadamente «regionalizados», digamos:como universidades (ou estabelecimentos) de vocação essencialmente localisso significaria continuar a reservar às Universidades de Coimbra, Lisboae Porto as vocações de âmbito nacional, o que seria contraditório com o«estado de saturação quantitativa» por elas atingido. Por outras palavras:seria necessário conseguir que surgissem pela província escolas de medicina,de engenharia, de economia, etc, concorrenciais com as dos três centrosuniversitários tradicionais. Mais importante que a «regionalização» do ensinouniversitário, é na verdade a sua efectiva «descentralização». A UniversidadeAberta seria igualmente —em virtude da sua inigualável capacidade dedifusão territorial — um outro e excelente instrumento de descentralizaçãouniversitária.

4. Para além da «universidade=colecção de escolas»

Escrevemos em 1970: «temos universidades em Portugal que sãosimples colecções de escolas. Temos escolas primárias, escolas secundáriase escolas universitárias. Não temos instituições de ensino superior ondeaqueles que ensinam estejam simultânea e necessariamente ocupados notrabalho científico ou no trabalho de estudo e reflexão nos domínios dasua especialidade. Uma universidade é um liceu de mais alto nível, assimcomo um liceu é uma escola primária de mais alto nível»9. Isto que há anossublinhámos, muito mais que então importa agora contestá-lo (10). Masnote-se desde logo que contestá-lo e pô-lo em causa não significa, em nossoentender, propor que se introduzam no já abalado sistema estabelecidoalterações que ainda mais profundamente o perturbem. Significa —issosim — insistir em que ele carece de ser completado com elementos orgânicosonde se concentre e desenvolva uma actividade — funcionalmente central,mesmo se institucionalmente lateral — que responda a uma das suas neces-sidades essenciais: a de ser permanentemente «abastecido» e vitalizado

9 Cfr. A. Sedas Nunes, O Problema Político da Universidade, Lisboa, DomQuixote, 1970, pp. 280-281.

10 Por isso nos causa apreensões, ler, numa recente publicação (V GovernoProvisório) da Secretaria de Estado do Ensino Superior e da Investigação Científica(Politica do Ensino Superior. Bases para um Programa, Lisboa, 1975, p. 38), o se-guinte: «a estrutura institucional do sistema de ensino superior terá por base a * escola*ou 'faculdade', definida como instituição que ministra os ensinamentos de pré-gra-duação, visando certo ou certos perfis profissionais. Nas universidades em que issofor possível —nomeadamente por o tipo de implantação geográfica o permitir—,poderão ser utilizadas estruturas doutro tipo, substituindo, nomeadamente, a 'facul-dade' pelo 'departamento'. Assim, se a organização por 'faculdades' é a 'organização--tipo', não deverá ser a organização exclusiva, nem a predominante ao nível dasactividades de pós-graduação e de investigação, em que a organização departamentalpode resultar mais adequada». Só é possível designar de «organização-tipo» a «orga-nização por escolas», se implicitamente se relegam para lugar marginal as «activida-des de pós-graduação e de investigação», às quais haveria, pelo contrário, que atri-

718 buir posição funcionalmente central.

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por novos conhecimentos, novos métodos e novo pessoal docente altamentequalificado.

Retorne-se ao exemplo do Mali. Não foi porventura uma colecção deescolas o que aí primeiro se criou? E não surgiu depois o Centro PedagógicoSuperior para completar o sistema, sem de modo algum o perturbar, antespreenchendo —e de acordo com as indicações da própria prática— umrequisito central da eficiência, qualidade e adequação nacional do ensinodas escolas, isto é: da eficiência, qualidade e adequação às realidades na-cionais do sistema no seu conjunto?

Vale, porém, a pena reflectir mais detidamente sobre o significado daexperiência efectuada nesse país. Para o efeito, comecemos por desfibrara solução posta em marcha pelo governo do Mali nos quatro princípiosfundamentais que nela se entrelaçam:

o princípio de uma nítida demarcação, dentro do sistema institucionaldo ensino superior, entre a função de formar pré-graduados e a deinvestigar e preparar pós-graduados e docentes universitários;

o princípio da atribuição às escolas da exclusiva função de formarpré-graduados, numa perspectiva de preparação para o exercício deprofissões determinadas;

o princípio da entrega das funções da investigação científica avan-çada e da formação de pós-graduados e docentes universitários auma instituição especial, distinta das escolas;

o princípio da integração do sistema constituído pelas escolas depré-graduação, por um lado, e pelo instituto de investigação e pós--graduação, por outro, mediante uma articulação global capaz deassegurar que a actividade deste último corresponda precisamenteàs necessidades daquelas.

É evidente que o facto de a organização do ensino superior no Maliter podido ser montada inteiramente de raiz — e não a partir de estruturasde ensino e investigação pré-existentes e com mais ou menos longas tradi-ções, hábitos e ideologias criados — tornou naturalmente possível a aplicaçãointegral e perfeitamente coerente dos princípios que acabamos de enunciar.Além disso, esta foi facilitada — um pouco paradoxalmente aliás — pelaprópria situação de extrema penúria do país em pessoal docente e investi-gador do mais alto nível. De facto, só em tais condições se pode compreenderque a centralização, num único instituto, de toda a actividade de investigaçãoe formação de pós-graduados e docentes universitários haja podido seraceite e instituída como uma boa solução11.

Impõe-se reconhecer, portanto, e estamos intencionalmente a repetir--nos, que em Portugal se há-de partir de dados de base diferentes. Estes,

11 Imagine-se — só para o «conjunto universitário» de Lisboa: UniversidadeClássica e Universidade Técnica, para não referir já outros estabelecimentos deensino superior — a criação de um organismo análogo, e logo ressaltará que a suacomplexidade interna e as suas dimensões seriam tais, que forçosamente se imporiabuscar, para resolver o mesmo problema, uma fórmula institucional diferente: talvezvários institutos interdisciplinares distintos e separados, ou talvez, de preferência, umaou mais organizações de tipo «federativo», similares à Escola Prática de Altos Estu-dos, de Paris. Voltaremos a este ponto mais adiante. 719

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se sob certo ponto de vista representam não depreciáveis vantagens situa-cionais, sob outros aspectos levantam dificuldades vultosas à adopção desoluções inteiramente satisfatórias. Não deixemos então de seguidamentereconsiderar cada um dos quatro princípios expostos, tendo em vista ocaso português.

5. As escolas universitárias e a pós-graduação

Tomemos, pois, o primeiro desses princípios, a saber: aquele queestabelece uma firme demarcação institucional, dentro do sistema do ensinosuperior, entre a função de formar pré-graduados e a de investigar epreparar pós-graduados e docentes universitários. Tal demarcação — acasoserá ainda necessário dizê-lo? — constitui um pressuposto basilar da opçãopolítica fundamental a que atrás nos referimos. Acrescente-se, porqueanteriormente não terá ficado claro, que não são unicamente motivos cir-cunstanciais — digamos: de «conjuntura universitária», dependentes da«conjuntura política» global—, mas igualmente razões de fundo, que anosso ver justificam aquela opção e o seu pressuposto agora referido.Mas falta-nos aqui tempo e espaço para dessas razões nos ocuparmos.

Certo é, porém, que o princípio em causa vai contra opiniões mais oumenos fortemente arraigadas, pelo menos numa parte significativa dosdocentes das universidades tradicionais: partindo do postulado de quea formação de pós-graduados e docentes universitários é o «prolongamentológico» da formação de graduados, propugna-se que seja exclusivamenteinstituída em estreita ligação e continuidade com esta última, inclusiva-mente no quadro das mesmas instituições (as escolas) e até no interior dosmesmos edifícios.

