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Ficha Técnica TNSJ relações internacionais José Luís Ferreira, Joana Guimarães (assistente) coordenação de produção Maria João Teixeira assistentes de produção Maria do Céu, Mónica Rocha direcção técnica Carlos Miguel Chaves direcção de palco Rui Simão direcção de cena Pedro Guimarães assistência de direcção de cena Pedro Manana luz Filipe Pinheiro (coordenação), José Carlos Cunha maquinaria Filipe Silva (coordenação), Joaquim Marques, Lídio Pontes vídeo Fernando Costa som António Bica, João Oliveira legendagem Sofia Barbosa assistentes de camarins Ana Novais, Carla Martins apoios TNSJ apoios à divulgação agradecimentos Polícia de Segurança Pública Tourtransfer Teatro Nacional São João Praça da Batalha 4000‑102 Porto T 22 340 19 00 | F 22 208 83 03 Teatro Carlos Alberto Rua das Oliveiras, 43 4050‑449 Porto T 22 340 19 00 | F 22 339 50 69 Mosteiro de São Bento da Vitória Rua de São Bento da Vitória 4050‑543 Porto T 22 340 19 00 | F 22 339 30 39 www.tnsj.pt [email protected] Wrocławski Teatr Współczesny Rua Rze´ znicza, 12 50‑132 Wrocław Polónia T (+48) 71 358 89 10 www.wteatrw.pl edição Centro de Edições do TNSJ coordenação João Luís Pereira documentação Paula Braga design gráfico João Faria, João Guedes fotografia Stefan Okołowicz, Anna Ło´ s impressão Aprova, AG Não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante o espectáculo. O uso de telemóveis, pagers ou relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para os actores como para os espectadores. Oczyszczeni Cleansed (1998) de Sarah Kane tradução para polaco Krzysztof Warlikowski, Jacek Poniedziałek encenação Krzysztof Warlikowski cenografia Małgorzata Szcze´ sniak música Paweł Mykietyn voz Renate Jett desenho de luz Felice Ross interpretação Mariusz Bonaszewski Tinker Małgorzata Hajewska‑Krzysztofik Grace Redbad Klijnstra Graham Stanisława Celi´ nska Mulher Jacek Poniedziałek Rod Thomas Schweiberer Carl Tomasz Tyndyk Robin Renate Jett (Monólogos, canções) Fabian Włodarek (Músico) produção Wrocławski Teatr Współczesny (Polónia) co‑produtores TR Warszawa (Polónia), Teatr Polski in Pozna´ n (Polónia) estreia [15Dez01] Wrocławski Teatr Współczesny (Polónia) Espectáculo em língua polaca, legendado em português. Teatro Nacional São João 5+6 Dezembro 2008 Estreia Nacional sex+sáb 21:30 dur. aprox. [2:30] sem intervalo classif. etária M/18 anos

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Ficha Técnica TNSJ relações internacionais José Luís Ferreira, Joana Guimarães (assistente)coordenação de produção Maria João Teixeiraassistentes de produção Maria do Céu, Mónica Rochadirecção técnica Carlos Miguel Chavesdirecção de palco Rui Simãodirecção de cena Pedro Guimarãesassistência de direcção de cena Pedro Mananaluz Filipe Pinheiro (coordenação), José Carlos Cunha maquinaria Filipe Silva (coordenação), Joaquim Marques, Lídio Pontes vídeo Fernando Costasom António Bica, João Oliveiralegendagem Sofia Barbosaassistentes de camarins Ana Novais, Carla Martins

apoios TNSJ

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agradecimentosPolícia de Segurança PúblicaTourtransfer

Teatro Nacional São JoãoPraça da Batalha4000 ‑102 PortoT 22 340 19 00 | F 22 208 83 03

Teatro Carlos AlbertoRua das Oliveiras, 434050 ‑449 PortoT 22 340 19 00 | F 22 339 50 69

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Wrocławski Teatr WspółczesnyRua Rzeznicza, 1250 ‑132 WrocławPolóniaT (+48) 71 358 89 10www.wteatrw.pl

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Não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante o espectáculo. O uso de telemóveis, pagers ou relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para os actores como para os espectadores.

