Quadrinho Terror Brasileiro

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  • O quadrinho de terror brasileiro

    Roberto Elsio dos Santos

    Resumo: As Histrias em Quadrinhos de terror congregam caractersticas perceptveis pelo leitor, seja por sua iconografia ou por sua temtica. Mas, no caso das narrativas seqenciais realizadas no Brasil, os enredos vinculam-se ao imaginrio popular e cultura nacional.

    Palavras-chave: Histrias em quadrinhos. Terror. Cultura brasileira.

    Horror Comics produced in Brazil Falta ttulo em Ingls

    Abstract: Horror comics gather characteristics the public can perceive, in the iconography or in the thematic used. But in sequential narratives produced in Brazil the plots add to the popular imaginary and to the national culture.

    Key words: Comics. Horror. Brazilian culture.

    La historieta de Horror en Brasil Resumen: Las historietas de horror incorporan las caractersticas que el lector puede percibir, sea en los dibujos sea en los temas tratados. Pero, las narrativas secuenciales hechas en Brasil presentan guiones que

    remiten al imaginario popular y a la cultura nacional. Palabras-llave: Historietas. Horror. Cultura brasilea.Faltam resumo e palavras-chave em espanhol

    Introduo

    Entre os principais gneros das Histrias em Quadrinhos podem ser includas as narrativas de terror, que, mesclando suspense, assassinos sanguinrios, criaturas deformadas e desfechos inesperados, vm prendendo a ateno e flego do leitor desde a dcada de 1930. Oriundo da literatura e utilizado pelo cinema desde seus primrdios (presena marcante no expressionismo Alemo, na dcada de 1920, nos filmes do estdio hollywoodiano Universal Pictures, ao longo dos anos 1930 e nas produes da Hammer, na dcada de 1960), este tipo de enredo possui elementos caractersticos que so reconhecidos e a ele associados pelo pblico.

    H signos recorrentes nessas narrativas, estejam eles presentes na ambientao (lugares ermos, escuros, com manses em estilo gtico, penhascos, florestas etc.) ou na composio dos personagens (portadores de corcundas, cicatrizes, deformaes da face ou do corpo, de olhos saltados para fora da rbita etc.). A presena do sobrenatural (demnios, magos e bruxas, mortos-vivos, fantasmas etc.) responsvel pelos conflitos de muitos enredos. Tambm a violncia, explcita (cabeas cortadas, vsceras, sangue, tortura, mutilaes etc.) ou implcita (medo, ansiedade, parania, estranhamento diante das situaes, pesadelos etc.), uma constante nessas narrativas. Esses elementos, contudo, podem ser modificados e as convenes desobedecidas por autores mais criativos, renovadores do gnero, ou, ainda, por questes histricas e culturais. Mesmo assim, o pblico reconhece o teor aflitivo dessas histrias.

    Jornalista, doutor em Cincias da Comunicao pela Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo

    (ECA/USP), professor do Centro Universitrio Municipal de So Caetano do Sul (IMES) e membro do Ncleo de Pesquisas de Histrias em Quadrinhos da ECA/USP. E-mail: qual [email protected]

  • Alguns autores fazem distino entre as categorias narrativas de terror e horror. De acordo com Nel Carroll, nas histrias de horror existe o tema da repugnncia visceral mais do que o suspense gerado pela narrativa. Para ele,

    no simplesmente uma questo de medo, ou seja, de ficar aterrorizado por algo que ameaa ser perigoso. Ao contrrio, a ameaa mistura-se repugnncia, nusea e repulsa. E isso corresponde tambm tendncia que os romances e as histrias de horror tm de descrever os monstros com termos relativos a imundcie, degenerao, deteriorao, lodo etc., associando-os a essas caractersticas. Ou seja, o monstro na fico de horror no s letal como tambm e isso da maior importncia repugnante. (1999, p. 39)

    Nesse sentido, o escritor norte-americano Stephen King descreve seu trabalho literrio, apontando trs nveis emocionais diferentes sentidos pelo pblico em sua obra: o terror, o horror e a repulsa. Reconheo o terror como a emoo mais fina e, assim, tentarei aterrorizar o leitor. Mas, se achar que no posso aterrorizar, tentarei horrorizar, e, se achar que no posso horrorizar, partirei para a grosseria, admite o autor de best-sellers de terror (apud Carroll, 1999, p. 84). Por esta linha de raciocnio, o terror estaria mais prximo do suspense, fazendo com que o pblico, ao se identificar com os heris da histria, assustem-se com as situaes (como a ao de um manaco homicida). J o horror conteria elementos escatolgicos e deformidades que podem se tornar grosseiros a ponto de causar asco e repulsa ao pblico (leitor ou espectador). Para efeito deste texto, entretanto, todas as narrativas, tendo ou no monstros e elementos que causem averso, sero consideradas histrias de terror.

