22
PROPRIEDADE INTELECTUAL EM BIOTECNOLOGIA: O ALCANCE DA PROTEÇÃO JURÍDICA DOS MATERIAIS BIOLÓGICOS ISOLADOS DA NATUREZA Charlene Maria Coradini de Ávila Plaza Fernanda de Paula Ferreira Moi ∗∗ Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega ∗∗∗ RESUMO O Brasil é um pais de grande potencial em diversidade biológica. Considerado no âmbito da biodiversidade, dono da maior variedade de espécies do planeta, desfruta de uma posição privilegiada para explorar os recursos naturais na busca por novas tecnologias. Neste contexto, os produtos advindos da biodiversidade, como capital natural, através da expansão do conhecimento pela ciência biotecnológica, motivou o interesse da valoração econômica em níveis globais, agregando, assim, valor aos produtos nela contidos. Em contrapartida, o aproveitamento destas riquezas provenientes da biodiversidade seriam melhores aproveitados se as pesquisas relacionadas à utilização destes recursos naturais, bem como seus produtos e processos decorrentes, pudessem ser avaliados como ativos passíveis de proteção pelo instrumento patentário, adequando ao ritmo acelerado das novas biotecnologias, enquanto elemento essencial de suporte à vida e enquanto reserva de valor futuro. Por outro lado, o desenvolvimento de produtos naturais e da biotecnologia está sendo cada vez mais intenso, ampliando-se cada vez mais, em vários setores econômicos e industriais. Entre os nichos mais promissores, estão os fitoterápicos e cosméticos derivados dos ingredientes da nossa biodiversidade. O binômio biodiversidade, como representativo de um patrimônio imensurável, juntamente com a biotecnologia enquanto forma e processo de conhecimento de exploração de vida, são importantíssimos, caracterizando como um marco regulatório para os acontecimentos da era pós- moderna nos âmbitos sociais, científicos e econômicos. Desta feita, o presente artigo pretende analisar o regime de patentes e sua possível ampliação e proteção dos bens in natura, bem como a repercussão da biotecnologia referente às novas tecnologias retiradas dos elementos da biodiversidade. Mestre em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto-SP (UNAERP) Advogada associada do Escritório de Advocacia CARRARO S/S (Goiânia-GO) Pesquisadora-Núcleo de pesquisa em propriedade intelectual e inovação tecnológica-NUPATTE-GO ∗∗ Mestre em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto-SP (UNAERP) Professora das Universidades: UFG (Universidade Federal de Goiás) – UCG (Universidade Católica de Goiás-GO) Pesquisadora – Núcleo de pesquisa em propriedade intelectual e inovação tecnológica –NUPATTE-GO ∗∗∗ Mestre e Doutora pela PUCC (Pontifícia Universidade Católica de Campinas-SP) Professora da Universidade Federal de Goiás-GO

PROPRIEDADE INTELECTUAL EM BIOTECNOLOGIA: O ......*As polêmicas relativas às proteções biotecnológicas envolvendo os componentes da biodiversidade, partindo da Lei 9.279/96 que

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • PROPRIEDADE INTELECTUAL EM BIOTECNOLOGIA: O ALCANCE DA

    PROTEÇÃO JURÍDICA DOS MATERIAIS BIOLÓGICOS ISOLADOS DA

    NATUREZA

    Charlene Maria Coradini de Ávila Plaza∗

    Fernanda de Paula Ferreira Moi∗∗

    Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega∗∗∗

    RESUMO O Brasil é um pais de grande potencial em diversidade biológica. Considerado no âmbito da biodiversidade, dono da maior variedade de espécies do planeta, desfruta de uma posição privilegiada para explorar os recursos naturais na busca por novas tecnologias. Neste contexto, os produtos advindos da biodiversidade, como capital natural, através da expansão do conhecimento pela ciência biotecnológica, motivou o interesse da valoração econômica em níveis globais, agregando, assim, valor aos produtos nela contidos. Em contrapartida, o aproveitamento destas riquezas provenientes da biodiversidade seriam melhores aproveitados se as pesquisas relacionadas à utilização destes recursos naturais, bem como seus produtos e processos decorrentes, pudessem ser avaliados como ativos passíveis de proteção pelo instrumento patentário, adequando ao ritmo acelerado das novas biotecnologias, enquanto elemento essencial de suporte à vida e enquanto reserva de valor futuro. Por outro lado, o desenvolvimento de produtos naturais e da biotecnologia está sendo cada vez mais intenso, ampliando-se cada vez mais, em vários setores econômicos e industriais. Entre os nichos mais promissores, estão os fitoterápicos e cosméticos derivados dos ingredientes da nossa biodiversidade. O binômio biodiversidade, como representativo de um patrimônio imensurável, juntamente com a biotecnologia enquanto forma e processo de conhecimento de exploração de vida, são importantíssimos, caracterizando como um marco regulatório para os acontecimentos da era pós-moderna nos âmbitos sociais, científicos e econômicos. Desta feita, o presente artigo pretende analisar o regime de patentes e sua possível ampliação e proteção dos bens in natura, bem como a repercussão da biotecnologia referente às novas tecnologias retiradas dos elementos da biodiversidade.

    ∗ Mestre em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto-SP (UNAERP) Advogada associada do Escritório de Advocacia CARRARO S/S (Goiânia-GO) Pesquisadora-Núcleo de pesquisa em propriedade intelectual e inovação tecnológica-NUPATTE-GO ∗∗ Mestre em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto-SP (UNAERP) Professora das Universidades: UFG (Universidade Federal de Goiás) – UCG (Universidade Católica de Goiás-GO) Pesquisadora – Núcleo de pesquisa em propriedade intelectual e inovação tecnológica –NUPATTE-GO ∗∗∗ Mestre e Doutora pela PUCC (Pontifícia Universidade Católica de Campinas-SP) Professora da Universidade Federal de Goiás-GO

