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Prática jurídica brasileira e a crítica de Viehweg ao Positivismo: estudo
da jurisprudência dos tribunais superiores acerca de honorários de
defensores dativos
Gabriel Boavista Laender
Procurador do Estado do Espírito Santo
Resumo
Este artigo analisa o tratamento conferido pela doutrina e pela jurisprudência do STF e do STJ
ao arbitramento judicial de honorários para defensores dativos – nomeados pelo juiz da causa
para assumir o patrocínio de pessoas que não podem arcar com o ônus de um advogado e das
custas processuais. O entendimento jurisprudencial sobre o assunto é confrontado com
julgados envolvendo questão semelhante – a contratação pelo Estado de advogados com
dispensa de licitação. Dada a discrepância de tratamento entre as duas questões semelhantes,
se critica o papel da compreensão de Direito mais difundida na prática judicial brasileira
(chamada no trabalho de compreensão manualesca) a partir do confronto com as idéias de
Theodor Viehweg sobre Direito e racionalidade jurídica.
Palavras-chaves: Tópica; Racionalidade Jurídica; Defensores Dativos; Honorários
Advocatícios.
Abstract
This article examines the treatment given by legal doctrine and case law of Brazilian higher
courts (Supremo Tribunal Federal - STF and Superior Tribunal de Justiça - STJ) regarding
fees due to court-appointed attorneys which represent people who can’t afford legal
expenditures. Case law on the subject is confronted with case law related to a similar question
– legal fees due to lawyers hired by state agencies without a previous public bidding process.
Given the discrepancy of treatment given by the same courts to those two similar issues, a
widespread legal thought in Brazil is criticized by confrontation with the ideas of Theodor
Vieweg regarding Law and legal rationality.
Keywords: Topic; Legal Rationality; Court-Appointed Attorney; Attorney’s Fees.
Law—our highest ideal and our basest nature. Don’t look too
closely at the law. Do, and you’ll find the rationalized
interpretations, the legal casuistry, the precedents of convenience.
You’ll find the serenity, which is just another word for death.
(Frank Herbert. Dune Messiah.)
1. Introdução
Este artigo objetiva problematizar o tratamento conferido pela doutrina e pela
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça ao
arbitramento judicial de honorários para defensores dativos – nomeados pelo juiz da causa
para assumir o patrocínio de pessoas que não podem arcar com o ônus de um advogado e das
custas processuais. O entendimento jurisprudencial sobre o assunto será confrontado com
julgados envolvendo questão semelhante – a contratação pelo Estado de advogados com
dispensa de licitação. Dada a discrepância de tratamento entre as duas questões semelhantes,
se apontará o papel de uma compreensão de Direito bastante difundida na prática judicial
brasileira e se analisará essa compreensão a partir sobretudo das críticas de Theodor Viehweg
à concepção de Direito calcada nas pretensões do cientificismo positivista.
Para tanto, inicialmente se fará uma exposição resumida das características da
concepção moderna de Direito no Brasil e de sua influência na prática jurídica. Todavia, ao
invés de se justificar a exposição com base em revisão bibliográfica da doutrina criticada e
ampla análise jurisprudencial, a crítica será centrada no tratamento do assunto específico
escolhido, qual seja, a nomeação de defensores dativos e o arbitramento judicial de seus
honorários. Isso porque uma ampla análise exigiria mais do que pode comportar um artigo
científico e, desse modo, tornaria inviável a presente empreitada. Além disso, o objetivo deste
trabalho é mais provocar e problematizar e menos comprovar todas as afirmações aqui feitas.
Espera-se, com isso, contribuir para o debate de uma nova concepção do Direito e, em
particular, explicitar a inconsistência que a concepção em voga impingiu ao tratamento
jurisprudencial do tema escolhido.
2. A compreensão manualesca que resulta de um Positivismo Jurídico deturpado
no Brasil
Não obstante as inúmeras críticas ao Positivismo Jurídico feitas pela Academia e,
por vezes, na justificativa de decisões judiciais diversas – inclusive dos nossos tribunais
superiores -, a prática jurídica brasileira permanece em larga medida calcada em uma
concepção de Direito tributária daquela escola. O Positivismo tem origem na idéia de Ciência
assentada na Modernidade a partir da extrapolação do método euclidiano – da demonstração
racional – como única fonte de saber confiável para se alcançar a verdade, o que se deu
sobretudo a partir da extraordinária influência dos estudos de Descartes. O fato de a Ciência
contemporânea ter já há algum tempo superado o paradigma cartesiano revela, por si só, certo
anacronismo dessa prática jurídica e impõe urgente questionamento de seus fundamentos.
O foco deste artigo será uma particular forma de compreender o Direito pela
prática jurídica brasileira que chamaremos de compreensão manualesca. O nome se justifica
pelo fato de o suporte teórico dessa prática se assentar em manuais doutrinários dos mais
diversos ramos do Direito, difundidos como repertório para auxílio à prática jurídica e
fundamento para avaliação em concursos públicos.
É importante distinguir essa prática do Positivismo Jurídico propriamente dito.
Trata-se de uma particular e extremamente bem sucedida doutrina jurídica brasileira que não
se anuncia positivista, mas que toma como ponto pacífico na compreensão do fenômeno do
Direito algumas das principais concepções daquela escola. Fazem isso, contudo, sem atentar
para as complexidades enfrentadas por Hans Kelsen, H. L. Hart, Norberto Bobbio e outros
teóricos, em especial no que concerne à função do Estado Democrático na formação do
Direito – do que se cita, por exemplo, o papel atribuído pelo positivismo kelseniano à Política
Judiciária. Se no Positivismo o Direito ganha legitimação segundo encadeamento formal de
validação determinado por normas que estabelecem como se reconhece o que é ou não
jurídico, isso se dá em respeito ao pressuposto de que o conteúdo material dessas normas é o
resultado do exercício da Democracia, com especial deferência ao papel do Parlamento na
articulação da vontade política da nação. A compreensão manualesca, por outro lado, se fia
na capacidade de encadeamento lógico-formal de conceitos abstratos desenvolvida pelo
Positivismo, mas não se preocupa em articular uma solução democrática no que concerne ao
conteúdo material do Direito, e tampouco de aplicar a dúvida cartesiana para buscar qualquer
base empírica para seus conceitos gerais.
A compreensão manualesca, ao contrário, pretende a partir do encadeamento
lógico-formal das normas jurídicas inferir categorias gerais e universais, cuja legitimação não
se dá por sua formação histórica ou escolha política, mas pela força dos argumentos abstratos
produzidos na sua construção. Muitas vezes, a manifestação política é descartada
sumariamente como atécnica e, logo, incorreta, sem que sequer seja proposta uma forma de
conciliação com o corpo político.1 O parâmetro de legitimação se constrói a partir de
princípios reputados tecnicamente aceitos, e a articulação desses princípios com as demais
categorias abstratas é aferida a partir da autoridade dos doutrinadores mais renomados e,
especialmente, da interpretação fixada por julgados selecionados do Supremo Tribunal
Federal e do Superior Tribunal de Justiça. A questão da legitimidade democrática, portanto, é
posta de lado em função da investigação de um suposto rigor técnico das categorias jurídicas.
Essas categorias, inclusive, servem até mesmo de parâmetro para avaliação das manifestações
políticas – uma manifestação política que seja materialmente contrária à concepção que a
doutrina e a jurisprudência conferem a uma categoria jurídica é considerada ilegítima.
Não custa perceber que, por trás dessa concepção, está uma pré-compreensão do
conhecimento que entende possível alcançar, por meio da razão, verdades abstratas que
servem de suporte ao entendimento do mundo concreto. Em outras palavras, as categorias
jurídicas não seriam o produto contingente de uma realidade historicamente circunscrita, mas
sim o resultado necessário e unívoco do emprego da razão. Haveria uma verdade jurídica
universal, e os expoentes da doutrina e da jurisprudência seriam aqueles que estariam mais
próximos de descobri-la e revelá-la.
A concepção que serve de base para o suporte teórico da compreensão
manualesca, assim propomos, caracteriza o Direito como um saber axiomático, tautológico e
metafísico. Axiomático porque pautado em enunciados que não se pretende demonstrar ou
1 Usa-se aqui a expressão como tradução de body politic, em homenagem ao uso feito pelos escritos do Federalista (MADISON, 1987), e cujo significado é a organização do povo em uma nação ou representação política.
justificar. Tautológico, pois as justificativas que se derivam dos axiomas são
autoreferenciadas, isto é, explicam-se por si mesmas, e não por referência à integração com
outros postulados ou axiomas. Metafísico, por fim, porque abdica de qualquer referência
empírica, para, ao invés, se articular apenas no encadeamento de conceitos e idéias abstratos.