As determinantes sociais destas ideias não são difíceis de identificar:por um lado, como noutra ocasião mostrámos32, o rápido incrementodas populações estudantis entrou em contradição, desde há anos, com os(então) rígidos dispositivos docentes das escolas, suscitando toda umasérie de antinomias e de círculos viciosos, de efeitos acumulativos. Aquiapenas interessa mencionar, em relação à maior parte dos estabelecimentos,que o ensino sofreu uma real e progressiva deterioração (inicialmente tradu-zida em sensíveis quebras de produtividade); que no recrutamento dosjovens docentes, o nível das exigências qualitativas foi gradualmente bai-xando; e que a grande maioria dos assistentes, não somente se defrontoucom um quadro de lugares de acesso cada vez mais exíguo relativamente aoseu número, como teve de sujeitar-se a condições de trabalho de tal modoincompatíveis com qualquer esforço sistemático e continuado de auto--formação pós-graduada e de preparação de provas universitárias (douto-ramentos, concursos), que ano após ano se passou a assistir à paradoxalsituação de, ao mesmo tempo que permaneciam vagos não poucos lugaresde professor, serem numerosos os assistentes a abandonar definitivamenteas instituições e raros os que se candidatavam àqueles lugares. Foi este ocontexto que fez surgir em professores particularmente dedicados à activi-dade universitária a ideia e o desejo de se organizarem cursos de pós-gra-

11 Cfr. A. Sedas Nunes, «O sistema universitário em Portugal: alguns meca-nismos, efeitos e perspectivas do seu funcionamento», Análise Social, vi (22-23-24),

720 1968, pp. 462-468.

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duação, enquanto meios de luta indispensáveis contra o que se lhesapresentava como um processo de degradação institucional. Esses cursospermitiriam compensar em parte as deficiências do ensino de massas;proporcionariam aos jovens docentes oportunidades e estímulos para a suavalorização científica; e oferecer-lhes-iam orientação e apoio para o prosse-guimento das suas carreiras. Por outro lado, porém, os professores atravésde quem estas ideias e projectos irromperam nas universidades, encontra-vam-se forçosamente submetidos à escola como quadro de referência doseu empenhamento universitário. Falavam decerto «da universidade»; mas,mesmo sem de tal se aperceberem, a universidade de que falavam eramuito especificamente «a sua escola»—única realidade universitária por elesconcretamente sentida e vivida no seu dia-a-dia, porque único quadro físicoe social real onde a actividade universitária adquiria sentido e de factose exercia. Assim, «cursos de pós-graduação» e «escola» associaram-se nummesmo e único pensamento. Em cada escola, foi afirmada a necessidade decursos de pós-graduação da escola, E a escola foi erigida em lugar própriodos cursos de pós-graduação13.

É evidente que não poderia caber nos nossos propósitos opor argu-mentos a que se criem e organizem cursos de pós-graduação nas escolasonde sejam viáveis. Aliás, já deixámos claramente expresso que importaproceder, não segundo princípios rígidos, mas com a flexibilidade que acada passo permita levar em conta os dados e potencialidades reais das si-tuações donde se parta. Simplesmente, há que reconhecer que são de «crise»(e também de «conflito») as situações em que a generalidade das escolasuniversitárias se têm mantido desde há anos — e que, após o «25 de Abril»,essas situações assumiram nalguns casos aspectos muito próximos dadissolução institucional. Nestas circunstâncias, não julgamos realista acre-ditar que, globalmente consideradas, as escolas, para além de todas asdificuldades e incertezas com que se debatem ao nível do ensino de pré--graduação, possam ainda, na escala que se torna necessária, montaresquemas operacionais de pós-graduação e de preparação de docentes emgrau elevado de qualificação. E estamos em crer que os professores queentendem que é nas escolas que a pós-graduação deve ter lugar, nem porisso deixarão de se converter (prestando-lhe colaboração) a que ela selocalize noutros espaços institucionais. Ponto é que uma política adequadaaí a impulsione e decididamente a sustente. Quanto às escolas, só terão aganhar com isso — como no Mali.

Do que precede resulta já aceitação, mas sem rigidez, do segundodos princípios antes enunciados: a atribuição às escolas da função primordialde formar pré-graduados, numa perspectiva de preparação para o exercíciode profissões determinadas. Não nos atardaremos, contudo, em comentáriosa este ponto. Este é na verdade o terreno em que, como já dissemos, asescolas se irão manter, por tempo não previsível, em estado de buscaincessante e no qual o poder público, ao definir as suas próprias orientações,deverá cuidar particularmente de não ferir a fundamental reivindicação deautonomia universitária, autonomia que, de resto, seguramente levará certas

13 Será necessário esclarecer que não se contém no nosso texto qualquer intuitocrítico em relação a professores que tão lucidamente se aperceberam da importânciacrucial dos cursos de pós-graduação? Apenas quisemos assinalar as determinantessociais da forma como, no pensamento de muitos, «escola» e «cursos de pós-gradua-ção» se relacionaram entre si. 721

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escolasy cujas condições objectivas são particularmente favoráveis parao efeito, a romper com inteira justificação o confinamento ao ensino depré-graduados e a lançar-se em iniciativas destinadas a formar pós-graduadose docentes universitários. Além do mais, a necessidade nacional de iniciativasdesta índole é de tal modo basilar e premente, que seria de todo absurdorecusar, em nome de princípios, qualquer experiência válida que nessedomínio possa efectivamente ter lugar. Ao fim e ao cabo, toda a políticaeficiente implica sem dúvida princípios directores, mas também uma certadose, maior ou menor, de mero bom-senso e pragmatismo.

6. Os organismos de investigação, espaço privilegiado da pós-gra-duação

A opção política fundamental a que temos vindo a reportar-nos, implicaque o poder público desenvolva uma acção através da qual se alcancem,além de outras, as seguintes finalidades essenciais:

oferecer, em nível de pós-graduação, aos melhores licenciados quese têm vindo a formar nos últimos anos, bem como aos que se irãoformando doravante, possibilidades de completar e aprofundar asua preparação, na linha de especializações bem definidas;

proporcionar, quer a docentes do ensino superior já em exercício,quer a jovens diplomados, oportunidades de desenvolver as suasaptidões para a investigação científica pura ou aplicada (conformea sua «vocação») e de obter em prazos breves um grau de doutor14;

assegurar, tanto a docentes já em funções como a candidatos à docên-cia superior, o acesso a uma preparação e a uma prática pedagógicasformativas, que completem a sua formação como «profissionais doensino superior».

No Mali adoptou-se o princípio da concentração numa instituiçãoúnica das funções destinadas a preencher estas finalidades. No caso por-tuguês, já vimos que, por motivos que não vem ao caso repetir, adoptaresse princípio implica adaptá-lo com grande maleabilidade. Todo o problemareside em que, uma vez aceite que às escolas deve caber primordialmenteo ensino de pré-graduação profissionalizado (o que, evidentemente, nãosignifica de modo nenhum «ensino exclusivamente profissional»), ficaaberta a questão de qual o espaço institucional onde, em princípio, deverá

14 Dizemos um grau de doutor e não o grau de doutor. Efectivamente, esta-mos convictos de que conviria distinguir, como em França, dois níveis de doutora-mento, podendo certos candidatos, sob determinadas condições, orientar-se directa-mente para o segundo, e outros passar (e preferir passar) antes pelo primeiro e, aopassar por este, poderem, também sob condições determinadas, obter dispensatotal ou parcial do segundo. Em nosso entender, a promoção de assistente a profes-sor auxiliar deveria depender de um doutoramento, não do segundo nível, mas doprimeiro. Previamente, porém, a regular os modos e vias de acesso da carreira uni-versitária, haveria que «arrumar a casa», designadamente procedendo, em cada escola,a uma revisão geral das situações dos assistentes e promovendo a professores todosos que por currículo o mereçam, independentemente de possuírem ou não qualquertítulo de doutor.

