Psicologia e o Sistema Prisional

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    Organizadores

    CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIACENTRO DE REFERNCIAS TCNICAS EM PSICOLOGIA EPOLTICAS PBLICAS

    Comisso de elaborao do documento

    Fernanda Otoni de Barros-Brisset

    Maria Mrcia Badar BandeiraPedro Jos Pacheco

    Conselheira ResponsvelAdriana Eiko Matsumoto

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    permitida a reproduo desta publicao, desde que sem alteraes e citada afonte. Disponvel tambm em: www.cfp.org.br e em crepop.pol.org.br1 edio 2012Projeto Grfico Liberdade de Expresso

    Diagramao IdeoramaReviso Positive Lnguas e Idiomas

    Coordenao Geral/ CFPYvone Magalhes Duarte

    Coordenao de Comunicao do CFPCristina Bravo

    Andr Almeida /EditoraoEquipe Tcnica do Crepop/CFP

    Monalisa Barros e Mrcia Mansur/Conselheiras ResponsveisMarta Azevedo Klumb Oliveira / Coordenadora de Relaes Coorporativas do CFP

    Natasha Ramos Reis da Fonseca/Coordenadora TcnicaCibele Cristina Tavares de Oliveira /Assessora de Metodologia

    Klebiston Tchavo /Assistente administrativoTiago Regis/ Pesquisador Tcnico do Crepop/CRP05

    Equipe Tcnica/CRPsRenata Leporace Farret (CRP 01 DF), Thelma Torres (CRP 02 PE), Gisele VieiraDourado O. Lopes (CRP 03 BA), Luciana Franco de Assis e Leiliana Sousa (CRP

    04 MG), Beatriz Adura e Tiago Regis (CRP 05 RJ), Ana Maria Gonzatto e EdsonFerreira (CRP 06 SP), Silvia Giugliani e Carolina dos Reis (CRP 07 RS), AnaIns Souza (CRP 08 PR), Marlene Barbaresco (CRP 09 GO/TO), Letcia MariaS. Palheta (CRP 10 PA/AP), Djanira Luiza Martins de Sousa (CRP 11 CE/PI/MA), Juliana Ried (CRP 12 SC), Katiska Arajo Duarte (CRP 13 PB), Keila deOliveira (CRP 14 MS), Eduardo Augusto de Almeida (CRP 15 AL), Patrcia Mat-tos Caldeira Brant Littig (CRP 16 ES), Zilanda Pereira de Lima (CRP 17 RN), Fa-biana Tozi Vieira (CRP 18 MT), Lidiane de Melo Drapala (CRP 19 SE), VanessaMiranda (CRP 20 AM/RR/RO/AC).

    Referncias bibliogrficas conforme ABNT NBR 6022, de 2003, 6023, de 2002,

    6029, de 2006 e10520, de 2002.

    Direitos para esta edio Conselho Federal de Psicologia: SAF/SUL Quadra 2,BlocoB, Edifcio Via Office, trreo, sala 104, 70070-600, Braslia-DF(61) 2109-0107 /E-mail: [email protected] /www.cfp.org.br

    Impresso no Brasil Novembro de 2012

    Catalogao na publicaoBiblioteca Miguel Cervantes

    Fundao Biblioteca Nacional

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    Conselho Federal de PsicologiaREFERNCIAS TCNICAS PARA ATUAO DAS (OS) PSICLOGAS(OS) NO SISTEMA PRISIONAL. Conselho Federal de Psicologia. -Braslia: CFP, 2012.65 p.ISBN: 978-85-89208-49-91. Psiclogos 2. Polticas Pblicas 3.Sistema PrisionalI. Ttulo. BF76

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    XV PlenrioGesto 2011-2013

    DiretoriaHumberto Cota Verona Presidente

    Clara Goldman Ribemboim Vice-presidenteMonalisa Nascimento dos Santos Barros Tesoureira

    Deise Maria do Nascimento Secretria

    Conselheiros efetivosFlvia Cristina Silveira Lemos

    Secretria Regio NorteAluzio Lopes de BritoSecretrio Regio Nordeste

    Heloiza Helena Mendona A. MassanaroSecretria Regio Centro-Oeste

    Marilene Proena Rebello de SouzaSecretria Regio SudesteAna Luiza de Souza Castro

    Secretria Regio Sul

    Conselheiros suplentesAdriana Eiko MatsumotoCelso Francisco Tondin

    Cynthia Rejane Corra Arajo CiaralloHenrique Jos Leal Ferreira Rodrigues

    Mrcia Mansur SaadallahMaria Ermnia Ciliberti

    Mariana Cunha Mendes Torres

    Marilda CastelarSandra Maria Francisco de AmorimTnia Suely Azevedo Brasileiro

    Roseli GoffmanConselheiros suplentes

    Angela Maria Pires CaniatoAna Paula Porto Noronha

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    Conselheiros responsveis:Conselho Federal de Psicologia:

    Mrcia Mansur Saadallah e Monalisa Nascimento dos Santos BarrosCRPs

    Carla Maria Manzi Pereira Baracat (CRP 01 DF), Alessandra de Limae Silva (CRP 02 PE), Alessandra Santos Almeida (CRP 03 BA),

    Paula ngela de F. e Paula (CRP 04 MG), Cristiane Knijnik e LindomarDars (CRP 05 RJ), Carla Biancha Angelucci (CRP 06 SP), Vera

    Lcia Pasini (CRP 07 RS), Maria Sezineide C. de Melo (CRP 08 PR),Wadson Arantes Gama (CRP 09 GO/TO), Jureuda Duarte Guerra (CRP

    10 PA/AP), Adriana de Alencar Gomes Pinheiro (CRP 11 CE/PI/MA),Marilene Wittitz (CRP 12 SC), Carla de Santana Brando Costa (CRP13 PB), Elisngela Ficagna (CRP 14 MS), Izolda de Arajo Dias

    (CRP 15 AL), Andra dos Santos Nascimento (CRP 16 ES), AlyssonZenildo Costa Alves (CRP17 RN), Luiz Guilherme Arajo Gomes (CRP18 MT) Andr Luiz Mandarino Borges (CRP 19 SE), Selma de Jesus

    Cobra (CRP 20 AM/RR/RO/AC).

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    APRESENTAOO Conselho Federal de Psicologia (CFP) apresenta categoria e sociedade em geral o documento de Referncias Tcnicas para Atuaodas(os) Psiclogas(os) no Sistema Prisional produzido a partir dametodologia do Centro de Referncia Tcnica em Psicologia e PolticasPblicas (Crepop), este documento busca construir referncia slidapara a atuao da Psicologia na rea.As referncias construdas tm como base os princpios ticos epolticos norteadores do trabalho das(os) psiclogas(os), possibilitandoa elaborao de parmetros compartilhados e legitimados pelaparticipao crtica e reflexiva da categoria.As referncias refletem o processo de dilogo que os Conselhosvm construindo com a categoria, no sentido de se legitimar comoinstncia reguladora do exerccio profissional. Por meios cada vezmais democrticos, esse dilogo tem se pautado por uma poltica dereconhecimento mtuo entre os profissionais e pela construo coletivade uma plataforma profissional que seja tambm tica e poltica.Esta publicao marca mais um passo no movimento de aproximaoda Psicologia com o campo das Polticas Pblicas. Aborda cenrio

    delicado e multifacetado de nossa sociedade, no contexto do SistemaPrisional, levando em considerao a defesa dos direitos humanos.A opo pela abordagem deste tema reflete o compromisso dosConselhos Federal e Regionais de Psicologia com a qualificao daatuao das(os) psiclogas(os) em todos os seus espaos de atuaopriorizando a defesa dos direitos humanos.

    HUMBERTO VERONAPresidente do Conselho Federal de Psicologia

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    SUMRIO

    APRESENTAO 13

    INTRODUO 17

    A PRISO E A PSICOLOGIA 27

    A PSICOLOGIA NAS PRISES DO BRASIL 392.1 A lgica das prises e seus exames 452.2 A lgica segregativa dos manicmios judicirios e o

    esforo para sua superao 552.2.1 As aes do Sistema Conselhos de Psicologia paraa superao dos manicmios judicirios 58

    3. AS REFERNCIAS PARA A PRTICA 653.1 As referncias para a prtica a partir dapesquisa CREPOP 69

    4. CONSIDERAES FINAIS 75

    REFERNCIAS 83

    ANEXOS 91

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    Introduo

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    INTRODUO

    1. Centro de Referncia Tcnica em Psicologia e Polticas

    Pblicas [CREPOP]O Centro de Referncia Tcnica em Psicologia e Polticas Pblicas[CREPOP] um dispositivo tcnico-poltico de pesquisa do SistemaConselhos de Psicologia criado em 2006.

    Presente em todos os Conselhos Regionais de Psicologia, o CREPOPtem por escopo proporcionar maior capilaridade do saber e da prtica daPsicologia na esfera pblica. Atuando em rede, o CREPOP desenvolveprocessos de sistematizao e propagao dos modos de fazer depsiclogos nas polticas pblicas locais, colaborando assim para o

    fortalecimento da profisso na perspectiva dos Direitos Humanos e paraa construo de referncias tcnico-polticas da atuao profissional.Promovendo a interlocuo da Psicologia com os espaos de

    formulao, gesto e execuo de Polticas Pblicas, o CREPOP temconseguido ao longo de sua existncia provocar um debate crtico noseio da categoria acerca do papel do Estado na construo das PolticasPblicas e o da Sociedade Civil no processo de controle social. nessesentido que o CREPOP tem contribudo como um dispositivo de gestoao Sistema Conselhos de Psicologia, assessorando tanto os plenrios

    regionais quanto o plenrio federal em matria de Polticas Pblicas.Ademais, o trabalho de pesquisa do CREPOP, que envolve desde ocontato com as gestes pblicas at a interlocuo com a categoria edemais atores da rede de servios, tem produzido efeitos diversos. Fato que as Referncias Tcnicas, produto final do processo de pesquisa,tm servido no apenas orientao e problematizao do cotidianoprofissional, mas tambm como material bibliogrfico de concursospblicos e como recurso pedaggico nos espaos de formao.

    2. MetodologiaO conjunto de aes em pesquisa desenvolvidas pelo Sistema

    Conselhos de Psicologia, por meio do CREPOP, est organizado a partirda diretriz Investigao Permanente em Psicologia e Polticas Pblicas,que consiste em pesquisar nacionalmente o fazer dos psiclogos diantedas especificidades regionais.

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    A proposta de investigar a atuao profissional em polticaspblicas visa apreender o ncleo de saberes e prticas1do cotidiano detrabalho dos psiclogos (CAMPOS, 2000). As reas escolhidas para aspesquisas so eleitas a partir de critrios como: insero da Psicologia

    em dada poltica; abrangncia territorial; existncia de marcos lgico-legais e o carter social e/ou emergencial dos servios prestados.