Assim, a compreensão manualesca se pauta pela convicção de uma verdade pré-estabelecida
que tornaria possível firmar conhecimento sobre qualquer fato concreto, bastando para tanto o
regular desenvolvimento da dedução segundo processos lógico-formais e cujas regras gerais
não se baseiam sequer em demonstrações feitas a partir da realidade.
3. A crítica de Viehweg
A possibilidade de, a partir de um método racional, extrair verdades universais e
unívocas pautou o modelo de ciência cartesiano característico do advento da Era Moderna.
Por isso, a crítica que Viehweg faz ao enquadramento da Jurisprudência como uma Ciência
nessa concepção tem grande utilidade para analisar e problematizar a compreensão
manualesca.
Viehweg começa sua principal obra, Tópica e Jurisprudência, comentando uma
específica formulação de Gian Battista Vico elaborada em 1708 na dissertação De nostri
temporis studiorum ratione (VIEHWEG, 2008 pp. 17-20). Nesta obra, Vico, que era professor
de eloquência ou retórica (proffessor eloquentiae), analisava o modo ou método de estudo de
seu tempo (ROESLER, 2002 p. 31). Para tanto, distinguiu entre o método dos antigos – tópico
– e o método moderno - crítico:
Vico caracteriza o método novo (crítica) da seguinte maneira: o ponto de partida é
um primum verum, que não pode ser eliminado nem mesmo pela dúvida. O
desenvolvimento ulterior se dá à maneira da Geometria, isto é, segundo os ditames
da primeira ciência demonstrativa que conhecemos. Portanto, na medida do
possível, através de longas cadeias dedutivas (sorites). Em sentido contrário, o
método antigo (tópica) assim se caracteriza: o ponto de partida é o sensus communis
(senso comum, common sense), que manipula o verossímil (verosimilia), contrapõe
pontos de vista conforme os cânones da tópica retórica e sobretudo trabalha com
uma rede de silogismos.2
Segundo Viehweg, Vico apontava entre as vantagens do método crítico sua
agudeza e precisão, mas as desvantagens pareciam prevalecer: prejuízo de exame mais
profundo, enfraquecimento da fantasia e da retenção mnemônica, pobreza de linguagem e
imaturidade do juízo – em síntese, a degeneração humana. Em oposição, o método tópico
possibilitaria à inteligência humana despertar a fantasia e a retenção mnemônica e ensinaria a
considerar uma situação a partir de distintos ângulos e a encontrar uma multiplicidade de
pontos de vista (VIEHWEG, 2008 p. 19). A partir dessa constatação, Vico propôs que o modo
de pensar antigo fosse intercalado com o novo, de modo a se obter melhor resultado.
A partir dessa ideia, Viehweg abandona Vico e passa a trilhar caminho específico.
O problema central a que se dedica é o da cientificidade do trabalho do jurista e dos
discursos que fazem e/ou organizam essa práxis, se interrogados à luz do que a modernidade
convencionou seja a ciência, nos moldes do positivismo que domina o modelo das ciências
naturais e exatas e a concepção vulgar de ciência (ROESLER, 2002 p. 29). Viehweg
interroga essa cientificidade a partir de um novo ângulo, o do modo de pensar dos antigos
citado por Vico: a tópica. E, durante sua obra, firma a posição de que a tópica ilumina
aspectos deixados na sombra durante anos (quiçá séculos) diante da tentativa de aplicar os
padrões matematizantes das ciências exatas e naturais a todos os possíveis modelos de saber
(ROESLER, 2002 p. 30).
A crítica de Viehweg à aplicação desses padrões matematizantes é contundente.
Não busca o autor apenas uma nova forma de ver a prática jurídica e sua construção
doutrinária (Jurisprudência3). Mais do que isso, Viehweg entende que a aplicação do método
moderno (crítico) à prática do Direito obscurece diversos aspectos necessários ao
enfrentamento de seu problema persistente e insolúvel (aporia): a busca da Justiça. Portanto, a
aplicação da tópica ao Direito seria fundamental para a própria compreensão do fenômeno
jurídico e a consequente construção de um saber racional.
2 Em razão de sua maior clareza, optou-se pela tradução desse trecho feita por Cláudia Roesler (ROESLER, 2002 p. 33), ao invés daquela presente na edição em português utilizada neste artigo (VIEHWEG, 2008 p. 19). 3 É nessa acepção, somada ao próprio sentido de prudência, que a palavra Jurisprudência se emprega na língua alemã e, por óbvio, na obra de Viehweg (ROESLER, 2002 pp. 27-28).
Viehweg, então, parte da distinção feita por Aristóteles entre conhecimento
apodítico e conhecimento dialético (VIEHWEG, 2008 pp. 21-31). O primeiro – apodítico –
corresponde ao campo da verdade. O segundo – dialético -, ao campo do verossímil. Diante da
distinção entre apodítico e dialético, Viehweg discorre sobre os modos de pensar
característicos de cada um. O campo da verdade (apodítico) é marcado pelo pensar
sistematicamente; o campo do verossímil (dialético), pelo pensar problematicamente.
Problema, por sua vez, é qualquer questão que admita mais de uma resposta e, por isso, que
pressuponha necessariamente uma compreensão apenas provisória (VIEHWEG, 2008 p. 34).
Assim, o campo do verossímil é aquele onde se admitem várias respostas, ao que o campo da
verdade admite uma única verdade.
A diferença entre pensar problematicamente e pensar sistematicamente é
sobretudo uma questão de ênfase. Isso porque mesmo no pensar problematicamente há um
sistema, isto é, uma rede de argumentos orientados a produzir uma resposta. O pensar
problemático, desse modo, admite para cada problema um sistema. O pensar sistemático, por
sua vez, admite apenas um único sistema para a solução de todos os problemas.
A ênfase no pensar sistemático, porém, traz consequência específica. Na medida
em que nos vinculamos a um sistema para resolver problemas, os problemas que não se
adéquem ao sistema são ignorados como não pertinentes – pois admiti-los significaria ter de
abdicar do sistema e adotar outro:
Se [...] colocar-se o acento no sistema, o quadro que resulta é o seguinte: poderá
apresentar-se o caso extremo de que só exista um sistema A, por meio do qual todos
os problemas deverão ser reagrupados em problemas solúveis e problemas
insolúveis, bem como, [quanto] a estes últimos [insolúveis], poderão ser eliminados
se considerados meros problemas aparentes – [tendo em vista] que uma prova em
contrário só seria possível por meio de um sistema B. A mesma coisa poderá valer
no caso em que existam mais sistemas A, B, C, D, etc. Tais sistemas selecionarão os
problemas A, B, C, D pertinentes e deixarão à orla o resto. Em outras palavras:
procedendo-se de um sistema, tem-se como consectário uma seleção de problemas.
De modo contrário, se colocado o acento no problema, este busca igualmente um
sistema que sirva de supedâneo no consentimento de uma solução. Se existisse um
único sistema A, que declarasse insolúvel o nosso problema [...], seriam necessários
outros sistemas para a sua solução. [...] Em outras palavras: partindo-se de um
problema se tem como consequência uma seleção de sistemas e, assim, se conduz
normalmente a uma pluralidade de sistemas, sem que seja demonstrada sua
compatibilidade num sistema compreendido. (VIEHWEG, 2008 p. 35)
Logo, a ênfase no sistema significa selecionar os problemas que serão
enfrentados. Aqueles problemas não adequados ao sistema escolhido não serão sequer
apreciados ou, quando muito, serão descartados como problemas apenas aparentes. A ênfase
no problema, por sua vez, significa selecionar os sistemas adequados ao seu enfrentamento.
Assim, se um dado sistema não reconhece o problema, ou é incapaz de fornecer uma solução,
busca-se outro sistema capaz de fazê-lo – ao invés de simplesmente se descartar o problema
como meramente aparente. Por outro lado, não necessariamente se obterá, na visão de
Viehweg, coerência entre os diferentes sistemas selecionados para a solução do problema.
Ao tratar da Jurisprudência (no sentido de prática jurídica e sua construção
doutrinária4), Viehweg critica justamente aquele aspecto do pensar sistemático: a necessidade
de se descartar problemas. Ao permitir que se descartem problemas, a adoção do pensamento
sistemático pela Jurisprudência iria impedir a progressão do tratamento da aporia da Justiça e,
em decorrência, engessar o conhecimento e a prática jurídicos:
Se a Jurisprudência concebe sua tarefa como uma busca do justo dentro de uma
inabarcável pletora de situações, tem que conservar uma ampla possibilidade de
tomar de novo posição a respeito da aporia fundamental, i.e., de ser ‘móvil’. A
primazia do problema influi sobre a técnica a adotar. Uma trama de conceitos e de
proposições que impeça a postura aporética não é utilizável. Isso tem de valer
especialmente para um sistema dedutivo. A causa do inabarcável tem um interesse
muito maior numa variedade assistemática de pontos de vista. Não é inteiramente
exato qualificá-los como princípios ou regras fundamentais. Ter-se-ia que
denominá-los mais exatamente regras diretivas ou tópicos, segundo o critério de
nossa investigação, posto que não pertencem ao espírito dedutivo-sistemático,
porém ao tópico. A terminologia de tipo científico assinala uma direção falsa, coisa
que não é rara em nosso campo. (VIEHWEG, 2008 p. 107)
A direção falsa a que se refere Viehweg advém do tortuoso processo de
construção da Ciência do Direito como conhecimento sistemático (VIEHWEG, 2008 p. 82).
