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LITERATURA BRASILEIRA Textos literários em meio eletrônico Qual dos dois, de Machado de Assis Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis Publicado originalmente em 1872 I A Rua do Ouvidor é a gazeta viva do Rio de Janeiro. Ali se fazem planos políticos e candidaturas eleitorais; ali correm as notícias; ali se discutem as grandes e as pequenas coisas: o artigo de fundo dá o braço à mofina, o anúncio vive em santa paz com o folhetim. Não é, pois, de admirar que ali comece este romance, que é ao mesmo tempo o romance do dr. Daniel E..., rapaz de vinte e oito anos, formado aos vinte e dois, e regressado há pouco da Europa. Daniel é formado em direito, mas até a idade em que o vemos aparecer não pleiteou um só processo, e, a julgar pelo gênero de vida que leva, não promete ser coisa que preste na ordem judicial. E, no entanto, não lhe falta talento, nem amigos, nem protetores, três elementos capazes de levantar um homem quando ele não tem má estrela. Mas apesar de todas essas vantagens, Daniel não tinha nem gosto nem profissão de advogado, e estava mais longe dela do que o pólo ártico está do pólo antártico. Falemos verdade: o grande obstáculo que havia em Daniel, não só para a vida forense como para qualquer outra vida ativa, era a preguiça, o poderoso móvel do espírito humano descoberto por La Rochefoucauld, isso que Madame de Schönberg dizia ser — “. A preguiça quebrava-lhe os arrojos, como lhe arrancava as paixões: e como felizmente ele possuía bens de fortuna, podia afoitamente dispensar-se de tentar qualquer carreira trabalhosa, ou que simplesmente lhe exigisse atenção. Indiferente ao movimento público, a queda de um ministério valia para ele tanto como a extinção de um charuto. Nunca lera um discurso parlamentar. Conhecia a Constituição por tê-la lido na academia. Não votava nunca, nem tinha disposição de fazê-lo. Nenhuma grande ordem de idéias chamava a sua atenção; tinha em pouco as fadigas do gênero humano por bens que lhe pareciam nulos, sem que desse a razão por quê, operação que lhe exigiria certa atividade, que não tinha. — A vida é um ônibus, dizia ele; cada um paga a sua passagem e desce do veículo na primeira cova que encontra. Ora, num ônibus, anda-se quieto; deixem-me andar quieto. Vê-se que o sentimento da preguiça aliava-se um pouco a certa filosofia apática, resultando deste consórcio a mais perfeita tranqüilidade de ânimo que jamais entrou num peito daquela idade. A sua vida era, pois, serena, plana e uniforme. Nem tinha as grandes tempestades que agitam o mar, nem os aspectos sombrios de um terreno cercado de montanhas. Era a quietação do lago e a regularidade da planície. Pode ser que houvesse dentro dele o germe das grandes paixões, mas faltava fecundá-lo. Vivia Daniel na Rua do Ouvidor; os seus horizontes não passavam da casa do Bernardo ou da livraria Garnier. Fazia algumas excursões a Andaraí, a Botafogo ou à Tijuca, do mesmo modo que se faz a viagem a Buenos Aires ou a Lisboa; mas o seu país natal era a Rua do Ouvidor. Se a Rua do Ouvidor não existisse, dizia ele, era preciso inventá-la. Depois da Rua do Ouvidor, só uma coisa lhe merecia cultos: a alcova em que dormia. Era elegante por indiferença; vestia o que lhe davam os alfaiates. Ia ao teatro por matar o tempo; entrava sem curiosidade e saía sem comoções. Não havia memória de que se houvesse zangado alguma vez, nem com os escravos,

Qual Do Dois Machado de Assis

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POlíticas de Saúde

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  • LITERATURA BRASILEIRATextos literrios em meio eletrnicoQual dos dois, de Machado de Assis

    Edio referncia: http://www2.uol.com.br/machadodeassisPublicado originalmente em 1872

    I

    A Rua do Ouvidor a gazeta viva do Rio de Janeiro. Ali se fazem planos polticos e candidaturas eleitorais; ali correm as notcias; ali se discutem as grandes e as pequenas coisas: o artigo de fundo d o brao mofina, o anncio vive em santa paz com o folhetim.No , pois, de admirar que ali comece este romance, que ao mesmo tempo o romance do dr. Daniel E..., rapaz de vinte e oito anos, formado aos vinte e dois, e regressado h pouco da Europa. Daniel formado em direito, mas at a idade em que o vemos aparecer no pleiteou um s processo, e, a julgar pelo gnero de vida que leva, no promete ser coisa que preste na ordem judicial. E, no entanto, no lhe falta talento, nem amigos, nem protetores, trs elementos capazes de levantar um homem quando ele no tem m estrela. Mas apesar de todas essas vantagens, Daniel no tinha nem gosto nem profisso de advogado, e estava mais longe dela do que o plo rtico est do plo antrtico.Falemos verdade: o grande obstculo que havia em Daniel, no s para a vida forense como para qualquer outra vida ativa, era a preguia, o poderoso mvel do esprito humano descoberto por La Rochefoucauld, isso que Madame de Schnberg dizia ser . A preguia quebrava-lhe os arrojos, como lhe arrancava as paixes: e como felizmente ele possua bens de fortuna, podia afoitamente dispensar-se de tentar qualquer carreira trabalhosa, ou que simplesmente lhe exigisse ateno.Indiferente ao movimento pblico, a queda de um ministrio valia para ele tanto como a extino de um charuto. Nunca lera um discurso parlamentar. Conhecia a Constituio por t-la lido na academia. No votava nunca, nem tinha disposio de faz-lo.Nenhuma grande ordem de idias chamava a sua ateno; tinha em pouco as fadigas do gnero humano por bens que lhe pareciam nulos, sem que desse a razo por qu, operao que lhe exigiria certa atividade, que no tinha. A vida um nibus, dizia ele; cada um paga a sua passagem e desce do veculo na primeira cova que encontra. Ora, num nibus, anda-se quieto; deixem-me andar quieto.V-se que o sentimento da preguia aliava-se um pouco a certa filosofia aptica, resultando deste consrcio a mais perfeita tranqilidade de nimo que jamais entrou num peito daquela idade.A sua vida era, pois, serena, plana e uniforme. Nem tinha as grandes tempestades que agitam o mar, nem os aspectos sombrios de um terreno cercado de montanhas. Era a quietao do lago e a regularidade da plancie. Pode ser que houvesse dentro dele o germe das grandes paixes, mas faltava fecund-lo.Vivia Daniel na Rua do Ouvidor; os seus horizontes no passavam da casa do Bernardo ou da livraria Garnier. Fazia algumas excurses a Andara, a Botafogo ou Tijuca, do mesmo modo que se faz a viagem a Buenos Aires ou a Lisboa; mas o seu pas natal era a Rua do Ouvidor. Se a Rua do Ouvidor no existisse, dizia ele, era preciso invent-la. Depois da Rua do Ouvidor, s uma coisa lhe merecia cultos: a alcova em que dormia.Era elegante por indiferena; vestia o que lhe davam os alfaiates. Ia ao teatro por matar o tempo; entrava sem curiosidade e saa sem comoes.No havia memria de que se houvesse zangado alguma vez, nem com os escravos,

  • nem com os amigos, que ele alis confundia at ao ponto de dizer que via um amigo em cada escravo e um escravo em cada amigo.No consta que depois de formado conclusse a leitura de um livro, qualquer que fosse, nem que soubesse o ttulo dos que lia noite para chamar o sono.Tinha, entretanto, talento, como disse, e podia ser alguma coisa, na poltica, no foro, nas letras e at no amor, porque era um tipo singularmente belo, um desses rapazes com que sonham as meninas de 15 anos. Mas no amava, nem era amado.Vivia com o pai; e completavam ambos toda a famlia. O contraste era expressivo; to aptico era um, quo ativo era o outro. O velho Marcos era negociante desde longa data; ganhara no comrcio todos os seus cabedais; agora, trabalhava para no vadiar. Entendia que o trabalho no era um meio, mas um fim. Quando o filho se dava algumas vezes ao escopo de provar o contrrio, o bom do velho limitava-se a sorrir e a responder: Tens razo, meu peralta; tens razo, porque eu no posso admitir que no tenhas razo, mas deixa-me continuar no erro.Outro contraste: Marcos era sempre folgazo; Daniel ria poucas vezes, menos por misantropia que por indolncia. Mas, como no se zangava, tambm, no apresentava nenhum contraste.Tinha ido a dois ou trs saraus em toda a sua vida; no danou, nem jogou, nem ceou; limitou-se a olhar, a fumar e a trocar algumas palavras. No se demorou em nenhum deles mais de uma hora.Tal o dr. Daniel a quem os leitores vo ver na Rua do Ouvidor, porta de uma loja de modas.

    IIEra h cinco anos, e na poca das cmaras. A Rua do Ouvidor nessa poca o grande pasmatrio da capital; ali vo ter os deputados e os curiosos, os polticos por ofcio e por devoo. porta da loja em que vemos Daniel esto dois deputados conversando; trata-se de uma interpelao para o dia seguinte. Daniel, encostado ao mostrador, do lado da rua, fuma negligentemente um charuto, e olha distrado algumas mulheres que vo passando.De quando em quando lhe chegam aos ouvidos algumas palavras truncadas da conversa poltica; a nica impresso que produz no rapaz um sorriso.No fim de algum tempo, parou diante de Daniel um rapaz baixinho, representando ter trinta anos, nem bonito nem feio, mas elegantemente vestido. Eu diria que era um dndi, se a novssima expresso francesa petit crev no correspondesse melhor ao tipo do recm-chegado. Adeus, Daniel! disse este. Como ests, Valadares? Que fazes? Fao horas para jantar. So trs e meia, no? Queres tu vir jantar comigo? Pois sim.Valadares encostou-se tambm ao mostrador, cavalgou o pince-nez, e ps-se a olhar para quem passava. Houve entre ambos um silncio de alguns minutos.No entanto, a conversa dos deputados tornara-se animada, a ponto que Daniel voltou rapidamente a cabea, justamente na ocasio em que um deles tirava do bolso um papel que ia ler ao outro.Daniel sorriu. Quem so estes dois sujeitos? perguntou Valadares. Deputados.Novo silncio, interrompido por Valadares: Sabes que o Abreu fugiu? disse ele. Por qu? Achou-se alcanado na caixa do patro; e no querendo expor-se a alguma vergonha, achou mais prudente retirar-se da cena.

  • A resposta de Daniel foi sacudir a cinza do charuto.Valadares continuou: Nem sabes a causa disto? A Mariquinhas? Justo. Era previsto. Quando fugires tambm... Eu? Tu. Mas se eu tenho caixa minha disposio... No se foge s do Rio de Janeiro, foge-se tambm do mundo. Um suicdio? Isso mesmo. Assim era eu tolo! Quando fugires do planeta, eu saberei logo que por causa da Luisinha. No digas mal da pequena... Bem sei que um anjo, disse Daniel; mas isso no impede que lhe sacrifiques a vida; acho at natural... Com que cara ficars quando eu te der uma notcia... Que notcia? Vou casar. Com ela? Pateta! vou casar com uma conhecida nossa: uma das Seabra. Qual delas? A Amlia. Creio que so minhas primas remotas. V l se um homem, s portas do casamento, pode l matar-se por...Daniel sorriu batendo com a bengala na ponta do p, e replicou: Mas isso e o que eu digo a mesma coisa. Casar fugir ao mundo; a bno nupcial no mais do que uma encomendao em regra. Ora, se tu te metes na sepultura do casamento, justamente por causa da Luisinha, cujos caprichos j no esto de acordo com os teus sentimentos.Pode-se afirmar que esta meia dzia de palavras produziu o maior discurso que Daniel fez em toda a sua vida. Por isso mesmo, apenas as proferiu, recolheu-se ao silncio e no respondeu mais s mil razes que Valadares lhe dava relativamente ao casamento com a Amlia e ao rompimento com a Lusa.Desculpem-me se resumo no mesmo perodo estes dois nomes: o de uma noiva e o de uma cortes. Estavam unidas tambm na memria do rapaz, andam por a ligados na vida; eu no fao mais do que copiar.Valadares acabava de dar as mil razes do seu casamento, quando porta da loja parou um carro; o lacaio foi abrir a portinhola e saram de dentro duas senhoras: uma velha, ainda conservada, e uma rapariga de cerca de vinte anos.Um dos deputados que estavam porta conhecera-as apenas parou o carro e foi oferecer-lhes a mo. Saiu primeiramente a velha, e depois a rapariga; entraram ambas na loja.Daniel tinha, como um amigo meu, a mania de examinar os ps s mulheres. A mulher, dizia ele, um livro; o p o ndice do livro.E j por aqui v o leitor que Daniel tinha outra mania, que era a dos aforismos e sentenas.Com a mania de examinar o p s mulheres, Daniel no soube se a rapariga era bonita ou feia, morena ou clara; soube, apenas, que tinha um bonito p. Quando quis olhar-lhe para a cara, j ela havia entrado na loja. Mas nem procurou v-la atravs da vidraa; limitou-se a voltar-se para Valadares e perguntar: Que gente esta? da famlia do B...

