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Psicologia: Reflexão e Crítica All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License (CC BY NC). Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 79722001000100020&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 maio 2018. REFERÊNCIA NEUBERN, Maurício S.. Três obstáculos epistemológicos para o reconhecimento da subjetividade na psicologia clínica. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 241-252, 2001 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 79722001000100020&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 maio 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722001000100020

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Psicologia: Reflexão e Crítica

All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed

under a Creative Commons Attribution License (CC BY NC). Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

79722001000100020&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 maio 2018.

REFERÊNCIA

NEUBERN, Maurício S.. Três obstáculos epistemológicos para o reconhecimento da

subjetividade na psicologia clínica. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 14, n.

1, p. 241-252, 2001 . Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

79722001000100020&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 maio 2018.

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722001000100020

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O Problema da Subjetividade na Psicologia ClínicaO presente texto consiste em uma reflexão crítica

sobre a contextualização da subjetividade na psicologiaclínica. Por subjetividade busca-se um conceito complexodo psíquico que abranja suas múltiplas dimensões semlhe impor mutilações ou reduções, de modo a possibilitarum estudo científico do sujeito no cotidiano. GonzalezRey (1997) a define como a constituição psíquica do sujeitoindividual que integra processos e estados do mesmoem cada um de seus momentos de ação social, momentosestes que implicam em sentidos subjetivos. Ao mesmo

Três Obstáculos Epistemológicos Para o Reconhecimento daSubjetividade na Psicologia Clínica

Maurício S. Neubern 1

Universidade de Brasília

ResumoNo presente artigo, obstáculos epistemológicos são concebidos como formas de construção do pensamento presentes napsicologia clínica que não integram a complexidade e as diversas condições dos processos subjetivos. Parte-se de uma brevecontextualização do percurso do tema da subjetividade na ciência e na psicologia: de um espaço marginal, quando é vista comooposição à objetividade, a uma posição privilegiada em que é discutida como momento integrante da construção do saber.Contudo, neste momento a psicologia clínica se depara com grandes dificuldades, pois as influências recebidas do paradigmadominante são pouco condizentes com a abordagem da subjetividade. Os obstáculos epistemológicos - como o conhecimentogeral e totalitário, as tendências patologizantes e as conclusões apressadas � são momentos de tais influências que descaracterizama subjetividade como objeto de estudo e, em conseqüência, opõem-se às exigências necessárias para a abordagem das mesmas.Sendo assim, buscam-se destacar suas principais características e possibilidades de superação de modo que sua retificação apontenovos caminhos para a implantação de uma forma de pensar e investigar coerentes com as condições da subjetividade.Palavras-chave: Obstáculos epistemológicos; epistemologia; subjetividade; psicologia clínica.

Three Epistemological Obstacles to the Recognizing of Subjectivity in Clinical Psychology

AbstractIn this article, epistemological obstacles are understood as a kind of though construction that does not integrate the complexityand the different conditions of the subjective process. The text begins with an introduction about the trajectory of subjectivityin both science and psychology. First, the subjectivity occupied a marginal place and it was seen as the oposite of objectivity;afterwards it became a central question, when it was reconized as an important moment to the construction of the knowledge.However, nowadays, clinical psychology faces huge difficulties, caused by the influences received from the dominant paradigmthat are not coherent with the approach from the subjectivity. The epistemological obstacles � general and totalitarianknowledge, trends toward patologization and hurried conclusions � are examples of the influences that make subjectivity looseits potential as object of study, and, consequently, are opposed to the demands of this approach. This article seeks to show themain features of those obstacles and the possibilities of correction so as to suggest more coherents ways of thinking about anddeveloping research on subjectivity.Keywords: Epistemological obstacles; epistemology; subjectivity; clinical psychology.

tempo, expressa-se como constituinte da vida social � asubjetividade social � que se diferencia da individual porseu cenário de constituição.

Segue-se um percurso em que a subjetividade émarginalizada do processo científico, momento em queé concebida como oposição à objetividade, e, em seguida,é discutida como condição integrante da construção dosaber científico. Nesse ponto, a psicologia se depara comgrande desafio, pois ao mesmo tempo em que são abertosnovos campos de investigação, seja quanto à construçãode objetos de estudo, seja quanto à construção da ciência,ela se vê presa em suas limitações epistemológicas quetradicionalmente favoreceram a exclusão da subjetividade.Em outras palavras, enquanto na revolução atual deparadigma (Morin, 1998; Santos, 1989) surgem novaspossibilidades de qualificação da subjetividade, boa parte

1 Endereço para correspondência: SQS 411, bl C, apt 101, 70277-030,Brasília, DF. Fone (61) 346-4838. E-mail: [email protected]

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das escolas e ramos dominantes da psicologia ainda semantêm presos a cosmovisões onde ela é marginalizadae concebida como um risco ao procedimento objetivo.

Embora tal influência tenha ocorrido em todos osramos da psicologia, deve-se ressaltar que a escolha daclínica para a discussão do tema não ocorre apenasdevido à formação do autor. A natureza do trabalhoclínico levou a uma contradição interessante pois permitiu,por um lado, a criação de conceitos e abordagens comoalternativas interessantes para a subjetividade, mas aomesmo tempo situou-se como empresa indigna daconfiabilidade científica. Entende-se que, provavelmente,tal aspecto tenha contribuído para intensificar a exclusãoda subjetividade na clínica, como para implantarconcepções pouco condizentes com o espírito científico,como os obstáculos epistemológicos (Bachelard, 1985,1996). Sendo assim, pretende-se destacar no texto que,dentre as inúmeras necessidades de reformulaçõesepistemológicas para o reconhecimento da subjetividade,deve-se discutir, sob certos parâmetros, as característicase possibilidades de superação desses obstáculosepistemológicos. Sua retificação pode apontar caminhosnão apenas para um estudo científico da subjetividade,mas também posteriormente para uma forma de pensarcientífica na psicologia condizente com o estudo damesma. Nesse sentido, a reflexão presente na clínica podecontribuir significativamente para a psicologia enquantociência.

O Percurso da Subjetividade na Psicologia: deMarginal a DesafioA Subjetividade Como Processo Marginal na Ciência

Uma das primeiras questões presentes na reflexãoepistemológica da atualidade é a relação entre a condiçãoabsolutista que a ciência ocupou no cenário das sociedadesocidentais e a cegueira sistemática que ela mesmadesenvolveu sobre as possibilidades de análise de suascondições de surgimento. Por um lado, a empresacientífica é erigida em torno da pretensão de umconhecimento confiável e comprometido com o idealda verdade. Seu arcabouço lhe permitia desvendar asaparências dos fenômenos, atingindo à realidades unívocase universais que, uma vez conhecidas, possibilitavam apredição e o controle de tais fenômenos. Os dois últimosséculos assistiram, portanto, a um desenvolvimentotecnológico assombroso e a um controle da naturezanunca antes imaginado.