    Quadrinhos de terror

    Com o sucesso de bilheteria dos filmes realizados pelo estdio de cinema Universal, na dcada de 1930, logo surgiram verses quadrinizadas dos chamados monstros clssicos. Assim, os comic-books norte-americanos (que se popularizaram na mesma poca) comearam a estampar narrativas seqenciais protagonizadas por Drcula, Mmia, Lobisomem, Frankenstein etc. Este ltimo debutou em 1939 nas pginas da revista Movie Comics, com a quadrinizao do filme Son of Frankenstein. O monstro foi utilizado pelo artista Richard Briefer (que chegou a usar, em algumas histrias, o pseudnimo Frank N. Stein) em diferentes histrias em quadrinhos na dcada de 1940: de vilo ameaador a cidado comum, a criatura chegou a combater os nazistas, que a capturaram e transformaram em oficial da Gestapo (em 1944, Capito Amrica a enfrentou na histria Curse of Frankenstein), mas ela conseguiu escapar dos alemes e voltou a ser patriota. Com o fim da guerra, contudo, os quadrinhos com o personagem variaram do humor ao terror durante os anos 1950.

    A grande inovao nos quadrinhos de terror norte-americanos ocorreu no incio da dcada de 1950, quando Max Gaines (o pioneiro dos comic-books nos Estados Unidos) faleceu vtima de um acidente. Seu filho, William Gaines, herdou a editora do pai, a Educational Comics, que editava revistas educativas e quadrinizaes de textos bblicos e estava beira da falncia. Com o nome mudado para Entertaining Comics, passou a publicar ttulos de quadrinhos de terror, como Tales from the crypt, The vault of horror, The haunt of fear, Weird fantasy, Crime suspenstories, entre outros. Contando com exmios artistas (a exemplo de Harvey Kurtzman, Wallace Wood, Graham Ingels, Jack Daves, Frank Frazetta etc.), as publicaes traziam histrias curtas de terror apresentadas pelos horripilantes Guardio da Cmara e Zelador da Cripta e pela Bruxa Velha, que tambm respondiam as cartas enviadas pelos leitores (jovens, em sua maioria), que podiam se tornar scios do f-clube da editora. Os enredos (alguns adaptados de contos escritos por Ray Bradbury, que chegou a elaborar roteiros para estas revistas) fugiam do convencional (o horror pode acontecer em uma praia ensolarada; o assassino estaria na pele de um homem simptico), mostrando situaes inslitas, violncia explcita, sensualidade, escatologia, elementos grotescos, ambio, vingana e finais inesperados e surpreendentes.

  • O sucesso das publicaes de quadrinhos de terror da EC, entretanto, no resistiu onda de moralismo e de desconfiana da poca. Quando o livro do psicanalista Fredric Wertham, Seduction of the innocent, foi editado e se tornou best-seller, em 1954, pais e educadores entraram em pnico com as possveis conseqncias da leitura de quadrinhos por parte de seus filhos. Em sua pesquisa com jovens delinqentes, o autor procurou demonstrar a influncia dos quadrinhos, especialmente os de terror, sobre os leitores imaturos. Como Wertham fez palestras em escolas e concedeu entrevistas para programas de rdio e TV, as autoridades passaram a se ocupar do assunto. Um comit do Senado americano convocou os editores de quadrinhos para investigao. Assustados, os responsveis pelas editoras criaram o Cdigo de tica (determinando que as revistas de quadrinhos no poderiam conter cenas de sexo e violncia), cujo selo de aprovao seria impresso na capa, informando aos pais tratar-se de um produto inofensivo a seus filhos. As revistas de terror publicadas pela EC no atendiam s determinaes do cdigo e, portanto, no seriam distribudas aos pontos de venda, o que levou ao cancelamento dos ttulos, exceo da revista humorstica Mad.