  • PALAVRS-CHAVE: BIODIVERSIDADE, PROPRIEDADE INTELECTUAL, PATENTES, INOVAÇÃO TECNOLÓGICA ABSTRACT Brazil is a country of great biological diversity potential. Considered in the biodiversity field the country with larger species’ variety in the world, Brazil is on a privileged position to explore its natural resources as it looks for new technologies. In this context, the products resulting from the biodiversity, as natural capital, through the expansion of the biotechnological science knowledge, have motivated the global interest in the economical valorization, hence aggregating value to its products. Contrarily, the utilization of the riches originated from the biodiversity would improve if the research for a better use of these natural resources, as well as its products and following processes, could be evaluated as assets protected under patent law, being adjusted to the accelerated rhythm of the new biotechnologies, while essential component of life support and reserve of future value. On the other hand, the development of natural products and biotechnology has become more and more intense, growing among several economic and industrial sectors. Among the most promising niches, are the phytotherapeutics and cosmetics derived from ingredients from our biodiversity. The binomial biodiversity, as representative of immensurable assets, along with biotechnology, as a way and knowledge process of life exploration, are of uttermost importance, characterizing themselves as a regulatory landmark for the events of the post-modern era in the social, scientific and economic environments. This way, the present article intended to present the patent regimen and its possible amplification and protection of assets in natura and the repercussion of the biotechnology referring to the new technologies taken from the elements of the biodiversity. KEYWORDS: BIODIVERSITY, INTELECTUAL PROPERTY, PATENTS, TECHNOLOGICAL INOVATION INTRODUÇÃO

    O índice de transformação de uma sociedade aumentou de tal maneira que a nossa

    imaginação não mais consegue acompanhá-la. Milênios e séculos são passados e a

    tecnologia de inovação se faz presente, havendo uma mudança de paradigmas evolucionais,

    onde o mundo do capitalismo industrial antes fixados em leis determinadas, passou da

    teoria fixas cartesianas ao dinâmico mundo darwiniano, com a reformulação da natureza

    humana.

  • Hoje com a ajuda da engenharia genética, o nascimento pode ser planejado e a

    morte adiada, onde a velha seleção natural de Darwin cede lugar a seleções “não naturais”

    praticadas em laboratórios de todo mundo.

    Desde 1996, em se tratando de engenharia genética, foram introduzidos no planeta

    várias dezenas de organismos geneticamente modificados, os famosos OGMs (Organismos

    geneticamente modificados), tanto vegetais como animais, sendo que sua grande maioria é

    produzida, patenteada e comercializada por empresas transnacionais, tornando-se um

    mercado em plena efervescência.

    Milhares de novos espécimes criados em laboratórios destas instituições esperam

    ser patenteados para gerarem produtos inovadores no mercado globalizado.

    Com a bioinformação, reside o forte desejo do homem de controlar o futuro,

    fechando a porta do imprevisível e comandar o destino da humanidade, sendo que a

    possibilidade tanto técnica, quanto política de inventar e fabricar algo vivo, é a porta aberta

    do biopoder no século XXI.1

    Conforme mudam as práticas e os embasamentos que sustentam o biopoder,

    também há uma transformação das verdades e das formas jurídicas que as sustentam.

    No mundo contemporâneo, a vida passou a ser comercializada como um produto,

    uma invenção humana, no mercado global.

    Apesar das resistências isoladas, a corrida para patentear os produtos da

    biodiversidade está se convertendo em uma disputa das mais acirradas neste século,

    passando assim, a biodiversidade a ser questão não só ecológica, ou científico-tecnológica,

    como também para assumir uma dimensão geopolítica, onde a informação e a privatização

    da vida constituem duas facetas desse mesmo processo.

    A intervenção na vida de outras espécies, para colocá-las a serviço do homem e na

    vida da espécie humana, para protegê-la contra riscos à sua sobrevivência, é de fato

    intrínseca à natureza humana. Única espécie a compreender a natureza, explicá-la por meio

    de leis universais que regem seu funcionamento, e transformá-la em seu benefício, caberá,

    1 SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico, corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Dumará publicações ltda, 2002.

  • evidentemente, ao ser humano também a responsabilidade de regulamentar as ações e

    conseqüências de sua atividade, codificando leis e normatizando comportamentos.

    Trata-se de processo dinâmico, cuja velocidade é derivada do ritmo da expansão do

    conhecimento pela ciência e de sua aplicação em processos industriais que agregam valor

    aos produtos.

    Novas técnicas permitem a manipulação do código genético de organismos vivos,

    com a finalidade de introduzir-lhes características desejáveis, que anteriormente não

    expressavam, presentes em outros organismos. Tais modificações não seriam possíveis

    pelos métodos tradicionais de transmissão hereditária ou seleção genética clássica, técnicas,

    além disso, muito demoradas, demandando trabalhos com várias gerações de seres vivos a

    elas submetidos.

    Com a engenharia genética, a intervenção biológica passou a ser mais efetiva e

    possível em escala industrial, abrangendo uma vasta gama de produtos, demonstrando o

    vigoroso desenvolvimento da biotecnologia moderna e sua aptidão para resolver problemas

    econômicos.

    Para tanto, o domínio e uso da biotecnologia moderna requerem acesso às

    tecnologias avançadas já existentes em países desenvolvidos. E inviável conceber

    estratégicas eficientes para investimentos nesse campo de conhecimento, sem recorrer à

    cooperação internacional. Nesse sentido é que a proteção dos direitos de propriedade

    intelectual, via proteção patentária, e uma legislação adequada ao ritmo acelerado das novas

    biotecnologias, tornam-se fatores primordiais por fazer parte da infra-estrutura de um país.

    A propriedade intelectual no campo da biotecnologia, particularmente a proteção

    pelo instrumento patentário, alimenta intensa discussões em todo mundo, envolvendo

    diversos segmentos da sociedade. A idéia de patentear seres vivos confronta-se com

    ponderações de natureza ética, socioeconômica e cultural que em muito ultrapassam o

    ambiente da invenção e inovação.

    A priori, o presente artigo, analisará perfil da propriedade intelectual voltada para a

    biotecnologia, através do instrumento patentário, visando à proteção dos produtos e

    processos advindos da biodiversidade.