  • B... era um deputado do Norte.Valadares olhou pela vidraa. V, Daniel, v, como bonita!Daniel voltou o rosto e viu com efeito que a pequena era bonita; mas no soltou nenhuma exclamao.As duas senhoras pouco tempo se demoraram; alguns minutos depois, chegaram porta para entrar no carro. A moa ficou justamente ao lado de Daniel. Este olhou para ela, a fim de confirmar a primeira opinio, e deu com os olhos dela que, por acaso, se cravaram nele. claridade, a moa pareceu-lhe mais bonita do que a princpio; mas no teve tempo de admir-la, porque ela, fazendo com a boca um gesto de desdm, voltou-lhe as costas e encaminhou-se para o carro, cuja portinhola estava aberta.A velha entrou depois e o carro partiu logo; Daniel olhou para dentro: a moa ia conversando com a velha, e sem prestar ateno a coisa alguma.Toda esta cena, alis rpida, escapou a Valadares; Daniel, um pouco despeitado com o gesto da moa, sorriu-se e tirou o relgio do bolso dizendo: Vamos jantar? Vamos, disse Valadares.Na ocasio em que iam descer para o Hotel Ingls (onde Valadares jantava habitualmente), Daniel viu na calada uma liga, abaixou-se e apanhou-a. Ser a liga da pequena? perguntou Valadares.Honny soit qui mal y pense! respondeu Daniel sorrindo e guardando a liga no bolso.Foram jantar.Durante o jantar, no se conversou mais no episdio da liga, nem da moa do Norte. Apenas, quando veio o caf, Daniel perguntou onde morava aquela famlia, e soube que em Mata-cavalos. A conversa no passou disso.A verdade histrica pede que se diga que ainda durante essa tarde a lembrana da dona da liga perturbou um pouco o esprito de Daniel; mas posso afirmar que noite j ele de nada mais se lembrava.Quando voltou casa, atirou a liga para dentro de uma secretria, e nisto ficou tudo.

    IIIAs senhoras do carro moravam em Mata-cavalos.A velha era irm de um deputado do Norte; chamava-se Madalena e era viva de um oficial do exrcito. Augusta, sua filha, contava perto de vinte anos, e era, no dizer dos que a conheciam, a mais bela cara da provncia. Mas no se lhe notavam somente as feies; Augusta distinguia-se principalmente pela graa e elegncia das maneiras, a que dava realce um certo ar de altivez.Tendo sido eleito deputado, o dr. B..., irmo da velha e tio da moa, entendeu que aproveitaria e ensejo de ver a capital do imprio, trazendo consigo as duas senhoras. A proposta foi aceita com entusiasmo por Madalena e simples agrado por Augusta.Efetuou-se a viagem e na poca em que comea esta narrativa j eles aqui se achavam havia dois meses, tendo vindo um ms antes da abertura das cmaras.Augusta fez sensao nas salas em que apareceu; a beleza, a graa, as maneiras da moa a todos impressionavam e todavia eram comuns essas coisas na vida fluminense; mas em Augusta tudo isso trazia um ar caracterstico, um cunho pessoal, que distinguia a moa das demais mulheres.Impressionado pela distino de Augusta, um desalmado rapaz disse-lhe uma noite que no supunha a provncia capaz de produzir obra to prima, e que ela era com certeza a fnix das provincianas. A natureza compensa tudo, respondeu Augusta; possvel que na provncia as senhoras como eu sejam raras, mas os homens como o senhor com certeza so rarssimos.Esta resposta foi ouvida por um amigo do rapaz, que no tardou em espalh-la, e dentro

  • de pouco tempo foram comentadas as palavras da bela provinciana. De mais a mais tem esprito, observou um sujeito. Parece.A vtima do dito estava presente, e disse: pena, porque bonita. um realce, acudiu o primeiro; e para resumir na mesma designao as suas graas e as suas arranhaduras, chamar-se- a ona de Medicis.O nome no pegou, porque dos cinco rapazes ento presentes, apenas o autor da idia sabia da existncia de uma Vnus de Medicis, condio essencial para compreender o dito; contudo, foi este acolhido com o riso dos circunstantes, um desses risos esquerdos que no querem dizer coisa nenhuma.A reputao de Augusta ficou firmada com mais um ou dois repentes iguais ao primeiro, de maneira que, quando a gente a encontrava, se sentia tomada por dois sentimentos diversos: a fascinao e o temor. Admirava-se a moa como se admirava uma bela pantera.Nenhum destes antecedentes era conhecido pelos dois rapazes com quem travamos conhecimento na Rua do Ouvidor; Valadares, o nico que conhecia a famlia, s a conhecia de vista, por t-la encontrado em casa de terceiro.Mas, se em vez de seguirem para o Hotel Ingls, tivessem entrado na loja, depois da partida do carro, ouviriam este dilogo dos dois deputados a meia voz: Como vo os seus negcios com a Augusta? perguntou o mais velho dos dois. Na mesma, respondeu o mais moo. Ento, nenhuma esperana? Esperana sempre. J lhe disse uma vez e repito: eu tenho a ambio de ser ministro de Estado, ou embaixador ou qualquer outra coisa por este gnero; no tanto porque esses cargos pudessem legitimamente seduzir a ambio poltica; mas principalmente porque talvez assim obtenha as boas graas de Augusta. Disse-me isso uma vez, respondeu o outro; mas cuidei que fosse simplesmente gracejo; h de lembrar-se que o disse rindo. Desta vez, fala-me com seriedade. Ser certo que as suas ambies tm por principal esse motivo? Estou apaixonado.O interlocutor sorriu e replicou: Espcie nova: poltico por amor. H de ser bonito num romance, mas no Parlamento ... Ridculo, bem sei. Justamente. E, no entanto, verdade.Houve um instante de silncio. Lus, disse o interlocutor do namorado, deixe-me dar-lhe este nome: tenho o direito da idade. Como contaremos com voc, se o seu procedimento depende todo do capricho de uma moa ? Nem por isso deixei de ser at hoje aliado fiel e ativo. Cuida que quando subo tribuna no vou levado por uma convico sincera? Vou; mas, se emprego s vezes demasiado ardor, confesso que uma parte dele o resultado da inteno em que estou de fundar uma posio dominante... por causa dela. Mas no vejo... Vejo eu. Cuido que desse modo poderei vencer-lhe o orgulho.O velho abanou a cabea e franziu os lbios com um gesto de desagrado.Mas a conversa parou aqui.Lus saiu para o hotel em que morava; o velho foi jantar com um dos chefes da oposio.Ao despedirem-se, disse o velho ao rapaz: Ento, amanh a interpelao. Amanh.

  • IV

    Oito dias depois destas cenas, estando Daniel almoando em casa, e s, porque eram 11 horas e o velho Marcos almoava s 8, apareceu Valadares alegre e rubicundo.Daniel ofereceu-lhe o almoo. Aceito, porque ainda no almocei, e confesso que no pretendia faz-lo por no ter vontade nenhuma. Mas pode ser que a tua companhia me abra o apetite. O velho est c? No.Valadares sentou-se mesa e comeou a almoar.Durante os primeiros minutos, apenas trocaram raros monosslabos.Daniel acabou primeiro e acendeu um charuto. Que novidade h? perguntou ele. Uma grande novidade, respondeu Valadares. Imagino. Vers: uma novidade incrvel e entretanto verdadeira, uma novidade, que no o para ti, porque j te dei parte dela, mas ento foi um pouco vagamente. Vamos ver o que . Caso-me. Ah! Caso-me daqui a um ms. Estimo muito.Valadares cruzou o talher e recebeu a xcara de caf que lhe ofereceu o servente. Caso-me com a Amlia Seabra, e deste modo fico aparentado contigo. Ora, queres que te diga? por muito superior que seja um homem, esta idia de casamento sempre uma grande preocupao. De cada vez que me levanto da cama pergunto a mim mesmo se certo que dentro de pouco tempo estarei eternamente unido a uma mulher. Eternamente! eu que nunca dei ao amor mais de dois meses de vida. Que te parece? Nada.Valadares engoliu rapidamente o caf, recuou a cadeira, e acendeu tambm um charuto. Dou um baile, sabes? disse ele a Daniel; e peo-te por especial obsquio que assistas a ele.Daniel fez um gesto de assentimento. Creio que terei muita gente, continuou Valadares; conto j com dois ministros e quatro senadores; so convites de meu sogro. Eu apenas me encarrego de convidar os rapazes. A propsito, l teremos a pequena da liga. Que pequena? Ora, aquela que deixou cair a liga na Rua do Ouvidor... no te lembras? Ah!Daniel recordou-se ento do incidente da Rua do Ouvidor. Que fizeste da liga? perguntou Valadares. Creio que a pus na secretria.Levantaram-se da mesa.Indo para o seu gabinete, Daniel abriu a secretria e encontrou ainda a liga perdida por Augusta. Magano! disse Valadares, guardaste-a! Por distrao... respondeu Daniel.E tornou a fechar a secretria.Depois do encontro com Augusta, era a primeira vez que ela lhe voltava ao pensamento. Daniel recordava-se do gesto de supremo desdm e indiferena com que ela desviara os olhos e entrara no carro.

  • Se a preguia, como quer o moralista, destri todas as paixes, confessemo-lo que o faz lentamente e no de um lance. Daniel ainda tinha em si uma boa dose de orgulho que resistia ao do elemento dissolvente. A lembrana de Augusta foi de orgulho ofendido. O seu amor-prprio sofreu naquele momento com a evocao da cena da Rua do Ouvidor. Com que ento a moa da liga vai ao teu baile... Vai; tambm convite de meu sogro. Sogro! Acho uma novidade nisto; parece-me que vou mudar da terra. Meu sogro! no pensei nunca que tivesse de dar este nome a algum. E no entanto... o que te h de acontecer.Daniel levantou os ombros. A mim? disse ele; se toda a humanidade esperar por mim para casar, podemos dar por extinta a raa humana. Era justamente o que eu dizia... Importa-me pouco o que tu dizias... Vers... vers...Valadares saiu pouco depois e foi direitinho, no para a casa da noiva, mas para a casa de algum j indicada neste romance.Ho de ter notado que Valadares em toda a conversa sobre casamento s de passagem aludira mulher. Contrrio a todos os noivos, a futura esposa no lhe merecera cinco minutos de ateno nas suas expanses com um amigo. Nem mais nem menos, tratava-se de um desses mercados a que, por cortesia, se chama casamento de convenincia , dois vocbulos inimigos que a civilizao aliou.Valadares tinha chegado naquele ponto em que se bifurca a estrada da vida de um estrina: de um lado, o casamento de convenincia, do outro a perdio completa. difcil naquela situao encontrar uma mulher que se disponha a dar a mo ao estrina; achou-a Valadares.Estas mesmas reflexes f-las consigo Daniel, apenas se separou do outro, e, fazendo-as, comentou-as por modo que eu estenderia muito estas pginas se quisesse desenvolver as suas reflexes.No se davam com Daniel as circunstncias de Valada-rer. Daniel era mais que tudo um homem extremamente pessoal. O casamento impor-lhe-ia uma preocupao que ele no queria ter; quanto aos prazeres do lar domstico, eram coisa frvola para ele.Quando o velho Marcos, ouvindo dele a notcia de que Valadares ia casar, insinuou ao filho que o exemplo era bom de seguir: Pois no fosse! respondeu Daniel, oferecendo um charuto ao pai.