    Com a adoo do Cdigo de tica, o quadrinho de terror norte-americano desapareceu por uma dcada, retornando com a revista Creepy, lanada em 1964 pelo editor James Warren, que contratou diversos artistas que j tinham elaborado quadrinhos de terror para a EC. Um ano depois, surgiu outro ttulo, Eerie, e, em 1969, o editor Forrest Ackerman criou para a editora Warren a vampira sensual Vampirella, inicialmente uma aliengena proveniente de um planeta moribundo onde corriam rios de sangue, que na Terra se torna herona, combatendo bandidos e outros vampiros. Na dcada de 1970, tanto a Marvel como a DC Comics, editoras tradicionais de quadrinhos de heri, lanaram, respectivamente, os ttulos The tomb of Dracula (onde surgiu Blade, o caador de vampiros) e House of mystery. Nas pginas desta revista apareceu o Monstro do Pntano (que logo ganhou um ttulo prprio), personagem criado pelo roteirista Len Wein e pelo desenhista Berni Wrightson e reformulado pelo escritor ingls Alan Moore no incio da dcada de 1980. Atualmente, o selo Vertigo, da DC Comics, apresenta quadrinhos de terror voltados para o leitor adulto (em sua maioria, escritos por roteiristas britnicos), como Hellblazer, Preacher, Sandman, Lucifer etc. Na Europa, o destaque para o fumetti Dylan Dog (o protagonista um detetive ingls que investiga casos sobrenaturais, ao lado de seu estranho parceiro Groucho), surgido na Itlia em 1986, concebido pelo roteirista Tiziano Sclavi para o editor Sergio Bonelli (que edita as aventuras do caubi Tex). Normalmente tendo belas mulheres como clientes, o ex-agente da Scotland Yard enfrenta monstros e precisa solucionar crimes acontecidos em situaes bizarras.

    O quadrinho de terror criado no Brasil

    Os primrdios do quadrinho de terror brasileiro se encontram no suplemento A Gazetinha, encarte do jornal paulista A Gazeta. Em 1937, suas pginas estamparam A Garra Cinzenta, a histria de um vilo com feies de caveira vestido com chapu e capa escuros, que perpetra crimes e deixa a polcia desnorteada. Escondido em lugares tenebrosos, o bandido possui um rob no formato de armadura medieval, que o auxilia em seus planos. Esta narrativa repleta de mistrios foi realizada pelo roteirista Francisco Armond e por Renato de Azevedo Silva (responsvel pela arte) e chegou a ser publicada no Mxico e na Frana (nas pginas de Journal Spirou).

    Mas o auge do quadrinho de terror no Brasil teve incio com a publicao da revista Terror Negro, em 1950, feita pela editora paulista La Selva. Inicialmente utilizando material norte-americano (como as histrias protagonizadas pelo heri que deu o ttulo da revista, Black Terror, criado por Jerry Robinson), logo passou a dar espao para a produo de artistas brasileiros. Com o trmino da produo de histrias americanas no gnero, as revistas apelaram para desenhistas nacionais a fim de continuar a responder ao interesse do grande pblico pelas revistas de Terror, afirmam lvaro de Moya e Reinaldo de Oliveira (Moya, 1977, p. 231).

  • Ao longo das dcadas de 1950 e 1960, outras editoras (a exemplo da Outubro, Edrel, Taika, GEP, Grafipar, D-Arte etc.) lanaram revistas de terror que continham material produzido (roteiro e arte) pelos artistas brasileiros Gedeone Malagola, Julio Shimamoto, Flavio Colin, Edmundo Rodrigues, Rubens Cordeiro, Mozart Couto, Rubens Francisco Luccheti, entre outros, e por quadrinhistas estrangeiros que passaram a residir no Brasil e comearam a criar e publicar suas histrias em revistas nacionais, como o caso do portugus Jayme Cortez (autor da premiada Saga de terror) e dos italianos Eugnio Colonnese e Nico Rosso e do argentino Rodolfo Zalla.

    Diversas publicaes surgidas a partir da dcada de 1950 at o incio do sculo XXI ganharam destaque por acolher em suas pginas a produo dos quadrinhistas citados e tambm pela receptividade junto ao pblico-leitor. Os ttulos Contos de Terror e Sobrenatural, colocados no mercado pela editora La Selva em 1954, duraram 14 anos. A editora Outubro fez chegar s bancas, no final da dcada de 1950 e incio dos anos 1960 as revistas Contos Macabros, Histrias do Alm, Selees de Terror, Histrias Macabras, Clssicos do Terror, Histrias Sinistras, entre outras. As casas publicadoras Taika, Edrel e GEP produziram mais de 80 ttulos ao longo da dcada de 1960.