No entanto, esse compromisso fervoroso com asluzes, que em seus momentos mais característicosopunham-se sistematicamente à ignorância do sabercomum (Santos, 1987, 1989), desvinculou-se dos

processos históricos e sócio-culturais presentes naconstrução da ciência. Uma vez que era possível decifraro segredo de como as coisas realmente são, para o pensamentocientífico não fazia sentido algum indagar sobre as demaisquestões implicadas, como as históricas (como vieram aser), culturais (que bases existem de crenças e linguagempara que fossem), sociais (como as comunidadesdecidiram para que fosse), dentre outras. Mais que isso,era preciso que tais dimensões fossem vistas comoexteriores à construção científica, pois a assepsia conceituale metodológica era uma condição necessária para seusucesso.

Nesse sentido, a subjetividade humana foi submetidaa um duplo processo de exclusão, ora como momentoda construção do saber, ora como objeto de estudo. Issoé compreensível dentro do ponto de vista científico, postoque o entrelaçamento de sentidos e significados,necessariamente históricos e contextuais, bem como seusdiversos momentos irregulares e irreversíveispromoveram a subjetividade como uma ameaça efetivacontra as pretensões de um saber calcado numacosmovisão onde a realidade é ordenada, estática e a-histórica e a metodologia deveria buscar condições paraque tais características do real fossem retratadas fielmentee sem interferências (Gonzalez Rey, 1996). Logo, no quese refere às condições presentes na construção da ciência,a subjetividade torna-se proscrita, passando a nunca terreconhecida sua participação, mesmo que presente noseio das mais importantes descobertas. Por outro lado,enquanto objeto de estudo, tornou-se igualmente excluída,pois as múltiplas disjunções e reduções que lhesubmeteram para enquadrá-la na vulgata científicadescaracterizaram-na por completo. Processosessencialmente subjetivos como as emoções passam aser concebidos por noções altamente incoerentes comsuas condições: em alguns momentos são alçados aouniversalismo que se sobrepõe ao singular; em outrossão absorvidos nas relações neurológicas ou nasconstruções da linguagem; em outros ainda sãosubjugados a um isomorfismo arbitrário dosprocedimentos estatísticos. Desconsiderou-se, quase porcompleto, sua condição subjetiva que implica numaarticulação com os demais processos envolvidos sem seesgotar em nenhum deles e nas qualidades complexasemergentes dessas relações (Gonzalez Rey, 1997;Neubern, 1999).

No que se refere à psicologia, tal problemática foicaracterizada por marcantes contradições, principalmentedevido ao lugar que tal ciência veio a ocupar na grandedivisão do paradigma ocidental. Segundo alguns autores(Morin, 1998; Santos, 1987), com o Cogito de Descartes

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possibilitou-se efetivar uma separação que foideterminante para o conhecimento no ocidente, sendoque, de um lado da divisão, encontrava-se a ciência comsua linguagem técnica e prosaica, com seu arsenal estatísticoe lógico e os princípios isomórficos de conhecimentodo real. Sob a égide da física, o estudo dos fenômenosnaturais deveria ocorrer livre de quaisquer influênciasinfundadas: só seria possível o estudo confiável defenômenos como as reações químicas, os astros, e o corpohumano se ciências como a química, a astronomia e amedicina se divorciassem em definitivo de suas parceirasalquimia, astrologia e, no caso da medicina, de noçõescomo fluídos e éters. Do outro lado da divisão,encontravam-se disciplinas como a filosofia, o direito, ateologia, as artes e um dos inimigos maiores dopensamento científico � o senso comum. De modosemelhante, neste outro lado tornava-se possível oconhecimento sobre o destino do homem, suas relaçõescom o mundo, Deus, os deveres, a sociedade, dentreoutros, numa linguagem com múltiplos meios deexpressão, como a poesia, mas indigna de confiabilidade.

A psicologia, como boa parte das ciências sociais, nasceem meio a um considerável conflito, como se buscassetranspor as distâncias do abismo criado pelo paradigmadominante. Um de seus principais objetivos era o de sefirmar enquanto conhecimento científico, o que perpassoude diferentes modos o surgimento da maior parte desuas escolas e áreas. Mesmo em escolas como a psicanálise,que promoveu importantes rupturas com a cosmovisãodominante (como no caso do resgate da constituiçãohistórica) ou das escolas humanistas, que criticaramseveramente as pretensões de controle, a influência doparadigma esteve presente no compromisso, explícito ounão, de um conhecimento confiável, distinto dos demaispresentes no outro lado da divisão. Por outro lado, ao sepropor ao estudo do humano (seja suas funções mentais,seu comportamento, seu psiquismo) ela buscará abordarproblemáticas presentes do outro lado do abismo quese constituía como reino do subjetivo e da qualidade,cujos processos eram altamente incoerentes com aconfiabilidade preconizada na ciência. Dentre as inúmerasconseqüências que isso acarretou para a psicologia, umateve relevância especial para sua inferioridade diante dasciências �duras�: sua multiplicidade, manifesta por meiode numerosas escolas de pensamento, parece ter seconstituído como uma afronta ao pressuposto da verdadeúnica.

Ao mesmo tempo, suas possibilidades de investigaçãoforam cada vez mais constrangidas em nome dasexigências científicas, pois além das múltiplassimplificações que impôs a seus objetos de estudo, ela se

viu impelida ao silêncio em outro campo fundamentaldo saber � a subjetividade presente em sua construção.É provável que a psicologia tenha sido uma das ciênciasque sofreram maior impacto de descaracterização diantedo paradigma dominante, pois se propunha a investigaro psiquismo do próprio criador da maravilhosa empresacientífica. Ao mesmo tempo em que esse homem eraalçado a senhor da natureza, capaz de controlar e preverseus movimentos, ele jamais poderia ser tomadointegralmente como objeto de estudo, pois seus processossubjetivos eram essencialmente subversivos e inadequadospara condições confiáveis de pesquisa. Nessa perspectiva,a cegueira dos sistemas de conhecimento quanto a suasorigens e condições apresentava interessante similaridadecom a interdição do auto-conhecimento do sujeitocientista, no sentido de um reconhecimento efetivo dessacondição como momento fundamental da construçãoda ciência.

