6
903 estudos, Goiânia, v. 33, n. 11/12, p. 903-908, nov./dez. 2006. Resumo: apresenta-se um caso clínico de colangite esclerosante primária não associada a doença inflamatória intestinal (DII), em paciente do sexo feminino, de 56 anos de idade, com manifestação clinica da doença após episódio de colecistite e conseqüente colecistectomia. A paciente en- contra-se em acompanhamento ambulatorial há mais ou menos um ano. Tenta-se aqui rever os critérios clínicos e as nuances dessa doença de etiologia desconhecida. Palavras-chave: colestase crônica, fibrose ductal, ductopenia RODRIGO EDUARDO DE BRITO, RODRIGO SEBBA AIRES COLANGITE ESCLEROSANTE PRIMÁRIA: RELATO Colangite Esclerosante Primária (CEP) é uma doen- ça que acomete preferencialmente os grandes ductos biliares intra e extra-hepáticos, porém podendo DE CASO E REVISÃO comprometer também pequenos ductos, caracterizando-se por progressivo processo inflamatório e fibrosante que re- sulta em estenoses múltiplas, com conseqüente colestase crônica. A doença é progressiva e evolui para cirrose biliar e suas complicações (hipertensão portal com possível san- gramento de varizes esofagianas e insuficiência hepática), A DA LITERATURA

prova-HA

Embed Size (px)

DESCRIPTION

colangite

Citation preview

Page 1: prova-HA

903

estu

dos,

Goi

ânia

, v.

33,

n.

11/1

2, p

. 90

3-90

8, n

ov./d

ez.

2006

.

Resumo: apresenta-se um caso clínico de colangiteesclerosante primária não associada a doença inflamatóriaintestinal (DII), em paciente do sexo feminino, de 56 anos deidade, com manifestação clinica da doença após episódiode colecistite e conseqüente colecistectomia. A paciente en-contra-se em acompanhamento ambulatorial há mais oumenos um ano. Tenta-se aqui rever os critérios clínicos e asnuances dessa doença de etiologia desconhecida.

Palavras-chave: colestase crônica, fibrose ductal,ductopenia

RODRIGO EDUARDO DE BRITO, RODRIGO SEBBA AIRES

COLANGITE ESCLEROSANTEPRIMÁRIA: RELATO

Colangite Esclerosante Primária (CEP) é uma doen-ça que acomete preferencialmente os grandes ductosbiliares intra e extra-hepáticos, porém podendo

DE CASO E REVISÃO

comprometer também pequenos ductos, caracterizando-sepor progressivo processo inflamatório e fibrosante que re-sulta em estenoses múltiplas, com conseqüente colestasecrônica.

A doença é progressiva e evolui para cirrose biliar e suascomplicações (hipertensão portal com possível san-gramento de varizes esofagianas e insuficiência hepática),

A

DA LITERATURA

Page 2: prova-HA

904

estu

dos,

Goi

ânia

, v.

33,

n.

11/1

2, p

. 90

3-90

8, n

ov./d

ez.

2006

.

além de aumentar o risco de desenvolvimento de colan-giocarcinoma. Esta neoplasia complica a doença em 7 a 20%dos casos, com óbitos em 5 a 15 anos após o diagnóstico, tam-bém diminuindo a idade de incidência (de uma média de 66 para42 anos). Este trabalho mostra o relato de um caso clínico deCEP que apresenta certas variações quanto à apresentação maistípica, porém com um quadro clínico fiel ao que encontramosna literatura.

CASO CLÍNICO

Paciente do sexo feminino, de 56 anos, casada, GIII PIII A0,evangélica, salgadeira e costureira, natural de São João dos Patos(MA) e residente em Goiânia (GO).

Iniciou em agosto de 2005 quadro de dor em hipocôndriodireito e epigástrio tipo cólica, desencadeada geralmente poringesta de carne, com relativa melhora após uso de anti-inflama-tórios não hormonais (Aines).

Após um mês, iniciou-se icterícia e fadiga intensa motivandoinvestigação diagnóstica do quadro. Uma ultrassonografia, reali-zada no dia 05 de outubro de 2005, evidenciou colelitíase, sendoque cinco dias após foi submetida a colecistectomia. Mesmo apósa cirurgia, a paciente permaneceu com quadro ictérico. A pacientenega etilismo em qualquer momento da vida, nega uso de medica-ções ou de substâncias hepatotóxicas. Não soube dizer sobre do-enças familiares, visto não ter conhecido os pais.

Desta época até janeiro de 2006, não se tem dados de comofoi conduzido o quadro da paciente. Em janeiro, iniciou acompa-nhamento no serviço de Gastroenterologia do Hospital Geral deGoiânia (HGG). Em ultrassonografia deste período, constatou-seascite moderada e imagem sugestiva de cirrose hepática. Propos-to seguimento ambulatorial na condução do caso, a paciente, emmarço deste ano, necessitou ser internada.