    V

    O casamento de Valadares produziu grande impresso dans un certain monde, no acreditaram nele primeira notcia, mas afinal no havia contestao que o bomio, o estrina, o desalmado Valadares ia tomar estado.A alguns parecia um sacrilgio, outros acharam que era simplesmente um milagre. Com que direito, dizia a Luisinha j citada, com que direito nos arrancam as prolas do nosso adereo?Havia um adereo em que Valadares era prola.Os rapazes j enraizados no pas de Citera, davam o noivo por maluco, posto que, no nimo de alguns, o casamento era natural vista dos bens de noiva.Enfim, apesar de mil comentrios e algumas apostas, Valadares casou.Foi excelente a reunio em casa do sogro. L se achou, como prometera, o misantropo Daniel e mais o pai, que foi um dos padrinhos do casamento.A noiva de Valadares era uma rapariga bonita, mas extremamente faceira, e apesar da especialidade do dia, em que todas as mulheres se parecem, era fcil adivinhar nela uma casquinha de primeira ordem. Via-se que era uma menina que casara para adquirir a

  • liberdade de arruar. Caa em boas mos.Daniel, segundo o seu costume, no danava; divertia-se em ver danar os outros.A famlia do deputado B... entrou s 10 horas; acompanhava-a Lus, o interpelante oposicionista que j encontramos na Rua do Ouvidor.Augusta estava radiante; a sua beleza, que reunia magnificamente a graa e a severidade, era dessas que centuplicam com as luzes da sala e perdem com a luz do dia. Quer isto dizer que, se Daniel a achara bonita na Rua do Ouvidor, achou-a divinamente bela no salo dos Seabras.Quando ela entrou, fez sensao. Todos se curvavam involuntariamente por onde ela passava, semelhante Vnus clssica, cuja divindade se percebia simplesmente pelo andar. Daniel achava-se encostado a uma porta por onde Augusta entrou na sala da dana. No se curvou, nem deu sinal de si. Augusta pareceu recordar-se das feies do rapaz, e demorou-se alguns segundos a olhar para ele, mas para logo retirou os olhos, repetindo o mesmo gesto de desdm que tanto impressionara o filho do velho Marcos.Por que este gesto? perguntava Daniel a si mesmo. Nunca a tinha visto, nem pretendido. De onde vinha essa espcie de preveno contra ele? A curiosidade e o amor-prprio do rapaz estavam sofrivelmente aguados.Augusta entrou na sala pelo brao do tio; Lus dava o brao a Madalena.Quando Valadares a viu entrar, foi ter com Daniel. Tive uma idia, disse ele ao amigo. No dia de hoje, nenhuma idia pode ser boa. Pois . Casa com Augusta.A dana interrompeu o dilogo.Daniel colocou-se de modo que visse Augusta; esta danava com Valadares.Durante a maior parte da quadrilha, os olhos de Daniel no se encontraram com os de Augusta; mas no fim, por simples acaso, a moa olhou para o rapaz, e sustentou por alguns instantes o olhar dele. Pareciam interrogar um ao outro. Desta vez, foi Daniel o primeiro que afastou os olhos, e retirou-se.Saiu dali, foi para uma sala intermediria, e ali atirou-se a um div.Estava s.Consultou o relgio, olhou para o teto, examinou as luvas, concertou a gravata, levantou-se, deu alguns passos, e tornou a sentar-se at que a quadrilha acabou.A sala foi invadida por alguns pares.Posto que fosse perfeito homem de sociedade, nada o aborrecia mais que o frufru das sedas, o estalar dos leques, o murmrio das conversaes, todos esses rumores de uma festa alegre, que destoavam com o seu esprito reservado e solitrio.O fastio comeou a invadi-lo; dentro de uma hora, se lhe no tivessem mo, estaria entre os lenis.Levantou-se e ia dirigir-se para a outra sala, quando lhe apareceu o pai, dando o brao a Madalena. Marcos chamou-o. Daniel aproximou-se; o velho apresentou o filho me de Augusta.Daniel recebeu a apresentao com frieza; porm, Madalena foi to amvel que era impossvel esquivar-se-lhe. Conseqentemente, conversaram os trs durante algum tempo.O grupo foi aumentado da a alguns minutos com a chegada de Valadares que trazia Augusta pelo brao. Nova apresentao e desta vez mais solene para os dois apresentados. Nenhuma palavra foi trocada alm do simples cumprimento que Daniel dirigiu a Augusta e que esta ouviu inclinando levemente a cabea e olhando-lhe para os ps.No tinha que ver: aquelas duas criaturas antipatizavam um com o outro. No se casava a altivez de uma com o orgulho do outro. Era o caso do provrbio: duro com duro...Mas se ambos antipatizavam a tal ponto, nem por isso Daniel deixava de admirar a beleza de Augusta, e Augusta. a desdenhar a severidade de Daniel; e essa mesma admirao os afastava mais; porque a admirao um preito; e nas poucas e curtas vezes que se

  • haviam encontrado, claramente se percebia em cada um deles a conscincia da superioridade.No era entretanto do mesmo modo que Augusta olhava para Lus; para este olhava com certa compaixo. Parecia ter pena dele. Quando este lhe falava, ela respondia com bondade e doura, mas a doura e a bondade de quem trata com um inferior, o que contrastava com o respeito do namorado poltico. E, no entanto, o crime dele era simplesmente gostar dela, e hav-la pedido em casamento, ao que ela se escusou, dizendo que era melhor ficarem simples amigos.Lus no danava; tinha, como Daniel, a opinio de que a dana um prazer dos olhos.No fim, porm, de meia hora, Valadares foi ter com Daniel insistindo para que ele danasse ao menos uma quadrilha, ao que ele recusou. Como estivessem a discutir este importantssimo ponto, passou Augusta, e Valadares interrompeu-a para dizer-lhe oficiosamente: O dr. Daniel incumbiu-me de lhe pedir esta quadrilha para ele.Daniel mordeu os beios.Augusta respondeu olhando para Valadares. Mas eu no dano mais. Por qu? Estou cansada.Daniel interveio. O Valadares, disse ele, pediu-lhe espontneamente uma honra que eu no ousava desejar, nem esperar. Estou cansada, repetiu secamente Augusta, a quem Valadares deu o brao, escapando assim a uma repreenso do amigo.Da a um quarto de hora, Daniel desapareceu do baile.

    VIDespontava-lhe j uma espcie de dio contra Augusta. Seria esse o caminho do amor?Quinze dias depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, achava-se Augusta sentada ao piano na casa de Mata-cavalos, quando lhe entrou pela sala dentro a mulher de Valadares.Comeava a moa a usar da liberdade que procurara no casamento. Tua me? perguntou ela a Augusta, depois dos primeiros beijos. Est l dentro; vou mand-la chamar. Creio que o moleque j lhe foi dizer que eu estava aqui. Anda senta-te.Amlia sentou-se e disse sorrindo para Augusta: No me perguntas por meu marido? Ia faz-lo.Est na repartio. A primeira coisa em que concordamos, que eu sasse a passeio quando me parecesse. Eu no sou criana para andar agarrada a meu marido. Na Europa, no se usa isso. Demais, tenho toda a confiana nele . Acho-te plida hoje... Dormi pouco. Alguma preocupao? Uma enxaqueca. Que calor! Com efeito, o dia est quente.Amlia agitou o leque, lanando pelos mveis da casa esse olhar de curiosidade indiscreta que tanta gente emprega numa casa onde entra pela primeira vez, sintoma de uma grosseria sem-par.Augusta olhava para ela sorrindo.Nesse momento, entrou Madalena. J de passeio! disse ela, beijando a mulher de Valadares.

  • No cedo. Seu marido est bom? Est. So felizes, creio. Completamente. Ah! o casamento foi a melhor inveno deste mundo. Por que razo no casa sua filha? Porque no encontrou noivo. Isso fcil. No tanto, acudiu Augusta; alm de que no tenho pressa. Pois quanto mais cedo melhor, disse Amlia. Augusta, disse Madalena, ter um noivo quando quiser. Agora mesmo... Ah! algum apaixonado?...Augusta levantou-se e foi buscar o leno ao piano. No falemos nisso, disse ela.Amlia levantou-se tambm. J se vai? perguntou Madalena. J; tenho de ir escolher uns vestidos. Quer D. Augusta ir comigo? No posso. Ento, adeus. Olhe, dou-lhe um conselho: no seja cruel. Por que no vem tomar ch conosco esta noite? perguntou Augusta. No posso, respondeu a moa, tenho de ir com meu marido visitar o velho Marcos. Conhece, no? aquele homem que me apresentou na noite da seu casamento? perguntou Madalena. Justamente; somos parentes. Est muito mal. Parecia vender sade. O filho foi l hoje nossa casa dar-nos parte da molstia do pai. O dr. Daniel? Sim. Adeus!Amlia saiu.Depois do baile, era a primeira vez que Augusta ouvia o nome do rapaz, e qualquer que fosse a razo, no pde ouvi-lo sem algum abalo.Ficando s na sala, Augusta foi sentar-se ao piano e comeou a dedilhar no sei que composio alem. Mas evidentemente o seu pensamento estava ausente. Algum tempo depois, entrou em casa o tio, acompanhando de Lus.Depois da recusa que fora dada na provncia, era a primeira vez que Lus aceitava um convite de B... para jantar em casa dele. Era um escrpulo pueril, se querem; mas o moo tinha esse escrpulo e obedecia-lhe involuntariamente. Mas, como resistir s instncias do velho? E sobretudo como recusar o prazer de respirar o mesmo ar que a moa?Quando os dois deputados entraram na sala, Augusta levantara-se do piano.O jantar foi imediatamente posto na mesa.Depois do jantar, Lus esteve algum tempo a ss com Augusta. Conversaram de coisas indiferentes. A moa felicitou-o pelos aplausos que lhe deram como orador. Lus recebia-os com um ar de modstia que no escondia completamente o sentimento de satisfao que lhe dava aquele elogio vindo da boca de Augusta.Depois, acrescentou: Todos esses aplausos tm para mim uma nica vantagem: adiantar a minha posio. Tem ambio poltica? No; bem sabe qual a minha ambio.A moa ficou sria.Lus contemplou-a com um sorriso dc dor; depois procurou pegar-lhe na mo, que ela retirou apressada, dizendo: Perdo! tenho que fazer...E como desse um passou para fora, Lus adiantou-se e disse-lhe:

  • Engana-se, D. Augusta, eu no venho falar-lhe de coisas em que no posso tocar. Queria simplesmente pedir-lhe desculpas se alguma vez a ofendo com aluses a um sentimento de que no tenho culpa. Nem eu, creio. Voluntariamente, no.A moa recuou e foi sentar-se. Olhe, disse ela; disse-lhe uma vez que podamos ser bons amigos. Quer assim? Aceito, e j muito; mas creio que me lcito esperar o seu amor. Esperana intil. Intil? ser, mas espero.Augusta sorriu. Ambiciosa, disse consigo Lus.Mas ao mesmo tempo, como que arrependido desta exclamao interior, o namorado entrou a sorrir para ela sorriso de splica e de contrio.Augusta no reparou nisso.No entanto, a tarde caa, e a melancolia da hora servia de fundo quele quadro j de si to triste: um corao de fogo ao p de um corao de rocha, um destino inteiro nas mos de uma mulher indiferente, a vida ou a morte de um homem dependente do olhar compassivo de uma mulher.Uns tero simpatia pela posio de Lus; outros tdio. Depende dos caracteres. Os altivos julgaro que nenhum homem deve aspirar mo de uma mulher, quando esta lha recusa. So leis boas para o papel. Quem conhece o corao humano compreende, lastimando embora, essas situaes humilhantes em que o amor pode colocar um homem, alis brioso e digno de si.No poucas vezes, Lus discutira consigo mesmo a situao em que se achava, e nunca o seu esprito lavrou uma sentena de abandono que lha no reformasse o corao, juiz em ltima instncia nestas matrias de amor.Todavia, a cena daquela tarde impressionara singularmente o moo. Pareceu-lhe que a insistncia seria j degradao; resolveu lutar e esperar.Despediu-se de Augusta pouco depois e saiu.Augusta, quando se achou s, respirou; era evidente que a presena de Lus a importunava.