Segundo o autor, esse processo partiu das soluções jurídicas já conhecidas pelo saber
moderno, que se originaram em casos concretos a partir da aplicação da tópica. Ou seja, pelo
modo de pensar problemático, característico da tópica, se chegaram a soluções para
4 Vide nota de rodapé 3 supra.
problemas jurídicos – isto é, problemas que lidavam com a busca da Justiça. Operava-se por
tentativa e erro: as soluções eram construídas e reconstruídas de modo a melhor se adequar à
expectativa de Justiça da época em que produzidas. Com o tempo, essas soluções jurídicas
foram compiladas, na antiguidade, em catálogos de topoi (plural de topos), que configuravam
um repertório de pontos de vista já disponíveis (VIEHWEG, 2008 p. 37).
Foi com base no estudo desses catálogos que se buscou a sistematização do
Direito. Por isso, afirma Viehweg, o modo sistemático não consegue ir além daquilo que já foi
alcançado pela tópica. O autor sintetiza seu raciocínio fazendo um exercício lógico
(VIEHWEG, 2008 pp. 82-86). Afirma, para tanto, que a sistematização do Direito será obtida
de forma precisa mediante aplicação aos topoi do método axiomático, que consiste em
ordenar em conformação lógica as declarações e os conceitos de uma determinada área do
conhecimento. Com essa finalidade, organizam-se as proposições de modo a que umas
decorram das outras. As proposições centrais no sistema são os axiomas, e a partir da
articulação dos axiomas deve ser possível deduzir qualquer outra proposição do sistema. Os
axiomas devem ser compatíveis – ou seja, não podem excluir-se mutuamente. Além disso, são
os axiomas o ponto inicial do processo dedutivo: eles não devem decorrer de outros axiomas.
Ou seja, devem ser independentes entre si. Assim organizados, os topoi configuram um
sistema.
Uma vez que esse sistema compreende as soluções jurídicas em uso, é decorrência
que essas soluções sejam deduzidas do sistema assim construído. Isso confere uma falsa
segurança. Os axiomas escolhidos têm reforçada a aparência de verdades universais, pois
todas as proposições que compõem o sistema remetem logicamente aos axiomas. Viehweg,
porém, alerta que os axiomas foram eles próprios construídos a partir do pensamento
problemático, por meio de tentativa e erro, em um processo que se aperfeiçoou
discursivamente. Esse processo não está afeto à busca de uma verdade, mas à busca do
verossímil, segundo a discricionariedade daqueles que tomam parte em sua construção. Ao se
negar a construção de novos axiomas, vinculasse a racionalidade subsequente a uma particular
visão do verossímil, em detrimento de novas soluções.
Os axiomas em si, como proposições nucleares do direito, continuam, não obstante,
logicamente arbitrários e as operações intelectuais, que escolhem precisamente um
axioma e não outro, permanecem num remanescente tópico inevitável. Porém, nisto
reside o risco, pois os axiomas têm que dar resposta ao problema da justiça. O
procedimento que isso supõe não é a busca do direito, porém simplesmente a
aplicação do direito, o que, não obstante a similitude linguística, representa uma
considerável diferença. (VIEHWEG, 2008 p. 92)
Em síntese, são duas as principais críticas de Viehweg à articulação do Direito
como pensamento sistemático e, logo, ao Positivismo Jurídico. A primeira crítica decorre do
fato de que o modo de pensar sistemático elege os problemas que quer resolver, o que
significa excluir como inadequados ou meramente aparentes os problemas que não se
adéquam ao sistema. Assim, sob o pensamento sistemático, problemas de Justiça que
deveriam ser resolvidos não o serão, pelo simples argumento da inadequação. A segunda
crítica é que o pensamento sistemático aplicado ao Direito engessa-o em axiomas que são eles
próprios arbitrários e contingentes. Em suma, não apenas se excluem alguns problemas em
detrimento de outros, como os problemas que são enfrentados o são com base em critérios
arbitrários (os axiomas) que, por sua posição central no sistema, não podem ser questionados
ou superados.
É com base nessa perspectiva crítica que analisaremos o problema escolhido para
o presente artigo, ao que se espera, ao final, configurar o que denominamos acima de
compreensão manualesca do Direito e apontar suas deficiências no enfrentamento da aporia
da Justiça.
4. A jurisprudência do STJ e do STF acerca dos honorários de defensor dativo:
estudo da compreensão manualesca
A possibilidade de indicação de defensor dativo remonta à Lei nº 1.060, de 5 de
fevereiro de 1950, cujo objeto é organizar a assistência judiciária aos necessitados. Essa
indicação, conforme o art. 5º, deve seguir uma progressão de etapas.5 Em primeiro lugar, deve
5 Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950: Art. 5º. O juiz, se não tiver fundadas razões para indeferir o pedido [de assistência judiciária gratuita], deverá julgá-lo de plano, motivando ou não o deferimento dentro do prazo de setenta e duas horas. /§ 1º. Deferido o pedido, o juiz determinará que o serviço de assistência judiciária, organizado e mantido pelo Estado, onde houver, indique, no prazo de dois dias úteis o advogado que patrocinará a causa do necessitado. /§ 2º. Se no Estado não houver serviço de assistência judiciária, por ele mantido, caberá a indicação à Ordem dos Advogados, por suas Seções Estaduais, ou Subseções Municipais./§ 3º. Nos municípios em que não existirem subseções da Ordem dos Advogados do Brasil, o próprio juiz fará a nomeação do advogado que patrocinará a causa do necessitado./§ 4º. Será preferido para a defesa da causa o advogado que o interessado indicar e que declare aceitar o encargo./§ 5° Nos Estados onde a Assistência Judiciária seja organizada e por eles mantida, o Defensor Público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado
o juiz oficiar ao serviço de assistência judiciária organizado e mantido pelo Estado, ou seja, à
Defensoria Pública. Caso não exista Defensoria Pública no Estado, a indicação cabe à seção
estadual ou subseção municipal da Ordem dos Advogados do Brasil. Caso, por fim, não haja
no Município seção ou subseção da OAB, somente nesse caso caberia a indicação pelo juiz.
Esse mesmo artigo confere preferência ao advogado indicado pelo interessado, se este aceitar
a indicação. A nomeação, contudo, é compulsória – o art. 14 prevê multa para o advogado
que, nomeado, se recusar a atuar como defensor. Por fim, o pagamento dos honorários do
defensor dativo cabe à parte contrária, desde que sucumbente (art. 11).
Como em muitos casos não havia sucumbência, a atuação como defensor dativo
se dava muitas vezes de forma gratuita. Os advogados dativos, então, passaram a cobrar do
Estado o pagamento de honorários, sob o fundamento de que o dever de prover assistência
judiciária era estatal e, em caso de omissão do cumprimento desse dever, cabia ao particular
que supriu essa função pública ser indenizado. Assim formulada, em 1985 a questão foi
objeto de apreciação pelo Supremo, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 103.950-
7/SP. No caso, a Fazenda Pública do Estado de São Paulo recorreu contra decisão que
condenara o ente público ao pagamento de honorários de advogado que atuara como defensor
dativo em diversos processos na Vara Distrital de São Miguel Paulista.
O relator, Ministro Oscar Corrêa, votou pelo provimento do recurso. Segundo seu
entendimento, era aplicável ao caso o art. 92 do Estatuto da OAB então vigente (Lei nº 4.215,
de 27 de abril de 1963)6, que estabelecia que o advogado dativo devia patrocinar a causa
gratuitamente. Entendia que a omissão na assistência judiciária não dava ensejo à obrigação
de indenizar, pois havia legislação que regulava a matéria e esta estabelecia, de forma
inequívoca, a gratuidade. Por fim, afirmava sua preocupação com o destino do erário, porque
a instituição de remuneração criaria verdadeira indústria do patrocínio de réus necessitados,
com que não terá nenhum Estado forças para arcar; se não criar, mesmo, situações de
duvidosa regularidade. Seu voto foi seguido pelo Ministro Octávio Gallotti e houve pedido de
vista do Ministro Sydney Sanches. O voto deste iniciou a divergência que se consagraria
vencedora.
pessoalmente de todos os atos do processo, em ambas as Instâncias, contando-se-lhes em dobro todos os prazos. (Incluído pela Lei nº 7.871, de 1989) 6 Lei nº 4.215, de 27 de abril de 1963: Art. 92. O advogado indicado pelo serviço de Assistência Judiciária, pela Ordem, ou pelo Juiz, será obrigado, salvo justo motivo, a patrocinar gratuitamente a causa do necessitado até final, sob pena de censura e multa, nos termo desta lei (art. 103, inciso XVIII, 107 e 108).