OczyszczeniCleansed (1998)de Sarah Kanetradução para polaco Krzysztof Warlikowski, Jacek Poniedziałek

encenação Krzysztof Warlikowskicenografia Małgorzata Szczesniakmúsica Paweł Mykietynvoz Renate Jettdesenho de luz Felice Ross

interpretação Mariusz Bonaszewski TinkerMałgorzata Hajewska ‑Krzysztofik GraceRedbad Klijnstra GrahamStanisława Celinska MulherJacek Poniedziałek RodThomas Schweiberer CarlTomasz Tyndyk RobinRenate Jett (Monólogos, canções)Fabian Włodarek (Músico)

produção Wrocławski Teatr Współczesny (Polónia) co ‑produtores TR Warszawa (Polónia), Teatr Polski in Poznan (Polónia)

estreia [15Dez01] Wrocławski Teatr Współczesny (Polónia)

Espectáculo em língua polaca, legendado em português.

Teatro Nacional São João5+6 Dezembro 2008Estreia Nacionalsex+sáb 21:30

dur. aprox. [2:30] sem intervalo

classif. etária M/18 anos

A catástrofe de amor está talvez próxima daquilo a que se chamou, no campo psicológico, uma situação extrema, que é “uma situação vivida pelo sujeito como devendo irremediavelmente destruí ‑lo”; a imagem foi retirada do que se passou em Dachau. Não será indecente comparar a situação de um sujeito que sofre de amor com a de um preso no campo de concentração de Dachau? Será possível encontrar ‑se uma das injúrias mais inimagináveis da História num incidente fútil, infantil, sofisticado, obscuro, ocorrido com um sujeito confortável que é apenas vítima do seu Imaginário? Estas duas situações têm, no entanto, isto em comum: são, literalmente, pânicos; são situações sem continuação, sem regresso – projectei ‑me no outro com uma força tal que, com a sua falta, já não posso deter ‑me, recuperar ‑me: estou perdido para sempre. •

Roland Barthes – Excerto de “A catástrofe”. In Fragmentos de um Discurso Amoroso. Lisboa: Edições 70, imp. 2001. p. 65.

Purificados também é uma reflexão sobre a minha própria vida. Sem que seja no entanto autobiográfico. Numa passagem de Fragmentos de um Discurso Amoroso, Roland Barthes diz que a situação de um apaixonado infeliz é comparável à de um prisioneiro de Dachau. Comecei por ficar muito indignada com esta comparação, parecia ‑me impossível que os sofrimentos de amor pudessem ser tão terríveis quanto os de um campo de concentração. Mas depois de muito reflectir, compreendi melhor o que Roland Barthes quer dizer. Ele fala da perda de si. Quando alguém se perde de si próprio, o que é que ainda lhe resta? Desembocamos numa ausência total de saída, numa espécie de loucura. •

Sarah Kane – Excerto de “Une conversation avec Nils Tabert”. OutreScène: la revue du Théâtre National de Strasbourg. N.º 1 (Fév. 2003). p. 71.

Sarah Kane despe ‑se em público. Como eu próprio pude fazê ‑lo com Hamlet ou com As Bacantes. Nós oferecemo ‑nos ao olhar. Sarah Kane, talvez por ser mulher, ou porque era homossexual, tem a coragem de ser verdadeira com ela própria. De uma certa maneira, ela restitui ao amor uma expressão de candura. Ao escrever este texto, Purificados, ela confia ‑nos um pensamento terno. Como se desenhasse uma flor, para dar luz e alegria ao seu universo interior. Ela diz, aliás, que quando escrevia Purificados estava apaixonada, o que não era o caso quando escrevia Falta. E, como diz Roland Barthes, estar apaixonado é ser prisioneiro de Dachau. Há uma fatalidade do enclausuramento. •

Krzysztof Warlikowski – Excerto de “Il y a peu de beauté, nous parlons avec des ordures”. OutreScène: la revue du Théâtre National de Strasbourg. N.º 1 (Fév. 2003). p. 49.

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Joëlle Gayot Purificados é um texto de uma violência extrema. Em que estado de espírito abordou esta encenação?Krzysztof Warlikowski O primeiro imperativo era rodear ‑me de actores que conheço muito bem, que me conhecem e que têm confiança em mim. Trabalhar com desconhecidos estava fora de questão. Durante mais de dois meses, eu e os actores avançámos neste texto que exige um investimento fora do comum. Quando Sarah Kane escreve Purificados, temos a impressão de estar diante de uma pura ficção. Contrariamente a Falta ou a 4.48 Psicose, os seus últimos escritos em que a ficção só se sustenta na palavra, Purificados conserva ainda uma estrutura teatral. Todavia, apesar das aparências, acabamos por perceber que a ficção é, no fundo, pouco precisamente desenhada, e qualquer pessoa pode ser Graham ou Grace. Sarah Kane deixa espaço aos actores. Ao investirem as suas personagens, eles podem e devem preenchê ‑las com a sua própria vida. Devem transferir ‑se a si próprios, os seus problemas, as suas angústias para os papéis a interpretar. Isso não é possível sem uma ligação profunda com a vida íntima. Foi isso que assustou alguns actores: a actriz que interpreta a personagem da mulher do peep ‑show quase desistiu, aquela que interpreta a personagem de Grace vai muito longe na relação de inquietude, dominada pelo medo, que a liga ao seu próprio corpo. Há um eco entre elas e as palavras de Sarah Kane.