Novas Possibilidades Para o Reconhecimento da Subjetividade naCiência e Psicologia

No entanto, a partir da reflexão epistemológicapresente no atual século, abriu-se um vasto campo deinvestigação sobre as origens e cenários do conhecimentocientífico2 . Tal reflexão inicia-se basicamente por umquestionamento incisivo contra a dogmatização científica,e nesse ponto Bachelard (1985; 1996) é um de seus maioresmarcos, e culmina com uma discussão mais abrangentesobre as complexas condições que o abarcam. Dito deoutro modo, a reflexão passou a abranger não só ospressupostos que o fundamentavam, mas também asvárias facetas sócio-culturais envolvidas com o mesmo.É nesse sentido que Morin (1983), discorrendo sobre ascondições da ciência, aponta que além de uma relaçãocom a realidade (por meio de um arsenal de conceitos,técnicas e instrumentos) deve-se considerar também umagama considerável de momentos da comunidadecientífica (como os consensos e as rivalidades), permeadospor múltiplas dimensões fundamentais para adeterminação da objetividade. Em outras palavras, oautor aponta para uma estreita relação entre o elementofundador e validador da verdade fundacional da ciência(a objetividade) e as próprias condições intersubjetivaspresentes em sua construção, com as quais passa adesempenhar uma relação paradoxal de autonomia edependência. Sob outro ponto de vista, as reflexões de

2 Logicamente, tais reflexões relacionam-se não só com as condiçõessócio-culturais, mas também com as próprias necessidades e descobertascientíficas e filosóficas da atualidade. Muitas dessas necessidadesdenunciavam abertamente as limitações do paradigma dominante.

Três Obstáculos Epistemológicos Para o Reconhecimento da Subjetividade na Psicologia Clínica

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Kuhn (1996) parecem trazer contribuições semelhantes,principalmente no tocante ao comum das comunidadesem suas relações com o paradigma (a estrutura dacomunidade, a constelação dos compromissos dosgrupos e os exemplos compartilhados).

A pós-modernidade, a seu turno, traz reflexões degrande interesse para tais questões, em que a dimensãoda linguagem ocupa um lugar central para a compreensãodo subjetivo3 na construção do saber científico. SegundoLyotard (1979), deve-se buscar compreender a ciêncianuma perspectiva de jogos de linguagem onde as regras sejamconhecidas e partilhadas pelos participantes. A discussãosobre a prova da prova, isto é, a discussão sobre ospostulados axiomáticos não consistiria em um deméritopara a ciência, uma vez que ela consiste em uma narrativacujos resultados dizem respeito especificamente à seusjogos de linguagem e não a uma verdade transcendente.Contudo, a própria interação entre as múltiplas narrativasdo cenário social traz uma implicação marcante para aciência quanto à suas relações com o mundo social. Atécnica, que permite maior eficiência da prova, não éregida por um critério de verdade, mas de performance,em que um maior out put (informações ou modificaçõesobtidas) é exigido em função de um in put (dispêndio deenergia) cada vez menor. Desse modo, num cenáriocapitalista, cria-se um elo recursivo entre técnica e riqueza,o que contribuirá para o crescimento progressivo deambas. Ao mesmo tempo, a performance passa a ocuparum papel fundamental para a verdade (própria danarrativa científica, num jogo de linguagem denotativo) epara a justiça (em seu jogo prescritivo). Sendo assim, opensamento pós-moderno traz uma visão commultiplicidade de saberes narrativos com pertinênciasespecíficas, ao invés da busca obsessiva da verdade únicapor métodos confiáveis. Ao mesmo tempo, aponta pararelações importantes entre os jogos de linguagem presentesnessas narrativas.

Pode-se afirmar que na psicologia a influência pós-moderna se faz basicamente de duas formas. Por umlado, há movimentos radicais como o construcionismosocial em que discussão respousa muito mais sobre osnúcleos de inteligibilidade, onde as crenças e conceitos sãopartilhados pela comunidade, de que sobre a questãoontológica, sobre o qual o construcionismo nada tem aafirmar4 (Gergen, 1996). A noção central de um mundo

construído na linguagem que permeia as pautas sociaisacompanhará a obra de diversos terapeutas (Andersen,1996; Anderson & Goolishian, 1988; 1996; Gergen &Kaye, 1998; White & Epston, 1993) que propõemimportantes contribuições neste campo, como tambémseveras críticas ao paradigma dominante no modernismopresente na psicologia clínica. Contudo, apesar de trazercontribuições de grande relevância para a compreensãoda subjetividade, tais propostas padecem de umainfluência simplificadora, em que não existe espaço paraa dimensão ontológica, mas apenas para a construção designificados no seio das comunidades. Além disso, ohumano fica reduzido às construções lingüísticas e à pautainterativa. Desprezam-se, portanto, momentosimportantes da construção do saber, como as resistênciasdo real5 , e as facetas múltiplas da subjetividade queabarcam as tramas da linguagem e do social, mas não seesgotam nelas. Baseados em críticas desse teor, autorescomo Mahoney (1991) e Gonzalez Rey (1997) têmqualificado a influência pós-moderna numa postura maiscondizente com esses dois pontos.

Obstáculos Epistemológicos Como Erros e Possibilidades ao EspíritoCientífico

Como se pode notar, o problema da subjetividadesai gradativamente de uma posição marginal para umaposição central, onde suas questões são problematizadase suas relações com o conhecimento são assumidas. Poressas razões, compreende-se que a psicologia poderá seralçada a uma nova posição uma vez que novos camposde investigação passam a se delinear para sua atuação,abrangendo um elo complexo e recursivo entre ascondições que envolvem o conhecimento em sua criaçãoe processo (individuais, sociais, míticas, emocionais) e oconhecimento gerado (com seus objetos complexosprincipalmente). No entanto, é necessário ainda queacompanhe todo um processo de reflexão epistemológicaem si mesma, de maneira que, transformando-se, elapossa oferecer contribuições significativas para atransformação de paradigma presente na atualidade(Morin, 1996, 1998; Neubern, 1999; Santos, 1987, 1989).Dito de outro modo, é preciso que proceda à construçãode novas visões sobre a subjetividade enquanto objetode estudo e, ao mesmo tempo, comprometa-se com umaobservação atenta sobre seus pressupostos de investigação,apesar dos riscos que isso envolve (Koch, 1981). Diante

3 Embora os autores pós-modernos nem sempre enfatizem explicitamenteo tema da subjetividade, entende-se, no presente artigo que a questão dalinguagem se constitui em um momento fundamental desse tema.4 No dizer de Gergen (1996) o construcionismo social é ontologicamentemudo.

acomoda passivamente às construções teóricas, podendo, por seu papelativo levá-las a reformulações.

5 Resistência ao real consiste em uma noção epistemológica (GonzalezRey, 1997; Mahoney, 1991; Morin, 1996) segundo a qual a realidade não se

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das novas necessidades e contradições que a investigaçãoaberta do real impõe, os erros epistemológicos dopassado podem ser retificados num processo que dêabertura para o novo, a criação e a inventividade, tãocaros ao espírito científico (Bachelard, 1985).