    A escolha do Sistema Prisional como foco desta pesquisa se d emfuno de um processo de debates realizados no mbito do SistemaConselhos. Em 2004, o tema ganha contornos mais acentuados no VCongresso Nacional de Psicologia (CNP), quando a categoria apontaa necessidade de mais qualificao e orientao para a prtica nosservios pblicos. A disposio da categoria para enfrentar o desafio defazer a crtica da instituio prisional e de suas prticas reverberaramtambm nas teses do VI e VII CNPs, realizados em 2007 e 2010respectivamente.

    Desde ento, o Sistema Conselhos tem dado destaque s discussesdo Sistema Prisional atravs de uma srie de aes. Fato marcantefoi a realizao de duas edies, a primeira em 2005 e a segundaem 2008, do Seminrio Nacional sobre a Atuao do Psiclogo noSistema Prisional, sendo a de 2005 realizada em parceria com oDepartamento Penitencirio Nacional (DEPEN). Vale ressaltar que tais

    seminrios foram resultado de um intenso trabalho de debates e dereflexes realizadas no mbito dos CRPs.No ano de 2007 foi lanada a publicao Diretrizes para Atuao

    e Formao dos Psiclogos do Sistema Prisional Brasileiro2, umarealizao do CFP e do Ministrio da Justia que teve por objetivoapresentar um primeiro retrato nacional da atuao dos psiclogos

    1. Segundo Gasto Wagner de Sousa Campos, a institucionalizao dos saberes e sua

    organizao em prticas se daria mediante a conformao de ncleos e de campos.Ncleo como uma aglutinao de conhecimentos e como a conformao de um deter-minado padro concreto de compromisso com a produo de valores de uso. O ncleodemarcaria a identidade de uma rea de saber e de prtica profissional; e o campo,um espao de limites imprecisos onde cada disciplina e profisso buscariam em outrasapoio para cumprir suas tarefas tericas e prticas. (CAMPOS, 2000, p.220).

    2. Disponvel em: http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/depen_cartilha.pdf

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    3. Este documento foi finalizado antes da apresentao do anteprojeto do novo CdigoPenal Brasileiro.

    nesse campo, apontando uma perspectiva de formao atravessadapelo campo dos Direitos Humanos, tendo assim em vista a superaodo modelo de classificao e estigmatizao dos indivduos presenteno Sistema Prisional.

    Levando em considerao a relevncia desse contexto, o ConselhoConsultivo do CREPOP, colegiado formado pelos conselheiros do CFPjunto dos conselheiros responsveis por cada CREPOP regional, elegeuo Sistema Prisional como uma rea de pesquisa a ser realizada no anode 2007. O presente escrito a materializao de todo o processo depesquisa empreendido pela Rede CREPOP.

    A Pesquisa no mbito do Sistema Prisional

    O processo investigativo da Rede CREPOP consiste inicialmente nolevantamento dos marcos lgico-legais da poltica em foco3, tanto anvel nacional quanto regional. Este trabalho tem por funo subsidiar oentendimento de como a poltica est estruturada no territrio brasileiro.

    Em um segundo momento, disponibilizado no stio eletrnico doCREPOP o questionrio online, ferramenta que tem por objetivo reunirinformaes diversas e singularidades das diferentes prticas dospsiclogos.

    Em termos quantitativos, o questionrio online da pesquisa sobrea atuao dos psiclogos no Sistema Prisional nos fornece subsdiospara pensar a qualificao e as formas de contratao nesse campode trabalho. Em nmeros totais, o questionrio foi respondido por 176psiclogos no ano de 2007, sendo 148 mulheres (84%) e 28 homens(16%). Do total de respondentes, 78,5% est na faixa etria entre 26e 45 anos. Com relao ao tempo de atuao, 53% atuam na reaprisional h menos de quatro anos e 31,2% atuam de 5 a 10 anos.Com relao ao regime de contratao, a pesquisa apontou que 45,5%

    dos respondentes so estatutrios, ou seja, ingressaram por concursopblico, sendo a modalidade contrato temporrio a segunda maiorforma de insero do psiclogo no sistema prisional (31,1%). Quanto

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    especificidade das unidades onde trabalham esses profissionais, apesquisa do CREPOP apontou que a maioria dos psiclogos (60,4%)atua em penitencirias, especialmente em regime fechado.

    Com relao formao profissional dos psiclogos, no quetange s formaes especficas para atuao no sistema prisional,verificou-se que 13% informaram que, alm do curso de graduaoem Psicologia, tinham cursos de graduao em Direito e Pedagogia e63,6% possuam algum curso de ps-graduao. Contudo, somente58% destes responderam sobre o nvel dos cursos: 67,7% informaramserem especialistas ou peritos; 21,5% concluram o mestrado ou somestrandos e 9,2% so doutores ou doutorandos.

    Paralelamente disponibilizao do questionrio online, os

    CREPOPs regionais4

    so responsveis pela realizao de encontroscom os psiclogos que trabalham na poltica em foco. Esses encontrosgeram relatrios regionais, os quais passam por uma compilaorealizada por um grupo de consultoria em pesquisa, e, posteriormente,so enviados para uma comisso ad hoc, composta por um conselheirodo CFP, um grupo de especialistas escolhido pelo Conselho Consultivoe um tcnico do CREPOP. Essa comisso responsvel pela elaboraoda primeira verso da Referncia Tcnica para Atuao dos Psiclogosna poltica em foco, nesse caso o Sistema Prisional.

    Durante o processo de elaborao desse documento, essa comissoacompanhou toda a discusso e movimentao do campo temticoem questo dentro e fora do Sistema Conselhos. Importante relatarque esse processo gerou dois acontecimentos de peso no mbito doSistema Conselhos, a edio de duas resolues5, que se desdobrouem muitos embates entre a categoria, o judicirio e gestores do sistemaprisional. O presente texto tambm reflete esse processo.

    Na continuidade do processo de pesquisa, a primeira verso daReferncia Tcnica para Atuao dos Psiclogos no Sistema Prisional

    entrou em consulta pblica a toda a categoria.

    4. No ano de 2007 existiam 16 unidades regionais do CREPOP.

    5. Resoluo 009/10 http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2010/07/resolucao2010_009.pdf e 012/11, disponvel em http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2011/06/resolucao_012-11.pdf

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    3. O vdeo do debate est disponvel no link:http://www.youtube.com/watch?v=_X9vYvCYZIw&feature=plcp

    A consulta pblica um sistema utilizado em vrias instncias,sobretudo governamentais, que tem como objetivo auxiliar naelaborao de documentos atravs da coleta de opinies da sociedade.Esse sistema permite que a sociedade participe da formulao edefinio de polticas pblicas, ampliando assim a discusso da coisapblica, e coleta de forma fcil, gil e com baixo custo s opinies dasociedade.

    No mbito dos trabalhos da Rede CREPOP, consideramos que aimportncia do processo de consulta pblica reside na possibilidade dacategoria poder intervir no texto apresentado, podendo assim qualificaro documento e aprimorar os mecanismos de coletivizao da pesquisa.

    Em relao Referncia Tcnica para Atuao dos Psiclogos noSistema Prisional, a consulta pblica foi realizada no perodo de 26de janeiro a 15 de maro de 2012. O documento teve 339 acessos erecebeu 26 contribuies. Concomitante a este processo, foi realizadoum debate nacional online6sobre a mesma temtica no dia 12 de abrildeste ano, o que mobilizou 1350 acessos ao canal de transmissodisponibilizado no stio eletrnico do CFP, alm de debates que serealizaram em diferentes Conselhos Regionais.

    Findo o perodo de consulta pblica, o texto foi cotejado pelacomisso ad hoc a partir das contribuies enviadas pela categoria. O

    resultado o presente documento que ora apresentamos que, como oprprio nome diz, pretende-se uma referncia prtica dos profissionaispsiclogos que trabalham no sistema prisional. Referncia no sentidode orientao e de sistematizao da trajetria de posicionamentosadotados pela Psicologia no mbito prisional; como um ponto decontato, uma relao que o Sistema Conselhos tem com os psiclogosque esto na dura lida do sistema prisional. Portanto, este texto nopossui o carter normativo de uma resoluo, mas sim a peculiaridadede pr em anlise as condies objetivas e a materializao das

    prticas de dado trabalho em um ambiente institucional. Alm disso,esta Referncia tambm busca apresentar os princpios tico-polticosda Psicologia (depurados no incessante dilogo entre categoria-sistema

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    penal- sociedade civil) para a atuao no sistema prisional.3. Organizao do documento

    No primeiro eixo, A Priso e a Psicologia, a emergncia dainstituio prisional problematizada em paralelo constituioda Psicologia como um saber estruturado que almeja ares decientificidade. Levando em considerao as demandas jurdicasde classificao e diagnstico de determinadas expresses do serhumano Psicologia, o texto delineia um percurso histrico no qualpe em anlise tais relaes e nos coloca uma questo fundamental,a qual atravessar todo o documento: Para que serve a Psicologiana priso?

    Avanando a anlise, o eixo A Psicologia nas Prises do Brasil

    se concentra nas relaes da Psicologia com o sistema prisionalno cenrio brasileiro. Tecendo comentrios que vo desde operodo anterior institucionalizao da Psicologia como profisso,ocorrida em 1962, at os dias atuais, esse captulo traz elementosconcretos importantes para se pensar a questo antes levantada:componentes em termos de legislao, como a Lei de Execuo Penal,promulgada em 1984, e outros relativos prtica de psiclogos,como o trabalho nas Comisses Tcnicas de Classificao (CTC) e oExame Criminolgico. O eixo ainda localiza e situa as movimentaes

    polticas no mbito do Sistema Conselhos relativas temtica prisionalna dcada de 2000 e prope uma reflexo crtica com vistas ao fimdos Hospitais de Custdia e Tratamento Psiquitrico, mais conhecidospor Manicmios Judicirios.

    O foco do terceiro eixo, Referncias para a Prtica, diz respeito aocotidiano de trabalho dos psiclogos no sistema prisional, trazendo aodebate discursos e prticas, oriundos das movimentaes polticas dosltimos anos em torno do tema e do material de pesquisa produzidopela Rede CREPOP.

    Por fim, no quarto eixo, as Consideraes Finais, o texto apontaa importncia do trabalho intersetorial e os seus diversos atoresenvolvidos como uma estratgia de enfrentamento lgica segregativae excludente que constitui a instituio prisional.

    Condizente histria das movimentaes polticas que tem sedesenrolado h alguns anos no mbito do Sistema Conselhos, este

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    documento de referncia tcnica segue a mesma linha e tem comopropsito trazer tona uma crtica possvel e necessria a todas asprticas de privao de liberdade. Convictos de que nenhuma formade violncia vale a pena, seguimos firmes com a cano: Romper aincabvel priso!7

    7. Trecho da msica Sonho Impossvel, composio de J.Darion e M.Leigh, verso de ChicoBuarque e Ruy Guerra (1972) para o musical O Homem de La Mancha de Ruy Guerra.