Sarah Kane expõe problemas que tocam a identidade de muito perto. Fala de homossexualidade, de incesto, de sexualidade mal definida. Não se sai intacto das palavras dela. Têm um efeito contagioso e arrastam para longe aqueles que as manipulam. Interpretar as peças da sua autoria contentando ‑se com um jogo de marionetas é aberrante. É preciso entregar ‑se com toda a sinceridade e honestidade que ela demonstrou ao escrevê ‑las, de outro modo não vale a pena representá ‑las. Sarah Kane não é convencional. O saber fazer ou a técnica não bastam. É preciso ser verdadeiro e ser capaz do mesmo abandono de si que ela manifesta ao contar directamente coisas muito pessoais. Estou a falar dos actores, mas também de mim, encenador. Damos a ver de nós uma parte muito íntima.

Estava apreensivo com a ideia de representar este texto de Sarah Kane, aqui, na Polónia?Várias vezes adiei este projecto em torno do qual trabalho, no entanto, há já três anos. Preferi fazer Hamlet antes. Quando escolhi montar a peça Purificados, lutei e até quase me revoltei contra ela. Não a compreendi, embora ela criasse imagens em mim. Esta encenação suscitou uma grande polémica na Polónia, dentro dos círculos intelectuais. Dizia ‑se que Sarah Kane é uma autora que “vem da overdose”, cuja escrita decorre do excesso, do excesso de álcool, do excesso de droga, etc. Alguns críticos pensavam que os textos dela eram próprios de uma inglesa “intoxicada”, que captava imagens em estado de ingénuo e incompreensível delírio. As pessoas sentiam ‑se agredidas por ela e eu quis perceber porquê, onde residia ao certo a agressão. Se tivesse ficado ao nível das imagens que há três anos

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Redenção, castigo,ressurreição

Entrevista com Krzysztof Warlikowski*

percepcionava, não teria sido suficiente, muito embora seja exequível dado que a escrita de Kane abre possibilidades de encenação. Para um encenador, é uma grande tentação entrar por essas aberturas. Mas, em cena, lidamos com o que é vivo. Os actores exprimem algo que vem forçosamente de algures. Purificados instaura um universo que reúne várias pessoas, esse universo é metafórico e é preciso encontrar um sentido para o teatro, senão os actores não conseguem representá ‑lo.

Na sua encenação, a ideia de castigo, de redenção e de purificação é muito nítida. Foi um parti ‑pris seu? A noção do mal está fortemente presente em Purificados. Acho que se pode encontrar uma explicação para esta presença no quadro de uma reflexão moral. Na peça, a língua, as mãos, e depois os pés de Carl são cortados por Tinker. Ora, cortam ‑se as mãos a quem rouba, corta ‑se a língua a quem mente; e é o mesmo homem, Tinker, que dá a vida (permite a Grace mudar de sexo e tornar ‑se Graham) ou inflige a punição. Há pois, efectivamente, uma dimensão de redenção, de castigo, de ressurreição. Coisa que é muito religiosa e também muito polaca. E é preciso não esquecer que Sarah Kane era fervorosamente cristã até aos dezoito anos.