É nesse ponto que a psicologia clínica pode contribuir,inclusive a partir de uma reflexão atenta sobre osobstáculos epistemológicos. As grandes dificuldadespresentes no cotidiano da clínica, decorrentes geralmenteda natureza complexa da subjetividade e em grande partesubversivas ao pensamento dominante podem vir a sersua grande virtude para a implantação de uma forma depensar condizente com o espírito científico. Amultiplicidade de dimensões complexamente articuladasao longo de um processo histórico impõem a necessidadede um saber que possa dialogar com o real e suasresistências e pode se constituir em um aliado importantecontra as patologias que enrijecem e cegam oconhecimento (Koch, 1981; Morin, 1990).

Os obstáculos epistemológicos referem-se, portanto,aos erros de pensamento que se contrapõem ao espíritocientífico e devem ser retificados para que o mesmo seimplante. Porém, deve-se apontar que tais obstáculosgeralmente se encontram presentes de três formas,comumente entrelaçadas, na práxis da psicologia clínica.Primeiramente, encontram-se nas limitações deabordagem dos pressupostos epistemológicos,comumente de origem empirista (Bercherie, 1986), diantedas questões trazidas pela subjetividade. EmboraBachelard (1996) não tenha teorizado sobre este ponto,pode-se compreendê-lo como uma idéia condizente comsua noção de obstáculo, uma vez que boa parte das escolasde psicologia parecem cometer um erro fundamental aoconstruir seus objetos de estudo com base emcosmovisões originárias de outros campos deconhecimento (Anderson & Goolishian, 1996)6 .

Em segundo lugar, encontra-se o próprio pensamentodo pesquisador ou terapeuta que, imbuído de conceitosconsagrados da psicologia tradicional, procede a inúmerasracionalizações em meio a idéias dogmáticas e fechadasque não permitem um diálogo efetivo com as questõestrazidas pela subjetividade. Trata-se praticamente dapostura intelectual que o pesquisador adota diante dessesproblemas que contribui sobremaneira para a confirmaçãode sua escola de psicologia como doutrina. E, finalmente,há a própria questão da institucionalização do pensamentoque favorece com que uma proposta, originalmente

destinada a um diálogo com o real, transforme-se emum sistema doutrinário, descaracterizado em suacientificidade. Nesse sentido, seria necessária umaabordagem mais abrangente que pudesse abarcar adinâmica das comunidades científicas em suas dimensõesintersubjetivas, sociológicas, políticas e econômicas, o quenão cabe no escopo deste artigo. A psicologia a clínicapode fornecer inúmeros exemplos em que o pensamentodos mestres é assassinado por escolas de discípulos muitofiéis onde o pensamento crítico não é bem vindo edificilmente encontra espaço. Desconhece-se a própriaassertiva de Bachelard (1996) de que �(...) na obra daciência só se pode amar o que se destrói, pode-se continuaro passado negando-o, pode-se venerar o mestrecontradizendo-o� (p. 309). Ao mesmo tempo, adoutrinarização dos pensamentos psicológicos mereceria,em um momento posterior, um estudo maisaprofundado com as próprias dimensões político-econômicas do cenário social, como as teorias da modae o próprio mercado psi em suas diversas faces e exigências.

Desse modo, o presente trabalho centra sua análisenas duas primeiras formas acima apontada, pois fornecemconsideráveis informações para a construção deobstáculos epistemológicos no pensamento dopesquisador. Isso não impede que vez por outra sejamfeitas referências ao terceiro aspecto. Procura destacarcomo os obstáculos ao espírito científico se constituemem erros fundamentais da subjetividade do investigadorna construção do conhecimento psicológico. Maisespecificamente, destacam-se três obstáculos sobre aforma como o sujeito constrói o conhecimento, aomesmo tempo em que apontar caminhos para suaretificação, caminhos esses baseados em princípiosmetodológicos, teóricos e epistemológicos maiscondizentes com o universo complexo da subjetividade(Gonzalez Rey, 1997, 1999; Morin, 1996, 1998). Umavez corrigidos, tais obstáculos poderão fornecer subsídiospara passos iniciais na construção de uma visão maisabrangente sobre o espírito científico na psicologia clínicacomo na psicologia com ciência. Foram escolhidos apenastrês obstáculos epistemológicos para serem discutidos,pois, além das limitações de espaço, entende-se que aproposta de destacá-los, discuti-los à luz de pressupostoscomplexos de modo a traçar caminhos para suaretificação, pode ser extensiva a boa parte deles7 . Tais

6 Pode-se recomendar para o aprofundamento desse tópico as obras deGonzalez Rey (1997) e Neubern (1999).

7 A noção de obstáculo epistemológico provém de Bachelard (1996)onde podem ser encontrados numerosos exemplos para o conhecimentocientífico em geral. Outros autores como Gonzalez Rey (1997, 1999),Koch (1981), Morin (1990, 1998) e Neubern (1999) fornecem instrumentosbastante interessantes para refletir sobre os possíveis e numerososobstáculos epistemológicos na psicologia.

Três Obstáculos Epistemológicos Para o Reconhecimento da Subjetividade na Psicologia Clínica

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obstáculos serão analisados a partir de um breve relatode caso clínico, em que é possível denunciar sua presença.

O Caso Ademar SilveiraAdemar Silveira, 60 anos, alto funcionário de uma

empresa, procurou os serviços de uma clínica onde haviaencerrado há alguns anos uma psicoterapia. Alegou queos profissionais já o conheciam e que não gostaria derepetir novamente sua história. A princípio, ele apresentauma queixa difusa, um mal estar muito ligado ao ambientede trabalho, cheio de armadilhas e falcatruas, segundo ele.Porém, ao longo do trabalho, ele começa a perceber quemuitas de suas decisões pareciam apontar para umcaminho que ele mesmo pontuou da seguinte forma:�tenho que dizer um sim a mim mesmo. Devo optar por qualidadede vida!� Ademar foi aos poucos percebendo o tipo deconflito em que sua vida parecia se encontrar. Por umlado, um ambiente com muitas exigências e inimigos, quepoderia lhe facultar maior ascensão profissional, mas quetambém era muito desgastante. Seus momentos deirritação eram taxados como loucura, fato de que seusrivais tiravam proveito. Por outro lado, Ademar pouco apouco se apercebia de que já havia começado a buscarnovas qualidades de vida e relação. Havia se tornado aolongo de sua vida, na família ou no trabalho, um homemrígido, decidido e comumente agressivo, apto a enfrentaras dificuldades. No entanto, determinadas decisões quehavia tomado, dificultavam sua carreira profissional, masao mesmo tempo o poupavam de situações de conflito.Ele se aproxima mais do filho deficiente (por quemmanifestou vergonha por muito tempo) atrasando-se emseus compromissos para levá-lo na escola. Passa aacompanhar mais de perto os projetos dos outros filhos,adotando uma postura distinta da punição habitual quantoaos mesmos.