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colocar-se a formação de pós-graduados e de docentes universitários, quepor sua vez não se concebe dissociada de actividades de investigaçãocientífica.

Ora, a esta questão, já num primeiro passo respondemos, apontandocomo espaço privilegiado para as actividades de pós-graduação e de prepara-ção de docentes universitários, todo esse conjunto — por ora frágil, inse-guro, dispersivo, assimétrico, inconsistente — de institutos, centros, gabinetese simples núcleos de investigação que marginam as nossas universidadestradicionais. Mas não seriam também espaços adequados para o efeitocertos organismos totalmente alheios às universidades, como o L. N. E. C.e vários outros? Pós-graduações de especialização e pós-graduações dedoutoramento poderiam aí muito provavelmente ter lugar, mediante acordoscom as universidades ou com o Ministério da Educação. Fixemo-nos,todavia, apenas no primeiro conjunto de órgãos referido. Dissemos antesque carece de ser consolidado, reforçado, reajustado e formalmente incum-bido de novas atribuições. Carece igualmente de adquirir uma certa unidade,isto é: que os seus elementos constituintes entrem numa rede de relaçõesque de algum modo a todos abarque num mesmo sistema e a todos imprima,para além das suas inevitáveis e desejáveis diversidades, certas orientaçõescomuns.

Uma solução possível seria a de operar apenas uma certa racionali-zação das estruturas existentes (isto é: do conjunto de institutos, centros,gabinetes e núcleos de investigações já criados), segundo três directrizes:

a de os organismos de base se proporem projectos viáveis e úteispara o desenvolvimento socio-económico e cultural do país, e sónessas condições poderem aspirar a receber consagração e apoiodo poder público;

a de alcançarem, mediante eventuais reagrupamentos, dimensõesconsentâneas com a realização não só de investigações e estudoscientíficos, mas também das finalidades mencionadas nas primeiraslinhas deste capítulo;

a de serem objecto de controlo por uma instância superior única,seja uma Direcção-Geral da Investigação Científica e da Formaçãode Docentes do Ensino Superior, seja um Conselho Superior (ouInstituto Nacional) da Investigação Científica e da Pós-graduação,seja muito simplesmente o actual Instituto de Alta Cultura, aindaque reorganizado e com outra denominação.

Uma solução deste teor apresentaria, porém, manifestos inconvenientes.Efectivamente, um controlo eficaz implica avaliação «ex-ante» e «ex-post»efectuada por projectos, um a um. Como os organismos de base, mesmoque os seu número diminuísse (e até por isso mesmo), englobariam em cadamomento e normalmente vários projectos, dificilmente se concebe que,havendo uma só instância de controlo, se pudesse escapar à seguinte edeplorável alternativa: ou o controlo se burocratizaria ou então instaurar--se-ia, mesmo sem o desejar, um novo «feudalismo» cientifico. De facto,o elevado número e a inexorável diversidade dos projectos obrigariam a ins-tância única de controlo a adoptar um dos dois seguintes procedimentos: oulimitar-se a apreciar os projectos na base de relatórios dos respectivos respon- 723

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sáveis, ou dotar-se de um corpo de «consultores» especialistas que cobrisse asdiferentes áreas científicas onde os projectos se enquadrariam. No primeirocaso, o controlo não poderia ter valor científico e tenderia muito provavel-mente, nas avaliações «ex-ante», a produzir numerosos erros de decisão, enas avaliações «ex-post», a privilegiar critério do quantitativo de publica-ções, de cursos ou seminários realizados, de diplomas ou graus atribuídos,etc, critério que é alvo, universalmente, das mais legítimas dúvidas e severascondenações. No segundo caso, o controlo poderia ser eventualmente maisválido do ponto de vista científico, mas tenderia a submeter aos critériose afinidades próprios de determinadas «personalidades» ou de restritos«grupos» toda a iniciativa e toda a produção em amplas áreas do conheci-mento, o que se afigura rigorosamente indesejável do ponto de vista cientí-fico, além de obviamente anti-democrático.

Desde que se pretenda, como supomos dever pretender-se, dispor de umsistema criativo —o que pressupõe ampla liberdade de iniciativas ebanimento liminar quer da desgastadora «corrosão burocrática», quer detoda e qualquer forma de «feudalismo» científico—, mas simultaneamentecontrolado, importa aproximar os órgãos do controlo dos órgãos da criação.Foi afinal o que se fez no Mali, se bem que em moldes não directamenteaplicáveis em Portugal. Essa aproximação é precisamente o que o «centra-lismo do controlo», contraponto inevitável da «dispersão» da actividadecriativa, não realiza.

Tal aproximação só poderá conseguir-se, nas circunstâncias de que emPortugal se tem de partir, se houver — ou melhor: se forem criadas — ins-tâncias intermédias, situadas entre os organismos da base e a instânciado topo. Desde que se trate de órgãos de enquadramento com poderes decoordenação, essas instâncias forçosamente serão também órgãos de «con-trolo próximo e cruzado» dos organismos por elas enquadrados e coorde-nados. E este controlo (exactamente porque será «próximo e cruzado»), nãosó poderá ser muito mais válido e não-burocrático, como naturalmenteinduzirá os organismos controlados, muito mais eficazmente que qualquercontrolo «distante e único», a auto-controlar as suas actividades através dosseus próprios órgãos de gestão.

Assim, a solução que em Portugal se afigura mais correcta é a de,sempre que possível, os organismos da base se «agruparem» —íamos adizer: se «federarem», a fim de ressalvar e sublinhar a autonomia quedeverão manter — em instituições intermediárias mais amplas (constituídasquer numa base de proximidade territorial, quer segundo critérios deafinidade sectorial), no seio das quais as suas actividades se enquadreme coordenem e, por isso mesmo, se tornem objecto de um «controlo próximoe cruzado» que induza um mais eficiente «auto-controlo» dos própriosorganismos da base. Um organismo com funções da coordenação, fomento,orientação e controlo geral de todo o sistema é, logicamente, um postuladoda própria existência deste último enquanto sistema.

Decerto, há que reconhecer —e eis-nos face ao quarto princípio dapolítica universitária do Mali — que é imprescindível uma articulação queassegure às escolas de pré-graduados que as actividades de pós-graduaçãoe de preparação de docentes, desenvolvidas fora do seu âmbito, responderãoadequadamente às suas necessidades. Simplesmente: essa articulação encon-rará, no caso português, condições muito mais favoráveis para se realizar,se os organismos da base, em lugar de permanecerem «dispersos» e apenas

724 controlados por um órgão central, se encontrarem eles mesmos articulados

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em unidades institucionais mais amplas — locais ou sectoriais —, em cujaorgânica os diversos ramos do ensino de pré-graduação interessados possamter (e tenham) representação que pese significativamente nas respectivasorientações.

A experiência demonstra — e não só em Portugal — que há risco deos organismos de investigação e pôs-graduação tenderem a agir e evoluircentrifugamente em relação às escolas15. Seguramente, essa tendênciaacentuar-se-á, se as suas ligações ao sistema universitário se vierem a situar,não ao nível da escola, mas ao da universidade16. E não será uma instân-cia superior de controlo —única e «distante»— que poderá entravá-laproficientemente. Mais uma vez, só de instâncias intermediárias, com ascaracterísticas acima sumariamente referenciadas, será lícito esperar quegarantam a articulação que se impõe obter.