Isso explica a sua opção por essa perspectiva?Aqui na Polónia, não se pode fazer Sarah Kane à maneira dos alemães, que a encenam com brutalidade, para fazer tremer a sociedade alemã. A meu ver, o objectivo desta autora não é mostrar a brutalidade de um universo, como as encenações alemãs podem dar a entender. Não se trata de um filme de terror, do género O Silêncio dos Inocentes, o Tinker não é um serial killer. Por toda a parte na Polónia se fala de Sarah Kane desde esta encenação. O espectáculo foi um choque para toda a gente, contrariamente, aliás, ao que eu pensava. De repente, tornou ‑se o tema teatral mais discutido neste país, desde há anos e anos a esta parte. Porque ecoa algo que está no ar do tempo. Desde as mudanças políticas ocorridas no país, as pessoas debatem ‑se num contexto moral, cada vez que, por exemplo, reflectem acerca do passado sem mentirem a si mesmas, sobre o papel da Polónia durante a Segunda Guerra Mundial. A nossa liberdade condena ‑nos a essas questões de responsabilidade. Somos vítimas ou carrascos na Europa? Ora, na peça, a ideia moral é muito forte e é a esse nível que o choque entre o espectáculo e o seu público acontece. De um modo mais geral, creio que a peça de Sarah Kane pertence ao lugar onde é levada à cena. A estrutura que nos oferece é tão aberta que é preciso preenchê ‑la com a matéria francesa, alemã ou polaca, consoante o local onde for encenada. Encerra um imaginário universal, como aconteceu com os imaginários de Koltès, de Shakespeare ou dos antigos Gregos. Há mil maneiras de a abordar. Nisso é muito moderna porque não limita, abre. É preciso, depois, encontrar a porta.

Sabia, antes de montar a peça, que o espectáculo ia enveredar por esta orientação “moral”?Tive esse pressentimento, essa intuição. O espectáculo fala a toda a gente porque toda a gente se sabe condenada e Sarah Kane mostra a todos que há pior. O tratamento das cenas violentas (nomeadamente as amputações) nasceu no palco. Claro que era preciso encontrar a solução e escavar o sentido dessa violência, para que a representação não se reduzisse ao choque infligido ao espectador. Mas Purificados não é um texto em que uma pessoa se possa preparar de antemão para tudo quanto ele a vai fazer viver. Pessoalmente, perturba ‑me muito.

No fim, tornou ‑se uma questão pessoal. Tinha de me identificar com Sarah Kane, de saber o que ela dizia, porquê. De algum modo, interiorizei Sarah Kane. A violência dela tornou ‑se a minha violência. Uma violência interior que não nasce na rua, uma violência que vem do medo da vida.

Quando fala de Tinker, fica ‑se com a impressão de que essa personagem é o equivalente de Deus…O medo de Tinker leva ‑o a fazer o que faz. Mas não deixa de ser humano, é um de nós. É uma vítima, está perdido. Pode ser Deus, cada um vê nele o que quiser. Tinker busca histericamente o sentido da vida. É como uma criança que deseja que o seu branco seja branco e o seu negro seja negro.

Não faz juízos morais sobre as acções das personagens?Não há bonzinho nem vilão, nem nenhum juízo a fazer. Gostava de abrir um caminho interior em cada um de nós e que só a nós próprios conduzisse, à nossa sexualidade, ao nosso medo da vida e ao desejo de nos encontrarmos com a nossa segunda metade, conforme a ideia platónica de que cada um tem uma criatura que lhe é semelhante. Trata ‑se de uma problemática muito homossexual. A dimensão homossexual é um acrescento meu, vem do meu imaginário. Mas não é redutor, é uma ideia por acréscimo. Aliás, a experiência homossexual é vivida mais livremente hoje em dia, e enriquece o homem. •

* Excerto de “Il y a peu de beauté, nous parlons avec des ordures”. OutreScène: la revue du Théâtre National de Strasbourg. N.º 1 (Fév. 2003). p. 45 ‑49.

Trad. Regina Guimarães.

Warlikowski situa ‑se no exacto coração da erosão das diferenças sexuais, que desorienta e delicia. Porque as fronteiras – outrora estanques, agora perturbadas – parecem porosas, ele avança para uma espécie de no man’s land sexual onde hetero e homossexualidades coabitam, onde a aproximação dos corpos joga sob o signo do amor indiferenciado. Pode ser puro e angélico ou dilacerante, caricatural, grotesco. Mas será sempre intenso. Sem exclusão partidária, nem sanção moral, Warlikowski reivindica essa ambivalência moderna. Ela não atenua as paixões, liberta ‑as e garante‑lhes um direito de cidadania sem fixação de sexo.