O Ministro Sydney Sanches, primeiro, afirmou que o direito à assistência
judiciária era garantido desde a Constituição Federal de 1967 (parágrafo 32 do art. 150) e
havia sido mantido pela Constituição Federal de 1969 (§ 32 do art. 153). Com base na
doutrina de Pontes de Miranda, afirmou que se tratava de artigo de aplicabilidade imediata,
não obstante o dispositivo fizesse remissão à regulação da assistência judiciária por lei. Na
citação trazida pelo relator, Pontes de Miranda dizia que havia direito subjetivo à assistência
judiciária, uma vez provada a miserabilidade – que seria o não poder alguém pagar
advogado. Ainda com as palavras de Pontes de Miranda, defendeu a distinção entre benefício
da justiça gratuita e assistência judiciária, para afirmar que esta configurava instituto de
Direito Administrativo e compreendia a organização estatal, ou paraestatal, que tem por fim,
ao lado da dispensa provisória das despesas, a indicação de advogado. O ministro, em
seguida, acrescentou que a Constituição imputava ao Estado o dever de organizar e prover a
assistência judiciária. Além disso, questionou os efeitos da gratuidade na qualidade da
assistência judiciária – ao que afirmou que, mantida, haveria descaso dos defensores dativos e
prejuízo ao direito de assistência – e chegou até mesmo a afirmar que esse seria motivo de
rebeliões de presidiários.
O argumento a que mais se dedicou, entretanto, foi o de que a legislação federal
em vigor exigia a remuneração do advogado dativo em processos criminais, conforme o art.
307 do Estatuto da OAB então em vigor. A remuneração do advogado, segundo o artigo,
deveria ser paga segundo os valores fixados em tabela a ser divulgada bienalmente pela OAB.
A OAB, porém, não elaborava essa tabela. Mas, afirmou o ministro, houve legislação do
Estado de São Paulo que disciplinava o pagamento de defensores dativos – a Lei Estadual nº
7.849, de 26 de novembro de 1962. Contudo, essa lei, que era anterior ao Estatuto da OAB,
fora revogada em 1970. A revogação, entendeu o Min. Sanches, configurou um retrocesso
inadmissível no tratamento da questão, em ofensa ao comando constitucional que consagrava
o direito à assistência judiciária. Adicionalmente, estava em vigor em São Paulo a Lei
Complementar Estadual nº 93, de 28 de maio de 1974, cujo art. 71 previa que as atribuições
da Procuradoria de Assistência Judiciária poderiam ser exercidas por advogados constituídos,
na forma a ser estabelecida em regulamento. O regulamento até a época do julgamento não
havia sido editado, o que serviu de reforço ao argumento da mora do Estado em cumprir com
7 Lei nº 4.215, de 27 de abril de 1963: Art. 30. O advogado, quando indicado para defender réu pobre, em processo criminal, terá, os honorários fixados pelo juiz, no ato de sua nomeação segundo tabela organizada, bienalmente, pelos Conselhos Secionais, e pagos pela forma que as leis de organização judiciária estabelecerem.
sua obrigação de organizar a assistência judiciária. Complementou suas considerações com a
afirmação de que a legislação paulista conferia ao Ministério Público do Estado a função de
prestar assistência judiciária nas comarcas do interior, mas que não havia quem exercesse essa
função nos distritos da Capital. Como o Estado tampouco havia designado procuradores de
assistência judiciária para atuar na Vara Distrital de São Miguel Paulista, situado na Capital,
seria devido o pagamento ao advogado assumiu o ônus estatal da assistência judiciária nessa
localidade. Assim sintetizou o Min. Sanchez seu argumento:
Se existe o dever constitucional de organizar a assistência judiciária aos
necessitados, se existe o dever de fixar honorários para os advogados indicados à
defesa de réus pobres, em processos criminais, se o Estado tem por força de lei
federal apoiada na Constituição, o dever de regular o respectivo pagamento8 e se
omite, essa omissão não elide a responsabilidade.
E foi inegavelmente por essa responsabilidade que se condenou o Estado de São
Paulo a pagar ao autor, ora recorrido, os honorários advocatícios pela assistência a
réus pobres em processos criminais.
Contudo, tendo em vista o fato de a Fazenda Pública não ter sido parte no
processo que fixou os honorários, o Min. Sanches propôs fosse o processo remetido à
liquidação de sentença por arbitramento, com exame e valoração de todo o trabalho do
advogado nos processos criminais, observando-se, também, a modicidade necessária e nunca
se podendo exceder o valor já fixado nos autos.
O voto do Min. Sanches formou a corrente majoritária, em julgamento por
maioria (5 x 3). O argumento da previsão do pagamento de honorários pelo art. 30 do Estatuto
da OAB de 1963 foi citado por todos os ministros que compuseram a maioria e foi
determinante para a decisão. O Min. Néri da Silveira, que compôs a maioria, citou ainda o
argumento de que, na Justiça Federal, vigorava tabela de honorários fixada pelo Conselho da
Justiça Federal, e os advogados interessados eram credenciados segundo editais divulgados
pelos juízes diretores dos foros de cada seção judiciária. Sugeriu esse como modelo a ser
adotado para os advogados dativos. O Min. Rafael Mayer, também da corrente majoritária,
ponderou que se tratava de situação excepcional, que apenas se dava porque não havia serviço
organizado de assistência judiciária no Estado de São Paulo. O Min. Djaci Falcão também
8 Em verdade, o art. 30 do Estatuto da OAB de 1963 atribuiu o dever de regular o pagamento à OAB e, apenas quanto à forma de pagamento, à legislação estadual de organização judiciária.
ressaltou a excepcionalidade da decisão, dado que na maioria dos demais Estados já havia
legislação organizando a assistência judiciária.
Um ano após o julgamento, a Lei nº 7.510, de 4 de julho de 1986, alterou o art. 4º
da Lei 1.060/50, que fixava os critérios para a concessão do benefício da assistência
judiciária. Ao invés do complexo processo anterior, que exigia atestado de autoridade policial
ou de prefeito municipal que comprovasse a condição de insuficiência de recursos, passou a
lei a exigir apenas a declaração do beneficiário. Esse fato, obviamente, facilitou o acesso à
assistência judiciária – o que repercutiu no número de casos em que passaram a ser
designados defensores dativos.
Outro dos fundamentos adotados na decisão, a Lei nº 4.215/63 foi revogada pela
Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, que fixou novo Estatuto da OAB. O art. 22, § 1º, do novo
Estatuto9 trouxe redação mais abrangente do que a da lei anterior, de modo a assegurar ao
advogado o direito a receber honorários fixados pelo juiz, de acordo com tabela divulgada
pela OAB, e pagos pelo Estado em qualquer causa, e não apenas nas causas criminais.
O cenário que então se firmou foi o contrário daquilo que o Supremo entendeu
como regra excepcional. Mesmo nos Estados onde há Defensoria Pública instalada e em
funcionamento, são recorrentes as hipóteses em que a Fazenda Pública se vê obrigada a arcar
com pesados honorários de defensores dativos. Como exemplo, apenas no Estado do Espírito
Santo – que possui defensoria pública instalada -, somente entre 1º de janeiro de 2010 e 1º de
janeiro de 2011, foram ajuizadas 1.695 execuções e ações de cobrança de honorários de
advogado dativo.10 A questão hoje é de grande repercussão no erário e, em termos de volume,
uma das mais expressivas na advocacia pública estadual.
Todavia, o debate ocorrido no Supremo não repercutiu no tratamento posterior da
matéria. A partir da decisão do RE 103.950/SP, diversos dos fundamentos que serviram de
base para o julgamento não apenas foram ignorados posteriormente, como foram contrariados
– com base no próprio precedente que fixaram. A decisão acerca do cabimento de honorários
9 Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994: Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência. /§ 1º O advogado, quando indicado para patrocinar causa de juridicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado. 10 Fonte: PROCURADORIA GERAL DO ESPÍRITO SANTO. Sistema PGENet (Consultado em: 4/4/2011).ga
pagos pelo Estado a defensores dativos se tornou axiomática, ou seja, sem referência a
justificativa ou demonstração alguma.