É, pois, neste contexto e enquadramento — a que poderemos chamarduplo, uma vez que implica uma dupla relacionação: por um lado, com asescolas de pré-graduação, por outro com toda uma rede de instituiçõesvinculadas à investigação científica, à pós-graduação e à preparação dedocentes universitários— que vemos os institutos, centros, gabinetes enúcleos de investigação, que bordejam as nossas universidades tradicionais,a cumprir em conjunto as funções que no Mali foram atribuídas ao CentroPedagógico Superior. Torna-se claro no entanto, e aliás já o dissemos, quepara as poderem desempenhar em termos satisfatórios, eles próprios terãode sofrer adaptações.

7. Arranjos necessários na «grande casa» da investigação

A este respeito, notemos antes do mais, citando fonte ofieialíssima,que o conjunto dos institutos, centros e núcleos de investigação forma uma«grande casa, que custa ao povo português centenas de milhar de contospor ano», abrangendo «mais de centena e meia de Projectos de Investigação,de méritos e dimensões muito variados», «dezenas e dezenas de Núcleose Centros de Estudos, que ora integram um ou mais Projectos, ora têmexistência própria, ora nada mais são que um nome num livro de inventário»e ainda «dois Institutos» e «um Complexo Interdisciplinar, com definiçõesestruturais e programáticas deficientes»17. É, pois, mais ampla do queacaso se poderia supor a base donde se pode partir. Sofre contudo, de váriasdeficiências graves que importa corrigir.

A primeira correcção necessária, que a Secretaria de Estado do EnsinoSuperior já procurou de resto incentivar, é a da dispersão de actividadesafins por núcleos diversos da mesma cidade universitária. «Para exempli-ficar, imagine-se que os trabalhadores científicos válidos que colaboravam

15 Ver, a este propósito, as judiciosas considerações de J. P. Frere, em Lesrelations entre enseignement et recherche en sociologie, comunicação policopiada ao«Colloque sur la Profession de Sociologue», Lovaina, Março de 1975.

1 6É esta a orientação adoptada no Despacho n.° 17/75, de 25.iv.75, do Secretá-rio de Estado do Ensino Superior e Investigação Científica. Cfr. a já citada publicaçãoPolítica do ensino superior. Bases para um Programa, Lisboa, M. E. I. C, pp. 63e segs. O referido despacho diz respeito às normas a adoptar na reestruturação daactividade de investigação científica ligada ao ensino superior.

17 Cfr. Despacho n.° 17/75, do Secretário de Estado do Ensino Superior e daInvestigação Científica, na referida publicação do M. E. I. C, p. 66. 725

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nos cinco Projectos de Investigação em Matemática existentes em Coimbra(quatro dos quais integrados no Centro de Estudos Matemáticos da Facul-dade de Ciências e Tecnologia) virão a propor a constituição de um Centrode Matemática da Universidade de Coimbra; paralelamente, o Centro deEstudos de Física Nuclear e Electrónica da Faculdade de Ciências do Porto,praticamente coincidente com o vultoso Projecto de Investigação em Físicado Estado Sólido e das Baixas Temperaturas, não teria dificuldade emconverter-se num Centro de Física da Universidade do Porto»18. Seriaerróneo, no entanto, proceder indiscriminadamente a aglutinações análogasàs sugeridas no texto que acabamos de citar (o qual aliás expressamentedeclara que, neste aspecto, «a reestruturação nem sempre se apresentarácom tal simplicidade, nomeadamente em Lisboa»). Se importa eliminar aduplicação e a pulverização que nada justifique, não importa menos salva-guardar a originalidade das orientações e vias de pesquisa que permitamtraçar fronteiras entre organismos com perfis diferentes, mesmo quandohaja muito de comum entre os respectivos campos de investigação.O essencial é que todos os organismos assim diferenciados uns dos outros,não só possuam um perfil científico próprio, como atinjam dimensões que,levando em conta as demais funções que lhes deverão ser cometidas,não se revelem exíguas.

A segunda correcção indispensável é precisamente a que terá deconsubstanciar-se na atribuição aos organismos, de outras funções, paraalém das da pesquisa científica. A «grande casa» dos organismos de inves-tigação terá, com efeito, de transformar-se — talvez que não de um golpe,mas começando pelos organismos mais preparados para o efeito, para emprazo breve os abranger a todos — num amplo sistema produtor de pós--graduações especializadas, de actividades de formação de novos docentesuniversitários e de apoios pessoais e instrumentais aos próprios ensinosde pré-graduação. Mais concretamente: sem deixarem de ser basicamenteorganismos de investigação científica —até por ser essa a condição quegarante a qualidade e o nível adequados da sua acção nos outros campos —,os institutos, centros, gabinetes e núcleos considerados deverão:

organizar seminários ou cursos de pós-graduação, para formaçãode especialistas;

manter actividades desse mesmo tipo, destinadas à preparação dedoutores e professores do ensino universitário;

desenvolver «pesquisas pedagógicas» no seu próprio domínio cien-tífico, concretizando-as principalmente na elaboração e experimen-tação de novos modelos e sobretudo de novos instrumentos (manuais,«readings», «dossiers» para trabalhos colectivos, etc.) de ensino;

participar, através de elementos do seu corpo de investigadores, naprática pedagógica das próprias escolas de pré-graduação, designada-mente ao nível dos últimos anos curriculares e das correspondentesdisciplinas de especialização e de ligação com a prática social.

Surge, enfim, a terceira correcção imprescindível — de facto pressupostanas duas anteriores. Trata-se da correcção do estatuto dos organismos.

726 18 Cfr. idem, p. 66.

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Até agora, a regra tem sido a da extrema precaridade institucional: osorganismos são criados por simples despacho, não possuem quaisquergarantias de continuidade, não dispõem de financiamento assegurado deuns anos para os outros, dependem a cada passo, para a sua sobrevivência,de improvisos, influências pessoais e boas-vontades do poder. É evidenteque se esta regra não for completamente alterada, não pode esperar-se quese transformem nas organizações muito mais sólidas, eficientes e diversi-ficadas nas suas actividades, que deverão ser. Importa, por conseguinte,antes do mais, assegurar aos organismos estabilidade institucional — de umaforma definitiva e firme àqueles que já hajam dado provas de eficácia ematuridade, duma forma provisória e «experimental» àqueles que apenascomecem a dar os primeiros passos. Disposições legislativas especiaisdeverão, pois, regular a forma de criação dos institutos ou centros (querna modalidade provisória, quer na definitiva), definir-lhes as finalidadese competências, as formas de gestão, os regimes de administração e finan-ciamento, os processos de recrutamento de pessoal, as condições em que osseus investigadores poderão ser chamados a acumular funções de ensinonas escolas de pré-graduação e aquelas em que os docentes dessas mesmasescolas poderão acumular funções de investigadores nos centros ou insti-tutos, etc.

Ponto fundamental: os organismos de investigação deverão ser enti-dades juridicamente dotadas de personalidade própria, pessoal próprio,recursos próprios, gestão própria. Não poderia, por exemplo, aceitar-se que,como chegou a ser implicitamente previsto em recente projecto de di-ploma legal19, os investigadores dos institutos e centros não fossem senãodocentes das escolas de pré-graduação, neles reunidos por disporem dehoras livres para investigar, mas exclusivamente remunerados pelas escolasa que pertencessem... Princípio básico tem de ser, pelo contrário, o de oserviço prestado por quem quer que seja num dado centro ou instituto serremunerado por esse mesmo centro ou instituto: a relação «salarial» é umelemento da relação institucional de trabalho que não pode ser proscritodesta última sem gravemente a enfraquecer e comprometer.