  • * As polêmicas relativas às proteções biotecnológicas envolvendo os componentes da

    biodiversidade, partindo da Lei 9.279/96 que trata da Propriedade Intelectual,

    respectivamente no que concerne aos artigos 8º, 10º e 18º, III, utilizando o estudo

    comparativo entre diversas legislações, para suscitar os seguintes questionamentos:

    *A não proteção de patentes de microorganismos in natura, não os elevando à categoria de

    invenções, uma vez que pela lei brasileira são consideradas descobertas assim, não

    passíveis de patentes.

    * Questionar a possível ampliação dos requisitos das patentes de invenção, quais sejam:

    novidade, utilidade industrial e descrição plena, relativa à biotecnologia, por se tratar de

    grandes obstáculos quando o assunto é estabelecer um divisor comum entre o que é

    descoberta e o que é invenção, uma vez que a biotecnologia opera sobre materiais vivos

    preexistentes na natureza.

    * E finalmente, discutir a problemática do termo microorganismo na atual lei patentária,

    analisando se constitui ou não um paradoxo a distinção feita entre microorganismos

    encontrados na natureza e os microorganismos transgênicos.

    1. BIODIVERSIDADE E SEU DUPLO SIGNIFICADO: RESERVA DE VALOR NO

    MERCADO X ELEMENTO ESSENCIAL A VIDA

    A questão da biodiversidade através do avanço da fronteira científico-tecnológico

    propiciada pela biotecnologia gerou uma motivação determinante de caráter estratégico no

    mundo atual, uma vez que através dos componentes da biodiversidade como capital natural

    à biotecnologia manipula a vida ao nível genético, transformando estes recursos em um

    duplo significado: enquanto elemento essencial à vida e enquanto reserva de valor futuro.A

    biodiversidade engloba todos os recursos vivos da terra, sendo considerada como um

    conjunto de riquezas, tanto para a humanidade como para a economia de mercado que

    reconheceu seu potencial econômico.

    Definida pela Convenção da Diversidade Biológica (CDB) como sendo “a

    variabilidade de organismos vivos de todas as origens compreendendo, dentro outros

    ecossistemas terrestres, marinhos e outros aquáticos e os complexos ecológicos de que

  • fazem parte, compreendendo ainda a diversidade dentre espécies, entre espécies e de

    ecossistemas”.2

    Assinada em 1992 por mais de 120 países, revolucionou diversos temas

    relacionados ao desenvolvimento sustentável dos recursos biológicos e sua conservação “in

    situ e ex situ”, além de tecnologias relevantes, biossegurança e repartição dos benefícios

    entre as comunidades tradicionais e empresas nacionais e internacionais.

    A importância no contexto econômico da biodiversidade se deu devido a grande

    demanda na área da biotecnologia por parte das empresas em prospectar a matéria prima de

    sua diversidade natural, para vários produtos, com atenção em especial nos farmacológicos.

    A valoração econômica é apenas mais um valor da biodiversidade. Existem outros

    valores intrínsecos, relacionados a ela, como o cultural, o moral e o ético. Todos estes

    valores, inclusive o econômico são relevantes para o processo de tomada de decisão e

    devem ser levados em consideração, uma vez que o Brasil representa 20% de toda a

    biodiversidade existente no planeta.

    A crescente demanda por produtos tanto na área química quanto na área

    farmacológica, auxiliaram o interesse sobre a biodiversidade. A indústria farmacêutica

    recentemente retomou o entendimento de que a cura de milhares de enfermidades humanas

    podem estar nos produtos extraídos dos recursos da biodiversidade.

    Mas espera-se que o país, além de importante exportador de matéria prima, se

    converta em agente principal de uma nova economia mundial, baseada na sustentabilidade

    da biodiversidade e de seus recursos biológicos e genéticos, agregando assim, valor para os

    diversos setores produtivos da sociedade.

    Para que este fato aconteça é preciso investir intensamente no conhecimento e na

    tecnologia de inovação. Com isto, a utilização da biotecnologia constitui uma opção viável

    e uma ferramenta fundamental, tanto para o uso sustentável como também para a agregação

    de valor, estabelecendo uma base científica e tecnológica capaz de revolucionar o

    tratamento de muitos desafios impostos em todas as áreas emergentes, permitindo o rápido

    e preciso desenvolvimento de plantas, animais e microorganismos melhorados, além de

    processos industriais mais eficientes.

    2 Artigo 7º Convenção da Diversidade Biológica – Conferência sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento-Rio -(92)

  • 2. PROPRIEDADE INTELECTUAL: CONCEITO E CARACTERÍSTICA

    Propriedade intelectual é o conjunto da criatividade humana e da proteção. São as

    idéias, invenções e expressões criativas, que são essencialmente o resultado da atividade

    privada; e também é público no sentido de dar status de propriedade a essas invenções e

    expressões. A proteção vai desde o trade secret, patentes, copyright, marca, mask work

    (expressão do desenho de elementos de um chip semicondutor, fica inserido entre a patente

    e o copyright) como também desenhos industriais, direitos do autor e outras3.

    Quer dizer que, o termo “propriedade intelectual” contém tanto o conceito de

    criatividade privada como o de proteção pública para resultados daquela criatividade; em

    outras palavras, a invenção, a expressão criativa, mais a proteção, são iguais à propriedade

    intelectual.

    Seria útil aplicar o termo “produtos da mente” ou “bens intelectuais” as idéias,

    invenções e expressões criativas como um todo.

    Os produtos da mente têm uma vida independente de sua proteção legal. Tanto antes

    de ser concedida uma patente a uma invenção, como depois que a patente se expira,

    existem as idéias que levaram àquela invenção. Até onde a proteção não existe ou é fraca,

    ainda assim existem os produtos da mente.

    Portanto, propriedade intelectual é “o direito associado aos bens e valores imateriais

    produzidos pela inteligência do homem” os quais são constituídos dos bens criados pelo

    intelecto humano. Sugere Maria Helena Tachinardi4 que, no século XIX surgiram, os

    chamados direitos naturais, segundo os quais, o homem tem o direito natural sobre suas

    idéias e estas não podem ser apropriadas pelos outros, sem que em troca lhe seja dado

    qualquer valor.