Os elementos do debate que conduziram a esse axioma são hoje completamente
estranhos ao tema. A higidez do processo de indicação de advogados dativos, o descontrole
quanto ao gasto público gerado por esse procedimento, o caráter excepcional da indicação
frente ao surgimento das defensorias públicas, a necessidade de limitação do valor de
honorários com base em uma tabela pré-fixada, todos esses problemas foram levantados no
debate que conduziu à decisão do STF. Debate esse que, como vimos, se encerrou em
apertada maioria. Não obstante, nenhum desses problemas foi retomado posteriormente no
tratamento da matéria.
Como Viehweg criticara, à solução formada em uma específica circunstância se
conferiu o caráter geral e abstrato de uma verdade – e não o caráter contingente de uma
verossimilhança. O sistema erigido a partir dessa verdade somente pondera a questão do
acesso à Justiça e da necessidade de justa remuneração do advogado que contribui com o
Poder Público. Mas as questões da higidez do procedimento de escolha do defensor dativo, da
necessidade de limitação do valor percebido segundo critérios razoáveis, da capacidade de
pagamento do Estado, nenhuma delas é admitida como relevante para esse sistema. Por isso,
essas questões são ignoradas como não-pertinentes ou inadequadas – elas não são passíveis de
solução pelo pensamento sistêmico que erigiu o dever do Estado de pagar advogados dativos
à condição de axioma.
Com base no axioma criado, o STF entende como pacificado o entendimento de
que cabem honorários para advogado dativo. O questionamento do axioma, inclusive, é
considerado litigância de má-fé – mesmo quando as questões levantadas são aquelas mesmas
problematizadas – e não pacificadas – no leading case (RE 103.950). Veja-se, por exemplo, o
Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 225.651-9/SP, de 16 de dezembro de 2004,
em que foi fixada multa de 5% contra a Fazenda Pública por litigância de má-fé, em cuja
ementa se lê:
EMENTA: 1. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Processo criminal. Réu
pobre. Defensor dativo. Nomeação. Honorários de Advogado. Verba devida pela
Fazenda Estadual. É devida pela Fazenda Estadual a verba honorária aos defensores
dativos nomeados em processos criminais para prestarem serviços de atribuição do
Estado. 2. RECURSO. Agravo. Regimental. Jurisprudência assentada sobre a
matéria. Caráter meramente abusivo. Litigância de má-fé. Imposição de multa.
Aplicação do art. 557, § 2º, cc. arts. 14, II e III, e 17, VII, do CPC. Quando abusiva a
interposição de agravo, manifestamente inadmissível ou infundado, deve o Tribunal
condenar o agravante a pagar multa ao agravado.
Nesse julgado, o voto condutor, do Min. Cezar Peluso, transcreveu como
precedente a ementa do Recurso Extraordinário nº 221.486/SP, cujo acórdão foi publicado em
12/5/2000:
Honorários de advogado dativo. Esta Primeira Turma, ao julgar recentemente o RE
222.373, que versava caso análogo ao presente em que fora também, no Estado de
São Paulo nomeado advogado dativo sem constar seu nome do convênio firmado
com a Ordem dos Advogados e por deficiência da defensoria pública, assim decidiu:
‘HONORÁRIOS DE ADVOGADO. NOMEAÇÃO DE DEFENSOR
DATIVO PARA A DEFESA DE RÉUS POBRES EM PROCESSOS
CRIMINAIS. Uma ve[z] fixada pelo acórdão recorrido a necessidade
de nomeação pelo juiz criminal de defensor dativo é devida a verba
honorária pela Fazenda estadual ao profissional que prestou o serviço de
atribuição do Estado.’
No caso, ademais, as questões constitucionais invocadas no recurso extraordinário
não foram ventiladas quer na sentença quer no acórdão recorrido que a manteve
inclusive por seus fundamentos, nem foram objeto de embargos de declaração,
faltando-lhes, assim, o indispensável prequestionamento (súmula 282 e 356).
Recurso extraordinário não conhecido.
Na ementa acima, vê-se que a jurisprudência do STF já avança com relação ao RE
103.950: cabe o pagamento de honorários não apenas quando não houver defensoria pública,
mas quando esta for insuficiente. Além disso, esse pagamento não está vinculado a
credenciamento em convênio firmado com a OAB – hipótese que, no RE 103.950, foi
ventilada como um dos meios pelos quais se faria o controle da verba honorária devida pelo
Estado. Essa mudança de entendimento, porém, não é sequer percebida pelo relator. Seria
razoável supor, não obstante, que algum dos precedentes citados tenha resolvido a questão.
Isso, contudo, não foi o que ocorreu.
Segundo o relator do acórdão, Min. Moreira Alves, o precedente aplicável é a
decisão do STF no Recurso Extraordinário nº 222.373/SP, de 3 de novembro de 1998.
Portanto, seria de se esperar que nesse caso houvesse a fundamentação para o novo
entendimento do STF. Todavia, a mudança de entendimento é também ignorada nesse caso. O
breve voto de duas laudas do relator, Min. Ilmar Galvão, tem por fundamento central o
seguinte argumento:
Uma vez fixadas pelo acórdão recorrido as premissas fáticas, as quais não podem ser
revistas nesta sede, de que a atuação do recorrido, como defensor dativo, se deu por
motivos de fato imperativos, seja em razão da ineficácia do convênio firmado pelo
Estado para a contratação de advogados para a defesa de réus pobres, seja pela
impossibilidade processual, ou ainda, pela insuficiência da atuação da defensoria
pública, não há como o Estado se furtar da remuneração ao advogado que
efetivamente prestou serviço de competência do Estado.
Em suma, não apenas é possível a nomeação quando a defensoria for insuficiente
– e não quando for inexistente -, como a aferição dessa insuficiência não compete ao STF.
Esta última conclusão decorre da interpretação conferida pelos tribunais superiores à sua
competência processual, como veremos adiante, segundo a qual não lhes compete avaliar
matéria exclusivamente de fato, e não de direito: trata-se de outro axioma, também
determinante do sistema jurídico articulado por esses tribunais. Mas, se a conclusão de que as
premissas fáticas não podem ser revistas encontra fundamento no citado axioma processual, a
conclusão de que é possível a nomeação no caso de insuficiência da defensoria pública não
encontra respaldo em lugar algum. Novamente, o relator faz remissão ao entendimento já
fixado pelo STF, desta vez pelo Recurso Extraordinário 112.285, de 5 de junho de 1987, cuja
ementa transcreveu como razão de seu voto:
Honorários de advogado. Defensor dativo. Réus pobres. Assistência judiciária.
Processos criminais. Hipótese em que o juiz nomeia defensor dativo, porque o
Estado não mantém serviço de assistência judiciária, junto ao juízo. Constituição,
art. 153, § 32 e Lei 4.215/1963, art. 30. É devida, nesses casos, pela Fazenda
estadual, verba honorária ao profissional nomeado pelo juiz. Orientação do STF
firmada no RE 103.950/SP. Hipótese em que o recurso extraordinário está baseado,
tão só, na alínea a do permissivo constitucional. Recurso não conhecido. [Grifo
ausente do original]
Em primeiro lugar, trata-se de acórdão em que o recurso não foi sequer conhecido.
Em segundo lugar, não apenas está ausente qualquer debate sobre o dever de o Estado
remunerar defensor dativo em caso de insuficiência da defensoria pública, como se afirma
exatamente que o dever existe porque o Estado não mantém serviço de assistência judiciária.
Por fim, o precedente invocado neste último acórdão é o RE 103.950 – o mesmo leading case
examinado anteriormente.
Como foi possível essa evolução silenciosa na jurisprudência do STF? O risco
aventado por Viehweg se mostrou real: fez-se axioma daquilo que era apenas solução
circunstancial. Estabelecido o axioma como verdade universal, as circunstâncias se tornaram
irrelevantes, e questões que foram relevantes para a adoção da solução foram posteriormente
excluídas como não-problemas ou problemas meramente aparentes.