    VIIA doena de Marcos foi mortal; dois dias depois da visita de Amlia o bom velho faleceu, deixando saudades a todos quantos o conheciam.Na vida de Daniel, foi um vcuo. No se costumara idia de que viria a perder o pai; era a nica famlia que tinha, e provavelmente o nico ente a quem estimava neste mundo.Os amigos deram-lhe as consolaes do costume; alguns discursos foram proferidos na ocasio de dar-se o cadver sepultura; mas discursos, nem consolaes podiam distrair o moo da dor que acabava de sofrer.Para os outros pais foi um fausto acontecimento; era o noivo rico que convinha prender de algum modo. Por isso foi grande a afluncia de senhoras missa do stimo dia.L estavam Madalena e Augusta.Quando, no fim da missa, comeou a cerimnia dos psames, Daniel recebia-os maquinalmente e sem dar sinal de si. No aconteceu o mesmo, quando Augusta se aproximou dele e murmurou algumas palavras de consolao; no contava que ela estivesse na igreja.Todavia, nem o estado dele, nem o lugar eram prprios para maiores espantos. A moa seguiu a me, e Daniel ouviu as consolaes do resto dos assistentes.Valadares convidou Daniel para ir passar alguns dias em casa dele; apesar das recusas, tanto instou que Daniel cedeu, e para i foi mesmo dali.A morte do velho Marcos punha nas mos de Daniel uma magnfica fortuna. No

  • contando com ela to cedo, o rapaz no sabia em que empreg-la. A mulher de Valadares aconselhou-lhe uma viagem Europa como coisa de maior proveito. Este conselho provocou entre o marido e a mulher uma pequena discusso que ia terminando por um ataque de nervos, desenlace seguro de muitas tragdias domsticas.A idia de viagem, tambm, no agradou a Daniel. Afinal, disse ele, a minha situao a mesma, a diferena que eu hoje administro aquilo que outrora frua simplesmente. Por isso, digo eu, atalhou Amlia, como os trabalhos de administrao so enfadonhos, procure uma companheira. Olhe, eu creio que tenho uma... que no se lhe dava de... Quem ? perguntou Daniel. A Augusta B...Daniel franziu a testa. Acreditou que a solicitude da moa, indo missa, era simplesmente um clculo. Figurava-lhe um esprito altivo, e saa-lhe uma mulher interesseira. Acaso a mulher de Valadares adivinhou esta impresso de Daniel? O certo que imediatamente acrescentou: Mas repare que isto lembrana minha; ela no me disse coisa aLguma. Creio que at no seria coisa fcil; porque me parece orgulhosa demais... Parece-lhe isso? Sim. No entanto, se quiser que eu lhe fale.... Oh! no! no tenho vontade de casar.De casar, creio que Daniel no tinha vontade nenhuma, mas nem por isso a lembrana de Augusta deixava de preocup-lo. Havia naquela moa um mistrio que ele queria aprofundar. A ocasio era boa para aproximar-se dela. J haviam decorrido vinte dias depois da missa fnebre. Daniel resolveu ir visitar a famlia de Augusta para agradecer-lhe a presena no ato religioso, tanto mais de agradecer quanto no se ligavam por estreitos laos de amizade.S as duas senhoras estavam em casa, quando se anunciou a visita de Daniel.Augusta desapareceu da sala pouco antes de entrar o rapaz, que apenas encontrou Madalena, com quem travou uma conversa de cerca de meia hora. Durante esse tempo todo, Augusta no apareceu na sala. O rapaz esperou ainda alguns minutos, mas vendo que no chegava, levantou-se para sair. Espero, disse Madalena, que no ser esta a ltima vez que nos honre com a sua visita.Daniel curvou a cabea, agradecendo.Depois, apertou a mo de Madalena e dirigiu-se para a porta, justamente no momento em que Augusta entrava na sala.Cumprimentaram-se friamente.Daniel saiu.

    VIII Por que no vieste sala mais cedo? perguntou Madalena a Augusta. Tive uma vertigem; no podia vir, respondeu a moa. Foi pena, porque este moo muitssimo amvel; passei meia hora agradavelmente. Foi pena! murmurou a moa, disfarando um sorriso que lhe estava a brincar nos lbios.No disfarou tanto que a me o no percebesse.H alguma coisa, pensou ela.Augusta no lhe disse mais nada; mas quem pudesse penetrar no seu esprito, ouviria a seguinte reflexo: So todos os mesmos!Reflexo que alis no esclarece muito a situao. provvel que pelo romance adiante compreendamos essas palavras interiores de Augusta.

  • IXO casamento a perfeita unio de duas existncias; e mais do que a unio, a fuso completa e absoluta. Se o casamento no isto, um encontro fortuito de hospedaria; apeiam-se mesma porta, escolhem o mesmo aposento, comem mesma mesa, nem mais, nem menos.Este o casamento mais comum. O outro o legtimo, o raro, esse outra coisa que no isto. A religio santifica o casamento, mas supe sempre a existncia anterior de um elo to sagrado como o do altar.No se parecia com este o casamento de Valadares. Casou o rapaz por motivos alheios ao corao: primeiramente, por interesse, depois por novidade. O casamento foi para ele uma espcie de passeio ao Corcovado. Ora, todos so de acordo que do Corcovado se goza uma vista magnfica, mas a ningum lembrou ainda a idia de l fundar uma cidade. Ningum l fica; sobe-se, goza-se, desce-se.Valadares comeava a sentir a necessidade de descer do Corcovado; a idia de que estava ligado para sempre era um verdadeiro pesadelo que lhe sufocava o esprito. Verdade que a sua liberdade no estava tolhida; os boudoirs clebres que freqentara outrora comearam a festejar a volta do filho prdigo. Mas era sempre um vnculo, o pobre j sentia que este o apertava. Podia ser de rosas; mas achou-o de ferro.Amlia casara com Valadares como casaria com outro qualquer; simples mudana de estado. Comprou a liberdade sob a forma de uma priso. Contratou um braceiro para os dias em que lhe conviesse sair a p; e um protetor para abrigar a sua existncia, a sua reputao. Com estas condies, qualquer noivo lhe servia. O que estava mais mo foi o escolhido.Imaginem j por aqui qual era alegria conjugal daquelas duas criaturas.No tardou que o aborrecimento viesse sentar-se no lugar que o amor no ocupava; em vez de dois entes unidos por um grande sentimento achavam-se como dois condenados ligados pela mesma calceta, com a diferena que a comunho do infortnio e do crime estabelece certa simpatia entre os dois condenados, a qual debalde se procuraria entre Valadares e a filha de Seabra.Comeava a dissolver-se a forma conjugal; no se precisava ser guia para adivinhar que, dentro de pouco tempo, a casa liquidaria e os dois achariam na separao um remdio aos seus males.Ora, este espetculo e esta previso desagradavam profundamente a Daniel, que morava com os dois, segundo se disse acima. Um dia de manh, resolveu mudar-se, e assim o declarou aos donos da casa. Mudar-se? exclamou Amlia. E por qu? Porque devo morar s; alm disso, est com o meu gnio. Se assim , observou Valadares, no te obrigo ao contrrio. Mas hs de vir jantar comigo todos os dias... Todos os dias, no sei, respondeu Daniel. J tem casa? perguntou Amlia. O meu procurador, respondeu Daniel, disse-me ter encontrado uma em Mata-cavalos. Ah!A mulher de Valadares sorriu maliciosamente; o marido, por imitao, sorriu tambm.Daniel viu os sorrisos e pareceu-lhe compreender. Mas que tem isso? perguntou ele. Nada, acudiu Amlia, quer dizer que est mais pertn. De quem? Ora de quem! dela!

  • No conheo! Augusta. Ora!Daniel respondeu com uma expresso que simulava indiferena; mas, se devo confessar a verdade, no o era. Quando o procurador lhe trouxe a notcia de que havia casa na Rua de Mata-cavalos, o rapaz estimou a notcia e aceitou a casa. O fato , disse Amlia, que ela pensa no senhor. Em mim? Cuido que sim, porque h dias, indo eu l, duas vezes me perguntou se estava bom. Quando me perguntou a segunda vez sorri, como h pouco fiz, e ela protestou calorosamente, mas debalde; via-se que era um protesto aparente.Daniel ouviu atento as palavras de Amlia. E que no fosse! disse ele; como eu no vou para l por causa dela... Creio, respondeu Amlia, mas o fogo ao p da plvora... Eu no sou plvora, nem fogo...A conversa ficou aqui. Daniel, da a dias, estava completamente mudado.A casa de Daniel ficava do lado oposto ao da casa de Augusta, e um pouco distante, mas ainda assim podiam ver-se de uma janela; e ele a viu no primeiro dia, depois, nunca mais a viu. Seria fortuito ou expressivo? No sabia.

    XNo fim de quinze dias, recebeu Daniel um bilhete do tio de Augusta convidando-o a ir passar a noite com ele.Deveria ir? Sem dvida que sim. No queria parecer que se metia cara da moa. O orgulho lutava nele por dois modos; lutava, retendo-a para no parecer que a adulava; lutava, impelindo-o para l, a ver se triunfava dela. difcil que, de uma luta colocada neste terreno, venha bom resultado.Daniel s pela tarde adiante resolveu ir casa de Augusta.Era uma reunio ntima; conversou-se e tocou-se; no se danou.O tio de Augusta desejou que Daniel considerasse a casa como sua; que se no prendesse por simples considerao de cerimnias enfadonhas. Posto que Daniel tivesse em pouco a conversa das salas, no por desprezo refletivo, mas por gnio e educao, todavia, no ficava na sombra desde que lhe fosse necessrio desempenhar-se como cavalheiro polido. Tinha natural esprito; sua conversa era fcil, brilhante, sem ser profunda, coisa que agrada absolutamente s mulheres. Alm disso, o rapaz queria impor-se no esprito da moa; e como faz-lo seno por meio desses triunfos de eloqncia familiar?Mas Augusta parecia conhecer todas essas armas e a inteno com que eram manejadas; tratou Daniel como a todos os outros, em perfeito p de igualdade. Nem lhe concedeu desta vez a distino do desdm, que tanto agrada a certos caracteres; nivelou-o com as demais pessoas.Numa ocasio, pediu um dos amigos da casa que a moca cantasse a cavatina da Norma, justamente na ocasio em que Daniel, por entabular intimidade, lhe pedia um pedao de Lcia.Colocada entre os dois pedidos, Augusta observou: No posso executar ambas as coisas ao mesmo tempo. Uma h de ser primeira. Qual delas? Resolvam entre si.Enquanto o sujeito, que pedira a Norma, inclinava-se diante de Daniel, cedendo-lhe a vez, Augusta com ar distrado e indiferente brincava com as tranas de uma amiga que se lhe aproximara e que ia acompanh-la ao piano.Arranjara as coisas de modo que, nem mostrava preferncia, nem desdm por Daniel, o que aconteceria (pensava ela) se cantasse primeiro ou depois o trecho reclamado pelo rapaz.

  • Estes e outros incidentes produziram em Daniel o efeito natural; o orgulho foi-se pouco a pouco transformando; quando dali saiu, naquela noite, j se pode dizer que no corao do rapaz rompia a aurora do amor.E, coisa singular, esse amor no era, como em outros casos, um resultado de simpatia, mas sim antipatia de duas criaturas, que, se se odiassem alguma vez, seriam mortais inimigos.