Contudo, em certa ocasião, sua esposa Joana procuraos profissionais da clínica manifestando grandepreocupação. Ela relata que no domingo, o filho maisvelho foi buscá-la em outro cômodo da casa afirmandoque seu pai estava na sala, chorando. Quando ela oencontrou, alegou estar muito assustada, pois nunca ohavia visto dessa forma. Procuraram, então, pelo psiquiatraque prescreveu um aumento da medicação. Joana passoutambém a trazer muitos conflitos do casal, pois, em suavisão, uma mulher forte deveria merecer um homemforte. Chegou mesmo a comentar sobre a possibilidadede divórcio.

Os Obstáculos EpistemológicosO Conhecimento Geral e Totalitário

Esse obstáculo consiste basicamente na primaziade categorias gerais em detrimento de significações e

sentidos singulares. Dito de outro modo, o singular é, dediferentes formas, absorvido, excluído ou desconsideradopelo geral. Consiste em uma herança moderna em que asgeneralizações eram tidas como condição decientificidade. Como a complexidade era vista comoaparência do real, cabia ao cientista ir além do aparente edesvendar leis simples e universais (Santos, 1987; Morin,1998). A psicologia qualificou tal influência em meio anoções muito propícias à construção de leis universais,como o individualismo e a natureza humana, quefavoreciam considerável desvinculação quanto à dialéticasocial, cultural e histórica presentes na constituição dossujeitos. Nesse sentido, noções como os quadrosnosográficos do DSM IV (1995) ou as estruturas depersonalidade (Bergeret, 1988) são bastante ilustrativas,pois apontam para modelos transcendentais.

Um dos grandes problemas que se desenvolveu nesseobstáculo é que o esforço original de autores como Freud(1969) que buscavam uma relação em que o singular nãofosse absorvido no geral (como quando discorria sobreo sentido dos sintomas) foi freqüentemente sobrepujadopelas perspectivas universais e absolutas. Uma vez quetodos os motivos humanos conduziam, de uma formaou outra, à sexualidade e que o núcleo da neurose eranecessariamente ligado ao conflito edípico, não seconstituíram alternativas de compreensão ligadas a outrastemáticas relacionadas com a história de vida dos sujeitosconstruída ao longo de múltiplos processos da ação social.Desse modo, a própria teoria tornou-se ditadora dopensamento de investigadores e terapeutas, pois, ao invésde se constituir em uma fonte de referências para odiálogo com o diverso presente na subjetividade,constituiu-se em um sistema de imposições de conceitose visões de mundo.

Os comentários e discussões traçados porprofissionais sobre o caso de Ademar são bastanteilustrativos quanto a isso8 . A princípio, ele é definido comoneurótico obsessivo cujas defesas começam a apresentarfalência em meio ao conflito psíquico. A depressão seriaadvinda do montante de energia represada sem umaresolução pulsional. Além disso, considera-se que Ademarencontra grandes dificuldades no atual momento, pois otrabalho da terapia o leva a entrar em contato com asemoções, tarefa difícil para seu ego. A medicação entrariacomo um fator útil por possibilitar um contato menosturbulento com tais emoções.

8 Nesse sentido, não há muita diferença entre os comentários traçados euma análise mais criteriosa, pois ambos se baseiam nos mesmospressupostos epistemológicos e na mesma ausência de crítica sobre osmesmos.

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Malgrado a utilidade de tais conceitos como formade compreensão do problema, eles não deixam de seconstituir como obstáculo epistemológico, principalmentepela postura intelectual em que se configuram.Primeiramente, o conflito vivenciado por Ademar, queaponta claramente para significações, sentidos enecessidades entre contextos e processos incompatíveis,é transposto para um modelo universal, onde impera abatalha entre as forças pulsionais e a interdição cultural.Logo, os contrastes envolvendo construções sobre asdisputas com os colegas, as exigências da esposa e dosamigos e suas necessidades de qualidade de vida praticamentesão diluídos ou subjugados por um esquema da naturezahumana absoluta onde devem existir mecanismos quegarantam defesas contra as ameaças inconscientes deordem sexual. O mecanismo hidráulico de energiasrepresadas e acumuladas sobrepõe-se à toda diversidadede possibilidades de conflito.

Nessas apreciações não se considera um problemaessencial para a compreensão da subjetividade, que é aquestão dos sentidos. Em momento algum, Ademar dáespaço para a interpretação apressada de que seusproblemas estejam ligados a conteúdos libidinais e queestes mantenham uma oposição às interdições da cultura.Se a subjetividade implica em um jogo dialético entre osujeito e o mundo social, logicamente suas necessidadesderivarão de uma complexa construção originada dessarelação e não de uma oposição à priori entre duasdimensões. Os sentidos, portanto, devem ser interpretadosem função do diálogo com o cenário subjetivo (individuale social) em que Ademar se constitui (Gonzalez Rey, 1997,1999; Gergen, 1996). As necessidades, por sua vez, nãoobedecem a uma tentativa de superação da oposiçãocontumaz ao recalque, mas a um processo de construçãode novas qualidades relacionais e de significação, cujosobstáculos não necessariamente obedecem à descriçãodo recalque psicanalítico. No caso de Ademar, deve-secompreender que as múltiplas faces de sua subjetividadepossibilitam inúmeras configurações (Gonzalez Rey, 1997)que podem se organizar de acordo com seus contextosrelacionais. O dizer um sim a si mesmo e a qualidade de vida aque ele se refere, implicam em sentidos específicos paracircunstâncias específicas: com respeito aos filhos, anecessidade de uma troca afetiva distinta; a necessidadede construir novos sentidos em uma história marcadapela distância e agressividade. Quanto ao trabalho, apossibilidade da revolta e mesmo de ruptura com esseuniverso. Mesmo que tais necessidades possuam algocomum, é importante ressaltar as diferenças singularesque qualificam a diversidade subjetiva de um único sujeito.

Outro ponto que chama a atenção na análise dosprofissionais, é a forma dicotomizada em que as emoçõessão situadas quanto ao racional de Ademar, como se suasexpressões fossem destituídas desse processo. Acompreensão decorrente dessa análise imporia, porconseguinte, a noção de que existem pessoas que entramem contato com mais facilidade com suas emoções doque outras. Essa noção apresenta um equívoco inicial quenão pode passar despercebido: se as emoções sãoconstituídas no seio de um processo subjetivo, não fazsentido conceber pessoas que não mantenham algumainteração com elas. Efetivamente, deve-se considerar quepara alguns momentos da subjetividade de certas pessoas,haja maiores dificuldades de construir novos significadossobre os processos emocionais, o que as leva comfreqüência, como no caso de Ademar, a um mal estarindefinido (Neubern, 1999). Contudo, não se pode cederaos apelos da simplificação para concebê-las como umprocesso alheio ao sujeito, como se a subjetividademantivesse departamentos rigidamente separados.