    Boa parte da doutrina econômica refere-se a “propriedade” como “monopólios”

    originários do Direito Alemão, onde o Estado é o garantidor para que o titular da patente ou 3 SHERWOOD, Robert M. Propriedade intelectual e desenvolvimento econômico. São Paulo: Edusp, 1992. 4 TACHINARDI, Maria Helena. A guerra das patentes: o conflito Brasil X EUA sobre propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

  • marca, possa a ter uma espécie de monopólio de uso de sua tecnologia ou de seu signo

    comercial, diferindo do monopólio estrito senso, pelo fato de ser apenas a exclusividade

    legal de uma oportunidade comercial (uso da tecnologia), e não um monopólio autêntico

    (exclusividade de mercado).

    O estatuto da propriedade tende a ser um dos conjuntos mais estáveis de normas de

    um sistema legal, permitindo a formulação de políticas de longo prazo, aumentando a

    segurança dos investimentos, e direcionando a evolução tecnológica para objetivos que a

    comunidade elegeu como seus. Segundo a Constituição Federal brasileira vigente, a

    propriedade resultante das patentes e demais direitos intelectuais, não é absoluta, ela só

    existe em atenção ao seu interesse social e para propiciar o desenvolvimento tecnológico e

    econômico do país.5

    A terminologia “propriedade artística, científica e literária”, era regulamentada pelo

    Código Civil de 1916, Livro II “Do Direito das Coisas”, cap. IV, onde o artigo 649 à 673

    dispunha que “o autor de obra literária, científica e artística, pertence o direito exclusivo de

    produzi-las”.6

    Foram revogados pela Lei 5.988/73, de 14.12.73, que disciplinava os direitos do

    autor no que se refere aos aspectos morais e patrimoniais de obras artísticas e científicas.

    Por sua vez está mesma lei foi revogada pela Lei 9.610 de 19.02.98, que altera e

    consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências.

    O novo Código Civil, em seu Título II que trata dos Direitos Reais suprimiu as

    disposições acerca da propriedade artística, científica e literária.

    De acordo com Del Nero em sua obra propriedade intelectual: tutela jurídica da

    biotecnologia diz que a locução ‘propriedade imaterial’ é a forma de propriedade cujo

    objeto não é de ordem material ou corpórea, e sim de ordem abstrata, sem formas materiais,

    que não possui existência tangível7.

    Segundo Fran Martins: 5 BRASIL. Constituição Federal. Art. 170, III. (Org.) Yussef Said Cahali. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 6 DEL NERO, Patrícia Aurélia. Propriedade intelectual: a tutela jurídica da biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 7 DEL NERO, Patrícia Aurélia. op. cit.

  • Entende-se por propriedade industrial o conjunto de direitos resultantes das concepções da inteligência humana que se manifestam ou produzem na esfera da indústria. Como um dos elementos incorpóreos do fundo de comércio, a propriedade industrial é protegida pela lei, efetuando-se mediante a concessão de privilégios de invenção, de modelos de utilidade, dos desenhos e modelos industriais e pela concessão de registro, dando a seu titular a exclusividade de uso das marcas de indústria, de comércio e de serviço, além de expressões ou sinais de propaganda. Adquirindo, assim, o privilégio de qualquer um desses elementos, a lei assegura a sua propriedade, garantindo o uso exclusivo e reprimindo qualquer violação a esse direito.8

    Importante salientar também, a amplitude da caracterização de propriedade

    industrial que Aurélio Wander Bastos9 pronuncia:

    a propriedade industrial é todo um conjunto de normas que tem por objetivo regular os direitos sobre patentes de invenção, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas de produtos e/ou serviço. Entretanto, devemos considerar também a grande diversidade de regras que um sistema de proteção à Propriedade Industrial apresenta, na qual devemos observar duas grandes categorias de direitos, que incidem sobre as invenções e signos distintivos. Existe, ainda, no campo do chamado Direito Econômico, normas, cujo objeto representa áreas afins à propriedade industrial, incidindo, paralelamente, e muitas vezes, de forma complementar, a esta legislação. Neste sentido, diversos autores, também como algumas legislações, incluem, nesse mesmo grupamento de direitos, as normas que versam sobre concorrência desleal, indicações de procedência e denominações de origem, e, inclusive, situações especiais do Direito do Consumidor e da legislação anti trust que, em diversas situações, não só norteiam a sua aplicação, como também limitam eventuais abusos dos direitos decorrentes de sua tutela. Devemos considerar, ainda, o estudo das disposições que versam sobre transferência de tecnologia, em função dos diversos pontos interface que possui a propriedade industrial, e pelo seu procedimento administrativo através da aplicação da legislação anti-trust pelos órgãos competentes da administração responsáveis pela defesa da livre concorrência.

    A propriedade intelectual tem duas dimensões: a primeira são as idéias, invenções e

    expressões criativas (produtos da mente), que são essencialmente o resultado da atividade

    privada, e a segunda é o desejo do público de dar status de propriedade a essas invenções e

    expressões.10

    8 FRAN, Martins. Curso de Direito Comercial Rio de Janeiro: Forense, 1998. p 503-504. 9 BASTOS Aurélio Wander. Dicionário brasileiro de propriedade industrial e assuntos conexos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 230-231. 10 GRAU, Eros Roberto. A propriedade na nova constituição: o patrimônio imobiliário do poder público. São Paulo: Cadernos Fundap, 1989.

  • Hoje a propriedade intelectual é vista como verdadeira mercadoria, vendável,

    envolvendo aspectos econômicos, jurídicos e sociais.

    O direito tomou conhecimento de uma nova classe de bens de natureza imaterial que

    se ligavam à pessoa do autor ou inventor da mesma forma que alguém detém um direito

    exclusivo sobre as coisas materiais, que lhe pertencem. Esse direito foi concebido como um

    direito de propriedade, tendo por objeto bens imateriais. Fundamentalmente, o trabalho

    criativo é de um só tipo, seja no campo das idéias abstratas, das invenções ou das obras

    artísticas. O que se protege é o fruto dessa atividade, quando esta resulta numa obra

    intelectual, ou seja, uma forma com unidade suficiente para ser reconhecida como ela

    mesma.