    XI

    Mo minha inteno apresentar Augusta como um carter excepcional, nem como um esprito superior. Os sentimentos da moa eram, em resumo, os mesmos das outras mulheres. O que a dominava, porm, era uma certa frieza de temperamento que a tornava incompetente para os grandes afetos. Acrescente-se a isto uma tal ou qual vaidade de sua beleza, e a temos o que era a filha de Madalena.Educada pela me com uma perfeita independncia dc esprito, Augusta adquiriu certa aspereza que lhe fazia o carter antiptico. Era imperiosa, altiva, s vezes bondosa, mas bondosa por orgulho, no acreditando muito nem pouco na violncia dos sentimentos; o amor para ela era simplesmente uma coisa que ela no compreendia, nem desejava compreender. Parecia-lhe melhor o triunfo numa sala que num corao.Nem Lus nem Daniel compreendiam isto; a indiferena da moa era apreciada por eles diversamente do que cumpria ser, e da vinha a esperana de um e o capricho de outro. O verdadeiro triunfo seria abandonar o campo; talvez que o despeito produzisse nela o resultado favorvel. Quem sabe? seria talvez a primeira a dar um passo para o esquivo namorado.Lus supunha que podia fascinar a moa pela grandeza de posio; algumas circunstncias lhe davam razo para crer assim; mas eram simples circunstncias.Quanto a Daniel, um pouco picado em seu amor-prprio, assentou que de uma luta pertinaz poderia resultar ser um bom general em vez de diplomata fino. Afigurava-lhe que a espada de Cond tinha para o caso mais virtude que a pena de Metternich.Com estas impresses saiu da casa de Augusta.Era a primeira vez que no esprito do moo a vontade anunciava um papel ativo. No era decerto o amor, seno o amor-prprio que o inspirava assim. Mas neste caso, amor-prprio j no era um sintoma do prprio amor? Daniel no percebeu isto; atirou-se luta.Comeou a freqentar a casa de Augusta na qualidade de amigo e vizinho. A moa foi com ele e com todos os outros atenciosa e polida, mas fria; distribua a sua ateno com igualdade. No dava direito a queixas nem esperanas; valia tanto para ela Daniel como Lus.Lus freqentava pouco a casa; nem se podia dizer que a freqentava; ia l de longe em longe; conversava meia hora e saa logo.Posto que Daniel no entrasse nunca nas campanhas do namoro, e apenas contasse em toda a vida alguns fceis triunfos do tempo da academia, todavia houve-se desde princpio como um verdadeiro cabo de guerra.Foi difcil moa resistir aos primeiros mpetos da fora arregimentada do rapaz. Aos tiros de artilheria, isto , os olhares, resistiu ela com facilidade; ningum tinha maior expresso de desdm do que ela, quando se tratava de repelir os olhares de um corteso.Mas quando, depois de seus primeiros tiros, Daniel aproveitou uma situao adequada e atirou contra a fortaleza as massas compactas da infanteria, isto , quando ele fez uma declarao em regra, Augusta no foi to fcil na defesa, e, se repeliu o inimigo, foi com sensveis perdas de sua parte.Daniel acabava de declarar que a amava. No creia, disse ele, que se trata de um amor de poeta. Eu no tenho nada de poeta; nem coisa que me penalize. O meu amor vem um pouco da razo. Sou um homem temperado. Confesso que as suas graas me impressionaram bastante; mas creia que, se no achasse digna de ser minha mulher, no lhe falava nisso. Estou que o amor duraria,

  • pouco mais que as rosas de Malherbe. Quer ser minha mulher?Esta declarao, em que misturava a sinceridade com a insolncia, foi dita com volubilidade, sem fogo nem lgrimas na voz, no meio de tudo com certa graa. Augusta, to fcil em responder, se encontrasse um homem louco de amores, no achou logo uma palavra para opor pergunta e pedido de Daniel.A moa tinha encontrado um sapato para o seu p.A conversa que estou mencionando dava-se a um canto da sala; as demais pessoas estavam entretidas em grupos distintos.Augusta desejou que ali chegasse algum, cuja presena interrompesse a conversao; mas ningum apareceu. Que me responde? perguntou Daniel. Respondo, disse Augusta, que no posso aceitar o seu amor, nem o seu pedido. Por qu?Augusta olhou para ele espantada com a pergunta; mas como visse o olhar do moo, sereno e fixo, respondeu sorrindo: Formalmente, porque o no amo. Isso no razo muito forte... No entanto... O amor viria com o tempo; bastava que me tivesse alguma afeio. No tem? No tenho. Que preciso fazer para vir a t-la? Isso no sei, respondeu Augusta.Daniel tirou o relgio do bolso e depois de consult-lo, tornou a guard-lo silenciosamente. Na indiferena do rapaz, havia um tanto de clculo, mas um tanto de sincero. Apenas guardou o relgio: Pois eu acho, D. Augusta, disse ele, que dificilmente poderia encontrar marido mais conveniente do que eu. Tem boa opinio em si, disse a moa sorrindo. A melhor opinio deste mundo, acudiu Daniel. Convencido de que os outros homens ho de ter sempre a meu respeito uma pssima opinio, eu compenso esse juzo infundado, pensando a meu respeito as melhores coisas possveis. Por exemplo, a sua observao quer dizer que me julga ftuo; eu penso justamente o contrrio a meu respeito. uma compensao, observou Augusta. Ento confessa?... Confesso, que estou com muito calor, disse Augusta, levantando-se.Daniel mordeu os beios; mas levantou-se e ofereceu-lhe o brao. Vamos para a janela?Augusta aceitou sem repugnncia, nem vontade. Com efeito, aqui faz menos calor, disse Daniel apenas chegara janela. E a noite est bonita. Est bonita, repetiu Augusta; mas se l est calor, aqui est frio. No tanto, no tanto. Estou a ver uma coisa, D. Augusta. O que ? que tudo lhe parece exagerado. Nem l faz tanto calor, nem aqui tanto frio. Por que esta maneira de apreciar as coisas? No lhe parece que isso h de lev-la muita vez a ser injusta? Quando assim seja, disse Augusta, eu creio que a primeira vtima da injustia serei eu. Perdo! nem sempre assim acontece; e justamente por isso que a justia me parece uma bela coisa. Queira meditar bem nestas palavras, D. Augusta: no julgue nunca pelos olhos do seu capricho.Daniel dizia todas estas palavras com uma graa to respeitosa que desarmava a moa; e no entanto j tinha o direito de deix-la janela e voltar sala.Quando ele lhe falou nos olhos do capricho, Augusta olhou espantada para ele; depois,

  • respondeu: Os olhos do meu capricho podem ser maus; em todo caso, porm, no usarei dos culos do seu despeito.A aluso era clara; Daniel no contava com esta carga de baioneta. O meu despeito? disse ele; j sei ao que alude. Eu poderia calar-me, mas acaso digno de ns deixar sem resposta uma aluso to graciosamente feita? D. Augusta, eu repito o que lhe disse; amo-a, quisera receb-la em casamento; mas a sua recusa para mim to sagrada que eu nem quero discuti-la; e inspira-me o mesmo sentimento que inspiraria a Virgem Maria se eu lhe pedisse uma graa e ela ma negasse; resigno-me sem pensar mais nisto.Foi uma felicidade que entrassem neste momento Valadares e a mulher. Augusta foi abraar Amlia, enquanto Daniel adiantou-se para ir apertar a mo a Valadares.

    XIIProtestos de resignao em amor so como sentenas escritas na areia; desfazem-se ao primeiro vento. Daniel, que era o tipo da indiferena, comeava a sentir a dolorosa convico de que lhe seria difcil viver sem aquela mulher. Quando chegou a casa, recordou todos os episdios da noite, repetiu entre si as palavras trocadas com Augusta, arrependeu-se das que proferira; por um instante, teve idia de ir-lhe pedir perdo. O tiro da pea ainda o achou acordado.Se durante esse tempo, Daniel pudesse estar no quarto de Augusta, veria a luz da vela confundir-se com os raios da manh. A moa dormiu apenas duas horas e ainda o seu sono foi sobressaltado. Seriam as mesmas impresses? Eu poderia, no interesse do romance, deixar em claro este ponto; mas prefiro dizer francamente aos leitores os sentimentos dos meus personagens.Augusta no velara pelo mesmo motivo que Daniel. Era despeito. A orgulhosa Augusta sentia-se envergonhada com a cena que se passara durante a noite. Humilhara-se com a fcil resignao de Daniel; era a sua primeira derrota.O seu primeiro pensamento foi um pensamento vulgar; lembrou-se de vingar-se do moo, vendo-o a seus ps. Mas, para alcan-lo, no seria preciso conceder-lhe esperanas, e estas no exprimiam a confisso de um triunfo, que lhe parecia odioso?Clculos inteis, dir o leitor de boa f, os desta moa provinciana, que fazia do amor um jogo de xadrez. Que importa? eu narro a verdade. Confesso que era mais bonito, mais juvenil, mais digno, resolver simplesmente pelo corao, amar ou dar de tbua ao pretendente, conforme lhe falasse o sentimento. Mas, se assim fosse, o romance acabaria e seria outra coisa que no a histria que estou relatando.Quando Augusta se levantou tinha os olhos pesados; a viglia deixara-lhe impressos os seus vestgios. E eram belos os seus olhos, no sei at se mais poticos, com a languidez do cansao, do que com a viveza natural. Direi mais: aquele aspecto tornara-a mais mulher, porque Augusta tem no olhar e nas feies um qu de enrgico e severo, que indicava antes um carter masculino.Passaram-se dias sem que os dois se encontrassem: nem Daniel foi casa de Augusta, nem esta se mostrou janela.Numa segunda-feira, apareceu Valadares em casa de Daniel.Convidou-o para um passeio Tijuca, em companhia de vrias famlias. A Augusta vai, disse ele, Que tenho eu com isso? perguntou Daniel.Valadares sorriu. Que tens com isto? cuidei que tinhas alguma coisa...No se amam? Ela tem-me dio. caminho para o amor, ouvi dizer; e tu? Desprezo. Dizem que tambm um atalho que vai ter grande cidade do conjugo vobis.

  • Para a tua cidade! disse Daniel, sorrindo maliciosamente.Valadares suspirou. Para a minha cidade, tens razo! Mas antes no fosse! A coisa vai mal? Vai o pior possvel. Ho de acomodar-se... Tu tratars de ver uma compensao fora das fronteiras conjugais; e ela contentar-se- com as modas novas... Escusas de franzir a testa; esta a tua convico e a minha. O casamento, meu caro Valadares, uma loteria; o teu bilhete saiu branco. dinheiro perdido, ou antes dinheiro ganho, porque ainda que percas tudo, ainda te fica o dinheiro...Valadares engoliu dificilmente a observao de Daniel, falou outra vez no passeio Tijuca e assentou-se que Daniel iria.O passeio fez-se da a oito dias.Entre outras pessoas, achavam-se l Augusta e Lus.Daniel ignorava os sentimentos de Lus em relao a Augusta; demais, conhecia-o pouco.Na primeira ocasio que pde alcanar, Daniel perguntou a Augusta se estava com a mesma resoluo em relao a ele. A mesma, respondeu Augusta.Daniel inclinou-se e comeou a falar da beleza do stio em que se achava.Augusta ouviu-o no sem espanto. Tem grande amor natureza? perguntou ela. Imenso. A natureza no fala. Os poetas dizem o contrrio, retorquiu a moa sorrindo. E dizem bem; a natureza fala, mas fala como uma alma deve falar a outra, sem intermdio dos lbios. Ora, eu tenho notado que o falar perigoso para as nossas iluses; uma palavra destri s vezes um mundo.Augusta mordeu os lbios. Veja, disse Daniel, colhendo uma flor agreste que lhe ficava ao alcance da mo. H nada mais do que isto? Esta flor diz mil coisas justamente porque no pode articular o que me diz: o perfume a sua linguagem; esta cor branca ligada com esta cor azul formam uma frase que eu compreendo sem explicar. A coitadinha desta flor no pode fazer mal; mas, se eu por um capricho qualquer, achasse na sua linguagem alguma coisa que me ofendesse, tinha o remdio nas mos; destrui-la-ia assim...E Daniel esmagou a flor entre os dedos.Augusta olhou para a flor e para Daniel. Nem um gesto de surpresa ou de despeito; apenas sorriu, dizendo: Mas, ainda esmagada entre as suas mos, essa flor vale mais que o senhor, porque...Lus aproximou-se do grupo quando Augusta ia continuar. D. Augusta, disse ele, sua me quer falar-lhe.Augusta foi ter com a me. Est um bonito dia, disse Lus a Daniel. Est, respondeu o rapaz distrado.E voltou os olhos para Augusta que se afastava.Lus viu o gesto e procurou adivinhar o olhar de Daniel. Palpitou-lhe o corao mais fortemente; que haveria entre eles?Alguns minutos durou o silncio; no fim deles, Daniel voltou-se para Lus e encetou uma conversa; Lus respondeu por monosslabos ao interlocutor, at que o jantar veio pr termo situao esquerda em que se achavam os dois.