Por outro lado, ainda há um ponto levantado quemerece maior atenção. A organização da subjetividadeobedece a uma lógica configuracional (Gonzalez Rey,1997, 1999) o que não comporta a dicotomia emoção �cognição. Nessa lógica, as configurações implicam emsistemas que integram simultaneamente processos designificação e emoção que podem permitir múltiplosarranjos na trajetória do sujeito. Logo, necessidades,motivos, estados e sentidos integram-se de formaconfiguracional, o que permite uma compreensão dadiversidade de momentos emocionais. No caso deAdemar, ao invés de se conceber que ele possuidificuldades para entrar em contato com suas emoções,pode-se pensar a questão em função da multiplicidadede faces presentes na construção e constituição dasubjetividade. A princípio, mesmo nos momentos emque, ao longo de sua história, ele atuou de forma maisríspida e racional, Ademar desenvolveu emoções muitointensas (como a agressividade, amor ao poder), quemesmo nas circunstâncias atuais podem ser de grandevalia para seu trato social. Por outro lado, em meio àspossibilidades do novo que começam a surgir em suavida, ele passa a se deparar com novas qualidadesemocionais, o que pode ter sido assustador tanto paraele, como para seus colegas e esposa. A diversidadepresente em cada um desses momentos não permite,em conseqüência, conceber ausência de contato com suasemoções ou ainda dificuldades em lidar com elas: issopode ocorrer com algumas, mas não todas,principalmente caso se observe a diversidade de

Três Obstáculos Epistemológicos Para o Reconhecimento da Subjetividade na Psicologia Clínica

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momentos e circunstâncias de seu cotidiano, onde taisprocessos necessariamente estão presentes.

Finalmente, categorias como sentidos, configuraçõese emoções podem se constituir como universais, desdeque não assumam um status transcendental e absolutocom os mecanismos já descritos de exclusão dasubjetividade. É nessa direção que Bachelard (1996)aponta para a necessidade de um pensar inquieto diantedo consagrado e do homogêneo:

�É assim que, em todas as ciências rigorosas, umpensamento inquieto desconfia das identidades mais oumenos aparentes e exige sem cessar mais precisão e, porconseguinte, mais ocasiões de distinguir. Precisar, retificar,diversificar são tipos de pensamento dinâmico que fogem dacerteza e da unidade, e que encontram nos sistemashomogêneos mais obstáculos do que estímulo. Em resumo,o homem movido pelo espírito científico deseja saber, maspara, imediatamente, melhor questionar.� (p.21).A psicologia clínica encontra, portanto, diante do

obstáculo do geral totalitário um desafio considerável. Atendência à homogeneizar pessoas, formas de terapia,visões sobre problemas e mudança acarreta emconseqüências graves, intrinsecamente ligadas à exclusãoda subjetividade. Vão desde a prescrição desenfreada depsicoterapias, sem a mínima reflexão crítica sobre suasindicações e limitações, a uma enorme parcela de sujeitos,em geral de classes desfavorecidas, para quem osprocedimentos da psicologia clínica não fazem sentidoalgum. Contudo, é necessário que o problema sejarefletido em outras dimensões9 que vão além do obstáculoepistemológico, mas que desenvolvem com ele intensaretroalimentação.

A Tendência Patologizante e Incapacitadora (Os Becos Sem Saída)Tal obstáculo implica basicamente na determinação

de uma visão de mundo em que as expressões do sujeitosão compreendidas via-de-regra pelo prisma da patologiaou da incapacidade. De certa forma, costumaacompanhar vários momentos do sujeito conferindo-lhesatributo doentio, ao mesmo tempo em que exclui oudesconsidera outros momentos que podem confrontara dominação dessa narrativa (White & Epston, 1993).No caso de Ademar, o choro é tomado como ummomento de loucura e depressão, ao passo que suaproximidade quanto aos filhos e as demandas que aospoucos passa a construir para uma qualidade de vidadiferente são praticamente desapercebidos.

Aliada comumente ao conhecimento geral e totalitário,a tendência patologizante com muita freqüência éenvolvida pelo determinismo. Uma vez que a estruturade personalidade se defina (Bergeret, 1988), resta àdiversidade numerosa de sujeitos o fatídico destino daclassificação neurótica ou psicótica ou ainda uma variaçãode uma dessas estruturas de base. A própria normalidade,talvez como herança da metáfora do cristal da psicanálise,é compreendida como um momento funcional e muitasvezes frágil de uma base estrutural doentia. Gergen e Kaye(1998) apontam que essa herança modernista tem comobase os pressupostos de que há uma causa latente oubase da patologia, localizada dentro dos clientes ou emsuas relações que podem ser diagnosticados e, por meiosespecíficos, serem eliminados ou tratados. No entanto,os mesmos autores apresentam críticas incisivas quantoàs limitações dessas premissas, sobretudo peladesconsideração que dispensam às narrativas dos sujeitose as limitações que impõem sobre novas possibilidadesde construção.

O homem doente torna-se, então, a referência universalde avaliação das expressões múltiplas da subjetividade.Nesse sentido, encontra-se o problema, também levantadopor Gergen e Kaye (1998), da imposição de narrativasem que toda uma cosmovisão respaldada pelo sabercientífico vai se impondo sobre um conjunto de históriase processos construídos ao longo de toda uma vida. Talimposição, ao mesmo tempo em que é alheia aosprocessos de significação próprios do sujeito, ignora asdiversas articulações em torno do problema quecontribuem para sua construção e que freqüentementepodem denunciar a sabedoria que tal expressão tida comopatológica pode comportar (Anderson & Goolishian,1988; Ausloos, 1995). O choro de Ademar é reveladorde uma tentativa corajosa e sofrida de mudança de vida,principalmente pela tentativa de resgatar valores equalidades relacionais importantes para ele, masincoerentes com seus contextos sociais.

Outro ponto com o qual a tendência patologizantecomumente se entrelaça é a perspectiva individualista10 ,o que consiste em um artifício poderoso de exclusão dasubjetividade por não considerar a diversidade deprocessos de subjetivação envolvidos na construção doproblema. Ao se firmar a noção de que o problema estádeterminado na estrutura individual, perde-se uma

9 Como a formação de terapeutas, as exigências do mercado e a mitologiacultural que envolve a terapia.

10 O individualismo coloca o indivíduo como fonte da patologia. Noentanto, todo pensamento que colocar um ponto específico como acausa do problema (como a família ou os processos neurológicos)desconsiderando a complexidade de fatores organizados ao redor doproblema obedece ao mesmo princípio simplificador do individualismo.