Essa axiomatização do Direito é, de um lado, influenciada pela compreensão que
STF e STJ fazem de sua competência processual. Como dito anteriormente, esses tribunais
não julgam aquilo que denominam premissas fáticas da decisão recorrida. O desenvolvimento
deste tema não é objeto do presente estudo, mas cabe fazer breve digressão. A súmula 279 do
STF e a súmula 7 do STJ afirmam que, respectivamente, tanto no recurso extraordinário,
quanto no recurso especial, não se admite o seu manejo para simples reexame de prova. A
limitação recai não apenas sobre a produção de provas, mas sobretudo sobre a avaliação que
das provas faz o juízo recorrido. Aliás, a produção de provas em si eventualmente admite
discussão nas vias extraordinária e especial, desde que se fundamente o recurso com base na
aplicação das normas que regulam a produção de provas.11 Em outras palavras, isso significa
que a licitude de uma prova produzida pode ser apreciada pelo STF e pelo STJ, mas a
qualificação conferida pelo juiz ou pelo tribunal à prova produzida não é em si objeto dessa
apreciação. A doutrina, em geral, justifica essa posição por meio da classificação dos recursos
extraordinário e especial como recursos de fundamentação vinculada, cujo objetivo seria
tutelar o sistema, o direito objetivo.12
A busca da uniformização do entendimento jurisprudencial acerca da Constituição
e da legislação federal, logo, é o que serve de justificativa para a provocação do STF e do STJ
11 “É preciso distinguir o recurso excepcional interposto para discutir a apreciação da prova, que não se admite, daquele que se interpõe para discutir a aplicação do direito probatório, que é uma questão de direito e, como tal, passível de controle por esse gênero de recurso.” (DIDIER JR., et al., 2010 p. 255) 12 “A primeira observação que se há de fazer para que bem se compreenda o que são os recursos extraordinários em sentido lato, recursos excepcionais ou anormais, é que não se trata de um terceiro grau de jurisdição. /§/ Não se está diante de recursos que propiciem um mero reexame da matéria já decidida, tal como a apelação faz em relação à sentença ou o agravo em relação à decisão interlocutória. Por isso, são chamados de extraordinários em sentido lato – diferenciando-se dos demais, ditos ordinários, que garantem o mero reexame da matéria decidida. /§/ Trata-se de recursos de fundamentação vinculada por meio dos quais se tutela o sistema, o direito objetivo. /§/ Têm por objetivo garantir a efetividade e a uniformidade de interpretação do direito objetivo em âmbito nacional, ou seja, por meio destes recursos se pretende que o direito federal (inclusive a própria Constituição Federal) seja efetivamente aplicado e que se deem às regras constitucionais e federais interpretações uniformes.” (WAMBIER, et al., 2008 p. 660) “Os recursos excepcionais são exemplos de recurso de fundamentação vinculada. As hipóteses de cabimento estão previstas na Constituição Federal (art. 102, III, e art. 105, III). Tais recursos servem à impugnação de questões de direito; não se admite a interposição para reexame de prova ou de fatos. São recursos de estrito direito.” (DIDIER JR., et al., 2010 p. 254)
em sede de recurso extraordinário ou especial, respectivamente. E essa uniformização estaria
garantida ao se cuidar apenas do direito objetivo. É nesse ponto que a crítica de Viehweg se
mostra mais atual. Ao apenas focar no direito objetivo, os tribunais superiores deixam de
avaliar como esse direito é posto em prática pelos juízes e tribunais. Não basta avaliar qual o
direito aplicável, é necessário avaliar se os fatos correspondentes foram interpretados da
mesma forma, e com os mesmos condicionantes, da apreciação feita pelo tribunal superior.
Esta, contudo, é tratada pela prática jurídica da compreensão manualesca como um problema
meramente aparente. Implícita a essa formulação está convicção de que há apenas uma
verdade jurídica, revelada pelos tribunais, e que a aplicação do raciocínio dedutivo a qualquer
caso, mantida intacta a premissa, resultará em idênticas conclusões. O que ocorre na prática é
bastante diverso. Aos juízes e tribunais, basta afirmar que deram aos fatos igual interpretação
conferida pelo Supremo ou pelo STJ, que seus atos não serão reexaminados por estes. Os
próprios STF e STJ podem, sem perceber, mudar completamente o entendimento firmado
sobre determinada matéria, pela simples aplicação da premissa formulada em um particular
contexto a contextos bastante diversos. Isso é demonstrado pela silenciosa transformação da
jurisprudência do STF sobre defensores dativos. E, além de excluir questões significativas da
apreciação dos tribunais, a compreensão manualesca ainda gera situações paradoxais.
Seguindo a jurisprudência fixada no Supremo, o STJ entende que o cabimento de
honorários pagos pelo Estado a advogados dativos é matéria pacificada, tanto no caso de
inexistência, como no caso de insuficiência da atuação da defensoria pública (vide, por
exemplo, o acórdão do Agravo Regimento no Agravo de Instrumento nº 1.264.705/RJ,
julgado em 16 de dezembro de 2010). Segundo diversos julgados do STJ, cabe ao juiz da
causa fixar os honorários, e a sentença que os fixa é considerada título executivo judicial:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. RECURSO ESPECIAL.
PRIMEIRA E TERCEIRA SEÇÕES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
COBRANÇA DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS EM VIRTUDE DE
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE DEFENSOR DATIVO EM PROCESSO
CRIMINAL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELO PAGAMENTO DOS
HONORÁRIOS. AÇÃO QUE TRAMITOU, DESDE A ORIGEM, NA ESFERA
CÍVEL.
I - A competência para o julgamento da causa, consubstanciada pelo pedido e pela
causa de pedir, define-se em função da natureza jurídica da controvérsia.
II - Firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que a sentença que fixa os
honorários advocatícios em virtude de prestação de serviços de defensor dativo em
processo criminal constitui título executivo judicial certo, líquido e exigível, cuja
responsabilidade pelo pagamento é do Estado, quando na comarca houver
impossibilidade de atuação da Defensoria Pública (AgRg no RMS 29797/PE, 1ª
Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 26/04/2010; AgRg no REsp
685.788/MA, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe de 7/4/2009;
REsp 871.543/ES, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe de
22/8/2008; AgRg no REsp 1041532/ES, 1ª Turma, Rel.
Min. Francisco Falcão, DJe de 25/6/2008; REsp 898.337/MT, 2ª Turma, Rel. Min.
Herman Benjamin, DJe de 4/3/2009; AgRg no REsp 977.257/MG, 1ª Turma, Rel.
Min. José Delgado, DJ de 07/02/2008).
III - Desta forma, tratando-se a matéria de ação de cobrança de título executivo
certo, líquido e exigível, em face do Estado, e não possuindo qualquer relação de
dependência com o direito penal em geral, ou benefícios previdenciários, o que
determinaria a competência da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, deve
o recurso especial ser apreciado por Ministro integrante da 1ª Seção desta Corte,
competente para analisar a quaestio, ex vi do art. 9º, §1º, do RISTJ.
Conflito de competência conhecido, para declarar competente o Exmo.Sr. Min.
Castro Meira, o suscitado.
(CC 110.659/DF, Rel. Ministro FELIX FISCHER, CORTE ESPECIAL, julgado em
15/09/2010, DJe 07/10/2010)
A consequência desse entendimento é que será o juiz da causa não apenas quem
indicará o defensor dativo, mas também aquele que fixará o valor a ser pago pelo erário ao
particular. Ao conferir o status de título executivo judicial, o STJ confere à sentença que fixa
os honorários a força da coisa julgada – o que impede, na prática, que o valor arbitrado pelo
juiz seja posteriormente questionado:
PROCESSUAL CIVIL. TEORIA DA CAUSA MADURA. INAPLICABILIDADE.
MATÉRIAS DE FATO LEVANTADAS NOS EMBARGOS À EXECUÇÃO E
NÃO APRECIADAS EM PRIMEIRA INSTÂNCIA. ACÓRDÃO QUE
EXTRAPOLA O ÂMBITO NO ART. 515, § 3º, DO CPC. ANULAÇÃO PARCIAL
DO ACÓRDÃO PARA DETERMINAR O RETORNO DOS AUTOS À
INSTÂNCIA SINGULAR PARA APRECIAR AS QUESTÕES
REMANESCENTES.
1. O art. 515 do CPC foi alterado pela Lei 10.352/2001, que lhe inseriu o § 3º, para
permitir que o tribunal, ao julgar a apelação interposta contra sentença terminativa,
aprecie desde logo o próprio mérito da demanda, quando verificar que a causa versa
sobre questão exclusivamente de direito e, por conseguinte, esteja em condições de
imediato julgamento da causa.
2. O dispositivo em referência elasteceu a devolutividade do recurso de apelação, ao
autorizar que o Tribunal local, no exercício do duplo grau de jurisdição, examine
matéria não decidida na primeira instância, desde que se trate de feito extinto sem
julgamento de mérito. Todavia, para a aplicação da referida regra, denominada pelos
doutrinadores por "Princípio da Causa Madura", impõe-se que a causa verse
unicamente acerca de matéria de direito.
3. Na hipótese dos autos, a decisão de primeiro grau extinguiu o processo sem
julgamento do mérito por ausência de título executivo, a teor do disposto no art. 583
do Código de Processo Civil, considerando que as certidões que embasam a
execução não são consideradas títulos executivos judiciais, já que não houve
participação do Estado nas lides que originaram as certidões. Em sede de apelação, o
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul deu provimento ao recurso, por
considerar que os documentos apresentados pela exequente são considerados títulos
executivos judiciais, dotados de certeza, liquidez e exigibilidade. E, com
fundamento no art. 515, § 3º, do CPC, ora indicado como violado, passou ao exame
da questão meritória atinente à possibilidade de cobrança de verba honorária por
serviços prestados por advogado nomeado como defensor dativo diante da
inexistência de Defensoria Pública constituída pelo Estado.