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    A priso e a psicologia

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    A PRISO E A PSICOLOGIA

    As prises, ou seu gnero penal a privao de liberdade ,nem sempre foram a forma hegemnica e tampouco unanimidadena resposta social diante de um membro da sociedade quedesrespeita as suas leis formais. Os estabelecimentos prisionais,como os que conhecemos hoje, seja na forma do presdio ideal,onde criminosos seriam colocados para cumprir uma pena justae sairiam com suas faltas morais corrigidas, seja na forma trgicada realidade prisional brasileira exibida nas reportagens sobrerebelies, superlotaes e maus-tratos, so resultantes dos fatoresque produziram a sociedade e o Estado moderno, aps a superao

    da ordem feudal e fortalecimento do modo de produo capitalista.Esse sistema prisional, ideal ou trgico, um subproduto do nossocontexto social, dependente das formas de produo econmica eda reproduo dos valores sociais de nossa poca. Suas condiesde existncia foram exploradas brilhantemente por diversos autores,tais como Erving Goffman, Michel Foucault, Eugnio Ral Zaffaroni,Loc Wacquant e Jacques Alain Miller.

    Assim, as prises brasileiras so constitudas a partir de diversosprincpios, sobretudo legais e funcionais, que legitimam as formas/

    foras de suas configuraes atuais. Segundo Bitencourt (2001),dentro dessa esfera exclusivamente jurdico-formal, as funes dapena podem ser definidas como:

    1. retributivas e punitivas:funcionando como uma preveno geraldo delito atravs do princpio da exemplaridade, essa funo visariasustentar uma representao no imaginrio social de fazer o desviantepagar a dvida para com a sociedade, servindo-se da visibilidade docastigo e do sofrimento prisional como exemplos/modelos para queos demais membros dessa sociedade violada reprimam/inibam/

    controlem qualquer desejo de burlar as leis do cdigo. A partir davisibilidade do castigo, supostamente, se evitaria a prtica de novoscomportamentos desviantes da norma;

    2. ressocializadoras e teraputicas: funcionando como umapreveno especial do delito, instituda tanto na aplicao quanto naexecuo da pena, essa funo poltico-educativa estaria associada

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    ideologia da recuperao do apenado e lgica do tratamentoressocializador e visaria um determinado modus de recuperaopedaggica, curativa e/ou reabilitadora do dito criminoso ou doentemoral e criminal. Tal pretenso de modificao ontolgica semprese materializou por meio de mtodos disciplinares, pastorais econfessionais, visando a internalizao ou a aprendizagem desentimentos socialmente aceitveis, tais como arrependimento, culpa,alegria, empatia, respeito ao prximo, dentre outros, perante umainstncia estatal-jurdica, religiosa ou mesmo cientfica.

    Porm, em praticamente todas as anlises produzidas em torno daquesto para que servem as prises?, fica claro, desde sempre, quea resposta nos leva para uma constatao emprica de que elas servempara aquilo que talvez esteja mais subliminarmente implicado emcada uma dessas funes institudas, que segregar certos indivduosconsiderados como parte indesejvel da sociedade.

    E tambm contribuindo com essas funes que a Psicologia, comouma disciplina cientfica, associada a um conhecimento autnomosobre o sujeito e como um recurso de interveno na vida humana,tornou-se um saber e uma prtica que s ganhou significado nombito das relaes que se forjaram no mundo moderno, com todas asimplicaes relativas s noes como indivduo, sujeito, personalidade,

    disciplina, controle, previsibilidade, dentre inmeras outras.Posto isso, decorre da que a Psicologia e a priso so fenmenoscontemporneos no s no sentido de sua atualidade, mas tambm,e principalmente, no sentido de sua coexistncia. Ou seja, a priso ea Psicologia so produtos de um mesmo tempo, ambas so categoriasa servio do mesmo projeto social de produo e transformaode subjetividades. Michel Foucault (1979) quando reflete sobre afinalidade da priso, no hesita em afirmar que, desde o comeo, elafoi projetada para funcionar como um instrumento to aperfeioado

    quanto a escola, a caserna e o hospital, agindo sobre os indivduoscom preciso. Ainda que essa aspirao tenha-se revelado frustradatambm desde o comeo, ela diz muito sobre a ideologia subjacentes prises e Psicologia, como respostas sociais a uma demanda pelaconformao e ajustamentos de determinados sujeitos. Importanteressaltar que a regulamentao da Psicologia como profisso, a partir

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    iluminar tudo que seja da ordem da natureza e do Homem. Claro,que para se chegar nessa verdade verificvel foram necessrios osj institudos e reconhecidos mtodos experimentais de observao,de descrio, de reduo e de simplificao desse realismo que, pela

    correta utilizao das tcnicas adequadas, se apresentariam com maisobjetividade atravs do comportamento e/ou da fala humana. Tratava-se de uma tentativa metdica de sustentar os parmetros da chamadacincia moderna atravs do mtodo cientfico natural que fomentaat os dias atuais muitas pesquisas e elucubraes sobre o objeto daPsicologia, a saber, o sujeito psicolgico.

    baseada nesta concepo de sujeito psicolgico palpvel queocorre a articulao entre essa Psicologia descritiva e a tambminsipiente criminologia como dois campos de conhecimentos emexpanso e em busca de legitimao como cincias de fato, amparadosnum ideal positivista de lei e ordem. A articulao acima propostavisava aplicabilidade de um exerccio de saber/poder que buscavadelimitar qualitativamente os comportamentos manifestos comocorretos ou no, numa vinculao direta entre o fazer humano, expostopela conduta e/ou fala, com o ser na sua intimidade mais profunda.Tarefa que caberia a Psicologia esclarecer, clarear, sob a forma deconhecimento. Ou seja, pela colagem direta e determinista entre

    os atos observveis e os que designaram como sujeito psicolgico,na pretenso de decifrao de seus desejos, fantasias, personalidadee etc., que o sistema psicolgico classificatrio vai operar separandoprimeiramente a mente em funes mentais normais e anormais paraposteriormente separar os indivduos entre saudveis e patolgicosatravs da tipificao jurdica de atos criminalizados.

    Nessa articulao, a criminologia etiolgica, associada aosinsipientes saberes psi de fins do sculo XIX, no tardar em associaros atos criminais aos seres considerados internamente degenerados

    e perigosos, fortalecendo uma viso naturalista da sociedade e odesenvolvimento de uma antropologia do homem criminoso com aescola italiana, a qual estava ancorada na teoria positivista da defesasocial.

    Preocupada com os desvios da natureza que determinam oscomportamentos atpicos, bizarros e estranhos, surge nessa poca a

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    chamada Escola Positivista de Criminologia que defender a puniocomo defesa da ordem social, sob forte influncia da colagem doconceito de periculosidade personalidade dos indivduos infratores,considerando o criminoso como um monstruoso desviante.

    [...] o enxerto entre as ideias de dficit permanente e mal moral,no contexto da poca pineliana, encontrou as condies necessriaspara fazer brotar a periculosidade, na forma de um conceitohbrido, mas absolutamente indito. A naturalidade com a qualessa novidade conceitual foi recepcionada, tanto nas instituiesmdicas, jurdicas e sociais, de forma geral, daquela poca atos dias de hoje, parece ser tributria desse engenhoso artifcio.Porm, basta dar a palavra a esses indivduos ditos perigosos paraperceber o que nossa experincia revela: essa engenhoca conceitual

    est a servio de uma fico, e mesmo por ser fico no deixa deter efeitos mortferos ao incidir no real dos corpos e das prticasinstitucionais, na maioria das vezes, calando e mortificando aresposta do sujeito em sua singularidade inequvoca e impossvelde prever. Esse artifcio talvez ainda sobreviva porque alimenta aarte do discurso do mestre, poltico-gestor, em fazer crer ser possvelpresumir a periculosidade das pessoas e garantir a seguranapara os demais. Contudo, o perigo a se instala quando essa ideiatermina por suturar a possibilidade de novas leituras para os atoshumanos e sua articulao intrnseca ao contexto sociolgico decada poca. Quando se procuram respostas nos corpos, deixa-se de

    interrogar o discurso que faz o lao da poltica e da sociedade e que,sobremaneira, afeta os corpos, seus atos e respostas. (BARROS-BRISSET, 2011, s/n)

    Numa imbricao de conceitos como monstruosidade, periculosidadee personalidade criminal, esta escola, cujos principais expoentes foram

    8. Cesare Lombroso (1835 1909), mdico italiano, considerado o idealizador efundador da escola de antropologia criminal italiana principalmente pelo lanamentode seu mais famoso livro, O Homem Delinquente, em 1876.

    9. Enrico (1856 1929), jurista e poltico italiano, considerado um dos grandesmestres do Direito Criminal. Ferri o principal representante da escola positivista noDireito Penal e o criador da sociologia criminal. Sua obra influenciou profundamentea legislao penal de diversos pases, inclusive a do Brasil. Apresentao do autorna contracapa do livro Discursos de Acusao (ao lado das Vtimas), de sua autoria(Ferri, 2007).10. Rafael Garofalo (1851 - 1934). jurista, considerado um dos pioneiros da crimi-nologia italiana.

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    Cesare Lombroso8, Enrico Ferri9 e Rafael Garofalo10 creditam, comonica fonte de conhecimento e critrio de verdade a experincia comofato positivo e observvel a partir apenas de dados sensveis. Comisso, a criminologia positivista buscou aplicar os mtodos de reduo,observao e experimentao aos fatos sociais, filosficos e humanosa fim de buscar maiores esclarecimentos e iluminaes acerca nosomente do crime, mas, principalmente, do criminoso, este serconsiderado monstruoso e perigoso que precisaria ser controlado pelosistema penal com a ajuda da cincia para manter a dita seguranae ordem pblica.

    Michel Foucault (2008) relaciona o dispositivo de seguranaaos mecanismos disciplinares modernos, que, com seus controles

    regulatrios, desde os cdigos jurdico-penais arcaicos, se encarregamdas decises da sade e da vida das populaes. Entretanto, segundoeste autor, o desespero pela segurana mostra-se cada vez maispresente e atuante principalmente quando se refere esfera dacriminalidade contempornea ou das questes envolvendo a ordemsocial: O conjunto das medidas legislativas, dos decretos, dosregulamentos, das circulares que permitem implantar os mecanismosde segurana, esse conjunto cada vez mais gigantesco (Ibidem,p.11). E, para efetivar este mecanismo, no basta a verdadeira inflao

    legal que temos na atualidade, mas apelar[...] para toda uma srie de tcnicas de vigilncia, de vigilncia

    dos indivduos, de diagnstico do que eles so, de classificaoda sua estrutura mental, da sua patologia prpria, etc., todo umconjunto disciplinar que viceja sob os mecanismos de seguranapara faz-los funcionar. (Ibidem, p. 11).

    Associado a esse dispositivo, temos na modernidade o conceito derisco social tambm sustentando intervenes positivistas baseadas

    na lgica da preveno e represso. Mas, para que isso seja eficaz,faz-se necessrio identificar e separar os indivduos em risco e os derisco para que se possa evitar o mximo que os segundo ataquem osprimeiros. O conceito de risco pode ser definido como o pensamentoque envolve o clculo do provvel no futuro, seguido pela ao nopresente com o objetivo de controle desse futuro em potencial (Rose,

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    2010). Esta lgica do controle do risco e sua medio, gerenciamento eplanejamento pretende diminuir o mximo a possibilidade de que danosgraves ocorram nas relaes sociais devido a supostos transtornos oudoenas que, se diagnosticadas precocemente, poderiam ser tratadasou isoladas antes de o fato danoso ocorrer.