Este princípio não exclui porém a vantagem da simultânea criação deum quadro central de lugares de investigadores das várias categorias e defuncionários técnicos, administrativos e auxiliares, uns e outros destacáveispara os diversos organismos. Um quadro desta natureza poderia ter umaimportância decisiva quer para os organismos de criação recente e aindaem fase provisória e «experimental», quer como instrumento de apoio aorganismos já dotados de estatuto definitivo, mas com um dinamismonão-comportável pelos seus quadros próprios de pessoal.

Por último, há que referir o problema do estatuto, não já dos organis-mos enquanto tais, mas do seu pessoal — estatuto que até agora se tem con-servado (tirante raras excepções) completamente indefinido e desprovidodas mais elementares garantias legais. No que se refere ao pessoal não--científico (administrativo, técnico, auxiliar), o seu vínculo aos organismosdeverá naturalmente ser idêntico ao dos funcionários públicos em relaçãoaos serviços a que se encontram ligados. Quanto ao pessoal científico, éigualmente indispensável que a sua vinculação aos organismos adquira,

18 Referimo-nos ao projecto de decreto-lei sobre a carreira docente, distribuídoem Julho do ano corrente às escolas, para apreciação. 727

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desde o primeiro momento, o carácter plenamente formalizado de umarelação contratual de funcionário público, embora só deva transformar-seem provimento vitalício numa fase avançada da correspondente carreirade investigação. Pressupomos, assim, que os investigadores poderão seguirnos organismos uma carreira própria, distinta da carreira docente universi-tária, o que implica, por um lado, que haja nos centros ou institutos inves-tigadores que jamais exerçam docência nas escolas, e por outro, que indi-víduos admitidos em dado momento a ingressar na carreira científica pos-sam ser ulteriormente compelidos a abandoná-la em função dos critériose normas definidores da sua própria carreira de investigadores20.

8. Uma aplicação: o problema da Universidade Nova de Lisboa

As ideias precedentemente expostas podem ajudar a clarificação deum problema particular, que todavia não é, em Lisboa, de somenos rele-vância. De facto, a existência da Universidade Nova de Lisboa (U. N. L.),seria inútil negá-lo, «constitui problema». Aliás, desde o princípio assimfoi. As outras universidades da capital reagiram muito desfavoravelmente,mesmo antes de a U. N. L. estar criada, ao projecto de uma terceira univer-sidade em Lisboa — tal como, decénios atrás a Universidade de Lisboareagira fortemente contra a fundação da Universidade Técnica, e como, emdatas mais recuadas, a Universidade de Coimbra se opusera veementementeà criação de universidades, ou mesmo de escolas superiores isoladas, emLisboa e no Porto. É bem conhecido, de resto, um pouco por todo o mundo,o pendor das universidades para o monopólio, se já não nacional, ao menosregional. Por via de regra e nos nossos dias, só as crises de gigantismo ede asfixia provocadas por «inundação estudantil» tendem a convertê-las aatitudes mais maleáveis. Mas mesmo nesses casos, não deixam por vezesde defender o monopólio, reclamando ao mesmo tempo o proteccionismodo «numeras clausus».

Sucede, porém, que o próprio modelo institucional adoptado para aU. N. L. e o modo como começou a ser executada a programação do seudesenvolvimento suscitaram motivos adicionais de animadversão. Conce-bida como devendo ser constituída, não por escolas, mas por departamentos(segundo o paradigma anglo-saxónieo), naturalmente que o seu desenvolvi-mento teve de iniciar-se, não pela montagem de cursos de pré-graduação,como sucede quando se cria uma escola com um dado currículo de estudos,mas pela implantação de departamentos donde viriam a sair os «out-puts»de ensino necessários ao funcionamento desses cursos. As carências de pes-soal altamente qualificado disponível para a docência universitária, bemcomo a impossibilidade e inconveniência de as suprir mediante uma inten-

20 Resta um problema de instalações que, em certos casos, se levantará comparticular acuidade, por motivo quer da junção de antigos centros ou núcleos sepa-rados num único centro ou instituto, quer — e talvez principalmente — da atribuiçãoaos organismos de outras funções que, como por exemplo a realização de cursose seminários, exigem espaços físicos adequados. Cremos, todavia, que através deuma aproximação entre o M. E. I. C. e os Departamentos Económicos da governação,não será especialmente difícil encontrar soluções, dado saber-se que, na sequênciadas nacionalizações, o Estado dispõe hoje de um elevado número de fogos desabitadosem edifícios que lhe pertencem. Parte desses fogos poderia seguramente servir para

728 os fins aqui em vista.

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siva atracção de professores e assistentes das outras universidades, impri-miram ainda mais acentuada prioridade à formação dos departamentos econduziram a lançar e privilegiar actividades de pós-graduação, destinadasprecisamente a servir de suporte a um recrutamento autónomo, e tantoquanto possível não-concorrencial, de investigadores-docentes que pudesesempreencher os departamentos e, ulteriormente, leccionar nos cursos de pré--graduação.

Entretanto, porém, as outras universidades de Lisboa suportavam umafluxo cada vez mais vultoso de estudantes e, absorvidas por isso numaactividade crescente — e dia a dia mais difícil e até penosa — de ensinode pré-graduação, não encontravam meios, nem para cumprir com satisfaçãoe bom rendimento essa actividade, nem muito menos para lhe acrescentaras actividades de pós-graduação de que, como já salientámos, uma partesignificativa dos professores sentia premente necessidade e que represen-tavam uma aspiração associada a grandes frustrações. O contraste alimentoua hostilidade inicial e permitiu-lhe apoiar-se em argumentos aparentementeirrefutáveis — todos convergentes na acusação de «elitismo» feita à U. N. L.Acusação, aliás, nem sempre inteiramente destituída de fundamento.

Que fazer, pois? Pretendem alguns que a U. N. L. seja extinta, disper-sando-se pelas escolas das outras universidades os elementos que a com-põem. Preferem outros integrá-la numa única Universidade de Lisboa, obri-gando-a a «dar aulas» de pré-graduação, «como faz qualquer escola».E também se propõe que seja mantida como universidade, mas «acabandocom o seu elitismo», isto é: impondo-lhe a abertura imediata de cursos paraestudantes pré-graduados.

Ora, se são pertinentes as considerações que temos vindo a expor nestelugar, nenhuma de tais soluções se afigura a mais adequada. De facto, nemvemos motivo, dada a saturação quantitativa das outras universidades dacapital, para que a U. N. L. seja pura e simplesmente extinta, nem encon-tramos argumento válido para a transformar numa escola ou conjunto deescolas de pré-graduação (integradas ou não numa única Universidade deLisboa), sacrificando ao modelo tradicional das universidades portuguesas(recorde-se: meras «colecções de escolas») o esquema departamental, quelhe é nitidamente superior.

Por outro lado, depois de quanto expusemos em capítulo anterior,ressalta com grande evidência que a U. N. L. representa, sem dúvida, umaorganização já montada donde se poderia partir para, mediante apropriadareconversão, a transformar precisamente numa dessas instâncias interme-diárias, que é indispensável se interponham entre os organismos de base dainvestigação e pós-graduação e o órgão superior de controlo, com a duplaincumbência de enquadrar e coordenar um certo número de centros ouinstitutos e de servir como elemento institucional de articulação das activi-dades desses organismos com os correspondentes sectores do ensino de pré--graduação das Universidades a que estejam ou venham a ficar ligados.Retornando uma vez mais ao exemplo do Mali, seria caso de dizer que aU. N. L. — mudado o nome e modificada a orgânica — poderia represen-tar, para o sistema universitário de Lisboa21, algo de semelhante ao querepresenta, para o conjunto do sistema de ensino superior maliano, o Centro

21 Não excluindo, evidentemente, que outras universidades e outros estabele-cimentos de ensino superior do país pudessem igualmente beneficiar da sua existênciae actividades. 729

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Pedagógico Superior. Semelhante, mas em todo caso não idêntico, pois quenão seria possível, nem interessaria sequer, centralizar no organismo resul-tante da reconversão da U. N. L., toda a actividade de investigação, pós-gra-duação e preparação de profissionais do ensino superior de Lisboa.