4. Todavia, os temas referentes à prescrição e ao excesso de execução,
levantados em sede de embargos à execução, não foram apreciados pelo
Tribunal de origem, e sequer poderiam ser, pois não são matérias
rigorosamente de direito, visto que demandam apreciação do conjunto fático
dos autos para se aferir a ocorrência de causa interruptiva de prescrição e a
cobrança em duplicidade de honorários advocatícios. Assim, impõe-se a
manifestação a respeito de tais temas na primeira instância, o que ficou
suprimida, em total afronta ao disposto no art. 515, § 3º, do CPC, na redação da Lei
n.10.358/2001.
5. Recurso especial provido, para manter o acórdão do Tribunal de origem apenas na
parte que afastou a preliminar de ausência de título executivo, anulando-o quanto ao
resto, e determinar o retorno dos autos à Vara de origem, para que em primeiro grau
se dê prosseguimento ao processo.
(REsp 829.836/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA
TURMA, julgado em 27/04/2010, DJe 21/05/2010)
A mesma solução, contudo, não é conferida pelo STJ a problema análogo. Na
contratação por dispensa de licitação de serviços advocatícios, a mesma Segunda Turma
que firmou o entendimento acima transcrito, julgou por unanimidade que:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC
NÃO CONFIGURADA. AÇÃO POPULAR. CONTRATAÇÃO DE ADVOGADO
SEM LICITAÇÃO. NOTÓRIA ESPECIALIZAÇÃO. SÚMULA 7/STJ.
DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA.
1. O acórdão recorrido manteve a sentença que julgou procedente o pedido deduzido
em Ação Popular para anular o contrato de prestação de serviços advocatícios sem
prévia licitação.
2. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não caracteriza
ofensa ao art. 535 do CPC.
3. Diante da lesividade decorrente da contratação ilegal, é patente o cabimento da
Ação Popular.
4. A notória especialização jurídica, para legitimar a inexigibilidade de
procedimento licitatório, é aquela de caráter absolutamente extraordinário e
incontestável – que fala por si. É posição excepcional, que põe o profissional no
ápice de sua carreira e do reconhecimento, espontâneo, no mundo do Direito,
mesmo que regional, seja pela longa e profunda dedicação a um tema, seja pela
publicação de obras e exercício da atividade docente em instituições de prestígio.
5. A especialidade do serviço técnico está associada à singularidade que veio a
ser expressamente mencionada na Lei 8.666/1993. Ou seja, envolve serviço
específico que reclame conhecimento peculiar do seu executor e ausência de
outros profissionais capacitados no mercado, daí decorrendo a inviabilidade da
competição.
6. O Tribunal de origem, com base nas provas colacionadas aos autos, asseverou a
ausência de notória especialização do recorrente para o objeto contratado
(assessoria para fins de arrecadação de ISS), tendo ressaltado que o trabalho
efetivamente prestado não exigia conhecimentos técnicos especializados e
poderia ter sido executado pelos servidores concursados do ente municipal.
Nesse contexto, inexiste violação dos arts. 12 e 23 do Decreto 2.300/1986, vigente à
época dos fatos.
7. Ademais, a análise da alegação de que foram atendidos os requisitos para a
contratação sem licitação demandaria, na hipótese dos autos, reexame dos elementos
fático-probatórios do acórdão recorrido, o que esbarra no óbice da Súmula 7/STJ.
8. Quanto à pretensão de que seja afastada a condenação ao ressarcimento do valor
pago, friso que o art. 49 do Decreto-Lei 2.300/1986 e o art. 49 da Lei 8.666/1993,
mencionados no Memorial, não foram suscitados nas razões recursais. Com relação
ao art. 22 da Lei 8.906/1994 (Estatuto da OAB), além de carecer de
prequestionamento, não assegura o pagamento de honorários advocatícios
convencionados por meio de contratação ilegal.
9. O fato de ter sido prestado o serviço não afasta o prejuízo, sobretudo porque a
ausência de licitação obsta a concorrência e, com isso, a escolha da proposta
mais favorável. Seria inócua a declaração da nulidade do contrato sem o necessário
ressarcimento do valor indevidamente pago.
10. Além disso, considerando a premissa fática do acórdão recorrido, é evidente que
o dispensável valor gasto com a ilegal contratação acarretou prejuízo ao Erário, que
deve ser ressarcido. A leitura do voto-condutor não permite verificar a boa-fé do
contratado, estando consignado que "o trabalho desenvolvido pelo advogado
contratado mais se aproxima de exercício de fiscalização e de cobrança, o que
poderia e deveria ser realizado por servidor concursado do Município".
11. Ad argumentandum, de acordo com o art. 59 da Lei 8.666/1993, a declaração de
nulidade de contrato acarreta a desconstituição dos seus efeitos jurídicos. A ressalva
ao direito à indenização pelos serviços prestados somente se aplica quando
demonstrada a inequívoca boa-fé do contratado. Precedentes do STJ.
12. A divergência jurisprudencial deve ser comprovada, cabendo a quem recorre
demonstrar as circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confrontados,
com indicação da similitude fática e jurídica entre eles. Indispensável a transcrição
de trechos do relatório e do voto dos acórdãos recorrido e paradigma, realizando-se
o cotejo analítico entre ambos, com o intuito de bem caracterizar a interpretação
legal divergente. O desrespeito a esses requisitos legais e regimentais (art. 541,
parágrafo único, do CPC e art. 255 do RI/STJ) impede o conhecimento do Recurso
Especial, com base na alínea "c" do inciso III do art. 105 da Constituição Federal.
13. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.
(REsp 448442/MS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA,
julgado em 23/02/2010, DJe 24/09/2010)
Portanto, a contratação de advogado por dispensa de licitação não se pode dar em
casos em que não se comprove a notória especialização e, além disso, em que o trabalho
efetivamente prestado não exija conhecimentos técnicos específicos. O acórdão chega a
mencionar que o fato de os serviços poderem ser prestados por funcionários do município
afasta a possibilidade de contratação por dispensa, e que a ausência de licitação traz prejuízo
ao erário. Trata-se de situação muito semelhante à do defensor dativo. Este presta serviço para
o qual há funcionários concursados – os defensores públicos – e que não exigem
conhecimento técnico especializado – pois a imensa maioria dos casos são assuntos
corriqueiros na prática jurídica, de baixa ou baixíssima complexidade. Não obstante, o
defensor dativo pode ser contratado sem licitação, e o valor de seus serviços fica a exclusivo
critério do juiz, e sua contratação pode ocorrer mesmo quando há funcionários públicos
concursados para prestar o exato serviço realizado pelo defensor. A própria jurisprudência do
STJ reconhece que o defensor dativo é particular que atua em colaboração com o Estado, e
seu vínculo possui natureza administrativa, mas é omissa quanto à aplicabilidade das mesmas
limitações previstas na Lei de Licitações para sua designação e remuneração:
PROCESSO CIVIL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO DE DIREITO E
JUÍZO TRABALHISTA. DEFENSOR DATIVO. COBRANÇA DE
HONORÁRIOS. SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA. COMPETÊNCIA DA
JUSTIÇA COMUM.
1. Cuida-se de conflito de competência instaurado entre o Juízo da Vara do Trabalho
de Linhares/ES, suscitante, e o Juízo de Direito da 3a Vara da Fazenda Pública de
Linhares/ES, suscitado, nos autos de execução de honorários advocatícios movida
por defensor dativo contra o Estado do Espírito Santo.
2. A Corte Especial definiu ser da competência da Primeira Seção examinar os feitos
em que se discute a cobrança de honorários advocatícios de defensor dativo
designado para atuação em processo criminal. Naquela assentada, reconheceu-se não
haver qualquer relação de dependência com a matéria relativa ao direito penal em
geral ou benefício previdenciário (CC 110.659/DF, Rel. Min. Felix Fisher, julgado
em 15.09.2010).
3. Cabe ao juízo cível competente apreciar a execução de sentença penal
condenatória, consoante disposto no art. 475-P, III, do CPC.
4. O defensor dativo exerce um munus público, atuando nas situações em que o
Estado não consegue desempenhar por meio da Defensoria Pública o seu mister
constitucional de proporcionar uma assistência judiciária integral e gratuita aos
necessitados. Embora não seja considerado como servidor público, pertence à
categoria dos particulares que atuam em colaboração com o Poder Público,
cuja vinculação com o ente estatal é de cunho administrativo e não de caráter
trabalhista. Dessa feita, ainda que se tratasse de simples ação de cobrança, o
julgamento do feito também caberia à Justiça Comum.
5. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito, o suscitado.