    Diante disso, a naturalizao da articulao da personalidadecriminal aos conceitos de periculosidade e de risco social seleciona,atravs dos mtodos diagnsticos adequados, aqueles que devempermanecer ou sair das prises, relacionando cada vez mais umapsicologizao das questes penais aos aspectos exclusivamentepunitivos e de controles da vida cotidiana.

    Assim, compreende-se porque as demandas jurdicas para aPsicologia sempre foram de classificar e diagnosticar caractersticascomo periculosidade, moralidade, antissocialismo, prognose dereincidncia, biografia criminal, nexo causal delito-delinquente,alteraes em funes mentais normais e (im)possibilidades decura para subsidiar posies jurdicas mais repressivas, punitivas e/ou os tipos de tratamentos psi que deveriam ser impostos ao sujeitocriminoso a fim de evitar a qualquer custo a reincidncia, ou seja,que indivduos de risco incomodem os em risco. Nessa lgicadicotmica e maniquesta, os especialistas do motivo fortalecem

    a individualizao das questes sociais e as vises punitivistas erepressoras atravs da busca de relaes deterministas e causais queexpliquem por que existem comportamentos criminais e como intervirantes para que eles no se repitam. Tal como afirma Salo de Carvalho:

    A concepo de homem presente no paradigma etiolgico sefundamenta na dicotomia entre indivduo e sociedade, portantoa constituio do indivduo compreendida independente dascondies concretas nas quais est inserido. Esta modalidade depensamento, ao negar o aspecto histrico e social da constituio

    do sujeito, contribui para sedimentar ainda mais a explicaodo comportamento criminoso e suas motivaes com enfoqueno indivduo, sua personalidade e caractersticas orgnicas.(CARVALHO, 2010, p. 3)

    se opondo a essas concepes de sujeito psicolgico que ocorremos investimentos atuais de grande parcela da categoria de psiclogos

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    que trabalham no sistema prisional brasileiro. considerando acomplexidade da situao que atravessa as biografias dessas pessoasque se encontram presas, bem como sua relao com as inmerascondies sociais, histricas, polticas e econmicas que a questo da

    criminalidade contempornea e suas mltiplas formas de penalizaoso agora analisadas e problematizadas. Nessa viso atual considera-se a criminalizao no algo natural e regido por causas biolgicas e/ouindividuais, mas como um processo social e histrico, delimitado poruma definio de crime como determinado socialmente e de acordocom determinado momento histrico.

    Com isso, crime no pode ser compreendido aqui como um mero atoindividual cometido por um sujeito desadaptado e contra as regrasgerais, e nem priso como um mecanismo penal eficaz e til paradar conta da criminalizao contempornea e todas as suas mltiplasimplicaes coletivas e sociais. Sobre essa forma hegemnica depenalizao moderna instituda h mais de duzentos anos, considera-se o mtodo prisional mais um forte fator criminalizante, sendo assimtotalmente ineficaz em termos de diminuio de atos criminais, talcomo inmeros estudos e pesquisas j o comprovaram (ADORNO eSALLA, 2007; GARLAND, 2008; LEA e YOUNG, 2001; KARAM,2004; SALLA, 2001 e 2006). Tais estudos, assim como as cotidianas

    constataes empricas de quem convive com a realidade prisional,especialmente a brasileira, demonstram exatamente o contrrioquanto pena de priso: um dos grandes mecanismos disciplinarese de controle que potencializa a marginalizao, a excluso social e asrelaes sociais mortficas e degradantes.

    Tal como afirma Foucault, j na dcada de 70:

    As prises no diminuem a taxa de criminalidade: pode aument-las, multiplic-las ou transform-las, a quantidade de crimes e decriminosos permanece estvel, ou, ainda pior, aumenta. [...] a

    deteno provoca a reincidncia: depois de sair da priso, se tmmais chances que antes de voltar a ela, os condenados so, emproporo considervel, antigos detentos. (FOUCAULT, 1999, p.221).

    Diante disso, problematiza-se aqui as leituras enrijecidas

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    conceitualmente de um certo sujeito psicolgico natural e essencial,pois se considera a constituio subjetiva humana diretamenterelacionada fluidez do mundo, s suas infinitas contradies numpermanente processo de inveno de si e do mundo.

    Isso dito, ento, torna-se fundamental questionar os sistemas geraise universalizantes que falam em nome desses sujeitos encaixando-os homogeneamente em sistemas classificatrios e em princpiosgerais que visam domesticar as massas populacionais, excluindosuas experincias singularizantes e coletivas. Considera-se que olugar daquele sujeito fixo, natural, individual, essencial e determinadopor qualquer ordem natural, moral, religiosa, etc. perde espao epoder diante da complexidade e instabilidade que a questo criminalcontempornea e suas mltiplas formas de olhares e dispositivostentam explicitar.

    com este esprito e princpios que o debate sobre a Psicologiano sistema prisional se imps, produzindo questionamentos edesacomodaes, os quais possibilitaram (re)construes e (re)arranjos necessrios em todo processo democrtico para que houvessemobilizaes e discusses coletivas em busca de outra realidade daPsicologia e das prises brasileiras.

    Nesse panorama, surge a questo: Para que serve ento a Psicologia?

    Ou mais especificamente falando: Para que serve a Psicologia na priso?Uma resposta possvel para essa dvida poderia ser: para proteger asociedade, legitimando os modos de separao e fortalecendo os nveisde excluso com base em conceitos como conduta desviante e grausde periculosidade. Outra resposta, igualmente possvel, aponta para apossibilidade de ali estar para produzir uma interveno na priso emdiferentes nveis, desde a promoo da acessibilidade a recursos paradar tratamento aos sofrimentos impostos pela experincia do crcere,at a desconstruo das necessidades histricas, sociais e ideolgicas

    que tm sustentado a sua existncia.O caminho para essa segunda resposta depende, sobretudo, deuma postura crtica por meio da qual se poderia inclusive modificara primeira e reverter, quem sabe, o legado histrico das prises emuma oportunidade para o exerccio da reflexo e da crtica acerca doconceito de justia e do prprio conceito de pena. Essa seria uma

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    perspectiva tica dentro do que se espera de uma sociedade inclusivae democrtica.

    A constituio social da figura do delinquente ou o olhar sobreos indivduos que so considerados em vulnerabilidade socialdevem, portanto, ser elementos de reflexo para a prtica profissionalcompromissada da Psicologia, assim como a anlise crtica sobre osatravessamentos jurdico-institucional-polticos na prtica psicolgica.

    Para efetivar essa outra resposta possvel, a Psicologia conta comoutro legado histrico que se constituiu como contrapeso da polticaconvencional, beligerante e vingativa. Tal legado compe-se de princpiose marcos lgicos institudos por uma poltica comprometida com osdireitos humanos, conduzida pelos movimentos sociais e respaldadapelos organismos multilaterais como a Organizao das Naes Unidas(ONU) e a Organizao Mundial da Sade (OMS), bem como pelos rgosgovernamentais atravs da garantia de respeito a preceitos ticos e legaisque embasam atualmente a Psicologia como cincia e profisso. Esteselementos sero discutidos no prximo captulo.

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    A psicologia nas prises do Brasil

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    A PSICOLOGIA NAS PRISES DO BRASIL

    A atual realidade prisional brasileira e suas referncias legais

    resultam de intensos debates e embates histricos ocorridos desde oBrasil Colnia, que foi penalmente regido pelo Livro V das OrdenaesFilipinas at a entrada no perodo imperial. Deu-se ento a promulgaodo Cdigo Criminal do Imprio de 1830 e do Cdigo de ProcessoPenal de 1832, reformado em 1841. Em 1890, chegou-se ao CdigoCriminal da Repblica. Em 1940, publicado o Cdigo Penal vigenteat os dias atuais, alterado parcialmente em 198411. Tais dispositivoslegais definiram a criao das primeiras instituies penitenciriasbrasileiras, no modelo das chamadas Casas de Correo, em diversos

    estados, tais como a Casa de Correo da Corte do Rio de Janeiro em1850, de So Paulo em 1852 e de Porto Alegre em 185512. Diversosoutros estabelecimentos prisionais e correcionais surgiram a partir dasegunda metade do sculo XIX e incio do sculo XX, estando at hojeextremamente fortalecidos como um sistema penal hegemnico emtodo territrio nacional13.

    Nesse sentido, influenciada pelo forte princpio positivista penal dasleis brasileiras, princpio baseado na doutrina da defesa social (Freitas,2002), a priso alm de servir aos preceitos jurdico-formais tambm

    foi utilizada no Brasil (e no somente aqui) para segregar homens emulheres que lutavam contra a ditadura civil e militar que se instalouno pas de 1964 a 1985. Aps serem presos pelos rgos civis emilitares (DOI-CODI, DEOPS, PE14), muitos dos que sobreviverams torturas eram encaminhados ao Presdio Tiradentes, cujo nomeoficial era Recolhimento de Presos Tiradentes, um dos mais antigos

    11. O cdigo penal, neste ano de 2012, est em processo de discusso para novareforma.

    12. Para um estudo histrico mais aprofundado sobre os dispositivos legais desde oBrasil Colnia, que infelizmente neste texto no possvel em funo dos objetivosdo mesmo e do espao restrito, ver dois artigos disponveis on-line: Ferreira (2009) eTaquary (2008).13. Ver Dados relatrios INFOPEN in: http://www.infopen.gov.br/14. DOI-CODI ( Destacamento de Operaes e Informaes Centro de Operaesde Defesa Interna); DEOPS (Departamento de Ordem Poltica e Social); PE (Polciado Exrcito).

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    presdios polticos brasileiros, criado inicialmente como depsito deescravos e depois, j no perodo republicano, foi utilizado vrias vezespara receber os opositores do regime. (FREIRE et al., 1997, p. 25)

    Mas, a que demandas respondia a construo dos primeiros presdiosem nosso pas? Em que medida essa resposta foi orientada por polticasprisionais externas? Como o Brasil acompanhou o desenvolvimento dalgica - ou da racionalidade - que embasava o encarceramento comoresposta da justia ao crime? Em que medida e como isso se articulacom a Psicologia como cincia e profisso?

    Os diferentes saberes e profisses que foram convocados a contribuirno sistema prisional responderam, hegemonicamente, a partir da funoestratgica de ortopedia social, conforme apontado por Foucault(2001). No caso da Psicologia, almejando status de cientificidade, asdemandas sociais relacionadas legitimidade da pena-priso foramrespondidas a partir do paradigma da naturalizao dos fenmenospsicolgicos, com a psicologizao do dito comportamento criminoso.