A paciente se apresentou com aumento de pressão arterial eglicemia de jejum e pós-prandial, concomitante a quadro de fadi-ga generalizada e prurido (iniciado em março de 2005), sendodiagnosticada como hipertensa e diabética do tipo II. A pacientese apresentou em BEG, hipocorada (+/4+), hidratada, eupnéica,ictérica (3+/4) e afebril. Com um aparelho respiratório com MV

Page 3: prova-HA

905

estu

dos,

Goi

ânia

, v.

33,

n.

11/1

2, p

. 90

3-90

8, n

ov./d

ez.

2006

.

fisiológico, simétrico e sem ruídos adventícios (inclusive comnegativa para tabagismo), aparelho cardiovascular sem altera-ções à ausculta. Com abdome normotenso, leve dor à palpaçãoem hipocôndrio direito e epigástrio, fígado a 5cm do rebordocostal direito, com superfície irregular e nodular, RHA presen-tes e normais. Os exames laboratoriais mostravam aumento dis-creto de enzimas hepáticas, com TGO=120 e TGP=90, e aumentoconsiderável de bilirrubinas, com bilirrubina total=7,3 (predo-mínio da fração direta, 5,7), fosfatase alcalina = 571 e gamaGT=1045.

Feita a compensação do quadro clínico, foi realizada TC deabdome, com evidência de ascite moderada, hepatomegalia ho-mogênea e vias biliares intra e extra-hepáticas não dilatadas. Pos-teriormente, foi submetida a biópsia hepática percutânea,apresentando um quadro histopatológico compatível comhepatopatia crônica de aspecto biliar, com colestase acentuada(lagos biliares), septos fibrosos completos, sem elementosmorfológicos para concluir quanto a CEP. O tratamentoambulatorial foi instituído com Ácido Ursodesoxicólico, na dosede 150mg três vezes ao dia. Em acompanhamento ambulatorial,foram pedidos os seguintes exames: anticorpo anti-LKM1,antimúsculo liso e FAN, que vieram negativos, descartando apossiblidade de hepatite auto-imune. Também foi solicitado oanticorpo anti-mitocôndria (AMA), que, por sua vez negativo,afastou o diagnóstico de cirrose biliar primária. Em julho de 2006,a paciente novamente foi internada por descompensaçao do qua-dro, sendo realizada uma endoscopia digestiva alta, que evidenciougastrite antral erosiva severa e úlcera duodenal em atividade (pro-funda) na parede posterior do bulbo duodenal. Também foi reali-zada outra ultrassonografia, que mais uma vez evidenciouhepatomegalia discreta e ausência de cálculos em vias biliaresextra-hepáticas. Após compensação do quadro, a paciente retornaao acompanhamento ambulatorial, com tratamento de gastrite eúlcera, mantendo o uso do Ácido Ursodesoxicólico na mesma do-sagem. Por exclusão de outros diagnósticos diferenciais para estequadro colestático crônico, inferimos tratar-se de um caso típicode colangite esclerosante primária. A confirmação se dará apósa realização de CPRE, que ainda não havia sido realizada até apublicação deste trabalho.

Page 4: prova-HA

906

estu

dos,

Goi

ânia

, v.

33,

n.

11/1

2, p

. 90

3-90

8, n

ov./d

ez.

2006

.DISCUSSÃO

O diagnóstico de CEP é baseado em critérios clínicos,laboratoriais, imaginológicos e histopatológicos. Esta rara causade colestase crônica deve ser afastada frente a outras etiologiasque cursem com colestase secundária, como a coledocolitíase,cirurgia biliar prévia, carcinoma esclerosante dos ductos biliarese anomalias congênitas da via biliar principal.

Pode ocorrer em qualquer faixa etária, porém 65% predomi-nam antes dos cinqüenta anos de idade na época do diagnóstico.Há uma certa predominância no sexo masculino (2 homens:1mulher) e em 70% dos casos ou mais se associa a doença inflama-tória intestinal (Colite ulcerativa).

A doença tem etiologia desconhecida. Pode ser que tenhapredisposição genética (casos familiares podem ocorrer e tambémestreita relação com fenótipos HLA-B8, HLA-DR3 e HLA-DRW52). Além disso, também são observadas alterações imuno-

Tabela 1: Registro da Evolução dos Valores Bioquímicos eHematológicos

10/10/2005 19/04/2006 30/07/2006 04/08/06

Bilirrubina total

(0,3-1 mg/dL)(1) 7,2mg/dL 7,3mg/dL 9,1mg/dL 7,3mg/dL

Bilirrubina direta

(0-0,25 mg/dL)(1) 5,0mg/dL 5,7mg/dL 6,3mg/dL 5,4mg/dL

Bilirrubina indireta

(0,2-0,8 mg/dL)(1) 2,2mg/dL 1,6mg/dL 2,8mg/dL 1,5mg/dL

TGO (7-27 U/L)(1) 120U/L 84U/L 187U/L 82U/L

TGP (10-50 U/L)(1) 90U/L 93U/L 135U/L 122U/L

Fosfatase alcalina

(39-117U/L)(1) - 571U/L 506U/L 972U/L

Gama-GT (5-45U/L)(1) 1.380U/L 1045U/L 1373U/L 1268U/L

Atividade deprotombina (%) 80 88 91 100

Nota: (1) valores normais.