(CC 113.403/ES, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em
27/10/2010, DJe 11/11/2010)
O conflito entre o entendimento relativo à contratação por dispensa de licitação de
serviços advocatícios, por um lado, e a nomeação de advogados dativos, de outro, revela a
natureza contingente do conhecimento jurídico. Ao se mudarem os axiomas, muda-se a
decisão. Mas, como há crença de que os axiomas estão inseridos em um único sistema, que
produz verdades unívocas, as perplexidades são ignoradas. Em um caso, o problema que
norteou a formação do axioma foi a necessidade de se assegurar o acesso à justiça. Em outro
caso, a necessidade de se controlar a discricionariedade no emprego do erário. Com isso, a
jurisprudência encara com naturalidade a distinção entre advogados dativos e advogados
contratados por dispensa de licitação. Essa distinção é sequer um problema passível de
avaliação.
Situação parecida ocorre com o entendimento do Supremo acerca da possibilidade
de contratação temporária de defensores públicos. Trata-se do seguinte julgado, em que o
Pleno do STF julgou inconstitucional lei do Estado do Rio Grande do Norte que previa a
possibilidade de contratação temporária de advogados para a função de defensor público:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 8.742, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2005,
DO ESTADO DO RIO GRANDE NORTE, QUE "DISPÕE SOBRE A
CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE ADVOGADOS PARA O EXERCÍCIO DA
FUNÇÃO DE DEFENSOR PÚBLICO, NO ÂMBITO DA DEFENSORIA
PÚBLICA DO ESTADO". 1. A Defensoria Pública se revela como instrumento de
democratização do acesso às instâncias judiciárias, de modo a efetivar o valor
constitucional da universalização da justiça (inciso XXXV do art. 5º da CF/88). 2.
Por desempenhar, com exclusividade, um mister estatal genuíno e essencial à
jurisdição, a Defensoria Pública não convive com a possibilidade de que seus
agentes sejam recrutados em caráter precário. Urge estruturá-la em cargos de
provimento efetivo e, mais que isso, cargos de carreira. 3. A estruturação da
Defensoria Pública em cargos de carreira, providos mediante concurso público de
provas e títulos, opera como garantia da independência técnica da instituição, a se
refletir na boa qualidade da assistência a que fazem jus os estratos mais
economicamente débeis da coletividade. 4. Ação direta julgada procedente.
(ADI 3700, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em
15/10/2008, DJe-043 DIVULG 05-03-2009 PUBLIC 06-03-2009 EMENT VOL-
02351-01 PP-00107 RTJ VOL-00208-03 PP-00955)
O mesmo STF que julga inconstitucional a contratação temporária de defensores
públicos, segundo critérios e remuneração prevista em lei, admite a designação de advogados
dativos por juízes singulares, com remuneração fixada livremente por estes. E a remuneração
dos advogados dativos é justificada com base em um precedente (RE 103.950) em que foi
argumento relevante para a decisão – presente no voto que levantou a divergência e se sagrou
vencedor – o fato de a legislação do Estado de São Paulo já ter previsto a possibilidade de
contratação de advogados particulares para atuar na assistência judiciária. Em outras palavras,
para os ministros que formaram a maioria no RE 103.950, a solução da contratação
temporária prevista na lei do Rio Grande do Norte seria possivelmente tida como legítima, e
até mesmo como exemplo do que deveria ser feito para que o Poder Público se desincumbisse
de sua tarefa de prestar assistência judiciária.
5. Conclusão
1. As perplexidades que resultam do confronto entre o tratamento conferido aos
advogados dativos e aquele conferido à contratação por dispensa de licitação e à contratação
temporária de defensores públicos são sintomáticas daquilo que denominamos compreensão
manualesca da prática jurídica brasileira. Por esse nome não queremos nos referir
propriamente aos manuais de direito, que constituem uma necessária simplificação didática da
compreensão dogmática que a comunidade jurídica atualmente faz de determinados assuntos.
Mas criticamos a visão de que o Direito pode ser compreendido como uma verdade, com
sentido unívoco, meramente revelada pela correta aplicação do raciocínio. Em decorrência,
nos opomos a uma bem sucedida compreensão doutrinária do Direito que, avaliamos, é
axiomática, tautológica e metafísica. Entendemos pertinentes a crítica de Viehweg ao
Positivismo Jurídico, em especial à necessidade de uma compreensão do Direito que abra
espaço para o verossímil e, por conseguinte, para uma constante evolução das premissas
formadas para a solução dos problemas postos na prática social da busca pela Justiça.
2. Na evolução da jurisprudência sobre honorários de defensor dativo, a crítica de
Viehweg é particularmente contundente. Uma solução formada em uma específica
circunstância se conferiu o caráter geral e abstrato de uma verdade – e não o caráter
contingente de uma verossimilhança. Quando decidido o Recurso Extraordinário nº 103.950-
7/SP, por apertada maioria, o STF pensava se tratar de um julgado excepcional. Os ministros
de então ponderaram a possibilidade de se limitar os honorários por tabelas fixadas pelo Poder
Público, e entendiam que o caso dizia respeito apenas a Estados onde não havia defensoria
pública organizada. Além disso, a assistência judiciária era garantida apenas em processos
criminais e mediante prévio procedimento administrativo destinado a verificar a efetiva
miserabilidade do beneficiado. A decisão, porém, se converteu em uma verdade abstrata:
cabem honorários para defensor dativo. O sistema erigido a partir dessa verdade somente
pondera a questão do acesso à Justiça e da necessidade de justa remuneração do advogado que
contribui com o Poder Público. Mas as questões da higidez do procedimento de escolha do
defensor dativo, da necessidade de limitação do valor percebido segundo critérios razoáveis,
da capacidade de pagamento do Estado, nenhuma delas é admitida como relevante para esse
sistema. Por isso, essas questões são ignoradas como não-pertinentes ou inadequadas – elas
não são passíveis de solução pelo pensamento sistêmico que erigiu o dever do Estado de pagar
advogados dativos à condição de axioma.
3. As questões que são ignoradas no tratamento dos honorários de defensor dativo,
são centrais na jurisprudência fixada acerca da possibilidade de o Estado contratar particulares
para atuar como advogados. Nesse caso, o problema central, determinante para a solução
jurisprudencial encontrada, foi a preservação do erário. A solução jurisprudencial foi vedar a
contratação por dispensa de licitação de advogados quando a atuação se desse em causas
rotineiras na prática advocatícia. Os problemas de acesso à Justiça e da justa remuneração,
centrais na jurisprudência sobre honorários de defensor dativo, não são apreciados nesse caso.
4. Finalmente, a jurisprudência sobre a possibilidade de contratação de advogados
para atuar como defensores tem como problema central a preservação das garantias postas
pelo regime estatutário do defensor público, de modo que a solução encontrada foi vedar a
assunção temporária e precária das funções de defensor por particulares. Nesse caso, as
questões de acesso à Justiça e de preservação do erário são excluídas do raciocínio
desenvolvido.
5. Tratar as soluções jurisprudenciais contingentes como categorias abstratas, que
buscam uma lógica ampla e sistemática, não trouxe a almejada coerência sistêmica. Ao
contrário, serviu para esconder as contradições entre as soluções jurisprudenciais adotadas. O
defensor dativo é um particular em colaboração com a Administração Pública. Seus
honorários não são decorrentes da sucumbência, pois mesmo que o assistido perca o processo
os honorários são devidos. Decorrem, como reconhece a jurisprudência, do serviço público
prestado – a assistência judiciária. Mas se trata de serviço que na imensa maioria das vezes é
simples e corriqueiro na prática advocatícia. Essas características fizeram com que a
jurisprudência não permitisse a contratação de advogados sem licitação. Contudo, aos
defensores dativos não se aplica essa restrição. O juiz da causa pode indicar livremente o
defensor e fixar casuisticamente os honorários devidos. Outra contradição é a vedação à
contratação de advogados para atuar como defensores, mas a possibilidade de se indicar
livremente defensores dativos. O defensor dativo é um advogado contratado para atuar como
defensor, a única diferença é quem o contrata: o juiz da causa. Todas essas contradições
revelam a inadequação do tratamento jurisdicional sobre o tema.
6. É necessário repensar as soluções para o problema da assistência judiciária, de
modo a se buscar uma política pública efetiva e responsável. Isso implica derrubar as barreiras
impostas pela artificial categorização abstrata de soluções jurisprudenciais contingenciais. Em
outras palavras, é preciso derrubar a falsa noção de que o defensor dativo possui natureza
jurídica distinta da de qualquer advogado particular contratado para colaborar com a
Administração Pública. Isso significa aplicar à contratação pública do defensor dativo as
mesmas restrições aplicáveis à contratação pública de qualquer advogado, pois se trata de
uma solução para o mesmo problema: a falta de funcionários públicos para a realização de
uma atividade de competência do Estado.
6. Referências bibliográficas
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