    Com a aceleração da informação bem como o desenvolvimento da economia

    industrial passou a exigir, desde o Renascimento, a criação de uma nova categoria de

    direitos de propriedade, uma vez que não existe um conceito inflexível de propriedade.

    O conceito de propriedade modifica-se em decorrência das transformações

    econômicas, políticas, sociais, em face aos avanços tecnológicos, quanto aos objetos e

    processos sobre os quais reporta-se uma vez que a concepção de tradição romanística

    clássica admitia como objeto de apropriação somente coisas corpóreas, tangíveis.

    Esta questão torna-se delicada quando se trata de definir o direito de propriedade no

    campo dos produtos da inteligência e criatividade humana, notadamente no que se refere à

    propriedade intelectual e de processos, métodos e meios de criações e invenções

    transcendendo a idéia clássica da coisa em si.

    A propriedade imaterial recai sobre objetos abstratos, sem forma material concreta.

    São “bens” que não possuem existência tangível. Quanto à biotecnologia, a propriedade

    intelectual recai sobre a pesquisa e sua aplicação, ou seja, recai sobre processos dessa área

    do conhecimento que irão possibilitar novos produtos, a serem lançados na escala

    industrial.

    Outra definição bastante abrangente é a da Organização Mundial de Propriedade

    Intelectual (OMPI), a qual define:

    propriedade intelectual, a soma dos direitos relativos às obras literárias, artísticas, científicas, às interpretações dos artistas e intérpretes e às

  • execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e as emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual no domínio industrial, científico, literário e artístico.

    A OMPI, como se pode perceber, unifica os conceitos, abolindo a tradicional

    divisão, existente no modelo tradicional ou histórico, que separava os direitos dos autores e

    dos inventores, em duas categorias: direitos de autor e conexos e propriedade intelectual.

    Portanto, direitos de propriedade intelectual são concedidos em reconhecimento à

    contribuição intelectual pela autoria das obras, pela invenção de novos produtos e processos

    ou pela obtenção de novos cultivares, com o propósito de criar incentivos e estimular o

    desenvolvimento de inovações tecnológicas, de modo a se obter retorno financeiro pelos

    investimentos realizados.

    3. PATENTES BIOTECNOLÓGICAS: SEUS QUESTIONAMENTOS

    Não é novidade para ninguém que as patentes norte americanas foram a primeira a

    revolucionar o mundo biotecnológico.

    A primeira invenção que transformou a ciência no campo biotecnológico diz

    respeito a dois cientistas, S. Cohen e H. Boyer, pesquisadores das Universidades de

    Stanford e Califórnia, para o corte e inserção de seqüências genéticas, unindo a experiência

    de inserção em plasmídeos com o conhecimento de enzimas de restrição, a dupla conseguiu

    enxertar em um plasmídeo bacteriano um gene proveniente de um DNA estranho àquele

    plasmídeo. O plasmídeo foi então inserido em um organismo vivo, um sapo, que se tornou

    uma “fábrica” capaz de produzir a proteína desejada em quantidades ilimitadas. O pedido

    de patentes tramitou durante sete anos no Escritório de Patentes Norte-americano (United

    States Patent and Trademark Office – USPTO), até ser finalmente concedido em dezembro

    de 1980 sob o nº US 4.237.224, sob o título Process for producing biologically functional

    molecular chimeras.11

    11 ASSUMPÇÃO, Eduardo. Nota sobre patentes e biotecnologia. Rio de Janeiro: INPI, 2001, p.5.

  • Em 1980, o caso “Diamond X Chakrabarty”, revolucionou o entendimento sobre

    patenteamento de formas de vida, com a descoberta da bactéria Pseudomonas, manipulada

    geneticamente, com a finalidade de degradar hidrocarbonetos poluidores, provenientes de

    petróleo.

    Famoso no mundo todo, o processo percorreu todas as instâncias judiciais e

    administrativas. A Suprema Corte Americana manteve a patenteabilidade da bactéria supra

    mencionada, obtida artificialmente, anulando as determinações iniciais do escritório de

    patentes, que dizia que coisas vivas não podiam ser patenteadas e que deveriam ser

    protegidos por um sistema sui generis de plantas e suas variedades.

    Neste caso, o trabalho de sistema de patentes foi o de traçar um

    divisor comum entre o que era produto da natureza e produto de obras do homem.

    Daí por diante, abriu-se um precedente na história do patenteamento de seres vivos,

    onde ao anunciar sua nova diretriz para o assunto a Organização de Marcas e Patentes passa

    a considerar organismos vivos multicelulares, desde que não humanos passíveis de serem

    considerados como matéria patenteável. A distinção normalmente feita entre descoberta e

    invenção (que abordaremos mais adiante) é irrelevante para o Escritório de Patente norte

    Americano. De fato, esta instituição recusa in limine, a proteção a tudo aquilo que seja

    considerado encontrado na natureza, porquanto descobertas. Desta forma, no sentido estrito

    de descoberta como percepção de fenômenos naturais, o USPTO (United States Patent and

    Trade Office) vai ao encontro das posições de todas as demais organizações de propriedade

    intelectual ao negar amparo a eventuais pedidos de patentes dessa categoria. No entanto, é

    perfeitamente possível a concessão de patentes quando a invenção possua como ponto de

    partida, descobertas.

    Neste sentido, seqüências genéticas são passíveis de patenteamento, mesmo em se

    tratando de descobertas, sob o argumento de que a descoberta pode ser patenteada quando

    satisfizer os requisitos técnicos.

    Ao utilizar a palavra descoberta, a Constituição norte-americana autorizou a

    concessão de patente para a pessoa que inventa ou descobre uma composição de matéria

    nova e útil. A descoberta de um gene pode, assim, ser a base para uma patente referente à

    composição genética isolada de seu estado natural e processada por etapas de purificação.

  • Portanto, para ser patenteadas as seqüências genéticas, é necessário à presença de dois

    elementos – chave, “isolamento e purificação”. Parafraseando as palavras da Suprema

    Corte Americana “tudo que há embaixo do sol, feito pelo homem, é patenteável”.