    No Brasil, antes mesmo de a Psicologia ser reconhecida como profisso(1962)15j se encontravam psicologistas16no campo da justia criminal.Segundo a Cartilha Diretrizes para atuao e formao dos psiclogosdo sistema prisional brasileiro (2007), a cincia psicolgica estpresente nas prises desde a poca de 1930, marcada pelo discurso

    mdico da psiquiatria sobre o indivduo criminoso. Em So Paulo, porexemplo, os estudos psicolgicos ficavam a cargo do mdico assistente dePsicologia, que participava da equipe tcnica do Servio de BiotipologiaCriminal, criado em 1939, na Penitenciria do Estado. Tal servio tinhacomo objetivo realizar estudos e investigaes na rea da Psiquiatria,Antropologia, Criminologia, Endocrinologia e Psicologia para, dentre

    15. A Psicologia, enquanto cincia e profisso, foi regulamentada atravs da Lei N.4.119 de 27-08-1962 que dispe tambm sobre os cursos de formao em

    Psicologia.16. Termo utilizado por pesquisadores em histria da Psicologia para designar profis-sionais e acadmicos que se voltavam para os fenmenos psicolgicos nos seusestudos e intervenes. Segundo BRITO, 2009 (apud Oliveira, 2011) a expressopsicologistas, referia-se aos profissionais de diferentes reas que no incio do SculoXX se interessavam por temas afetos psicologia a partir de estudos sobre questesrelacionadas ao Direito Penal, antes mesmo de a psicologia ser uma profisso legal-mente reconhecida.

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    outras competncias, estudar a personalidade do criminoso no seuaspecto biopsquico e social, procurando classific-lo (Ibidem, p.50). Jno Rio de Janeiro, segundo estudos de Jac-Vilela, apud Brito (2009),Eliezer Schneider, advogado por formao, apresentou interesse por temasda Psicologia a partir de estudos sobre questes relacionadas ao DireitoPenal, ingressando como tcnico de assuntos educacionais no Institutode Psicologia da atual Universidade Federal do Rio de Janeiro no anode 1941, exercendo atividades dos ento chamados psicologistas, comoeram denominados os profissionais de outras reas que se interessavampor esse campo (OLIVEIRA, 2011). Na dcada de 1950, Schneider atuoucomo perito no ento Manicmio Judicirio do Rio de Janeiro, hospitaldestinado aos chamados loucos infratores e, em 1969, o psiquiatra epsiclogo Miguel Chalub ingressou neste mesmo hospital na condio deperito, atividade que ainda exerce em 2012.

    Ainda, segundo Jac-Vilela e outros (2005), a Psicologia nadcada de 1970 se preocupava em estabelecer formas macias epadronizadas de mensurao psicolgica, destacando-se a psicometriautilizada para alocar os indivduos em sua posio no conjunto deuma determinada populao (p.265). Medir e classificar objetivavamo controle, a adaptao, a normatizao e a padronizao social.Essa atitude poltico-ideolgica de controle da sociedade tinha, nessa

    dcada em que a ditadura civil e militar estava cristalizada no pas, oobjetivo de prevenir a formao de desviados e afastar os cidadosdas questes polticas vigentes poca. Para essa ideologia de Estado,a luta poltica representava uma ameaa sociedade; a famlia deveriaser o eixo da ateno social e cada um de seus membros deveriaestar voltado exclusivamente para si mesmo, sem se preocupar comas questes polticas e as reivindicaes sociais. Como apontado porCoimbra (1995), para o Estado, as pessoas deviam estar:

    [...] apenas preocupadas com a histria de suas vidas e comsuas emoes particulares, em que o mundo exterior parece nosdecepcionar, parece vazio e sem atrativos, fortalece, desse modo,a privacidade familiar e a interiorizao das pessoas [...] h umaatitude ctica em termos de poltica, sobretudo pela crena de queos interesses pessoais, familiares esto acima de quaisquer outrose que no se pode e no se deve abrir mo deles. [...] qualquer

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    angstia do cotidiano, qualquer sentimento de mal-estar existencial,so imediatamente remetidos para o territrio da falta, onde osespecialistas psi esto vigilantes e atentos para resgatar suasvtimas. (COIMBRA, 1995, p.33-35)

    Influenciada por essa viso intimista, foi publicada logo aps asalteraes do Cdigo Penal pela Lei n. 7.209, de 11 de julho de1984, e ainda sob a vigncia da ditadura civil e militar brasileira, omarco legal de maior importncia na questo da poltica prisional emnosso pas: a Lei de Execuo Penal LEP (Lei n. 7.210 de 1984). ALEP foi instituda, segundo estabelece seu artigo 1, com o objetivo deefetivar as disposies de sentena ou deciso criminal e proporcionar

    condies para a harmnica integrao social do condenado e dointernado (BRASIL, 1984).Para essa harmnica integrao social se pressups um tratamento

    penal que tivesse como efeito tornar as pessoas ressocializadas,reeducadas e ajustadas ao modelo hegemnico de sociedade.Como apontam Almeida, Badar Bandeira e Santos (2010), aExposio de Motivos da LEP, de 8 de maio de 1983, deixa claro que ochamado tratamento penal consiste na aplicao individualizada doregime progressivo da pena fechado/semiaberto/aberto consoante

    s condies personalssimas do agente auferidas por meio deexame criminolgico, bem como na atribuio de trabalho segundoas aptides ou ofcio anterior do preso (Cdigo Penal, 1940, p.14).Na anlise desses autores, a reduo da reincidncia se d, portanto,por meio da progressiva reinsero social atravs do resgate parciale contnuo de parcelas da liberdade suprimida, baseando-se nomrito do condenado e em uma previsibilidade de sua presumidaadaptabilidade social (BRASIL, 1984).

    Observa-se, portanto, que a LEP, ao instituir o tratamento

    penitencirio, no o fez como uma abordagem de sade comocomumente identificamos a palavra tratamento, mas sim em umaexpectativa de alterao da conduta dos sujeitos por meio da prpriaregulao da pena e da disciplina penitenciria (BRASIL, 1984).

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    2.1 A lgica das prises e seus exames A lgica que determinava as intervenes dos profissionais que

    atuavam nesse campo (e ainda atuam) estava calcada (e ainda est)na investigao sobre a periculosidade, por meio do chamado examecriminolgico. Como diz Foucault, a tcnica do exame, supe ummecanismo que liga um certo tipo de formao de saber a uma certaforma de exerccio de poder [...]. Um poder da escrita constitudo comouma pea essencial nas engrenagens da disciplina (1999, p.156-157).Os especialistas passam a integrar o campo da justia penal para fazeroperar uma lgica mais sutil de represso. com esse esprito que a LEPpromulgada em 198417convoca os especialistas, entre eles o psiclogo,para integrar uma equipe multiprofissional denominada Comisso Tcnicade Classificao (CTC), composta tambm por psiquiatra, assistentesocial e chefes de servio da unidade prisional. Segundo a LEP, em seuartigo 5, a CTC tem a incumbncia de classificar os apenados, segundoos seus antecedentes e personalidade para orientar a elaborao doprograma individualizador da execuo da pena. Alm disso, poderpropor autoridade competente, as progresses, regresses e conversesdos regimes penais (art. 6) a partir do exame criminolgico realizado pelopsiclogo, psiquiatra e pelo assistente social, quando determinado pelojuiz da execuo penal18. Desse modo, a LEP marcou oficialmente o lugar

    do psiclogo no contexto da execuo penal com a funo de perito parasubsidiar o juiz nas suas decises de concesso ou no da progresso deregime e do livramento condicional. Esse exame tem por objetivo identificaras mltiplas causas que, na histria dos indivduos, constituiriam fatores

    17. Em 2003 com a promulgao da lei 10.792 o artigo 6 foi alterado e passou a tera seguinte redao: A classificao ser feita por Comisso Tcnica de Classificaoque elaborar o programa individualizador da pena privativa de liberdade adequada aocondenado ou preso provisrio.18. A Lei 10.792/2003 tambm alterou o artigo 112 da LEP, que passou a ter a

    seguinte redao: A pena privativa de liberdade ser executada em forma progressivacom a transferncia para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quandoo preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bomcomportamento carcerrio, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadasas normas que vedam a progresso. Estas mudanas na legislao e seus impactospara a atuao dos psiclogos sero tratados posteriormente neste captulo.

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    geradores da conduta delituosa e avaliar as mudanas ocorridas ao longoda pena no sentido de sua superao. Lembrando Foucault (1977), preciso se reportar ao biogrfico para justificar o comportamento criminoso:

    [...] a priso, local de execuo da pena, ao mesmo tempo local deobservao dos indivduos punidos em dois sentidos. Vigilncia, claro.Mas tambm conhecimento de cada detento, de seu comportamento, desuas disposies profundas, de sua progressiva melhora; as prises devemser concebidas como um local de formao para um saber clnico sobreos condenados. [...] preciso que o prisioneiro possa ser mantido sob umolhar permanente; preciso que sejam registradas e contabilizadas todasas anotaes que se possa tomar sobre eles (FOUCAULT, 1999, p.221).

    Esse exame/olhar minucioso denominado percia para concesso

    dos benefcios legais tem sido questionado ao longo do tempo, nos por psiclogos, mas tambm por alguns operadores do Direito,como Carvalho (2008) quando afirma em seu livro Antimanual deCriminologia que o modelo oficial das cincias criminais vislumbra osdemais saberes como servis, permitindo apenas que forneam subsdiospara a disciplina mestra do direito penal (p.22). E acrescenta: Aarrogncia do direito penal aliada subservincia das reas deconhecimento que so submetidas e que se submetem a este modelo,obtm como resultado o reforo do dogmatismo, o isolamento cientfico

    e o natural distanciamento dos reais problemas da vida (idem).Entretanto, essa anlise crtica feita por Carvalho no comum

    entre a alguns profissionais psiclogos que se alinham a um discursoenaltecedor de suas valorosas contribuies no campo jurdico, deixamde colocar em anlise o lugar que a Psicologia tem ocupado no sistemade justia criminal e a quem est servindo.

    fato que, nos primrdios da relao do psiclogo no campo daexecuo penal, sua atuao foi sendo construda empiricamente,tendo em vista a pouca discusso desse campo temtico nos espaosde formao e meios acadmicos. No entanto, a crescente demandapoltica e social acerca do encarceramento exigiu da Psicologia umadiscusso mais aprofundada e construo de mtodos de intervenoe reflexes tericas sobre o contexto do sistema prisional.

    A partir da dcada de 1990, observa-se um boom do maciorecurso ao encarceramento, aumentando consideravelmente o nmero

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    Contraditoriamente, em relao aos marcos lgico-legais, nos anos1990, o Brasil experimenta e fortalece suas instituies democrticas.O Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria (CNPCP) editaa Resoluo N. 14 de 11 de novembro de 1994 e apresenta as Regras

    Mnimas para Tratamento dos Presos no Brasil. Esse documento recuperaos princpios que caracterizaram a publicao das Regras Mnimas parao Tratamento dos Reclusos da ONU, que trazia um histrico internacionalde discusses organizadas desde 1955, ou seja, quase 40 anos dediscusses s quais o Brasil havia ficado ausente.