    XIIIDaniel levantou-se um dia com a idia de fazer uma viagem a Minas.Sentia que Augusta j o prendia mais do que convinha ao seu corao; nasciam-lhe foras at ento ignoradas. A indiferena da moa fazia-lhe supor que lutava em vo;

  • temia o desgosto. Resolveu viajar.Valadares recebeu uma manh a seguinte carta:Valadares,Vou para Minas amanh. No sei se terei tempo de ir fazer-te as minhas despedidas. Recomenda-me tua senhora. Teu do coraoDaniel.Apenas Valadares recebeu a carta, foi imediatamente ter com o amigo. Vais para Minas? verdade. Que tempo te demoras l? Uns cinco meses. Queres alguma coisa? Estava capaz de ir contigo. E tua mulher? Fica. Pois tens nimo? Pois ento! Eu te digo; tenho at necessidade de ver-me livre por algum tempo de semelhante algoz... Valadares, isso no bonito... Seja bonito ou no, eu vou contigo; mas s te peo uma coisa. O que ? Que adiemos a viagem para a semana que vem. Impossvel. Por qu? Tenho minhas razes.Valadares fez uma careta de desgosto; insistiu, mas Daniel resistiu ao convite. Ento, no poderei ir, disse Valadares. No sei por qu. Ora! ir s aborrecido. Contigo, a coisa era outra. Olha l; e se fssemos a Paris? Isso mais tarde.A conversa durou pouco mais. Valadares saiu desconsolado. Daniel continuou a dar as suas ordens precisas para a viagem.Foi nessa mesma tarde casa de Augusta despedir-se da famlia e oferecer-lhe os seus prstimos em Minas. A me de Augusta agradeceu-lhos e ao mesmo tempo participou que, acabada a sesso do Parlamento, partiriam para o Norte; e, portanto, s no ano seguinte se poderiam encontrar. At para o ano, disse Daniel tranqilamente.Augusta no manifestou surpresa, nenhum desgosto com a notcia da viagem de Daniel; conversou alegremente com ele sobre coisas nteis; tocou um pouco de piano e despediu-se dele como se tivesse de v-lo no dia seguinte.s seis horas, estava Daniel em casa, de volta da casa de Augusta.Mas da a cinco minutos, parava-lhe um carro porta. Quem ? perguntou ele ao criado.O criado foi ver e voltou. uma senhora, vem subindo.Pouco depois entrou-lhe na sala Amlia Valadares. Desculpe se venho assim sozinha casa de um homem solteiro. Desculpar? disse Daniel, convidando Amlia a sentar-se. No h que desculpar; h que agradecer. Ento, como vai de sade? Assim, assim... creio que preciso fazer uma viagem a Minas Gerais, e j mandei fazer-lhe minhas despedidas por intermdio de Valadares. Ele me disse isso, e justamente por causa desta viagem que eu venho aqui.Amlia sorriu-se com ar sonso.Daniel no atinou com a ligao da viagem a Minas e a visita da mulher de Valadares.

  • Venho reforar, disse Amlia, um pedido de meu marido.Daniel j se no lembrava que pedido era. Um pedido? disse ele. Qual? Valadares entrou agora l em casa muito triste; perguntei-lhe o que tinha e contou-me que, desejando ir a Minas com o senhor, no pudera obter que o senhor adiasse a viagem at a semana que vem. Ora, isso justamente o que lhe venho pedir.Desta vez, foi Daniel quem sorriu. No podia, respondeu ele, adiar a viagem h tanto preparada; mas, vista do pedido, no posso recusar o adiamento. Diga a Valadares que pode contar comigo. Agradeo-lhe o obsquio, disse Amlia muito satisfeita, e creia que favorece a meu marido. favorecer a V. Excia., creio, interrompeu Daniel. Pode dizer que conte comigo.A mulher de Valadares levantou-se para se despedir, e nesse ato fez o que fizera ao princpio, segundo costumava, correu por toda a sala olhos minuciosos. Desculpe, disse Daniel, desculpe o desarranjo em que isto se acha... Estou em vspera de viagem; e bem v... Pois no; desculpo tudo, disse Amlia aproximando-se de uma mesa. So lindos estes objetos de bronze; so principalmente de bom gosto... O senhor tem bom gosto. Creio que sim... Por exemplo, a Augusta...E calou-se. Que tem a Augusta? perguntou Daniel. A Augusta bonita; e o senhor mostra que tem bom gosto... Maliciosa! bem sabe que... Sei que o senhor gosta dela. Perdo, gostei dela.Amlia sorriu, mas no respondeu. No teria acreditado? Daniel suspeitou-o; e quando ia continuar a conversa para deixar-lhe bem claro no esprito que j nada havia dele para com Augusta, a mulher de Valadares chamou a ateno para no sei que volume que estava sobre a mesa.Como ele lhe explicasse o que era o livro, ela continuou no exame dos objetos que viu sobre a mesa.Amlia era naturalmente indiscreta e leviana. A visita casa de Daniel era j um ato de sofrvel leviandade; a demora, e a bisbilhotice com que examinava a sala tinha mais graves conseqncias. Que pensaria Daniel se no conhecesse o esprito frvolo da moa?De repente, Amlia, indo levantar um lbum, viu debaixo um objeto que lhe chamou a ateno; era uma liga. Daniel estava voltado para um espelho e no viu o gesto da moa. Amlia examinou a liga e viu duas iniciais; as iniciais de Augusta.O leitor lembra-se do episdio da Rua do Ouvidor.Quando Daniel se voltou para Amlia, viu-a sorrir; aproximou-se e reparou que ela estava com a liga nas mos. No lhe ocorrendo a circunstncia das iniciais (circunstncias bem prprias de romance), Daniel arriscou a seguinte observao: Fez mal em descobrir isso: um despojo de vencido. Ah! disse Amlia.E mostrou as iniciais de Augusta.Daniel empalideceu.Amlia olhou para ele, atirou a liga sobre a mesa, e disse, caminhando para o espelho: No se assuste; eu sou de segredo.Daniel tinha recobrado o sangue frio. Assustar-me de qu? perguntou ele. No sei, respondeu Amlia, consertando o chapu. Alm de que, no segredo. Ah! no segredo ? Eu cuidei que era... No me disse h pouco que j no gostava

  • dela? Perdo, disse Daniel aproveitando a aberta que lhe davam essas palavras; eu creio que est enganada. Estarei enganada, e o Lus tambm. Quem o Lus? O deputado, respondeu Amlia rindo.E apertando a mo de Daniel acrescentou: Adeus, adeus! tenho pressa. Tenho a sua palavra; s ir na semana que vem.E antes que Daniel lhe oferecesse o brao ou procurasse det-la, saiu da sala e desceu as escadas.Da a pouco, partiu o carro.

    XIVDaniel no pde conter um gesto de despeito, apenas Amlia saiu.Tinha vontade de ir agarr-la e castig-la de toda a leviandade com que procedeu entrando em sua casa. O incidente da liga, e as meias palavras com que ela o encerrou, tudo estava fervendo no esprito at h pouco tranqilo de Daniel. Que leviana! dizia consigo. Vir casa de um homem solteiro por um modo to singular; fazer-me o singular pedido de ir com o marido para fora; revolver os meus mveis; caluniar pessoas a quem abraa... Ai, Valadares, que mulherzinha te caiu nos braos!

    XV Valadares era menos exigente que Daniel.O que lhe parecia mal em Amlia eram as impertinncias da mulher faceira, os caprichos, as imposies, de maneira que tudo acabaria se estivesse algum tempo fora dela... a espairecer.Cuidou que a viagem a Minas era boa ocasio; mas Daniel no quis adiar a sua viagem para esper-lo. Amlia soube disso e foi ajud-lo nos seus desejos pedindo esse favor ao prprio DanielQuando no dia seguinte, de manh, Valadares encontrou a mulher mesa do almoo, disse-lhe ela: J preparaste as malas? Para qu? Para a viagem a Minas. S, no vou. Vai com o Daniel. Mas ele no quer adiar... Quer. Como sabes? Pedi-lho eu.Valadares tomou a liberdade de abraar entusiasticamente a mulher diante da criada, cujo pudor lhe aconselhou imediatamente uma excurso cozinha. No sabes como te agradeo o que fizeste por mim. Ah! tens muito prazer em ir a Minas? Queres esquecer-me? Eu, lindinha? Nem por sombras. Quero estudar a provncia, e alm disso preciso de tomar ares. O Valado diz que eu estou caminhando para a cova, e que preciso reforar a minha constituio. Sabe Deus que saudades levo de ti! Mas tu no queres ir. Bem sabes que no posso.O almoo terminou alegremente; parecia que aqueles dois gals j saboreavam a felicidade de se separarem durante algum tempo.Daniel resolveu responder s tolices de Amlia com partida imediata, sem embargo da

  • promessa anteriormente feita. Ao princpio, repugnou-lhe o ato que era descorts; mas venceu o aborrecimento que Amlia lhe causara na tarde em que foi visit-lo.E justamente quando Valadares agradecia mulher os esforos que fizera em favor dele, estava Daniel em caminho para Minas, acompanhado de um simples criado.Valadares sara de casa para ajustar objetos de que precisava para a viagem. s duas horas, lembrou-lhe ir ter com Daniel. Onde est o amo? perguntou a um criado que l encontrou. Saiu, respondeu o criado. Volta? Foi para Minas. Para Minas...Valadares ficou contrariadssimo com a noticia. Parece, disse o criado, que eu tenho aqui uma carta para o senhor. Para mim? D c.O criado foi buscar a carta e entregou-a a Valadares.A carta dizia assim:Valadares,Prometi tua mulher que adiaria a viagem; mas sinto no poder cumprir a palavra prometida a to gentil senhora, porque entrou-me por casa uma fria, uma bisbilhoteira, uma mulher sem pinga de juzo que ps a minha sala e o meu esprito em desordem. Para esquecer esta hspede inesperada s me resta o recurso de precipitar a viagem. At l ou at volta. TeuDaniel.Valadares leu a carta e no a entendeu muito bem.Quando Amlia soube que Daniel, a despeito da promessa que lhe fizera, havia partido, sentiu-se um pouco humilhada; mas como as impresses da moa eram passageiras, o ressentimento no lhe durou mais de um quarto de hora. Ficou, porm, despeitada com o bilhete de despedida de Daniel. Aquilo que Valadares no compreendia, Amlia o compreendia demais. Achou-se injuriada com as expresses da carta e mais ainda porque fora sem dvida escrita na previso de ser lida por ela.Valadares resolveu seguir viagem na poca escolhida por ele; mas um acontecimento estranho nossa histria impediu que a viagem fosse executada. Achando-se numa ceia com rapazes e moas, Valadares sentiu-se preso pelas algemas do amor, e sacrificou a viagem a Minas nas aras de uma Las de contrabando.Nunca mais falou em viajar.Amlia ainda tentou mand-lo tomar ares; e Valadares, que em todas as ocasies, era o tipo do esposo maricas, desta vez resistiu violentamente, prova de que amava profundamente... a outra.