    Aparentemente, a ordem mundial está carente de um consenso no tocante a

    patenteabilidade de seres vivos e o ordenamento jurídico brasileiro se equilibra entre duas

    vertentes – A lei norte americana e a européia, embora ainda tenda a seguir o modelo

    europeu.

    As questões que envolvem biotecnologia podem significar nosso desenvolvimento

    ou aumento irreversível da dependência tecnológica.

    Interesses econômicos e políticos, nacionais e internacionais interferiram no

    processo elaborativo da Lei 9.279/96, principalmente interesses comerciais, uma vez que as

    discussões sobre leis patentárias foram feitas no âmbito do GATT ( General Agreement on

    Tariffs and Trade), quer dizer, em foro comercial e não da OMPI, que trata das questões

    administrativas.

    Os lucros financeiros obtidos a partir do patenteamento induzem a uma forma de

    poder, à medida que o conhecimento é poder através da informação.

    Àqueles que opõem razões éticas ao patenteamento de organismos vivos em

    qualquer nível, cabe recordar que o recurso amplo e intensivo à biotecnologia é premissa

    indispensável para o desenvolvimento dos países, sobretudo no que concerne aos benefícios

    imediatos para suas populações, como saúde, alimentação.

    Neste sentido, impedir qualquer forma de proteção intelectual de seres vivos,

    significa impedir o acesso e o uso de biotecnologia, protelando irresponsavelmente o

    processo de desenvolvimento e aplicação desta tecnologia em áreas de extrema relevância

    social – o que sem dúvida acarretaria questionamento de natureza ética ainda maior.

    O INPI (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual), revela que recursos naturais

    são poucos aproveitados pelo Brasil, que como já mencionado país da maior diversidade do

    planeta, infelizmente vê que estes recursos vêm sendo explorados quase que

    exclusivamente por grandes laboratórios multinacionais.

  • Para se ter uma idéia dos investimentos internacionais em biotecnologia, 97% dos

    pedidos de patente desta área apresentados ao INPI, nos últimos quatro anos são

    estrangeiros.

    Esta realidade é o que mais chama atenção no Relatório de Atividades relativa aos

    anos de 2000/2001, divulgado pelo INPI (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual),

    que apesar de ter um apoio a iniciativas acadêmicas e ter núcleos de patenteamento em

    universidades e centros de pesquisa, lamenta que nos 24.565 pedidos de patentes

    apresentados ao instituto em 2001, a participação das universidades brasileiras foi apenas

    de 0,2%, o que, segundo o relatório “revela claramente a falta de uma cultura de

    propriedade intelectual nas instituições universitárias”.

    Em seu relatório, o INPI cita algumas aberrações, como o fato de um laboratório

    europeu ter a patente sobre a secreção de um sapo da Amazônia utilizada para a fabricação

    de analgésico, técnica de há muitos conhecidas pelas comunidades indígenas, ou ainda de

    japoneses serem hoje proprietários da patente de um remédio estomacal feito a partir da

    erva brasileira conhecida como “espinheira santa”.12

    Relata Mário Luís Possas13 em uma de suas obras que um dos principais óbices que

    os agentes econômicos envolvidos com a pesquisa biotecnológica enfrentam refere-se a

    dificuldades de definição de um arcabouço institucional impreciso cujas determinações são

    de diversas origens, como por exemplo, o termo microorganismo que constitui um

    paradoxo da lei patentária, até mesmo impactos ambientais, risco dos mais variados, e

    aspectos de cunho ético e religioso.

    A regulamentação da biotecnologia no Brasil, ainda tem um longo caminho pela

    frente a percorrer, não somente porque deve buscar se adequar aos objetivos da sociedade

    brasileira, que ainda muito precisa conhecer da realidade biotecnologica e do papel

    estratégico do Brasil no contexto mundial, principalmente porque deverá servir de

    instrumento eficaz à realização de um Direito que, de fato, atenda a estes objetivos.

    12 INPI – Instituto Nacional de Propriedade Intelectual. Relatório de atividades. 20002001. 13 POSSAS, Mário Luís.O processo de regulamentação da biotecnologia. Brasília: IPEA, 1994.

  • 4. O MATERIAL BIOLÓGICO ISOLADO DA NATUREZA: DESCOBERTA OU

    INVENÇÃO?

    Doutrinariamente invenção é uma criação industrial que tem por objeto a patente de

    invenção, temporariamente protegida, que por sua vez gera um invento.

    O artigo 10 limita-se a detalhar o que não é invento:

    Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade:

    I- Descobertas, teorias científicas e métodos matemáticos;

    II- Concepções puramente abstratas;

    III- Esquemas, planos, princípios ou métodos comerciais, contábeis, financeiros, educativos, publicitários, de sorteio e de fiscalização;

    IV- As obras literárias, arquitetônicas, artísticas e científicas ou qualquer criação estética;

    V- Programas de computador em si;

    VI- Apresentação de informações

    VII- Regras de jogo

    VIII- Técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos, bem como métodos terapêuticos ou de diagnóstico, para a aplicação no corpo humano ou animal; e;

    IX- O todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais.14

    Ficam, pois, excluídos da proteção patentária as chamadas “criações industriais

    abstratas”.

    A descoberta pertence ao âmbito da ciência e tem sido, ao longo do tempo,

    considerada como obrigatoriedade difundida, de modo que seus conhecimentos amplos e

    irrestritos, tidos como bem da humanidade, pudesse dar origem e alavancar o mundo da

    tecnologia.

    Algumas vezes, contudo, a fronteira entre ciência e tecnologia é difusa. Informações

    científicas poderiam ser sonegadas, por suposta natureza tecnológica, isto é, toda às vezes

    que os resultados de pesquisa científica se aproxima da atividade industrial, tais

    14 BRASIL. Congresso Nacional. Lei n. 9.279 de 14.5.96. Disciplina os direitos e obrigações relativas à propriedade intelectual, Brasília, 1996.