De modo que a correcta alternativa que nos parece definir-se em rela-ção à U. N. L. se põe nos termos seguintes: ou mantê-la e desenvolvê-lacomo uma das universidades de Lisboa, de modelo departamental; ou recon-vertê-la numa instituição de enquadramento e coordenação de todo umconjunto de organismos de base (centros, institutos) votados à investigaçãocientífica pura e aplicada, à pós-graduação de especialistas, à preparação dedocentes universitários e à elaboração e experimentação de novos moddose instrumentos de prática pedagógica. Neste segundo caso, teria porém degarantir-se que se trataria de uma instituição efectivamente colocada ao ser-viço da(s) universidade(s) de Lisboa, no sentido de se manter firmementedirigida para responder adequadamente a necessidades concretas e progra-madas dessa(s) universidade(s). Este requisito suporia: a) que fosse supe-riormente orientada por um órgão onde dispusessem de significativo pesorepresentantes dos diversos ramos do ensino de pré-graduação de Lisboa;b) que nela pudessem fazer estudos e investigações, dirigir seminários ecursos, orientar pós-graduados, preparar doutorandos e candidatos a espe-cializações avançadas, não apenas os membros do pessoal científico próprioda instituição e dos organismos nela agrupados, mas também docentes--investigadores das diferentes escolas da(s) universidade(s) lisboetas e mesmode outros estabelecimentos de ensino universitário do país; c) que os mem-bros do pessoal científico da instituição e dos organismos nela congregadospudessem, por sua vez, participar em funções docentes de pré-graduação nasescolas da(s) universidades(s) de Lisboa, ao nível e nos domínios própriosdas suas respectivas especializações.

9. Conclusão

Muito mais longo do que o havíamos pensado, este texto foi tocandoem sucessivos problemas de política universitária, abordando uns por formadirecta e outros quase que só por mera alusão. Tempo é de concluir.

Não tínhamos ao começo — e assim mesmo o declarámos — o propó-sito de traçar, nem sequer tão-só em linhas gerais, o quadro completo deuma política universitária adequada às circunstâncias do momento em Por-tugal. Procurámos unicamente focar certos problemas que se nos afiguramsimultaneamente de importância crucial e muito insuficientemente deba-tidos e aclarados no país. Sabemos ter omitido outros não menos essenciais,se bem que geralmente mais ventilados porque mais directamente relacio-nados com a vida interna das escolas e, por isso, mais imediatamente «sen-tidos» e apercebidos pelas diversas categorias de agentes da actividade esco-lar. Não deixámos, no entanto, em relação a alguns dos problemas silen-ciados, de exprimir os motivos da voluntária omissão.

Reexaminando o percurso que seguimos, poder-se-á notar, primeira-mente, que nos esforçámos por ir mostrando que ao poder público se abretodo um largo campo de acção eficaz que, por assim dizer, rodeia as uni-versidades tradicionais. Cabem nele o lançamento e o desenvolvimento daUniversidade Aberta — iniciativa que só por si poderá assumir a mais vasta

730 e revolucionária projecção nacional e social—, bem como a criação e a

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implantação de novas universidades ou novos estabelecimentos universitá-rios isolados e de escolas normais superiores, sobretudo na província. Mastambém nele têm cabimento intervenções que, embora incidindo sobre umdeterminado conjunto de «peças marginais» do sistema universitário tradi-cional— os organismos de investigação que circundam as escolas—, serevelam aptas a assegurar-lhe, a partir de futuro próximo e desde que setornem objecto de uma política adequada, condições rigorosamente neces-sárias ao seu funcionamento em elevado nível de competência científica e deeficiência pedagógica.

Porque o espaço sobre o qual nos debruçámos, embora atinja as esco-las universitárias tradicionais e possa ter nelas fundamentais incidências,é basicamente um campo que as rodeia sem propriamente as abarcar, foi--nos possível enunciar condições necessárias, mas não condições suficientes,para garantir que preencham cabalmente as funções que lhes competem.E também não pudemos debater as transformações que o processo revolu-cionário português já imprimiu, ou deverá imprimir, nessas funções. Emsuma: deixámos praticamente de lado toda a relevantíssima problemáticaprópria das escolas, salvo no atinente a certos mecanismos de preparaçãodos respectivos docentes e à melhoria qualitativa dos seus modelos e instru-mentos de prática pedagógica.

Por outro lado, adoptando um quadro de princípios maleáveis, cre-mos ter evitado antagonizar soluções diversas daquelas que preconizámos,sempre que numa dada escola se verifiquem condições que levem justifica-damente a preferi-las às nossas. Assim procedemos explicitamente no queconcerne aos cursos de pós-graduação. Assim poderíamos ter igualmenteprocedido no que respeita aos centros de estudos. Por exemplo, a ênfaseque pusemos nos organismos de investigação que rodeiam as escolas não éde modo algum incompatível com que, em determinados estabelecimentos,se projectem e efectivem reorganizações que incluam centros de estudosinteriores às próprias escolas e inseridos na sua prática pedagógica, designa-damente com funções de dupla ligação: ensino de pré-graduados/investiga-ção, por um lado, e investigação/prática social exterior ao meio universitá-rio, por outro. Pode-se preferir uma solução à outra ou, pelo contrário, eseria esta a nossa opção, aceitar ambas, porque se situam em planos dis-tintos, não havendo entre elas qualquer incompatibilidade de princípio, masantes complementaridade.

Seja como for, por causa da selecção de problemas que operámos, fica-mos de antemão precavidos para que, sobre o que neste lugar deixamos dito,sejam lançadas algumas críticas não pertinentes. Entre elas, seguramente,a de havermos pecado por «elitismo»... E no entanto posições que bemclaramente expressámos, em recente relatório oficial22, acerca da relaçãouniversidade/povo e da dialéctica cultura erudita/cultura popular, deveriam,assim o pensamos, evitar-nos tal acusação.

Porventura de outros quadrantes nos virá também a crítica de que,se fosse adoptada a ideia, aqui propugnada, de que a política em relaçãoàs universidades tradicionais deve cuidar primacialmente de não contendercom a autonomia de que as escolas se reclamam, isso equivaleria a deixaro poder público totalmente desarmado para planear e executar uma qual-

22 Cfr. Grupo de Trabalho para o Estudo do Ensino Superior a Distância,Relatório sobre a Criação de uma Universidade Aberta, Lisboa (M. E. I. C), Abrilde 1975, sobretudo o Capítulo 2. 731

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quer política, nomeadamente no que se refere aos ensinos de pré-graduação,cuja importância é fundamental para o país. De facto, porém, dos pontos devista que expusemos resulta tão somente que deve desistir-se de governaro sistema universitário por meio de decretos, portarias e despachos unila-teralmente concebidos — quando mais não seja porque toda a experiência dapolítica universitária desde o «25 de Abril» demonstra a perfeita inanidadede tal procedimento. Simplesmente: autonomia não significa independênciaabsoluta, pois que as escolas, apesar de autónomas, carecem de recursosfinanceiros e de instrumentos legais a que só por via do poder público lhesé possível ter acesso. Esta circunstância — que é afinal a de uma dependên-cia recíproca: o poder público precisa das escolas, e estas por sua vez pre-cisam do poder público — não só permite como aconselha que a políticase determine através de «relações de negociação», semi-contratuais, em queo poder público está longe de se encontrar inerme para transaccionar. Ecaso é de pôr a questão de se não conviria caminhar no sentido de forma-lizar essas relações através de contratos-programas, análogos aos que porvezes os Estados estabelecem com empresas nacionalizadas.