    Aps 19 anos de vigncia da LEP, os legisladores alteraram, em 2003,alguns de seus artigos por meio da Lei n. 10.792/2003 que retirou daCTC a funo de acompanhamento da execuo penal, deixando a cargoda Comisso, to somente, realizar o exame criminolgico inicial, nomomento de ingresso da pessoa no sistema penitencirio para fins deorientao do plano individualizador da pena19. A alterao que impactoua forma de atuao profissional da Psicologia, entretanto, fez-se na redaodo artigo 112 quando retirou do texto a exigncia do exame criminolgicopara concesso da progresso de regime e do livramento condicional,bastando apenas a comprovao de bom comportamento carcerrioemitido pelo diretor do estabelecimento, alm de que a deciso sersempre motivada e precedida de manifestao do Ministrio Pblico e do

    defensor (BRASIL, 2003)20

    .Essas alteraes na LEP deixaram em suspenso a prtica hegemnicade elaborao do exame criminolgico e gerou certo incmodo paraalguns psiclogos, que j habituados com a rotina diria desses examescriminolgicos, se viram sem funo no seu trabalho, enquanto outrosvibraram com a possibilidade de atuarem na ateno sade integral21

    19. Ver nova redao do artigo 6 da lei Lei n. 10.792, de 1 de dezembro de 2003.20. Ver nova redao do artigo 112 da Lei n.10792/200321. A integralidade pode ser compreendida a partir de uma dupla perspectiva.

    Primeiramente, prev o trnsito do usurio por todos os nveis da ateno, na per-spectiva de uma linha de cuidado que estabelea uma dinmica de referncia e decontrarreferncia entre a ateno primria e as de mdia e alta complexidade, as-segurando a continuidade no processo de ateno e cuidado. Por outro lado, supeque a compreenso sobre os agravos considere a complexidade dos modos de vida esituao social do indivduo, a fim de promover intervenes sistmicas que abranjaminclusive as determinaes sociais sobre a sade e a doena, para alm da adoo demedidas mdicobiolgicas. (MINISTRIO DA SADE,, 2012).

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    das pessoas presas, realizando atividades que reduzissem os agravospsquicos decorrentes do encarceramento, como tambm buscandoaes intersetoriais em prol do resgate dos laos sociais com vistas vida em liberdade22.

    A partir dessas reflexes, uma discusso foi iniciada, em 2004,no V Congresso Nacional de Psicologia (CNP), instncia mximadeliberativa do Sistema Conselhos de Psicologia para a profisso noBrasil, que incluiu em suas diretrizes para a gesto 2004-2007 aesrelativas Psicologia no contexto da execuo penal atravs de algunsposicionamentos: repdio ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD),criado pela Lei n. 10.792/2003, que atenta contra a sade mental depessoas presas identificadas como de alta periculosidade, justificandoum regime disciplinar violento que permite o isolamento por at 360dias, podendo chegar at um sexto do tempo total de condenao;apoio e incentivo implementao da Portaria Interministerialn. 1777/2003 que rege o Plano Nacional de Sade no SistemaPenitencirio; incluso do item a assistncia psicolgica no Artigo14da Lei de Execuo Penal.

    Alguns psiclogos brasileiros que trabalham nas prises j apontavam,naquela ocasio, a importncia de mudanas de paradigmas de umaprtica avaliativa pericial para uma prtica de ateno psicossocial,

    uma vez que tinham diante de si, pessoas adoecendo psiquicamenteem razo das precrias e violentas condies de confinamento. Talmudana foi alimentada pela publicao da Lei n. 10.792/2003.Neste mesmo ano de 2003, os Ministrios da Justia e da Sadepublicaram a Portaria Interministerial n. 1777/2003 que criou o PlanoNacional de Sade no Sistema Penitencirio (PNSSP), estendendo osprincpios e diretrizes do Sistema nico de Sade (SUS) populaocarcerria. Caberiam aos estados que optassem por aderir ao PlanoNacional, criar os seus Planos Operativos Estaduais com a implantao

    das equipes mnimas de sade em todas as unidades prisionais e nosomente nas unidades hospitalares.Os psiclogos j h algum tempo demandavam aos Conselhos de

    22. Sobre a crtica a essas alteraes consultar o autor Salo de Carvalho no texto...,(pegar na referencia)

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    Psicologia respostas para questes cuja incidncia na prtica exigiaconstruir novos modelos de atuao. Dentre essas demandas, o relato deum dos participantes da pesquisa CREPOP (2007) destacou a necessidadede: criar canais de interlocuo com o sistema jurdico (juiz e afins) nosentido de adequar a demanda, esclarecendo para eles a necessidadede ampliar nosso papel, inclusive nas atividades periciais. Portanto, ademanda dos psiclogos ao Sistema Conselhos requeria um movimentomacio sobre a atuao do psiclogo no sistema prisional, inclusive paraajudar a repensar e transformar esse sistema.

    Diante desses dois acontecimentos - alterao da LEP e a criaodo PNSSP - estava aberta a possibilidade dos psiclogos investiremem projetos e aes que visassem promoo dos laos sociais por

    meio da ateno integral sade, deixando para trs a prtica pericialque, desde a dcada de 1980, definia-se como a nica dominante dospsiclogos no contexto prisional. Para tal, tornava-se necessrio realizarprocessos de formao permanente para os psiclogos trabalharem naperspectiva do SUS exigida pelo PNSSP. Certamente, tal perspectivatraria alguns embates no cotidiano de trabalho, uma vez que tal prticavai de encontro com os preconceitos e esteretipos existentes na prisodesde seu surgimento h mais de duzentos anos.

    2.1.1 Aes do Sistema Conselho de Psicologia em relao prtica do psiclogo nas prises.Em 2005, pensando nessa formao, o DEPEN, em parceria com

    o CFP, organizou o I Encontro Nacional de Psiclogos do SistemaPrisional, realizado no ms de novembro em Braslia. Esse eventofoi precedido de encontros realizados pelos Conselhos Regionais dePsicologia com os psiclogos que atuavam no sistema prisional dosestados com a finalidade de encaminhar propostas para a formao eatuao dos psiclogos nesse campo de trabalho.

    Esse encontro foi um marco na histria da insero das cincias eprticas psicolgicas na esfera da execuo penal, pois possibilitou,pela primeira vez, dar visibilidade nacional ao trabalho dos psiclogosna rea da execuo penal, bem como aos problemas ticos e polticospor eles enfrentados no seu cotidiano profissional. Para ampliar avisibilidade dessas prticas, o CFP em conjunto com os Conselhos

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    Regionais, mapeou a situao tcnico-administrativa dos psiclogos eas prticas por eles realizadas, por meio de questionrios encaminhadosaos psiclogos, permitindo conhecer a diversidade de prticas e deinseres desses profissionais na priso. O Encontro Nacional permitiuaos psiclogos serem protagonistas das diretrizes para a atuao dospsiclogos no sistema prisional. As discusses que ocorreram tantonos estados quanto no Encontro Nacional resultaram na publicaodas Diretrizes para atuao e formao dos psiclogos do sistemaprisional brasileiro23.

    Em 2007, o VI Congresso Nacional de Psicologia (CNP)24ampliou as deliberaes sobre a Interveno dos Psiclogos noSistema Prisional, no que se refere s Condies de Trabalho,ao Controle Social e Fiscalizao, Formao e Capacitao dospsiclogos, Pesquisa com os Psiclogos e Criao de RefernciasTcnicas e Polticas, s Polticas Pblicas, Sade dos Trabalhadoresque atuam no sistema prisional.

    Em 2008, dando cumprimento s diretrizes do VI CNP, o CFPpromoveu o II Seminrio Nacional do Sistema Penitencirio, ocorrido no Riode Janeiro, com o tema Questionamento ao modelo e desafio aos direitoshumanos, marcando um claro posicionamento poltico do Sistema Conselhosde Psicologia pelo fim possvel das prises. Nesse Seminrio ficou deliberado

    ser necessria a superao da pena-priso para que sejam preservados aomximo os laos sociais e dos sujeitos frente s normas penais, utilizandocomo ltimo recurso a pena de encarceramento, depois que todas as outrasalternativas fossem utilizadas e no lograssem xito. Tambm, nesse evento,foi deflagrada uma Moo contra o Exame Criminolgico25, decorrente doprocesso de discusso deslanchado em 2005 sobre as questes ticas queenvolvem a prtica desse exame. Alm disso, foi questionada a participao

    23. Disponibilizada no site do CFP: www.cfp.org.br

    24. O Congresso Nacional da Psicologia (CNP) a instncia mxima que discute e de-libera polticas prioritrias para o trinio subsequente, ou seja, para a prxima gestodos Conselhos Regionais e do Federal. Nele so definidas as diretrizes de atuaopara o Sistema Conselhos. Atualmente, o CNP ocorre a cada trs anos, por meio dasetapas que ocorrem dentro dos conselhos regionais e etapa nacional do Congresso,que ocorre em Braslia. O regimento do CNP aprovado na Assembleia de Polticas,da Administrao e das Finanas (APAF).25. Ver moo em anexo.

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    dos psiclogos nos procedimentos de carter punitivo e disciplinar dentrodo sistema prisional, notadamente os de apurao de faltas disciplinarescometidas pelos presos, o que contraria os fundamentos do seu Cdigo detica Profissional. Esse Seminrio resultou na publicao, pelo CFP, em 2010,do relatrio Atuao do Psiclogo no Sistema Prisional26, do qual consta aspalestras dos participantes do evento.

    Apesar da Lei n. 10.792/ 2003, na prtica, a exigncia doexame criminolgico ainda permanecia em muitos estados. Essa faltade uniformidade de conduta entre os magistrados da execuo penalgerou conflitos entre eles, e coube ao Supremo Tribunal Federal (STF)e ao Superior Tribunal de Justia (STJ) definirem a conduta jurdica pormeio das Smulas Vinculantes STF N. 2627, aprovada em dezembrode 2009, e STJ N. 43928, aprovada em 2010, ambas dando poderesao juiz para requerer o exame criminolgico, desde que em decisomotivada/fundamentada.

    Com a publicao das respectivas smulas, o debate entre ojudicirio e a Psicologia em torno do exame criminolgico se acirrou.Salo de Carvalho, em 2007, j antecipara o jogo de foras sobre ainteno de desvincular a deciso judicial dos pareceres e comentaque a Lei n.10.792/2003 foi clara ao excluir o exame criminolgicocomo requisito subjetivo fundamental para obteno dos benefcios/

    direitos legais, pois reconhecia que:

    26. http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/Atuacao_dos_Psicologos_no_Sistema_Prisional.pdf27. Smula Vinculante n. 26 aprovada pelo Supremo Tribunal Federal em16/12/2009: Para efeito de progresso de regime no cumprimento de pena por crimehediondo, ou equiparado, o juzo da execuo observar a inconstitucionalidade doart. 2 da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuzo de avaliar se o con-denado preenche, ou no, os requisitos objetivos e subjetivos do benefcio, podendodeterminar, para tal fim, de modo fundamentado, a realizao de exame criminolgico.