  • informações, assumem um significativo e imediatos valores econômicos, fazendo, com que

    seus detentores clamem por esta relação efetiva.

    A biotecnologia, inserindo-se nesse contexto de estreita e íntima relação com a

    atividade científica, é o melhor e mais surpreendente exemplo.

    Esclarece Pontes de Miranda15, com relação à descoberta que:

    A descoberta revela apenas o que ainda não se conhecia: é a atividade do Homo sapiens; a invenção, do homo faber, se bem que, por vezes, por trás dele, esteja o homo sapiens, ou os dois se entrosem na mesma psique.Quem inventa dá ao mundo novo objeto utilizável, ou meio para se chegar a novos objetos utilizáveis, ou a novas aplicações úteis. Toda a descoberta permanece no campo da teoria, ainda quando se trate de influxo da técnica na natureza. Se a descoberta é tal que envolve revelação de processo novo ou de aplicação nova, é preciso que se invente essa utilizabilidade do processo ou da aplicação.

    A descoberta é, assim, mera revelação daquilo que já existia; resulta do espírito

    especulativo do homem, na investigação de fenômenos e leis da natureza.

    Através da descoberta, o homem por seu espírito especulativo, começa a entender

    acerca do mundo físico, onde a descoberta por sua vez não satisfaz nenhuma

    necessidade de ordem prática, nem soluciona nenhum problema de ordem técnica.

    João da Gama Cerqueira16 afirma que “a invenção e descoberta são duas noções

    que não se confundem. A separação entre dois conceitos baseia-se na não existência da

    primeira antes da intervenção humana e na preexistência da segunda, antes oculta e que

    passa a ser revelada”.

    Ao se estabelecer esta distinção, resta claro que a descoberta ocorre pela

    identificação de algo na natureza por acaso, ou mediante busca, pesquisa, observação ou

    dedução. A invenção, por sua vez, ocorre quando são colocadas em práticas as

    informações obtidas com a descoberta.

    A título ilustrativo, podemos citar como exemplo: a produção de princípios ativos

    com a aplicação potencial em medicamentos, que, normalmente, tem início com o

    15 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 4º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p.270. 16 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade intelectual. 2º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p.78.

  • isolamento, identificação e caracterização de nova molécula contida em plantas, fungos

    ou animais.

    Todavia, até mesmo antes do isolamento das novas moléculas, é possível que se

    verifique a existência de uma atividade biológica interessante na mistura com aplicação

    potencial em medicamentos ou outros empregos. Nesta hipótese, pode-se já ter uma

    invenção.

    Os processos de isolamento de substâncias ativas e as substâncias ativas, isoladas,

    também são, geralmente consideradas invenções.

    Apesar de divergências entre as leis de diversos países, a maioria, a exemplo da

    norte-americana, considera que, enquanto um produto existente na natureza não é

    necessariamente patenteáveis, o isolamento, bem como a purificação deste produto da

    natureza, pode transformá-lo em produto “manufaturado” patenteáveis.17

    Contudo, em se tratando de princípios ativos isolados de plantas, este mecanismo

    (isolamento e purificação), ainda não é aceito no Brasil para a concessão de patentes,

    segundo preceitua o artigo 10, IX da Lei 9.279/9618, sendo patenteável, apenas a

    composição farmacêutica que contenha o extrato ou o princípio ativo.

    Contudo, atualmente várias jurisprudências internacionais tem levado a proteção do

    material de per se, quando puder ser nitidamente caracterizado por sua estrutura ou por

    sua característica, e por considerar que apesar de preexistentes, tais materiais não

    estariam “disponíveis” na natureza, isto é, tais materiais não eram preexistentes na forma

    pura e isolada.

    17 MACEDO, Maria Fernanda Gonçalves de MULLER, Ana Cristina, MOREIRA Adriana Campos. Patenteamento em biotecnologia: um guia prático para os elaboradores de pedidos de patentes. Brasília, DF. EMBRAPA, 2001, p.22-23. 18 Artigo 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade: IX- o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais.

  • Portanto, analisando o artigo 10, inciso IX da Lei 9.279/96, conclui-se que não é

    patenteável qualquer substância isolada da natureza, exceto se sofresse alguma alteração

    pós-isolamento ou alguma alteração estrutural que a difere daquela presente in natura.

    O fato é que, mesmo que o isolamento de material pré-existente na natureza se faça

    através de procedimento que implique atividade inventiva, apresente novidade e inclua

    na aplicação industrial, requisitos intrínsecos da patenteabilidade, tal material isolado

    não terá proteção patentária pela atual lei brasileira, o que deveras constitui-se de um

    absurdo sem precedentes e um ato lesivo a tudo aquilo que se considera como

    criatividade do intelecto humano.

    Com relação ao artigo 18, alínea III, da mencionada Lei de propriedade intelectual,

    cabe mencionar que embora prevaleça no âmbito internacional o entendimento de que as

    células animais e vegetais em cultura possam ser consideradas como microorganismos,

    pela atual lei brasileira de propriedade intelectual é vedada sua patenteabilidade, mesmo

    que atendam aos requisitos supra mencionados, isto é, novidade, aplicação industrial e

    descrição plena.

    Resta salientar ao nosso ver que, a estrutura gramatical deste artigo é bem imprecisa

    e paradoxal no que concerne a microorganismos encontrados na natureza,

    caracterizando-os como descobertas com exceção aos microorganismos transgênicos.

    Inquestionavelmente os microorganismos são organismos, entidades biológicas,

    capaz de reproduzir, transferir material genético e mais, a caracterização desses

    microorganismos são realizada por intermédio da engenharia genética, que por

    construção normativa nos remete a categoria biológica. Em sendo seres vivos, os

    microorganismos são consideradas invenções passíveis de patenteamento desde que

    sejam manipulados em sua construção genética, em sua estrutura molecular, mas

    continuam sendo seres vivos, a exceção tornou-se regra.

    Isto posto, afirmamos que decisões desta natureza devem fluir de debates nacionais,

    visando o desenvolvimento do país com estratégias nacionais de promoção e inovação,

    desenvolvimentos científicos e tecnológicos, principalmente uma mudança emergencial

    no âmbito institucional, exigindo para tanto uma mentalidade social e jurisdicional

    isentas.

  • CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Com o efeito da globalização, precisamos encorajar a troca de informações se

    quisermos que o desenvolvimento científico ocorra, uma vez que há uma série de

    questões delicadas relacionadas ao balanço que existe entre o conjunto de conhecimento

    público e os direitos exclusivos sobre uma informação científica que deve ser

    legitimadamente embutido em uma patente.

    As patentes, apesar de não serem absolutamente eficazes, e de não serem o único

    meio de apropriabilidade, tem sua importância associada à variedade de usos possíveis

    na estratégia do desenvolvimento científico, cultural, tecnológico e econômico de um

    país.

    Por outro lado, as patentes ainda são a melhor forma de incentivar a pesquisa e

    desenvolvimento de novos produtos e processos, como também garantir a

    disponibilização das inovações no mercado, principalmente quando se levam em

    consideração os custos e riscos envolvidos em áreas biotecnológicas, entretanto o Brasil

    ainda está muito aquém da política pró-patente com relação a garantir os direitos de

    propriedade intelectual em se tratando de componentes isolados da natureza.

    Com estas práticas, emergem para o campo biotecnológico imensas discussões

    sobre vários aspectos, envolvendo diversos segmentos da sociedade, restando uma certa

    resistência em compreendê-la e assimilá-la, uma vez que a biotecnologia tem

    revolucionado uma série de conceitos em suas pesquisas científicas, trazendo a baila

    também questionamentos acerca de sua proteção intelectual, para processos e produtos

    advindos da biodiversidade.

    Contudo, a ciência tem que ter sua evolução sistêmica, não podendo ser barrada sob

    pena de cairmos em defasagem tecnológica.

    A questão da patenteabilidade dos desenvolvimentos biotecnológicos é polêmica,

    uma vez que não há como as igualar em termos de proteção a uma invenção que não

    atua em organismos vivos, pelo simples fato de conter em certos aspectos áreas

    indefinidas, como por exemplo, a polêmica em torno do que seria uma invenção ou mera

  • descoberta em termos de pesquisa biotecnológica perante a lei brasileira de propriedade

    intelectual (Lei 9.279/96).

    Neste sentido existem opiniões discrepantes entre diversos escritórios de patentes do

    mundo e em específico a atual lei brasileira que não concede o privilégio desta natureza,

    por não considerá-la invenção e sim descobertas, mesmo que estes produtos sejam

    isolados e purificados de seus habitats naturais.

    De qualquer forma é importante uma maior reflexão sobre o assunto por aqueles que

    alegam questões de natureza ética, uma vez que, as conseqüências éticas seriam bem

    maiores em não se permitir à proteção desta natureza de produtos.

    A maioria dos países, incluindo o Brasil, regrou em sua legislação patentária o

    conceito de invenção na forma negativa, ou seja, dispõe o que não é patenteável, sem

    fornecer subsídios claros sobre as matérias patenteáveis.

    Segundo este raciocínio, no Brasil, a lei de propriedade intelectual é relativamente

    nova e porque não dizer, engessadora, em certos artigos, no que concerne ao progresso

    tecno-científico e econômico.

    Outra situação que agrava esta questão são as que dizem respeito às decisões

    administrativas e judiciais que são incipientes no sentido do entendimento entre o que

    seja matéria biológica patenteável e o que não seja patenteável.

    Portanto, conclui-se:

    O futuro do desenvolvimento da biodiversidade no Brasil depende da forma como

    serão administradas suas potencialidades, conciliando equilíbrio ecológico,

    desenvolvimento sustentável, melhoria da qualidade de vida voltada à sociedade,

    crescimento econômico, avanço tecnológico e principalmente parceria e integração na

    economia nacional e mundial.

    O Brasil por sua vez, pode tirar proveito do instituto das patentes na área

    biotecnológica, desde que capacite no entendimento das regras a propriedade intelectual a

    nova temática e situação biotecnológica, capacitem recursos humanos nas esferas

    administrativas e judiciárias, para melhor aproveitar os recursos genéticos da

    biodiversidade e a tecnologia gerada no país.

  • BIBLIOGRAFIA

    ASSUMPÇÃO, Eduardo. Nota sobre patentes e biotecnologia. Rio de Janeiro: INPI,

    2001.

    BASTOS Aurélio Wander. Dicionário brasileiro de propriedade industrial e

    assuntos conexos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1997.

    BRASIL. Constituição Federal. (org) Cahali, Said Y. São Paulo: Revista dos Tribunais.

    BRASIL. Congresso Nacional. Lei 9.279/96. Brasília, 1996.

    CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade intelectual. São Paulo: Revista

    dos Tribunais, 1982.

    CONFERÊNCIA SOBRE O MEIO AMBIENTE. Rio de Janeiro, 1992.

    DEL NERO, Patrícia Aurélia. Propriedade intelectual: a tutela jurídica da

    biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

    FRAN, Martins. Curso de direito comercial. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

    GRAU, Eros Roberto. A propriedade na nova Constituição: o patrimônio

    imobiliário do poder público. São Paulo: Cadernos FUNDAP, 1989.

    INPI. Instituto Nacional de Propriedade Intelectual. Relatório de atividades. Rio de

    Janeiro, 2000/2001.

    MACEDO, Maria Fernanda, MOREIRA Adriana C. Patenteamento em biotecnologia:

    um guia prático para os elaboradores de pedido de patentes. Brasília: Embrapa,

    2001.

    MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais,

    1993.

    POSSAS, Mário Luís. O processo de regulamentação da biotecnologia. Brasília:

    IPEA, 1994.

  • SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico, corpo, subjetividade e tecnologias digitais.

    Rio de Janeiro: Dumará, 2002.

    SHERWOOD, Robert M. Propriedade intelectual e desenvolvimento econômico. São

    Paulo: Edusp, 1992.

    TACHINARDI, Maria Helena. A guerra das patentes: o conflito X EUA sobre

    propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

    Apresentação de informaçõesRegras de jogo