    XVIQuando Augusta soube realmente que Daniel partira para Minas, sentiu uma decepo; apesar da despedida solene que este lhe fizera e famlia, Augusta acreditava que a viagem nunca seria executada.No supunha, note-se, que Daniel estivesse a fazer comdia, quando se despediu deles; mas acreditava que lhe seria difcil deixar a corte. que, apesar de tudo, Augusta estava convencida de que Daniel amava-a loucamente.O advrbio era demais.Daniel amava a rapariga, e justamente para acabar com esse germe, que j comeava a desenvolver-se no corao, que ele fazia aquela viagem. Ouvira dizer que as viagens so excelentes contra o reumatismo da corao.Augusta sentiu-se ferida; o despeito pde muito naquela ocasio.A sua esperana foi que, demorando um ltimo olhar na janela da casa dela, Daniel no pudesse seguir viagem e tornasse a entrar para casa, dispondo-se a encadear a

  • existncia ali a seus ps.A esperana foi iludida.Mas para que desejava Augusta isso, se o no amava?No sei; desejava-o.Madalena procurou sondar o corao da filha, depois da partida de Daniel. Que sentes tu a respeito desta ida sbita do dr. Daniel? perguntou-lhe uma tarde. Eu, nada, respondeu Augusta. Acha que devo sentir alguma coisa? No; era simples pergunta. Sabes que ele gostava de ti.Nenhum palavra mais se conseguia arrancar a Augusta relativamente a este negcio.Um dia, Lus estando com ela anunciou que voltava para a provncia, e que estava disposto a abandonar a carreira poltica. Acrescentou que at ento tivera alguma esperana, mas que essa mesma se desvanecera. Pensei, disse Augusta, pensei que j no houvesse esperanas para o senhor. Havia uma... Qual? A de ser amado quando j todos se houvessem esquecido de mim! Perdeu essa esperana? disse Augusta. Olhe que no perdeu grande coisa. Perdi, porque ela era fundada numa base falsa. Eu acreditava at agora que o seu corao era mudo. Ah! Mas sei que no; o seu corao falou. Que disse ele?Augusta estava disposta a gracejar; as suas ltimas palavras foram ditas com um riso de escrnio, cujo segredo s ela possua. Disse que ama a um ausente...Augusta levantou-se ao ouvir isto; olhou fixamente para, Lus e disse: Ou iluso sua ou calnia de algum! Demais, creio que pouco lhe deve importar o sentimento do meu corao... Importa-me muito, dona Augusta. No quero falar-lhe de amor, pois que j mo proibiu; mas permita que lhe pergunte s por que razo eu...Augusta lanou-lhe um olhar de profundo escrnio e desprezo, voltou-lhe as costas e saiu. demais! disse Lus.Pegou no chapu e retirou-se. Que isto? Por que motivo nutro eu uma esperana v? Para ser insultado todos os dias? Aquela mulher uma esttua; no tem sangue, nem alma. feita de um pedao de mrmore. Amar para qu? para ter neste amor o meu tormento e a minha humilhao? No! demais! tudo precisa de um termo.Desse dia em diante, Lus no voltou casa de Madalena. XVII

    O procedimento de Augusta era objeto da curiosidade de todos. Por que motivo esta moa recusa todos os pretendentes? diziam as mes de famlia; parece que no quer casar. Querer ficar para tia?O argumento era singular; devia ocorrer a todos que Augusta recusava os pretendentes justamente por que no gostava de nenhum.Mas a reflexo das mes de famlia era que um casamento nunca se recusa, salvo circunstncias especiais.Madalena respeitava os escrpulos da filha; queria v-la feliz e entendia que o melhor meio era cas-la com quem lhe falasse ao corao.Mas onde estava esse fnix, visto que nenhum at agora lhe agradara?Augusta conservava-se na sua torre de marfim, pouco disposta a ceder s instncias, nem de Lus, nem de Daniel. Viu partir um e outro sem a menor emoo. Quem teria

  • razo? Os que esperavam que chegasse a Augusta a hora do amor ou os que a julgavam uma simples esttua de mrmore?Tinham j corrido dois meses depois da partida de Daniel para Minas Gerais, quando Augusta encontrou Amlia na Rua da Quitanda, indo a primeira com a me ver umas fazendas, e vindo Amlia de um passeio com Valadares. Era raro que os dois andassem juntos; Valadares gracejara muito por essa circunstncia, apenas encontrou as duas senhoras. No repare, D. Madalena; o sol e a lua ao p um do outro sinal evidente de eclipse.Depois de alguns minutos de conversa, Amlia seguiu com Madalena e a filha, ao passo que Valadares foi a outras ocupaes. Amlia jantaria com as amigas e voltaria noite para casa. Valadares escusou-se, dizendo que tinha um jantar diplomtico. Com efeito, ao jantar a que ele assistiu, estiveram presentes alguns secretrios e adidos de legao; mas o carter do festim tinha mais de guerra que de diplomacia. Notas, se as havia, no eram de embaixada. J sabe que a nossa partida est prxima? disse Madalena a Amlia, apenas chegaram casa. Ah! Apenas se fecharem as cmaras, continuou Madalena, vou deixar o seu Rio de Janeiro.Amlia olhou para Augusta com uma insistncia que a moa no compreendeu. Vai deixar o meu Rio de Janeiro, disse Amlia depois de alguns instantes. No gosta dele? Muito, decerto. magnfico, disse Augusta; mas a nossa provncia... Amor de bairro, respondeu Amlia sorrindo. Ser, ser, mas no somos todos assim? Conforme. s vezes, muda-se de sentimento, conforme os afetos que encontramos nos lugares novos. Isso no sei. No achou c alguma coisa? Coisa nenhuma.Augusta disse isto com tanta frieza e firmeza, que Amlia no pde reprimir um gesto de espanto. Pois olhe, disseram-me... O qu? perguntou Madalena.Amlia hesitou alguns instantes. Estou gracejando, disse ela.Mas da a algum tempo, achando-se a ss com Augusta, disse-lhe: Disseram-me que estavas apaixonada pelo Daniel. Eu? Qual! Disseram-me... Juras que no verdade? Juro. Ento, toma cuidado!... Por qu? Porque podem diz-lo e ento... Que importa que o digam? disse Augusta. Perdo; importa muito. Se disserem, por exemplo, que fizeste presente de uma liga ao Daniel, como se fosse uma flor ou um boto de camisa... Diro uma tolice. Mas se disserem que ele possui esse objeto? Que ele possui? Ora essa! Ests brincando, Amlia.Amlia contou-lhe o episdio da casa de Daniel.

    XVIII

  • No fim de uma ausncia de quatro meses, voltou Daniel ao Rio de Janeiro.A viagem foi uma verdadeira restaurao. Daniel achou-se como sempre fora, tendo perdido o menor vestgio do parntese que se dera em sua existncia.A falar verdade, Daniel achava agora que fora ridculo durante os dias em que se sentiu apaixonado por Augusta. O carter indiferente do rapaz, por um momento agitado, voltou a ser o que era.Entrou em casa de noite, e no tendo prevenido a ningum, ningum foi esper-lo chegada.Ao entrar em casa, no pde deixar de olhar para a casa de Augusta. Ignorava se ainda ali moravam ou se haviam partido para a provncia. A casa estava silenciosa.O criado, que o recebeu, deu-lhe notcia de que a famlia de Augusta ainda morava na mesma casa. Mas quem te perguntou por isso? disse Daniel. Eu lhe digo, meu amo; que, de quando em quando, mandavam saber de l quando que meu amo chegava? Sim? verdade. E h coisa de trs dias recebi uma carta com ordem de entregar-lha apenas chegasse. Uma carta? Sim, senhor; est no seu gabinete. Deixa-me ir descalar as botas.Noutro tempo, Daniel teria ido ver a carta primeiro; agora, preferia descalar as botas. Sirva isto de termmetro; quando um homem procura antes de tudo ler uma carta, ama; quando descala as bota antes, j no ama. receita que lhes dou de graa.Descaladas as botas, Daniel foi ler a carta.Era de Augusta.Dizia assim:Apenas chegar, peo-lhe que venha nossa casa. Desejo falar-lhe.Augusta. Ol! disse Daniel em voz alta; dar-se- caso que a menina mudasse de opinio? Que diabo me querer ela? Se vem falar de amores, estou disposto a no admitir conversa neste ponto; captulo acabado. Amanh, veremos a coisa.E reparando que o criado ouvira este solilquio, voltou-se para ele rindo: Joo, ouviste o que eu disse agora? Eu s ouo o que meu amo quiser, respondeu o criado sorrindo maliciosamente. Ainda bem. D-me de comer.Daniel comeu tranqilamente como um homem que chega de uma viagem de recreio. Veio algum procurar-me? Veio o sr. Valadares duas vezes. Parece que tem graves acontecimentos para comunicar-lhe. A mim? Disse-me isto. Vai dizer-lhe que eu voltei e o espero hoje mesmo.O criado saiu.Daniel releu o bilhete de Augusta, e no podia furtar-se ao espanto que lhe causava a sem-cerimnia da moa, escrevendo e assinando um bilhete que podia compromet-la. Tudo natural naquele gnio excntrico, dizia ele consigo.Cerca de uma hora depois, chegou Valadares.Depois de um apertado abrao de boas-vindas, Valadares sentou-se e pediu a Daniel a sua mais profunda ateno. Estava ansioso por ver-te, disse ele. Aqui estou. Tua mulher? No me fales dela.

  • Por qu? Quero propor ao de divrcio. Eu j contava com isso, disse Daniel tranqilamente. Dizem que dois gnios iguais no fazem liga; parece que o adgio certo, visto que vocs ambos eram o tipo da frivolidade... Daniel! Desculpa a franqueza; um direito de amigo. At hoje, no descobri outro mrito num amigo seno o de dizer coisas desagradveis ao outro amigo, sob pretexto de que a franqueza um dever do corao. Portanto, sustento que vocs dois no se podiam ligar, pois eram e so dois espritos frvolos. E tu, queres passar por um homem grave? Deus me defenda! Eu no sou grave, nem frvolo, sou indiferente. So dois extremos. Eu estou entre estes dois plos do esprito humano. O carter como a gravata; uns usam pr gravata uma fitinha preta, so os frvolos; outros um leno de dois palmos de altura, so os graves. A primeira constipa, a segunda sufoca; eu uso gravata regular.Valadares soltou do peito um ruidoso suspiro. Bem; esquece os meus defeitos para atender somente aos meus infortnios... No posso viver com Amlia, devo separar-me a todo custo. resoluo assentada? Ento o meu conselho intil. Nem eu te peo conselho. Quero simplesmente que me defendas, quando me acusarem. Isso no! Por qu? No quero intervir em negcios de famlia.A resposta de Daniel foi to fria que Valadares no achou objeo razovel. a tua ltima palavra? perguntou ele. A ltima.Seguiu-se a isto um longo silncio.Valadares levantou-se, deu alguns passos, acendeu um charuto, enquanto Daniel punha em ordem alguns papis. Como te foste de viagem? perguntou Valadares. Bem. E quando eu penso que podia ter ido contigo... A propsito, continuou Valadares, que me querias tu dizer na carta que me mandaste e que eu no entendi? Ah! queria dizer que no podia esperar. Mas h certas palavras... Isso no vale a pena. Tua mulher leu a carta? Leu. Ah! se eu tivesse ido contigo! Mas aquilo por l muito aborrecido? Conforme, disse Daniel; para quem gosta da corte e da Rua do Ouvidor, deve ser aborrecido; eu acomodo-me bem em toda a parte. verdade que se eu fosse perdia muita coisa. Sim? Coisas do arco-da-velha. Sabes que temos gente nova? Onde? No Alcazar. A rapaziada agora anda muito animada. Eu estreei ontem este palet num grande jantar na Tijuca... jantar de Citera. Como achas o palet? Acho bom. Manda fazer um, porque a moda isto agora. Tenho pena de no ter trazido os figurinos; os cortes das calas so excelentes. Estas que eu tenho j passaram da moda; trouxe-as, porque vim depressa e noite. E os padres?Valadares continuou neste gosto at que bateram dez horas. Daniel alegou que estava cansado e precisava dormir. Valadares saiu, prometendo voltar no dia seguinte, a fim de ver se obtinha uma resposta dele. Sobre o divrcio ou sobre as calas?

  • Uma e outra coisa, disse Valadares descendo a escada.