Maurício S. Neubern

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dimensão fundamental na consideração da subjetividade:a construção do problema que está vinculada aosmúltiplos sistemas subjetivos que se organizam em tornodele1 1 (Neubern, 1999). Desse modo, ao se classificar oquadro de Ademar como depressivo , acentua-secomumente seu aspecto estrutural e o determinismoneurológico nele presente, mas descontextualiza-se seusofrimento com respeito aos processos sociais einstitucionais que necessariamente promovem a construçãoda depressão do sujeito. Perde-se mesmo a noção depoderosos mecanismos que ordenam tal construção,como aqueles presentes na própria determinação devisões de mundo (as expressões de choro, os rompantesde humor, as alterações do sono são indícios dedepressão) ou ainda nas ameaças de retaliação social aque a fraqueza de Ademar está sujeita (como as ameaçasdos colegas e de divórcio). Tais processos envolvemfacetas diversificadas e amplas (Foucault, 1997; Goffman,1999; White & Epston, 1993) e merecem estudos maisaprofundados, principalmente quanto à participação ativado sujeito nessas construções.

Portanto, o estudo da subjetividade requer umarequalificação radical da tendência patologizante. Deve-se, por um lado, reconhecer as influências individuais esuas determinações sem, contudo, ceder à suas tentaçõesabsolutistas sob a forma do individualismo e dodeterminismo. Deve-se, por outro lado, reconhecer quea subjetividade não é essencial e estruturalmente doentiae que, qualquer abordagem sobre ela, devenecessariamente privilegiar seus cenários de sentido, demodo que seja possível uma visão aprofundada dosofrimento em seus múltiplos circuitos de construção. Acomplexidade envolvendo o problema subjetivo consisteem um desafio, pois a compreensão de suas múltiplasarticulações pode permitir importantes redefinições eativações de potencial (Ausloos, 1995). É nesse sentidoque Morin (1983) fornece instrumentos para pensar aquestão:

�Há, pois, zonas fracas do �imprinting�, da normalização,da determinação, onde o desvio pode aparecer, eventualmentedesenvolver-se e tornar-se tendência. Por isso, é necessáriover não só o tecido determinista, mas também as falhas, osburacos, as zonas de turbulência, os cachões da cultura, onde,efetivamente, brota o novo.� (pp. 27-28)

As Conclusões ApressadasAs conclusões apressadas consistem em um obstáculo

típico da racionalização presente no pensamento científico(Morin, 1998), como também na psicologia clínica. Diantede um fenômeno qualquer, como as crises de Ademar,suas expressões são classificadas de modo automático emecânico em categorias e noções consagradas. Ascontradições e problemáticas presentes no real, quepodem ser ameaçadoras e desconfortáveis, desaparecemde forma mágica. Esse tipo de facilidade parece estarligado a múltiplos fatores, que variam desde o projetocientífico de poder e controle da realidade a questõesoriundas do consumismo de idéias, em que um conjuntode receitas práticas pode poupar muitas dificuldades1 2.

Apresentando-se muito integrado aos obstáculos jádiscutidos, as conclusões apressadas costumam semanifestar na clínica por meio do uso abusivo decategorias e concepções a priori. Consistem, dessa forma,em um poderoso recurso de exclusão quedescontextualiza quase que por completo a diversidadede questões subjetivas que perpassam uma queixa.Promovem uma cegueira sistematizada que buscaclassificar o já conhecido e não procura se aventurar pelosaspectos que se mostram distintos, nebulosos, irregularese estranhos diante das noções consagradas. Desprezamo sentido do espírito científico segundo o qual (Bachelard,1985): �Os conceitos e métodos, tudo é função dodomínio da experiência; todo o pensamento científicodeve mudar ante uma experiência nova; um discursosobre um método científico será sempre um discurso decircunstância, não descreverá uma constituição definitivado espírito científico.� (p.121)

Boa parte dos motivos que propiciam tal obstáculoligam-se a um problema da própria tradição psicológicaque legou aos métodos clínicos uma validade restrita, poissó seriam condizentes com o setting clínico, como se asubjetividade fosse exclusiva desse contexto (GonzalezRey, 1996). Além disso, considerou sua validade duvidosapor elaborar procedimentos teóricos e metodológicosque buscavam atender às exigências dos objetos de estudo,mas afastavam-se do rigor e das prescrições confiáveisno parecer científico. As conseqüências para a psicologiaclínica refletem-se de modo a acentuar a drásticamutilação entre conhecimento de pesquisa e conhecimento

11 Essa noção é tomada de Anderson e Goolishian (1988) segundo a qual�os problemas criam sistemas�. Porém, Neubern (1999) toma essaconsideração acrescentando dois aspectos: os sistemas não são apenaslingüísticos, mas subjetivos; tal noção não deve se contrapor à criação deproblemas pelos sistemas, principalmente pelas múltiplas causalidadeslineares que podem existir, articulando-se em sua construção.

12 Logicamente, não se pode desconsiderar a presença desses obstáculosna formação profissional de terapeutas. Antes de criticar o consagrado épreciso conhecê-lo e, muitas vezes, apegar-se a ele. Além disso, existemsituações, como a ala psiquiátrica de muitos hospitais públicos, em quetais conclusões possuem função especial. Porém, em ambos os casos nãose pode desprezar a necessidade do espírito crítico.

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prático, ainda muito presentes na atualidade. No primeirodesses eixos, há a possibilidade da aplicação de recursoscomo o psicodiagnóstico que, calcado em procedimentosestandardizados como os testes psicométricos eprojetivos, é muitas vezes utilizado de modo estanquequanto ao processo terapêutico e comumente maisvalorizados do que este. No outro eixo, encontra-se apsicoterapia, onde o saber consagrado dita regras declassificação e procedimento que, quando não afastam oterapeuta do contato aberto com as contradições edificuldades da realidade dos pacientes, podam suaspossibilidades criativas diante de tais problemas,principalmente se as mesmas se apresentam comosubversivas ao pensamento dominante.

No entanto, há ainda uma dimensão marginal presentenas construções e intervenções de muitos clínicos que,embora não seja compreendida como possibilidade depesquisa, contribui significativamente para os processosde mudança de seus pacientes. Tal dimensão comumentenão é sistematizada em suas construções e muitas vezesnão aparece como confronto explícito aos marcosteóricos de referência em que se baseiam. Contudo,parecem fazer considerável referência ao que Mahoney(1991) considera como a novidade na psicoterapia, um dosmomentos fundamentais para a mudança, que não dizrespeito a uma teoria transcendental e estabelecida, mas aum conjunto de habilidades que permitem ao terapeutaconstruir, em diferentes níveis, sobre dimensões essenciaisdesse processo, como o vínculo, a comunicação, oacontecimento, a criação e as vivências subjetivas, ondeas emoções desempenham papel central.