    Nos anos 1970, apesar da censura do governo militar, o leitor continuou encontrando nas bancas revistas de terror editadas no Brasil (que continham material norte-americano e tambm histrias feitas por artistas brasileiros). A Rio Grfica Editora, por exemplo, lanou em 1976 a revista Kripta, enquanto a editora Bloch publicou os ttulos Aventuras Macabras, Clssicos de Pavor, Histrias Fantsticas, Cine Mistrio, A Mmia etc. Mas um dos marcos editoriais da poca foi Spektro, que a editora Vecchi editou de 1977 a 1982, totalizando 27 nmeros. Inicialmente, o contedo era baseado na revista norte-americana Dr. Spektro, da editora Gold Key (alm de material oriundo de publicaes da Charlton Publications e da editora Fawcett), mas o editor do ttulo nacional, Otaclio dAssuno Barros (quadrinhista conhecido como Ota), abriu espao para artistas brasileiros ou em atividade no pas (Colin, Shimamoto, Colonnese etc.), que passaram a preencher a maioria das pginas. Ota relanou Spektro em 1994, mas a revista no obteve sucesso.

    No final da dcada de 1970, a editora Grafipar, do Paran, investiu em ttulos de histrias de terror, mesclando-as ao erotismo (uma das marcas registradas do quadrinho brasileiro, como ser abordado adiante). As histrias de terror se mantiveram nos quadrinhos brasileiros com dificuldade na dcada de 1980, devido instabilidade econmica. Contudo, iniciativas como as revistas Mestres do Terror (lanada em 1981) e Calafrio (criada em 1982), ambas da editora D-Arte (liderada por Rodolfo Zalla, que j produzira muitas narrativas seqenciais de terror na dcada de 1960 pelo Estdio D-Arte, que contava tambm com outros artistas, como Colonnese), impediram que o gnero desaparecesse das bancas. Por 10 anos, estes ttulos abrigaram roteiros e artes de renomados quadrinhistas do pas, como o prprio Zalla, alm de Colonnese e Colin, entre outros.

    Em meio s crises econmicas que se verificaram ao longo dos anos 1980 e 1990, o mercado editorial brasileiro viu surgir e desaparecer ttulos de quadrinhos de terror, com destaque para a produo das editoras Sampa e Ediouro. A primeira foi responsvel pelas edies Mulher-Diaba no rastro de Lampio (com roteiro de Atade Braz e arte de Flavio Colin), Crepsculo (de Gian Danton e Ben Nascimento) e O olho do diabo (realizada por Mozart Couto). J a segunda publicou em 1995 a Coleo Assombrao (editada por Ota), que, alm de histrias feitas por artistas novos e veteranos, publicava a quadrinizao de causos enviados por meio de carta pelos leitores.

    No final dos anos 1990 e durante a primeira dcada do sculo XXI, a Editora Opera Graphica lanou lbuns com histrias inditas e compilaes de narrativas j publicadas de artistas como Shimamoto (Sombras), Gedeone e Nico Rosso (Lobisomem), Colonnese (Mirza, a vampira) e Colin (os pstumos Filho do urso e outras histrias e Mapinguari e outras histrias), alm da edio comemorativa dos 20 anos da revista Calafrio. Em Minas Gerais, a Prefeitura de Belo Horizonte investiu, a partir de 2001, em vrias publicaes

  • com roteiro e edio de Wellington Srbek, como Fantasmagoriana (desenhada por Flavio Colin) e Mystrion (que contou com a participao, entre outros, de Colin e Shimamoto). Em 2003, a editora Abril fez chegar s bancas a revista Contos bizarros, que rene nove histrias sobre serial-killers realizadas por artistas como Renato Guedes, Kipper, Octavio Cariello, Fbio Moon e Gabriel Ba, entre outros. No mesmo ano, foi lanada mais uma publicao de quadrinhos de terror nacional, intitulada Arrepio e editada pela Noblet, com narrativas seqenciais realizadas por Paulo Hamasaki, outro artista brasileiro veterano.