Em Purificados de Sarah Kane, como em Madame de Sade de Mishima ou em Anjos na América de Tony Kushner, Warlikowski trabalha sobre o corpo travestido. Romântico inveterado, desloca e assume o registo da paixão amorosa entre dois homens: o corpo travestido traduz a dilaceração de um eros insatisfeito e magoado. Este gesto nada tem de teatral

ou dissimulado, é grito… E, na sala, ouvimos o seu desamparo. Aqui, a desordem afectiva é acompanhada de desgaste corporal e a reunião de ambas as coisas confirma a imensidão da carência. Há em Warlikowski uma incandescência trágica da qual o desconforto do corpo travestido atesta a deflagração. Para além das diferenças e das identidades, procurar o amor e não conseguir alcançá ‑lo, eis a confissão de uma cena que nenhum interdito vem obstruir e que, ao mesmo tempo, se mostra sedenta desses sentimentos capazes de dilatar o ser e o levam a ultrapassar os seus limites. “Alegria espaçosa”… alegria dolorosa. É de uma paixão que se assume e de uma ferida que sangra, de uma paixão para além dos sexos, que o corpo travestido aqui é testemunho. Como nos poemas de Miguel Ângelo ou nos sonetos de Shakespeare!

[…] No contexto de um desconforto do ser a todos os níveis, o encenador está literalmente “esquartejado”. Condição de um “esfolado vivo” da qual a cena regista e revela o insuportável regime de existência. Estamos perante um teatro que se alimenta não da experiência do mal, mas da experiência da dor, e de uma cena em que o sofrimento se afirma na sua versão nobre. E, nesse sentido, ela salvaguarda uma confiança no ser, enquanto a cena alemã, conforme já afirmei, está apostada em dizer a sua miséria extrema. As

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“Lágrimas geladas”

Georges Banu*

lágrimas, a redenção do ser que sofre. Rastos de Cristo feito homem. Não há nada de místico nessa atitude, apenas uma intensidade que convoca a experiência crística como modelo do homem sublimado pela dor.

Warlikowski não se demarca do amor. O amor transgressivo dos homens que ousam afirmar as suas paixões, assumir as suas perdições, homens entre homens, para quem as lágrimas não são proibidas. Há neste teatro poético um canto de amor que o atravessa sobre um fundo de eterna insaciedade. Mas Warlikowski não é Fassbinder… Não procura a provocação. O amor homossexual é uma expressão da sensibilidade dos seres para quem a única condição de sobrevivência são, justamente, os afectos. Warlikowski situa ‑se mais do lado de Oscar Wilde e de Mishima, cuja ambígua Madame de Sade levou brilhantemente à cena. Aqui, o amor vem sempre escoltado por uma incansável melancolia porque é vivido como procura do seu duplo perfeito. Há nele um narcisismo próprio de cada eu que julga salvar ‑se graças ao encontro embriagante consigo próprio. O que explica porventura a frequência dos espelhos neste teatro em que o sujeito se lança na busca da sua própria imagem reflectida. E isso leva a um enclausuramento, protector mas também destruidor. O amor, em Warlikowski, é uma experiência do sofrimento amoroso vivido como sofrimento devorador.

Nada lhe é mais estranho do que o sentimentalismo. Nunca encalha numa postura desse género. Os seus espaços são vastos, os seus ladrilhos frios, os seus espelhos indiferentes… Ele constrói laboratórios para uma anatomia do ser. A postura é cirúrgica: a cena não se furta às lágrimas e ao sangue, mas não alimenta nenhuma relação de complacência, de misericórdia para com estas personagens à deriva. Não é de indiferença que se trata, mas da apresentação clínica do mal d’être. Os lugares não surgem para apaziguar ou entrar em diálogo com esse mal que é forçoso fardo da solidão mas, ainda assim, ininterruptamente deseja transcender ‑se, comunicar, chamar por socorro. É próprio dos esfolados vivos não temerem a expressão da dor mais extrema. E é por isso que Warlikowski será o melhor encenador dessa outra romântica que foi Sarah Kane. Porque restitui o sofrimento da dramaturga mantendo ‑se glacial. Lágrimas geladas… Eis o oximoro que sustenta o teatro de Warlikowski. •

* Excerto de “Postface: Le théâtre écorché de Warlikowski”. In Théâtre écorché. Ouvrage conçu et réalisé par Piotr Gruszczynski. Arles: Actes Sud; [Bruxelles]: La Monnaie, impr. 2007. p. 188 ‑190.

Trad. Regina Guimarães.