Mas não tentemos prever todas as críticas possíveis. Ao fim e ao cabo,não será que, se a cada dia deve bastar o seu peso, também a cada textodeve bastar o seu tema?

Lisboa, Setembro de 1975.

SINOPSE

732

1. Para um correcto equacionamentoda política universitária em Portugal, éindispensável ter presente que são duasas finalidades essenciais do sistema deensino superior:

fornecer ao país o pessoal com ashabilitações profissionais supe-riores concretamente requeridaspelo desenvolvimento nacional nosseus diversos domínios:

garantir, às instituições incumbi-das de formar aquele pessoal, umpermanente recrutamento de agen-tes altamente qualificados parao exercício das respectivas funçõesdocentes.

2. No que respeita à primeira de taisfinalidades, o campo aberto à acçãodirecta do poder público é sem dúvidaamplo, mas mais propriamente rodeiaas universidades tradicionais de Coimbra,Lisboa e Porto, do que as abarca. Essecampo abrange, nomeadamente:

universidades novas e estabeleci-mentos universitários isolados, jáinstituídos ou a criar, sobretudona província;

o lançamento e desenvolvimentoda Universidade Aberta (UNIA-BE), concebida como verdadeira

universidade nacional popular,preferencialmente dirigida às clas-ses trabalhadoras;

a criação e o fomento de escolasnormais superiores que, assumindoa função de preparar professorespara os ensinos preparatório esecundário, aliviem desse encargo,conjuntamente com a UniversidadeAberta, as Faculdades de Ciênciase de Letras.

3. Através das acções que se acabade mencionar, haverá que prosseguir,como objectivo adicional básico, o dealiviar a pressão quantitativa da pro-cura estudantil a que as universidadestradicionais se têm encontrado subme-tidas. Com efeito, o sucesso dos esforçosde organização e dos projectos de re-forma e auto-reforma das escolas dependeinteiramente de que possam ser detidosos efeitos incessantemente disruptivosde um crescimento incomportável daspopulações escolares.

Naquela procura, há duas compo-nentes a destrinçar: a que é constituídapor trabalhadores-estudantes e a que éformada por estudantes «tout court».A pressão dos primeiros poderá sermuito sensivelmente minorada pela en-trada em funcionamento da Universi-dade Aberta. A pressão dos segundos

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poderá ser fortemente reduzida em con-sequência da abertura de novas univer-sidades, de novos estabelecimentos uni-versitários isolados e de escolas normaissuperiores, desde que instaurem umaefectiva descentralização espacial dosistema universitário.

Seria, pois, errado conceber e montaras novas universidades e os novos esta-belecimentos universitários isolados daprovinda, em termos demasiadamente«regionalizados», isto é: como universi-dades ou estabelecimentos de vocaçãoessencialmente local. Tal política impli-caria continuar a reservar às Universi-dades de Coimbra, Lisboa e Porto asvocações de âmbito nacional, o que seriacontraditório com o «estado de saturaçãoquantitativa» por elas atingido e com asua situação de luta continuamente per-dida contra a «pressão do número».

Mais importante que a «regionaliza-ção» do sistema universitário é, pois,a sua efectiva «descentralização». Parao efeito, seria necessário conseguir quesurgissem pela província escolas mé-dicas, de engenharia, de economia, etc.concorrenciais com as dos três centrosuniversitários tradicionais. Por seu turno,a Universidade Aberta representariaigualmente — em virtude da sua inigua-lável capacidade de difusão territorial —um outro e excelente instrumento de«descentralização» universitária.

4. Ainda em relação à primeira dasfinalidades essenciais do ensino superiorinicialmente enunciadas, há que reconhe-cer que o campo aberto à acção directado poder público só muito limitadamentepoderá englobar as próprias universida-des tradicionais.

Com efeito, estas universidades sãoconstituídas por escolas acerca das quaisse pode prever que, dum modo geral, seirão manter em estado de busca e revisãopor tempo indeterminado e que a suareivindicação essencial, ante o poderpúblico, será, por todo esse tempo, ade autonomia para prosseguirem no seumovimento de reiterada procura. Inter-venções, por parte do poder público,que de algum modo contrariassem essaautonomia e abertamente interferissemno processo de auto-reforma que nelase sustenta, não seriam apenas, comoa experiência o demonstra, inoperantese inúteis. Seriam, de facto, injustificáveis,porque, além de perturbarem e com-plexificarem ainda mais aquele processo,iriam reduzir as escassas margens, queainda subsistem, de cooperação possívele fecunda entre o poder público e asescolas.

Estas limitações à política do poderpúblico em relação às universidadestradicionais não obstam, contudo, a quecertos problemas com que essas univer-sidades se debatem não devam serobjecto de intervenção, designadamentea regulamentação da carreira docentee os regimes de doutoramento. Previa-mente, porém, a regular as vias e osmodos dos acessos na carreira univer-sitária, haveria que «arrumar a casa»,designadamente procedendo, em cadaescola, a uma revisão geral das situaçõesdos assistentes e promovendo a profes-sores todos os que por currículo peda-gógico-profissional o merecessem, inde-pendentemente de possuírem ou nãoqualquer título de doutor.

Por outro lado, o princípio de quea política em relação às universidadestradicionais deve cuidar primacialmentede não contender com a autonomia deque as escolas se reclamam, não equivalea deixar o poder público totalmentedesarmado para planear e executar umapolítica, nomeadamente no que se refereaos ensinos de pré-graduação. De facto,autonomia não significa independênciaabsoluta, pois que as escolas carecem derecursos financeiros e de dispositivoslegais a que só por via do poder públicolhes é possível ter acesso. Esta circuns-tância não só permite como aconselhaque, neste campo, a política se determineatravés de «relações de negociação»; enestas o poder público encontra-se emfavorável «posição contratual». Caso éde pôr a questão da conveniência de secaminhar no sentido de formalizar essasrelações através de contratos-programas,análogos aos que por vezes os Estadosestabelecem com empresas nacionaliza-das — o que, aliás, implicaria alterar, nosentido de maior autonomia jurídico--administrativa, os estatutos das universi-dades e das escolas.

5. Retomando o dualismo de finali-dades essenciais referido de entrada, háque reconhecer que, objectivamente, apolítica do poder público em relaçãoàs universidades tradicionais está pre-sentemente colocada ante uma alternativafundamental:

ou intervir prioritariamente nos en-sinos de pré-graduação (bacha-relatos, licenciaturas) ministradosnas escolas;

ou agir preferentemente sobre aformação pós-graduada de espe-cialistas e de futuros docentesuniversitários científica e peda-gogicamente bem preparados. 733

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Razões circunstanciais (as limitaçõesà acção directa do poder público sobreos ensinos de pré-graduação; a improba-bilidade de que mesmo um vultosoinvestimento de recursos humanos emateriais em tal acção conduzisse aresultados compensadores) e razões defundo (o facto de, em qualquer bomsistema universitário de qualquer partedo mundo, o ensino de pré-graduaçãoser um produto derivado, por uma ououtra forma, de actividades de pós-gra-duação, estreitamente associadas à inves-tigação científica; a necessidade de pre-parar mediante acções imediatas, inci-dindo sobre a formação de pós-graduadose docentes, o futuro funcionamento dasuniversidades tradicionais em elevadonível de eficiência e qualidade) tornamindiscutível o ter de optar-se abertamentepela segunda alternativa.