    Recuperado em 3 de setembro de 2011 de http://www.ipclfg.com.br/colunistas/ivan-luis-marques/sumula-vinculante-n-26-do-stf-e-sumula-471-do-stj-%E2%80%93-a-teoria-da-abstrativizacao-do-controle-difuso-de-constitucionalidade.28. Smula 439, do Supremo Tribunal de Justia: Admite-se o exame criminolgicopelas peculiaridades do caso, desde que em deciso motivada. Recuperado em 3de setembro de 2011 de http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=96992

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    29. A Assembleia das Polticas Administrativas e Financeiras - APAF, constituda por

    deliberao do II Congresso Nacional da Psicologia, a instncia deliberativa dosConselhos Federal e Regionais de Psicologia, estando subordinada s deliberaes doCongresso Nacional da Psicologia. Instituda pela Resoluo CFP n10 de 1998http://site.cfp.org.br/resolucoes/resolucao-n-10-1998/30. Resoluo so as normativas que o Sistema Conselhos de Psicologia para orientare regulamentar a profisso.31. Em APAF, em maio de 2010. Esta resoluo entrou em vigor a partir de junho domesmo ano. http://site.cfp.org.br/resolucoes/resolucao-n-09-2010/

    [...] havia falhas, distores e/ ou impossibilidade tcnica derealizao da prova pericial ou parecer tcnico, no cabendo,portanto, ao julgador, ao rgo acusador, ou a qualquer outrosujeito da execuo, retificar o antigo modelo. Do contrrio, estar-se- ofendendo a lgica formal e material do princpio da legalidadepenal (CARVALHO, 2007,p.168)

    Logo aps o Seminrio Nacional do Sistema Penitencirio em 2008,define-se na Assembleia das Polticas Administrativas e Financeiras doSistema Conselhos de Psicologia (APAF)29de dezembro de 2008, anecessidade de formar um Grupo de Trabalho com a incumbncia dediscutir a prtica do psiclogo no sistema prisional, bem como marcaruma posio acerca do chamado exame criminolgico, por meio dacriao de uma minuta de resoluo30, sobre tais atividades. Essegrupo foi composto por representantes de diversos Conselhos Regionaismais o Conselho Federal e elaborou a minuta que foi aprovada soba denominao de Resoluo 09/201031. Essa resoluo ousou aovedar aos psiclogos a realizao dos exames criminolgicos. Almdisso, direcionou suas prticas para a ateno integral sade daspessoas presas, bem como a promoo de recursos de sociabilidadepor meio de aes intersetoriais. Devido a isso, diversos operadoresjurdicos e profissionais da Psicologia afetados por essa resoluo

    demonstraram, desde sua publicao no Dirio Oficial da Unio,vrias resistncias e incompreenses quanto aos objetivos da referidaresoluo, especialmente no que tange ao art. 4 que trata da vedaodo psiclogo de realizar os j referidos exames criminolgicos.

    Assim, sob a tenso gerada pela recente publicao da Resoluo09/2010, em junho de 2010, no VII Congresso Nacional da Psicologia(CNP) intitulado Psicologia e Compromisso com a Promoo de

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    Direitos: um Projeto tico-poltico para a Profisso, realizado emBraslia, o item 18 do Caderno de Deliberaes32reafirma a necessidadede maior interlocuo da Psicologia com instncias de controle social afim de garantir princpios constitucionais e de direitos humanos dentreoutras deliberaes.

    Nesse documento ressaltou-se a necessidade de um cuidadoespecfico com as mulheres presas gestantes e/ou lactantes.Delibera ainda sobre a necessidade de buscar a implementao edivulgao da articulao do psiclogo com a rea da sade e como conceito integral de sade, bem como estabelecer, no ConselhoFederal de Psicologia, articulao permanente com os Ministriosda Sade e da Justia para garantir a implantao/implementaodo Plano Nacional de Sade no Sistema Penitencirio (Portarian. 1.777/2003). (p 40). Alm disso, o VII CNP props ampladivulgao das razes que subsidiam sua posio contrria sobre oexame criminolgico.

    Diante do caloroso debate instalado junto aos representantesdo Poder Judicirio e do Poder Executivo quanto Resoluo n.09/2010, o CFP decidiu suspender temporariamente a referidaResoluo. Mais uma vez, O Sistema Conselhos partiu para umaampla discusso com a categoria, com os operadores jurdicos e

    com a sociedade em geral acerca da realidade prisional e da funoda Psicologia nessas instituies.Um desses momentos foi o Frum Nacional sobre a Resoluo n.

    09/2010 realizado em novembro de 2010, na cidade de So Paulo,com a participao de 207 psiclogos e representantes de outrasreas. Na APAF de 2010, aps esse Frum, decidiu-se prorrogar asuspenso da Resoluo n. 09/2010 at junho de 2011, com oobjetivo de aprofundar a discusso sobre o assunto, determinandoaos Conselhos Regionais que realizassem audincias pblicas, se

    possvel com a participao das Comisses de Direitos Humanosdas Assembleias Legislativas dos Estados da Federao. Entre janeiro e abril de 2011, foram realizadas 12 audincias

    pblicas com ampla participao da categoria, da sociedadecivil, dos Poderes Judicirio, Executivo e Legislativo. Uma delasfoi convocada pela Procuradoria Federal do Rio Grande do Sul e

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    as outras organizadas pelos Conselhos Regionais das seguintesUnidades Federativas: Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Bahia,Maranho, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, So Paulo, MinasGerais, Rio Grande do Sul, Paran e Santa Catarina. Alm disso,foi criado um Grupo de Trabalho da APAF, composto pelo CFP e osseguintes Conselhos Regionais: 01, 02, 05, 06, 07, 08, 10, 11 e14, responsvel por elaborar uma minuta de alterao ResoluoCFP n. 09/2010, com base na anlise dos encaminhamentosprovenientes das audincias pblicas. Na APAF de 22 de maiode 2011 foi aprovada a Minuta de Resoluo elaborada pelo GTe, em junho de 2011, foi publicada a Resoluo n 012/201133

    que revoga a Resoluo n 09/2010 e regulamenta a atuao dopsiclogo no mbito do sistema prisional.

    2.2 A lgica segregativa dos manicmios judicirios e o es-foro para sua superao

    A questo dos designados loucos infratores ou pacientes judicirios tema candente, polmico e relevante dentro do sistema penal epenitencirio brasileiro. Essas discusses descortinam as inmerasmazelas e constantes violaes dos direitos em diversos dispositivosinstitucionais, seja no campo normativo e jurdico como no clnico e

    social.Questionamentos e criticas se acumulam em teses acadmicas,fruns e conferncias dedicadas discusso dos direitos humanos,sade mental e justia, exigindo em diversos setores, o redesenhoda poltica que, ainda hoje, apoiada na presuno de periculosidadedo louco, se orienta pela aplicao de medida de segurana portempo indeterminado e consequente asilo do louco em manicmiojudicirio at a cessao da periculosidade: uma das maioresexpresses da violao institucional dos direitos humanos no Brasil.

    Os dispositivos normativos que tratam dessa questo, dentre eleso Cdigo Penal em vigor, que segue basicamente inalterado desdeo inicio do sculo XX no Brasil, presumir perigoso aquele que

    33. Ver anexo.

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    praticou um crime em razo de doena mental. Segundo o CdigoPenal brasileiro: Art. 26: isento de pena o agente que, por doenamental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era,ao tempo da ao ou da omisso, inteiramente incapaz de entendero carter ilcito do fato ou de determinar-se de acordo com esteentendimento.34

    Uma vez enquadrados no artigo 26, sero absolvidos de seuscrimes, mas sentenciados a uma medida de segurana por tempoindeterminado visando sua proteo e a da sociedade. Perigoso,do ponto de vista jurdico, no aquele indivduo sobre o qualpresumiria uma possibilidade de reincidncia e sim aquele cujaavaliao psiquitrica pericial indicar evidente doena mental,condio entendida como deficiente ou incapacitante, portanto,impossvel de corresponder ao que se entende juridicamente comoresponsabilidade. Isso configura uma exceo aplicvel apenas aosconsiderados doentes mentais, segundo o Cdigo Penal.

    Uma discusso critica e poltica sobre essa categoria periculosidade necessrio que seja feita. Em estudo recente, Fernanda Otoni Barros-Brisset35 tece as bases ficcionais estabelecidas no contexto sociolgicode vrias pocas e que persistem no fundamento da genealogia dapericulosidade (BARROS-BRISSET, 2011). Em seu livro Por uma poltica

    de ateno integral ao louco infrator, a autora demonstra que essapresuno no se encontra exclusivamente no cdigo penal, mas tambmdisseminada nos discursos, de tal sorte que serviu de base para se ler ocaso de um adolescente em So Paulo, a exemplo de tantos outros.

    Por ser presumidamente perigoso, este indivduo est desde os 16anos respondendo por uma medida scio-educativa de internaoprevista pelo Estatuto da Criana e do Adolescente. Esta medidatem tempo limite e definida por lei, podendo ser no mximo detrs anos, podendo apenas se estender at o adolescente completar21 anos. Contudo, excepcionalmente, tendo em vista o pr-conceitoda elevada presuno de sua periculosidade, recentemente este

    34. Legislao Brasileira. Codigo Penal. So Paulo: Saraiva, 1999. p. 49.35. Em sua tese de doutorado

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    jovem foi transferido para uma Unidade Experimental de Sade36,devendo por l restar, por tempo indeterminado. Para justificar adeterminao judicial, fora da lei em vigor na nossa sociedade, osistema jurdico considerou sua patologia mental e sua altssimapericulosidade, atestada por laudos de psiquiatras forenses, spodendo se desvincular deste destino, quando os mesmos avaliaremcessada a sua periculosidade. (BARROS-BRISSET, 2009).

    No caso das medidas de segurana, em vigor no Cdigo Penal,aplicveis em pessoas maiores de 18 anos, ainda que diversaslegislaes possam variar quanto ao local do cumprimento dasmedidas estabelecidas, via-de-regra, sua liberao est condicionadaao ato do Juiz, subsidiado pela autoridade mdica. O tempo da medida sempre indeterminado, justificado pela atribuio desse conceito depericulosidade como consequncia do entendimento da condiono-responsvel do indivduo portador de doena mental.

    Aos loucos infratores, em grande parte do territrio brasileiro, temrestado apenas o silncio, o isolamento, o massacre subjetivo cotidianoe o sequestro institucional dos direitos fundamentais vlidos paraqualquer pessoa humana.