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Krzysztof WarlikowskiNasce em 1962, em Szczecin (Polónia). Depois de estudar História e Filosofia na Universidade de Jagiellonia, em Cracóvia, muda ‑se para Paris, onde estuda durante um ano História do Teatro, na École Pratique des Hautes Études da Sorbonne. Regressa à Polónia em 1989, para estudar Encenação na Academia de Teatro de Cracóvia, encenando aí, em 1992, os seus primeiros espectáculos: Noites Brancas, de Dostoievski, e Auto ‑de ‑fé, de Elias Canetti. Trabalha depois com grandes nomes da cena europeia: em 1992 ‑93, foi assistente de encenação de Peter Brook em Impressions de Pelléas, espectáculo apresentado no Théâtre des Bouffes du Nord (Paris) e no contexto de um workshop organizado pelo Wiener Festwochen (Viena); ainda em 1992, assistiu Krystian Lupa na sua encenação de As Anotações de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke, no Stary Teatr de Cracóvia; em 1994, Giorgio Strehler supervisionou o seu trabalho de adaptação e encenação de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, no Piccolo Teatro de Milão. Encenou várias obras de William Shakespeare, como O Mercador de Veneza (1994), O Conto de Inverno (1997), Hamlet (1997 e 1999), O Amansar da Fera (1998), Noite de Reis (1999), A Tempestade (2003) e Macbeth (2004). Trabalhou ainda textos de outros dramaturgos clássicos como Sófocles (Electra, 1996) e Eurípedes (As Fenícias, 1998; As Bacantes, 2001), bem como de autores contemporâneos: Franz Kafka (O Processo, 1995), Bernard ‑Marie Koltès (Roberto Zucco, 1995; Cais Oeste, 1998), Matéi

Visniec (Zatrudnimy starego clowna, 1996), Witold Gombrowicz (Tancerz mecenasa Kraykowskiego, 1997), Sarah Kane (Purificados, 2001) ou Andrew Bovell (Droomsporen, 2003). Estreia ‑se na encenação de óperas no ano de 2000, com The Music Programme, de Roxanna Panufnik, a que se seguiram Don Carlo, de Verdi (2000), Tattooed Tongues, de Martjin Padding (2001), Ubu Rex, de Krzysztof Penderecki (2003), Wozzeck, de Alban Berg (2006), Ifigénia em Táurida, de Gluck (2006), O Caso Makropulos, de Leoš Janácek (2007), Eugene Onegin, de Tchaikovski (2007), Parsifal, de Wagner (2008), e Medeia, de Cherubini (2008). Dos seus trabalhos teatrais mais recentes, destaque para Dybuk, a partir de textos de Sholem An ‑Ski e Hanna Krall (2003), Madame de Sade, de Yukio Mishima (2006), e Anjos na América, de Tony Kushner (2007). O Sindicato Francês da Crítica Teatral distinguiu Purificados, em 2002, como Melhor Peça Estrangeira. Recebeu recentemente, na cidade grega de Salónica, o prestigiado Prémio Europa, na categoria Novas Realidades Teatrais 2008. •

Wrocławski Teatr Współczesny (Wrocław, Polónia)A actividade artística do Wrocławski Teatr Współczesny (WTW) [Teatro Contemporâneo de Wrocław] desenvolve ‑se – desde Janeiro de 1999, altura em que Krystyna Meissner assumiu a Direcção Geral e Artística – em torno de dois eixos programáticos: a produção e acolhimento, nas suas duas salas, de obras do repertório clássico

e contemporâneo, e a organização do festival internacional de teatro DIALOG ‑WROCŁAW, de periodicidade bienal. A “contemporaneidade” inscrita no seu nome significa, antes de mais, uma vontade de pensar a arte como um meio de estimular a formação de um juízo crítico sobre a realidade circundante. É com esta postura que o WTW tem vindo a marcar uma presença, forte e distinta, na vida cultural da Baixa Silésia, bem como na cena polaca e europeia. A criação de espectáculos que combinam teatro e música, a montagem de peças especialmente pensadas para um público jovem, as releituras contemporâneas de clássicos e as corajosas apresentações de estreias polacas e mundiais são alguns dos traços que definem a sua “especificidade teatral”. O WTW trabalha com encenadores de diferentes gerações e nacionalidades, e estimula muitas co ‑produções com instituições nacionais e internacionais. Foi no WTW que Krzysztof Warlikowski dirigiu dois dos seus mais emblemáticos espectáculos (Purificados, 2001; Dybuk, 2003). Foi também aqui que Paweł Szkotak fez a sua estreia no teatro institucional, com Pod drzwiami, de Wolfgang Borchert (2000), e que Piotr Cieplak prosseguiu o seu diálogo com a herança bíblica (Historia Jakuba/A História de Jacob, 2001; Ksiega Hioba/ O Livro de Job, 2004), dando assim continuidade à grande tradição do WTW, herdeira do trabalho desenvolvido por nomes como Jerzy Jarocki, Helmut Kajzar e Tadeusz Rózewicz. •