Esse conjunto de obstáculos, intrínsecos aoconhecimento institucionalizado, propicia a adoção dasconclusões apressadas basicamente de dois modos. Alémde fornecer um conjunto de noções estandardizadas erespaldadas, não legitima, como momento da pesquisa,as construções que o terapeuta necessita realizar em seusmomentos empíricos. O espírito científico é condenadoao silêncio (ou à morte, em muitos casos) justamenteporque a condição de sujeito ativo da pesquisa não éconferida ao terapeuta. Para que o contrário ocorra deve-se reconhecer que, sob certos parâmetros, o pensamentodo terapeuta deve ser qualificado, de modo que suasconstruções sobre o processo singular sejam legitimadas,mesmo que às vezes contrárias à teoria que o respalda(Gonzalez Rey, 1999; Neubern, 1999). A pesquisa realiza-se necessariamente entre esses pólos de tensão - opensamento do sujeito e a teoria estabelecida � pois arelação entre ambos torna possível de modo mais efetivoa relação entre o corpo teórico construído na comunidadee os momentos singulares que constituem a prática

profissional. Tal perspectiva, ao situar a pesquisa comogeração de pensamento, rompe a dicotomia entre a práticaclínica e a pesquisa. Entretanto, deve-se destacar que oreconhecimento da subjetividade do sujeito não deveimplicar em um subjetivismo absoluto contrário aqualquer rigor metodológico, mas a um conjunto deprocessos de mudanças epistemológicas no próprioconhecimento (objetivado em muitos de seus momentos)onde seja possível assumir a participação de seu criador.

Conclusão: Reconhecer a SubjetividadeImplica em Utopias

O reconhecimento da subjetividade para a psicologiaclínica, como para a ciência, possui implicações das quaisos obstáculos epistemológicos são apenas um momento.A discussão remete a um universo muito mais amploque não caberia discutir aqui (Gonzalez Rey, 1997, 1999;Morin, 1998; Neubern, 1999). Por outro lado, para efeitode conclusão, destaca-se que reconhecer a condiçãohumana como ponto central na construção doconhecimento implica em uma discussão de utopias sobresua participação como objeto de estudo ou comomomento fundamental do espírito científico.

Como objeto de estudo, a subjetividade deve consistirem um conjunto de noções fundamentais que exijamsaber aberto e mentalidade de investigação, isto é, umapelo persuasivo ao espírito científico. Suas diversascaracterísticas remetem-na como objeto de estudocomplexo que procura articular dimensões classicamenteopostas no pensamento psicológico (Gonzalez Rey, 1997;Morin, 1996). No entanto, embora tal concepção sejaassumida em termos ontológicos, ela nada possui deabsoluta, pois isso implicaria em novas posturas ditatoriaise universalistas, pretensamente capazes de impor noçõesúnicas de homem e formas também únicas de estudá-lo.É interessante observar que muito mais que uma propostaabsoluta e substancializada de um objeto específico eisolado, o que se busca é basicamente traçar formas deconstrução de pensamento que possam dialogar com umarealidade viva, presente no cotidiano, que sente, decide,pensa, sonha, mas que até o momento permanece,enquanto ser integral, uma incógnita diante doconhecimento que ela mesma criou.

Como condição básica do espírito científico, seu papelcentra-se no diálogo com qualidades emergentes (comoa invenção, a inquietação, a arte) que podem garantir omovimento constante da geração de pensamento paraquem uma resposta não implica em conclusões finais,mas em momentos de um conhecimento incompleto.Toda a flexibilidade inerente ao espírito científico nãodeve ser enfocada apenas em termos de indivíduos, pois

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para tanto há condições macrossociais que a favorecem.No entanto, longe de consistir em um ponto morto comoassevera Gergen (1996), o sujeito consiste em ummomento imprescindível nessa compreensão, capaz depromover rupturas nas grandes estruturas do paradigma(Morin, 1998).

No caso da psicologia clínica, a sua pluralidade,atestado de ilegitimidade científica na visão dominante,pode vir a consistir em ponto favorável ao espíritocientífico. A diversidade de visões pode favorecer muitosguetos onde as determinações do paradigma nãoalcançam ou são mais frágeis, o que possibilita aconstrução de alternativas. Em termos da construção dasubjetividade como objeto complexo, a pluralidade devozes pode contribuir significativamente para suacompreensão como Unitas Multiplex (Morin, 1996, 1998;Neubern, 1999). Nesse ponto, uma das principais funçõesdo espírito científico é a possibilidade de qualificar asdiversas contribuições, num processo que permita umaforma radicalmente distinta e complexa de pensar. Porém,embora o sujeito não necessite de sistemas deconhecimento abertos à integração para possibilitar oespírito científico, para um pensamento articulador devemser cogitadas mudanças simultâneas em níveis mais amplosonde o diálogo possa se construir entre escolas distintas.Esse é um grande desafio, pois os sistemas de idéias emgeral são autocêntricos e intolerantes com pensamentosdistintos. Portanto, uma primeira utopia que envolve oespírito científico, é uma democracia de idéias, onde odiálogo seja possível para construir sobre a subjetividade,malgrado todas as antipatias, turbulências e conflitos quea democracia também comporta (Neubern, 1999).

Por fim, a empresa desse texto traz à tona a necessidadede um compromisso efetivo com uma nova noção depsicologia e de clínica. A ciência não consiste em umconhecimento, estático, substancializado e universal, mas napossibilidade de um conhecer em que as respostas aindanão foram dadas e, quando o forem, permitirão a criaçãode novas perguntas. Conhecer implica no sujeito quedialoga com o objeto de estudo e simultaneamente comas múltiplas teias que perpassam seu cenário de estudo. Éum apelo veemente para alertar os psicólogos de que oconhecimento e a clínica que são construídos estãoprofundamente relacionados com os pensamentosvigentes na sociedade. Entretanto, a condição de sujeitotem encontrado um considerável desafio com respeitoao próprio conhecimento: em alguns momentos éescrava, enquanto em outros é marginal. Além disso, osvários obstáculos que se opõem à mesma no cenáriosocial (que surgem em certos momentos como ameaçasde retaliação em outros como comodismo ou seduções)

concorrem intensamente para que a condição de sujeitoseja bastante incomum no cenário social. Logo, para queo cientista possa sonhar com a condição de sujeito,enquanto base do espírito científico, deve buscar umasegunda utopia: uma postura de cidadania com relaçãoao próprio conhecimento, para que o mesmo possatambém se constituir em conhecer.

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Três Obstáculos Epistemológicos Para o Reconhecimento da Subjetividade na Psicologia Clínica

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Sobre o autor:Maurício S. Neubern é Doutorando em Psicologia pela Universidade de Brasília - D.F.

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Recebido em 17/11/2000Revisado em 5/12/2000

Aceito em 5/12/2000

Maurício S. Neubern

Psicologia: Reflexão e Crítica, 2001, 14(1), pp 241-252