    Alguns personagens tornaram-se clssicos nas histrias de terror produzidas no Brasil. o caso das vampiras sensuais Mirza, Naiara e Ndia. Criada por Colonnese e pelo roteirista Luis Meri Quevedo em 1967, Mirza, a mulher vampiro, cujas histrias foram publicadas pela Jotaesse, tendo como editor Jos Sidekerskis, passou, depois, para outras editoras (Regiart, Vecchi, D-Arte, Press Editorial etc.) e tendo suas narrativas reunidas em coletneas, alm de participar da edio especial Brasilian Heavy Metal, com uma histria futurista (a partir de argumento de lvaro de Moya). Morena sensual, com longos cabelos negros e corpo curvilneo, Mirza seduz suas vtimas, sejam homens ou mulheres (normalmente, malfeitores), para saborear seu sangue, sempre auxiliada pelo criado Brooks. J Naiara uma jovem loura criada em 1968 pela roteirista Helena Fonseca (a arte, geralmente, ficava a cargo de Nico Rosso). Filha do Conde Drcula, Naiara surgiu nas pginas da revista Drcula, publicada pela Taika, antes de ganhar seu prprio ttulo. Ndia, assim como Naiara, era loura e filha do principal vampiro das histrias de terror. Suas histrias foram editadas nas pginas de Mestres do terror, com desenhos de Rubens Cordeiro. Outra personagem que alia terror e sensualidade Irina, a bruxa, idealizada por Edmundo Rodrigues em 1966 para a revista Selees de terror da editora Taika. A feiticeira Irina foi queimada na fogueira, mas seu esprito reencarna em jovens mulheres para realizar sua vingana.

    Alm de personagens femininas, o quadrinho de terror brasileiro forjou outras criaturas horripilantes. Eugnio Colonnese criou, por exemplo, o Morto do pntano, figura sepulcral que habita uma regio pantanosa e persegue com um enorme machado os bandidos que se arriscam a passar pelo local. O roteirista Rubens Luccheti e o desenhista Nico Rosso foram os responsveis, em 1968, pela quadrinizao das histrias horripilantes narradas por Z do Caixo (personagem elaborado pelo ator e diretor Jos Mojica Marins para o cinema) na revista O estranho mundo de Z do Caixo, da editora Preldio. Com sua cartola, roupa e capa pretas, o personagem protagoniza e conta histrias apavorantes. J o tradicional Lobisomem recebeu tratamento inovador dos quadrinhistas Gedeone Malagola (autor dos roteiros), dos desenhistas Srgio Lima e Nico Rosso e do arte-finalista Kazuhiko, a partir de 1963. Nessas narrativas, o gentleman atormentado Von Borus tenta se livrar da maldio da licantropia, que o faz se transformar em homem-lobo.

    Caractersticas do quadrinho de terror brasileiro

    As histrias de terror em quadrinhos realizadas no Brasil no apresentam apenas arte de qualidade e roteiros estruturados, mas se diferenciam pelo contedo que privilegia elementos da cultura nacional e pelo erotismo. Fazem parte da mitologia brasileira supersties, narrativas e personagens (curupira, mula-sem-cabea, entidades do candombl etc.) assustadores. Essas histrias, simpatias e tipos so passados de uma gerao a outra, mesclando tradies nativas, europias e oriundas da frica. O interior, o serto, o lugar propcio para sua criao e proliferao, uma vez que, alm da vastido e da desolao, predomina a cultura oral nesses lugares distantes dos centros urbanos. O ambiente da maior parte dos quadrinhos de terror produzidos no Brasil , portanto, interiorano.

    De acordo com Cirne (1990, p. 37), o quadrinho de Terror, passando pelo folclore e pelo imaginrio popular, poder, assim, ser um gnero essencialmente brasileiro. Para o autor, personagens como Z do Caixo e Chico de Ogum representam esta faceta popular carregada de brasilidade e acrescenta que as narrativas abordam, inclusive, questes polticas, a exemplo da histria A maldio do AI-5 realizada por

  • Nani, Reinaldo e Shimamoto para o suplemento Pingente de O Pasquim (jornal de oposio ditadura militar) ou a narrativa Sesso de tortura, desenhada por Shimamoto para a revista Spektro em 1980. A denncia da violncia contra os oprimidos est presente em histrias como Lamento fnebre e Navio negreiro (ambas publicadas na revista Calafrio), que tm como argumento a vingana do escravo depois de sua morte contra os brancos que os fizeram sofrer morrer. Clarice (editada na Coleo Assombrao, baseada em causo escrito por um leitor) apresenta a bela morena que, aps ser estuprada e assassinada, teve seu corpo jogado em um rio. Nas noites de lua cheia, ela volta para seduzir e afogar os homens que passam pela margem.