Page 5: prova-HA

907

estu

dos,

Goi

ânia

, v.

33,

n.

11/1

2, p

. 90

3-90

8, n

ov./d

ez.

2006

.

lógicas humorais e celulares que sugerem uma provável patogêneseautoimune.

Sua apresentação clinica varia desde pacientes assintomáticos,com elevação isolada de algum marcador (fosfatase alcalina, gama-GT e/ou bilirrubinas), até pacientes com astenia, dor abdominalnos quadrantes superiores, icterícia progressiva, e, mais raramen-te, ataques recorrentes de colangite. Uma outra possiblidade é odiagnóstico a partir de uma eventual doença inflamatória intesti-nal (particularmente colite ulcerativa).

A CPRE é um exame complementar de grande importância,já que mostra estenoses alternando-se com dilatações dos ductosbiliares intra e extra-hepáticos, inclusive com desaparecimento dealguns destes (ductopenia).

Ao exame histopatológico, também temos características pe-culiares que sugerem o diagnóstico de CEP, a fibrose periductal con-cêntrica ‘em casca de cebola’ e atrofia das células do epitélio ductal,que podem levar posteriormente ao desaparecimento de algunsductos (ductopenia). Além disso, temos uma colestase intra-acinare infiltrado inflamatório misto portal e, às vezes, periportal.

Nesta paciente, o diagnóstico de colangite esclerosante pri-mária baseou-se especialmente em seu quadro clinico, examescomplementares para exclusão de algumas doenças que tambémlevam a colestase crônica e a biópsia hepática que por sua vezcontribuiu sobremaneira para tal diagnóstico.

Apesar de não ter nenhuma evidência clínica de DII, deve-mos lembrar que a CEP surge isoladamente em aproximadamente30% dos casos.

Apesar de mulher (a doença é mais comum em homens), comidade maior que cinqüenta anos (incide mais em faixa etária abaixodos cinqüenta anos), temos um quadro clínico típico de CEP. Não sesabe por quanto tempo a doença permaneceu assintomática, pro-vavelmente ela veio se manifestar após uma possível colecistite econseqüente colecistectomia.

A paciente continua seu tratamento ambulatorialmente, aguar-dando realização de CPRE.

O tratamento definitivo (transplante hepático) é discutíveldiante da idade da paciente e suas comorbidades, pesando o ris-co-benefício de um procedimento com tão elevada morbi-mor-talidade.

Page 6: prova-HA

908

estu

dos,

Goi

ânia

, v.

33,

n.

11/1

2, p

. 90

3-90

8, n

ov./d

ez.

2006

.

Referências

ANGULO, P. et al. Small-duct primary sclerosing cholangitis: Prevalence andnatural history (abstratct). Gastroenterology, v. 118, A902, 2000.

ERKELENS, G. W. et al. Sclerosing pancreato-cholangitis responsive to steroidtherapy. Lancet,1999.

LEE, Y. M.; KAPLAN, M. M. Primary sclerosing cholangitis. N Engl J Med,v. 332, p. 924, 1995.

HAMANO, H. et al. High serum IgG4 concentrations in patients with sclerosingpancreatitis. N Engl J Med, v. 344, p. 732, 2001.

PORTMAN, B. C.; MaCSWEEN, R. N. M. Diseases of the intrahepatic bileducts. In: RODERICK, N. M. et al. (Eds.). Patology of the liver. 3. ed. NewYork: Churchill Livingstone, p. 490-497, 1994.

RASMUSSEN, H. H. et al. Hepatobiliary dysfunction and primary sclerosingcholangitis in patients with Crohn’s disease. Scand J Gastroenterol, v. 32, p. 604,997. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/servicos/monografiaabnt/>;<www.fm.ul.pt/public/ge/Index_GE/1999/Supl%203/s55.pdf >;<http://www.angelfire.com/md/MartinsLiverPage/Page3.html>.

Abstract: the autors report a case of a 56-years-old female withprimary sclerosing colangits unrelated with inflammatory boweldisease (IBD), with clinical feature of disease after cholecystectomydue cholecystitis. The patient remains in out hospital following aboutone year. Has tried here to review the clinical criteria and details ofthis unknown origin disease.

Key words: chronic cholestasis, ductal fibrosis, ductpenia

RODRIGO EDUARDO DE BRITOAcadêmico do sexto ano de Medicina na Universidade Federal da Grande Dou-rados.

RODRIGO SEBBA AIRESMestre em Medicina Tropical. Assistente do Serviço de Gastroenterologia eHepatologia do Hospital Geral de Goiânia (HGG) e Hospital das Clínicas daUniversidade Federal de Goiás (HC-UFG).