    36. A Unidade Experimental de Sade (UES) um equipamento atualmente perten-

    cente Secretaria Estadual de Sade, destinado a custodiar, segundo o Decreto que oregulamenta (Dec. n 53427/2008), adolescentes e jovens adultos com diagnsticode distrbio de personalidade e alta periculosidade, que cometeram atos infracionaisgraves, egressos da Fundao Casa e interditados pelas Varas de Famlia e Sucesses.Os jovens so processados em aes judiciais com pedidos de interdio civil cumu-lado com internao hospitalar compulsria, nos termos da lei 10.216/2001.Nos casos dos jovens encarcerados na UES, trata-se de espcie de custdia margemda legalidade, que se presta a prorrogar o limite improrrogvel de trs anos de in-ternao de jovens em conflito com a lei. Aps o esgotamento da competncia daJustia da Infncia, ao invs de proceder-se compulsria liberao em virtude doalcance mximo do tempo de encarceramento, o jovem dito perigoso, diagnosticado

    como sendo portador de transtorno de personalidade anti-social, enviado UnidadeExperimental de Sade.Ao contrrio da medida de internao, esse novo encarceramento no precedido docometimento de um crime, cuja apurao tenha se submetido s garantias da lei. Ojovem para l enviado sem que tenha praticado ato algum, aps ter sido exaustiva-mente responsabilizado pelo ato infracional cometido outrora. Ademais, essa espciede custdia no comporta prazo de durao. O jovem permanecer enclausurado atsegunda ordem judicial.

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    Nos dias atuais, as inovaes conceituais introduzidas pela reformapsiquitrica antimanicomial, pelos avanos na clnica das psicosese as novas solues de sociabilidade de incluso das minorias nocontexto das cidades, exigem um novo arranjo institucional para tratara questo do louco infrator de modo diferente da soluo encontradapelos reformadores do final do sculo XIX.

    A entrada em cena de novos paradigmas e modos de pensar a polticae a vida em sociedade questionou antigas ideologias, tensionando econstrangendo os atores no campo da justia penal, segurana pblicae a prpria sociedade a repensarem conceitos e posturas quanto aomodo de tratar o indivduo que responde por um crime, portadorde sofrimento mental. Essa transformao paradigmtica requer aconstruo de novas bases para a prtica dirigida ao louco infrator, detal modo que reclama a construo de novas diretrizes, que possamprescindir dos pressupostos que a sustentam ainda nos dias de hoje.

    Torna-se cada vez mais necessrio construir novas diretrizes emcondies de transmitir o frescor de solues que coloquem no centrode sua ao a potencialidade de sociabilidade do ser humano, estejaeste respondendo por um crime cometido ou no. O conceito dedefesa social em jogo na poltica de segurana pblica precisa serredesenhado de acordo com a pluralidade das formas razoveis de

    lao social na sociedade contempornea, exigindo a inveno de novosmodos de aplicao das medidas penais, de acordo com fins queconduzam a insero social, reduo da violncia e construo da paz.

    2.2.1 As aes do Sistema Conselhos de Psicologia para asuperao dos manicmios judicirios

    No final de 1999, inaugurou-se na agenda pblica um processode discusso coletiva problematizando a questo do louco infrator noBrasil. A responsabilidade desse pontap inicial coube Campanha de

    Direitos Humanos dos Conselhos de Psicologia, levantando a bandeira:Manicmio Judiciario... o pior do pior...37.Seu lanamento aconteceu na abertura do IV Encontro Nacional da

    Luta Antimanicomial em Macio atravs da apresentao, em uma

    37. Ver anexo 3-Cartaz da Campanha Manicmio Judiciario... o pior do pior.

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    38. Posteriormante, como falaremos adiante, esta pesquisa deu resultado prticaconhecida como Programa de Ateno Integral ao Paciente Judiciario, em situao desofrimento mental (PAI-PJ). (http://www.tjmg.jus.br/presidencia/projetonovosrumos/pai_pj/)39. No conjunto dos movimentos deflagrados por Franco Basaglia em sua estada

    no Brasil em 1979 (um ano antes de sua morte), principalmente a partir de suasdeclaraes aps sua visita ao manicmio de Barbacena (MG), algumas iniciativasintroduziram dispositivos sociabilizadores (como sadas teraputicas, visitas domicili-ares assistidas, desinternao progressiva, dentre outras) no interior das instituiesmanicomiais de So Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.40. Ver Referencia em http://www.premioinnovare.com.br/praticas/paili-programa-de-atencao-integral-ao-louco-infrator/ e seu manual com informaes gerais http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/saude-mental/cartilhadopailli.pdf

    mesa redonda, de trs eixos norteadores da problematizao sobre aquesto complexa que o tema da campanha teria para enfrentar pelafrente. Ou seja, primeiramente foi apresentado um relatrio detalhadosobre as inmeras violaes de direitos impostas aos loucos infratores,no Estado Brasileiro, descortinando o cenrio poltico que a campanhateria que enfrentar. Em seguida surgiram os questionamentos sobrea realidade jurdica, normativa e institucional dos loucos infratorese, por ltimo, foram expostos os resultados de uma pesquisa emcurso no Tribunal de Justia de Minas Gerais que se desdobrou nodesenvolvimento de um projeto substitutivo ao manicmio judicirio,desenhado de acordo com os princpios da luta antimanicomial e dosdireitos humanos.38

    A Campanha de Direitos Humanos (1999) foi indubitavelmenteum marco na mobilizao politica, social e interistitucional nosentido de tornar pblica a violao dos direitos humanos aplicadainstitucionalmente aos loucos infratores.39

    J nessa poca, o Programa de Ateno Integral ao PacienteJudicirio do Tribunal de Justia de Minas Gerais - PAI-PJ demonstravaa possibilidade de um entrelaamento entre justia, sade e sociedadeem condies de dispensar o dispositivo manicomial de custdia.Junto a esse programa, outras iniciativas similares, com caractersticas

    prprias, mas com o mesmo objetivo de substituir a lgica segregativasurgiram em Gois, o Programa de Ateno Integral ao Louco InfratorPAILI (2006)40, no Rio Grande do Sul, o Projeto Qorpo Santo (2008),

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    na Bahia (2011) e, recentemente, a experincia do Programa deAteno Integral ao Paciente Judicirio (PAI-PAC), no Esprito Santo(2012). Essas iniciativas tm sustentado no Brasil, por meio da prticaintersetorial, a possibilidade de cuidado e ateno a esses cidadosatravs de uma prtica clnica, jurdica e social no segregativa,obedecendo s particularidades locais de cada estado brasileiro, masem consonncia com os princpios da lei 10216/2001.

    Disposies normativas inovadoras

    Desde a campanha do CFP, uma srie de discusses pblicas,mobilizaes polticas e institucionais, produes acadmicas tmse dedicado ao tema, ganhando ainda maior fora com a lei 10216,publicada em 2001. No final de 2001, o Ministrio da Sade convidouos representantes dos diversos segmentos governamentais e nogovernamentais e das entidades de controle social, no campo da sademental, para participar e tomar a palavra durante a III ConfernciaNacional de Sade Mental.

    As formulaes conceituais e normativas, os resultados e osarranjos institucionais alcanados pela Conferncia produziram nadiscusso coletiva a necessidade de destacar diretrizes e orientaes

    para a imediata reviso da questo do manicmio judicirio e do loucoinfrator. O relatrio final da Conferncia destacou uma srie de diretrizespara pensar a reorientao do modelo da poltica penitenciria relativaao louco infrator. Como por exemplo, enfatizou a Recomendao n456 da III Conferncia, de que deveria se criar em todas as VarasCriminais um programa integrado para acompanhamento a pacientessub judice. Sobre os portadores de sofrimento mental privados deliberdade, o relatrio insistiu:

    A Reforma psiquitrica deve ser norteadora das prticas das

    instituies forenses. A questo do manicmio Judicirio deve serdiscutida com as diferentes reas envolvidas, com o objetivo de garantiro direito do portador de sofrimento mental infrator responsabilidade, reinsero social e a uma assistncia dentro dos princpios do SUS eda Reforma Psiquitrica. (MINISTRIO SAUDE: 2001:128)

    A publicao da Portaria Interministerial n 628, promulgadaem abril de 2002, afirmou que a populao confinada nos manicmios

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    judicirios e penitencirias deveria encontrar na poltica nacional desade mental a orientao para seu tratamento.

    Foi organizado em julho de 2002 o Seminrio parareorientao dos Hospitais de Custdia e Tratamento Psiquitrico,sob a coordenao do Ministrio da Sade e da Justia, envolvendoos diversos atores nacionais ligados institucionalmente questo dolouco infrator.

    Tornou-se consensual a compreenso de que o Sistema nico deSade (SUS) e a rede de ateno sade mental devem responsabilizar-se pelo tratamento da pessoa submetida medida de segurana.Trata-se sem dvida de um passo importante para a consolidao dareforma e para a garantia dos direitos destas pessoas. (MINISTRIODA SAUDE, 2002: 6)

    Esse Seminrio tambm aprovou como recomendao paraconstruo de uma poltica de ateno nacional ao louco infrator quenos Estados da Federao onde no houvesse manicmios judiciriosno deveriam ser construdos novos, nem mesmo ampliar os hospitaisde custdia j existentes41. Pedro Gabriel Delgado, coordenador doPrograma Nacional de Sade Mental do Ministrio da Sade, em suaexposio ao final do seminrio, falou sobre a Reforma Psiquitrica eatendimento ao paciente infrator: o feito e o por fazer.

    Algumas experincias apresentadas e debatidas no seminrio como a do PAI-PJ, do Tribunal de Justia de Minas Gerais vemdemonstrando que possvel o atendimento do paciente mentalinfrator fora do Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico(HCTP), em servio de ateno diria ou ambulatrios. Este deveser um objetivo a se perseguir, no rumo da superao e substituioprogressiva destes estabelecimentos. (MINISTERIO SAUDE,2002:32)

    A experincia do encaminhamento dos loucos infratores paratratamento no SUS, atravs da rede pblica de ateno em sademental, sem dispensar o cumprimento da resposta estabelecida

    41. BRASIL. MINISTRIO DA SADE/MINISTRIO DA JUSTIA. Seminrio Nacionalpara Reorientao dos Hospitais de Custdia e Tratamento Psiquitrico: RelatrioFinal. Braslia, setembro de 2002, p.26.

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    juridicamente, surgiu nesse contexto como a orientao para essescasos. O encaminhamento dessa populao para a rede pblica desade exige de todos os atores envolvidos o desafio do fortalecimentoda rede de ateno extra-hospitalar e a capacitao dos profissionais

    da sade e da justia para o redirecionamento da assistncia ao loucoinfrator. (MINISTRIO DA SAUDE, 2002:06)

    Essas orientaes normativas em ateno a pessoas emsituao de sofrimento mental que cometeram crimes ensinam que assolues relativas ao tratamento do louco infrator no se encontram naforma autnoma e a poucas mos, exige o comprometimento coletivodos diversos atores que atravessam seu campo de interveno, detal sorte que tem sido possvel, como testemunham experinciasde projetos e programas j mencionados, manter como prioridadeabsoluta que o tratamento dos loucos infratores seja realizado na redeSUS, segundo os princpios orientadores de ateno psicossocial aoportador de sofrimento mental, desenhados pelo Ministrio da Sade.

    Apesar dos constrangimentos relativos ao jogo de fora emao nas arenas de discusso, prprio natureza heterognea do