    Ainda na viso de Cirne (1990, p. 44), mais do que uma realidade editorial, o quadrinho de Terror, em nosso pas, uma realidade cultural. So as referncias cultura brasileira que do a tnica de vrias histrias de Terror realizadas por artistas nacionais. Dessa forma, na j citada edio Mulher-Diaba no rastro de Lampio, pode-se fazer uma analogia com a Literatura de Cordel (manifestao literria de origem europia que se mantm viva no Nordeste brasileiro: os livrinhos de poemas normalmente alexandrinos so impressos em xilogravura em pequenas grficas e pendurados em cordes nas feiras populares para serem vendidos), uma vez que os personagens (o cangaceiro Lampio e a entidade demonaca) povoam o imaginrio popular, e o ambiente retratado o do serto nordestino.

    As simpatias e crenas populares, assim como uma das manifestaes culturais mais caractersticas do Brasil, o Carnaval, se encontram em Supersties (com roteiro de Luis Meri Quevedo e arte de Colonnese), que acompanha um ladro de tmulos que penetra no cemitrio na vspera da festa, contrariando a superstio que adverte contra o mau agouro desta atitude. O candombl marca presena em diversas narrativas, vinculado magia negra e pactos demonacos. J em Cinderela da gafieira (escrita por Ota e desenhada por Mozart Couto), o ambiente de outra manifestao cultural popular brasileira, a gafieira (salo de dana onde a noite embalada ao ritmo do samba). Nesse lugar, uma bela morena desperta o interesse de um freqentador, que se espanta por ela sempre sair do baile antes da meia-noite. O apaixonado descobre, para sua prpria danao, tratar-se de uma morta-viva que tem permisso para sair do cemitrio para danar na gafieira, mas precisa retornar para a cova hora marcada.

    Quanto ao erotismo, esta caracterstica se encontra presente na maioria das histrias de terror (inclusive na persona da Vampirella norte-americana e nas clientes do detetive europeu Dylan Dog), uma vez que representa uma pulso vital, enquanto o terror, ao contrrio, encaminha-se para a supresso da vida, para o sofrimento fsico e psicolgico, para a tortura. no cruzamento do erotismo e do terror (Eros e Thanatos), ampliado muitas vezes pelo humor (negro), que as narrativas ganham intensidade e caem no agrado do leitor. Nos quadrinhos de terror elaborados no Brasil, o erotismo se reveste das cores locais (as mulheres so, em grande parte, morenas voluptuosas de corpos volumosos e sinuosos), como no caso da vampira Mirza, que vai praia de biquni para tomar sol. As roupas nfimas e decotadas e as cenas de nudez e que mostram relaes sexuais so comuns nas histrias de terror brasileiras. A malcia e a seduo normalmente levam a um desfecho sombrio, marcado pela dor ou pela morte, misturando amoralidade e puritanismo.

    Consideraes finais

    Difundidas em diferentes formas de expresso (cinema, literatura, quadrinhos), as narrativas de terror podem ser encontradas em vrios pases. No Brasil, a produo de histrias em quadrinhos deste gnero tem se mantido por dcadas, apesar da censura e da situao econmica do pas, atraindo a ateno do leitor e desafiando a criatividade dos artistas.

    As caractersticas da histria em quadrinhos de terror realizada no Brasil o uso de elementos da cultura brasileira e do erotismo , aliadas ao trao personalizado de alguns artistas nacionais (como Shimamoto e

  • Colin, por exemplo), evidenciam as diferenas existentes entre as narrativas seqenciais de terror produzidas no Brasil e as do mesmo gnero criadas nos Estados Unidos e na Europa.

    Referncias bibliogrficas

    CARROLL, N. A filosofia do horror ou paradoxos do corao. Campinas: Papirus, 1999.

    CIRNE, M. Histria e crtica dos quadrinhos brasileiros. Rio de Janeiro: Europa/FUNARTE, 1990.

    MOYA, A. Shazam! 3. ed. So Paulo: Perspectiva (Debates, 26), 1977.

    SADOUL, J. 93 ans de BD. Paris: Editions Jai lu, 1989.

    THOMPSON, D.; LUPOFF, D. The comic-book book. New Jersey: Krause Publications, 1998.

    Recebido em maro de 2004 e aprovado em abril de 2004.

    Legendas:

    Ilustrao 1: A arte rebuscada de Jayme Cortez para a histria O retrato do mal

    Ilustrao 2: A sensual Mirza, a Mulher Vampiro vai praia se bronzear

    Ilustrao 3: Z do Caixo narra histria de Terror escrita por Lucchetti e desenhada por Nico Rosso

    Ilustrao 4: Terror e cultura popular: Flavio Colin ilustra a luta de Lampio com a Mulher-Diaba no serto

    Ilustrao 5: A Cinderela da Gafieira: ambientao nacional para a verso aterrorizante do conto infantil