6. Esta opção política fundamentalimplica que o poder público desenvolvaa curto prazo uma acção através da qualse alcancem, além de outros, os seguintesobjectivos:

oferecer, em nível de pós-gradua-ção, aos melhores licenciados quese têm vindo a formar nos últimosanos, bem como aos que se irãoformando doravante, possibilida-des de completar e aprofundar asua preparação, na linha de espe-cializações bem definidas;

proporcionar, quer a docentes doensino superior já em exercício,quer a jovens diplomados, opor-tunidades de desenvolver as suasaptidões para a investigação cien-tífica pura ou aplicada (conformea sua «vocação») e de obter emprazos breves um grau de doutor;

assegurar, tanto a docentes já emfunções como a candidatos àdocência superior, o acesso a umapreparação e a uma prática peda-gógicas formativas, que comple-tem o seu perfil como «profissio-nais do ensino superior».

7. A formação de pós-graduados e dedocentes universitários não se concebe,porém, dissociada de actividades de in-vestigação científica. Por isso, o espaçoinstitucional privilegiado onde deverálocalizar-se é o constituído por todaa cercadura de institutos, centros, gabi-netes e núcleos de investigação querodeia as universidades tradicionais. (Oque não exclui que pós-graduações deespecialização e pós-graduações de dou-toramento possam muito provavelmenteter lugar também em determinadas es-

colas e ainda, mediante acordos com asuniversidades ou com o M. E. I. C, emcertos organismos totalmente exterioresao sistema universitário, como o L.N.E.C.e vários outros). Mas esse conjunto deorganismos — actualmente inseguro, dis-persivo, assimétrico, inconsistente — ca-rece de ser consolidado, reforçado,reajustado e formalmente incumbido denovas atribuições. Carece igualmente deadquirir uma certa unidade, isto é: queos seus elementos constituintes se inte-grem numa rede de relações que dealgum modo a todos abarque nummesmo sistema e a todos imprima, paraalém das suas inevitáveis e desejáveisdiversidades, certas orientações comuns.

Seria contudo erróneo, porque buro-cratizante e/ou fomentador de indese-jáveis «feudalismos científicos», que osistema a formar a partir desses elemen-tos fosse constituído apenas por umconjunto «disperso» de organismos debase (institutos, centros, etc), de peque-nas ou médias dimensões, controladodo topo por uma instância superior —única e «distante». Sempre que possível,estes organismos de base deverão «agru-par-se» — poder-se-ia dizer: «federar-se»,para salvaguardar e sublinhar a autono-mia de que importará disponham — eminstituições intermediárias mais amplas,formadas numa base de proximidadeterritorial ou segundo critérios de afini-dade sectorial, no seio das quais as suasactividades se enquadrem e coordenem.Isso permitirá, além do mais, que setornem objecto de um «controlo próximoe cruzado», susceptível de, por sua vez,induzir um mais eficiente «auto-con-trolo» dos próprios organismos da base.

Por outro lado, é imprescindível umaarticulação que assegure, às escolas depré-graduação, que as actividades depós-graduação e de preparação de do-centes universitários, desenvolvidas forado seu âmbito, responderão adequada-mente às suas necessidades. Simples-mente: uma tal articulação encontrarácondições de realização tanto mais favo-ráveis quanto mais os organismos debase da investigação e pós-graduação,em lugar de permanecerem «dispersos»e somente controlados por um órgãocentral, se encontrarem eles mesmosarticulados em unidades institucionaismais amplas —digamos: instancias in-termediárias locais ou sectoriais — emcuja orgânica os diversos ramos doensino de pré-graduação tenham repre-sentação que lhes possibilite pesar signi-ficativamente nas respectivas orientações.

Em Lisboa, a Universidade Nova,se porventura se decidisse não a mantercomo uma das universidades da capital,

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poderia ser reconvertida sem particulardificuldade numa dessas instâncias inter-mediárias. Nessa qualidade poderiaprestar excelentes serviços ao sistemauniversitário, análogos aos prestadospela Escola Prática de Altos Estudos deParis às universidades francesas.

8. Torna-se claro, entretanto, que osorganismos da base terão de sofrer elespróprios importantes adaptações. A pri-meira correcção necessária seria a dadispersão de actividades afins por orga-nismos diversos, espacialmente vizinhosuns dos outros. Contudo, se importaeliminar injustificáveis duplicações e pul-verizações, não importa menos salva-guardar a originalidade das orientaçõese vias de pesquisa que justamente per-mitam traçar fronteiras entre organismoscom perfis claramente diferentes, mesmoquando os seus campos de investigaçãocientífica abarquem áreas importantesde sobreposição.

A segunda correcção indispensável te-ria de consubstanciar-se na atribuiçãoaos organismos, de outras funções, paraalém das da pesquisa científica, nomea-damente as seguintes:

organização de seminários ou cursosde pós-graduação, para formaçãode especialistas;

manutenção de actividades dessemesmo tipo, mas destinadas à pre-paração de doutores e professo-res do ensino universitário;

desenvolvimento de «pesquisas pe-dagógicas» nos correspondentesdomínios científicos, concretiza-das em especial na elaboração eexperimentação de novos modelose instrumentos de ensino;

participação, através de elementosdo seu corpo de investigadores, naprática pedagógica das própriasescolas de pré-graduação, desig-nadamente ao nível das discipli-nas de especialização e de ligaçãocom a prática social, dos últimosanos curriculares.

Terceira correcção imprescindível se-ria a do estatuto dos organismos. Neste

aspecto, importa basicamente, por umlado, garantir-lhes estabilidade institu-cional (de uma forma definitiva e firmequando já hajam dado provas de eficiên-cia e maturidade e de uma forma pro-visória e «experimental» quando apenascomecem a dar os primeiros passos), epor outro reconhecê-los como entidadesjuridicamente dotadas de personalidadeprópria, pessoal próprio, recursos pró-prios e gestão própria. Este segundoponto não deveria, no entanto, impedira simultânea existência de um quadrocentral de lugares de investigadores dasvárias categorias e de funcionários técni-cos, administrativos e auxiliares, uns eoutros destacáveis para os diversos orga-nismos, designadamente para os que,encontrando-se em fase «experimental»,ainda não possuiriam quadro próprio depessoal.

Por último, seria basilar a correcçãodo estatuto do pessoal dos organismos.Trata-se, essencialmente, da substituiçãodo actual regime de completa insegu-rança e de total ausência de regalias so-ciais pelo regime normal do funciona-lismo público, ainda que com adaptaçõesno caso do pessoal científico, devido ànecessidade de para este se definir uma«carreira de investigador», distinta da«carreira docente».

9. Resta um problema de instalaçõesque, em certos casos, se levantará comparticular acuidade, por motivo quer dajunção de antigos centros ou núcleosseparados num único centro ou instituto,quer —e talvez principalmente— daatribuição aos organismos de outras fun-ções, para além das da investigação cien-tífica, funções que, como por exemploa realização de cursos e seminários, exi-gem espaços físicos adequados. Todavia,através de uma aproximação entre oM. E. I. C. e os Departamentos Econó-micos da governação, não será especial-mente difícil encontrar soluções, dadosaber-se que, na sequência das naciona-lizações, o Estado dispõe hoje de umelevado número de fogos desabitados emedifícios que lhe pertencem. Parte des-ses fogos poderia seguramente servirpara os fins em vista.

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