    XIXNo dia seguinte, noite, Daniel foi visitar a famlia de Augusta.O rapaz tinha curiosidade de saber que impresso lhe produziria a moa. Posto que no sentisse mais nada por ela, queria ver se o simples aspecto do rosto ex-amado teria fora de despertar as recordaes extintas.Entrou firme e tranqilo na sala.Madalena esperou-o porta; Augusta estava no sof, e levantou-se apenas Daniel apareceu.Feitos os cumprimentos do estilo, depois de uma longa viagem, Daniel disse que no cuidava encontr-las no Rio de Janeiro, visto estarem fechadas as cmaras e ter o irmo de Madalena necessidade de voltar provncia. A necessidade desapareceu por enquanto, disse Angusta; meu tio demora-se algum tempo... O que um prazer para ns todos, disse Madalena.Daniel curvou-se em sinal de assentimento.A conversa tomou outra direo at que chegaram algumas visitas mais.Daniel pde ficar algum tempo a ss com Augusta, no canto de uma janela. Recebeu uma carta minha? perguntou a moa. Um simples bilhete. Isso mesmo. No me julga leviana? No; apenas audaz. um sinnimo neste caso. Seja o que for; o certo que recebeu a carta... e veio. Viria em todo caso, observou Daniel; mas o seu bilhete apressou a minha visita. Sabe o que lhe quero? No adivinho. Lembra-se o que me disse h tempos? Disse-lhe que a amava. Pois bem, proponho-lhe uma coisa. Quer casar comigo?Daniel ficou espantado com a franqueza desta pergunta. Fez-lhe o mesmo efeito de uma bala em cheio no estmago. No atinando com a resposta, murmurou um monosslabo. Quem visse os dois julgaria que os papis estavam trocados. Daniel assemelhava-se a uma donzela tmida, e Augusta a um cavalheiro amante e solcito, querendo arrancar da amada a resposta decisiva.No fim de alguns segundos, disse Augusta: No responde? Quer que lhe responda ? perguntou Daniel, readquirindo o seu sangue frio. to singular esta pergunta feita por V. Excia. Singular? No acho. Singular por dois motivos. O primeiro que essa pergunta costuma sempre ser feita por ns outros; aqui os papis esto trocados; o segundo que, depois do que me disse h tempos, a... Mudei de opinio. De opinio? perguntou Daniel, sorrindo. De sentimento, queria eu dizer, respondeu Augusta. No exijo a resposta imediatamente; basta que a mande amanh.E retirou-se da janela.Daniel ainda ali ficou algum tempo, aturdido com o que acabara de ouvir. Tudo lhe parecia estranho naquela moa. Para sup-la leviana encontrava um desmentido no seu carter, que estudara outrora; seria o que ele lhe disse a ela mesma, apenas uma audaciosa?Daniel meditou nessa noite na resposta que lhe havia de dar, ou antes na forma de

  • resposta, porque a resposta era negativa. Consultou o corao e reconheceu que nada sentia por ela. Estava frio. Engan-la, seria baixeza; mais valia ser franco.Mas como dizer-lhe, sem que lhe ofendesse os brios, esta revelao inesperada?No dia seguinte, depois de muito meditar escreveu a carta seguinte:Minha senhora,A singularidade da nossa situao s pode ter uma soluo singular. Convidado a casar por uma moa bonita, prendada, que a todos os respeitos a ambio de um homem, singular que esse homem, no tendo outros compromissos, recuse o convite. Pois justamente a minha resposta; tomo a liberdade de recusar.No me acuse, porm, antes de meditar bem nas consideraes que me obrigam a recusar o seu convite. Aceit-lo-ia, quando eu a amava; hoje, que o sentimento que lhe votava desapareceu de todo, no posso faz-la feliz, porque casar sem amor desgraar uma senhora.Tudo isto singular; a maior parte dos casamentos fazem-se independentemente do amor. Mas, que quer? Eu, profundamente ctico, a respeito de tudo, tenho a veleidade de crer no amor, ainda que raro, e quero que o amor seja a nica razo do casamento. vista destas razes, o meu procedimento, recusando, to nobre e digno como vil seria se aceitasse. Creia-me, entretanto, seu amigo e respeitador.Fechou a carta e mandou-a.Que impresso produziria ela no nimo de Augusta?

    XXAugusta no se mostrou irritada com a resposta de Daniel; conteve a irritao; revelar-se, era contrrio ao seu orgulho; no queria faz-lo e no fez.Mas, poucos dias depois, notavam-se as visitas repetidas de Lus casa de Madalena; as pessoas que freqentavam a casa notavam, tambm, que as relaes entre o deputado e Augusta eram muito mais cordiais do que antes.Madalena quando percebeu isto, estimou muito que a situao tivesse tomado aquele carter; preferia v-la casada com um homem que parecia merecer toda a confiana.E seria namoro?Alguns afirmavam que sim; outros que no.Todos concordavam, porm, que a situao entre ambos tinha-se modificado muito.Lus, pela sua parte, j se acreditava mais feliz; no que ela desse esperanas positivas; mas todo o seu procedimento dava a entender isso mesmo.Daniel, depois da carta que escreveu a Augusta, hesitou em freqentar a casa; mas, ao mesmo tempo curioso por ver o efeito da carta, resolveu l ir, e com efeito apareceu ali quinze dias depois do ltimo em que l estivera.Como o recebeu Augusta?Daniel ia atravessando um corredor e encontrou Augusta que vinha de uma sala interior. A moa apenas o viu foi mais depressa para ele, com um sorriso nos lbios, a ponto que o rapaz, contando com um gesto de despeito ou ao menos de indiferena, ficou como dizem, desapontado.Trocaram alguns cumprimentos, depois dos quais Daniel perguntou a Augusta: Perdoou-me? Perdoei-o.Augusta disse estas palavras com tanta graa que Daniel sentiu-se arrependido de ter mandado a carta.Nessa noite, l esteve Lus como de costume.Madalena recebeu Daniel com um sorriso de piedade. Ignorava a troca de cartas, mas o sorriso queria dizer: O que perdeu o senhor! Vai outro ser feliz!Daniel mostrou-se amvel com todos. Augusta no demonstrou o menor sintoma de desagrado, em relao ao rapaz.

  • Ser isto natural? ou simplesmente hipocrisia? perguntava Daniel consigo.Lus estava radiante de amor. J para ele no havia dvida de que triunfava finalmente a sua perseverana.A presena de Daniel que, em outra poca, o incomodara, j agora lhe era indiferente.Por sua parte, Daniel conhecia pelo ar de Lus que a situao estava toda a seu favor.No quis disputar-lha.Somente, refletiu um pouco sobre a facilidade com que Augusta passava de um a outro namoro.A coisa no seria de admirar noutra mulher; mas na orgulhosa Augusta!

    XXIDaniel ao entrar em casa recebeu uma carta que l deixara Valadares.Besta vez, o janota ia divorciar-se da mulher.Daniel sorriu e atirou a carta a um lado; mas no dia seguinte de manh, apenas saiu rua, recebeu a notcia como certa.Tinham-se finalmente separado aquelas duas almas que no foram feitas para ser unidas, apesar da conformidade das tendncias que se notava entre ambas.O prprio Valadares veio confirmar a notcia.Daniel encontrou-o no Rocio, junto esquina do Clube Fluminense. Sabes, meu rico Danie1? O qu? Que eu vou pr a sela margem, a sela minha mulher. Tu s o burro, disse Daniel rindo. Com trs r r r. Mas eu ouvi dizer que j estavam separados? J me mudei de casa; agora vamos tratar judicialmente do divrcio. Mas j pensaste nisto maduramente? J pensei demais; se me no separo to depressa, iria para o hospcio. Se l estivesses h mais tempo, no te casavas. Isso verdade...Despediram-se.. Daniel foi rindo interiormente da situao de Valadares.Na primeira vez em que se achou em casa de Augusta, encontrou l Amlia.A mulher de Valadares estava alegre como se no se houvesse dado na sua vida acontecimento de grande monta.Daniel no lhe disse nada; mas Amlia, na primeira ocasio em que se achou com ele mais separada dos outros, contou-lhe a mesma coisa que o marido, com a diferena de que desta vez a vtima era ela e no ele.Daniel ouviu como amigo a narrao que Amlia lhe fazia, mas absteve-se de dar resposta nenhuma. Tudo isto, pensava ele consigo, voltando para casa, so argumentos para no casar nunca!Anunciou-se um grande baile dado pelo tio de Augusta que se retirava com toda a famlia para a provncia. O velho deputado no era dado a essas coisas; mas, a pedido da sobrinha, fez tudo o que ela lhe indicou.Augusta queria ter na corte um ltimo triunfo.Com efeito, na noite do baile esteve esplndida. Tinha o condo de ser elegante, com simplicidade. Sobrava-lhe gosto. E tudo quanto podia fazer, f-lo para aquela noite, que devia ser a sua ltima campanha.Lus ficou deslumbrado, quando a viu entrar na sala, e no menos deslumbrado ficou Daniel.A moa aceitou Daniel para seu primeiro par. Sabe que est deslumbrante? disse-lhe o rapaz, tomando o lugar na quadrilha. Deveras?

  • o que lhe digo. Demais, j todos os olhos lhe esto dizendo isto mesmo.Depois dos antecedentes havidos entre Daniel e Augusta, era impossvel que fossem mais familiares.Posto que Lus tivesse j grandes esperanas, com visos de certeza, de dominar completamente o corao de Augusta, todavia estava um pouco incomodado com as atenes que a moa tinha para com Daniel.Tudo, porm, desapareceu, quando Augusta o aceitou para par da seguinte quadrilha. No tive a satisfao de danar a primeira, disse Lus, mas espero que me conceda a segunda. No nos compromete isso? disse Augusta. Por qu? Dizem que a segunda quadrilha dos namorados.Lus sorriu cheio de satisfao. Dizem, verdade, respondeu ele sem saber bem o que dizia.No correr da quadrilha, desapareceu a menor sombra de susto de Lus. Augusta estava mais do que nunca amvel com ele.

    XXIIJustamente no fim da quadrilha, entrou na sala Amlia Valadares, sem o marido.J sabemos que Amlia era bonita; sabia vestir-se, exagerando um pouco as modas, verdade; naquela noite, vinha bem; no havia exagerao e havia, portanto, elegncia.Poucas pessoas sabiam at ento da resoluo tomada entre ela e o marido para se separarem. Por isso, foi-lhe fcil responder aos que lhe perguntavam por Valadares: Foi a um jantar poltico. Vir logo.Desculpem a leviandade da rapariga; ela no dava mais de si.Quando Amlia entrou, viu Augusta pelo brao de Lus, conversando amigavelmente com ele; pela noite adiante, reparou nessa intimidade maior que a que at ento existia. Ser amor? perguntou ela consigo.Na primeira ocasio que teve para conversar mais largamente com Augusta, aproveitou-a. Foram para uma pequena sala de descanso, e a, enquanto se danava uma valsa, sentaram-se as duas num sof. Dou-lhe os meus parabns, disse Amlia. Por qu? Est de namoro e casamento pronto. Nem namoro, nem casamento, respondeu Augusta. Mas h esperanas de unio? Isso sim. Logo... Quer que lhe diga uma coisa? natural que eu acabe casando com o Lus, mas no por amor dele...Amlia, neste ponto, pensou em Valadares. Caso-me por duas razes: a primeira para acabar com os pretendentes minha mo, continuou Augusta. E os pretendentes ao corao? Oh! esses! A segunda razo qual ? A segunda razo, continuou Augusta, que o melhor meio de esquecer...A moa hesitou. Acaba! disse Amlia. Escute, minha amiga; um segredo que s aqui ficar. Sabe a quem que eu amava e amo deveras? Ao Daniel? Sim.

  • Eu desconfiava. S aquele orgulho misturado de indiferena podia domar a minha indiferena e o meu orgulho. Mas ento?... Ento, que tendo recusado sempre o que ele pediu, que era a minha mo e meu corao, cheguei um dia a oferecer-lhos. E ele? Recusou. Pelintra! No; era justo; a culpada foi eu. Mas agora preciso carregar a minha cruz. Quero ir para o Norte j e ver se esqueo isto... O Lus h de ajud-la a esquecer o amor de Daniel. Qual! disse Augusta com um gesto de tanta indiferena que seria capaz de gelar o Vesvio em horas de exploso. Acabou-se a valsa, vamos passear, disse Amlia.E saram da sala.Apenas transpuseram a soleira, saiu de um gabinete contguo um homem que ali se achava, algum tempo antes de l entrarem as duas raparigas.Era Lus.O gabinete era o lugar em que trabalhava ou lia o tio de Augusta. Precisando escrever um bilhete, Madalena o levou ali, onde se achava quando as duas moas chegaram.Quando entrou na salinha, estava lvido.Tinha ouvido a verdade mais cruel de todas; uma mulher que fingia gostar dele, sendo indiferente; que se casaria com ele para escapar aos pretendentes, e que, casando-se, levava no corao a lembrana e o amor de outro.Lus ficou atordoado com o que ouvira; a sua primeira idia foi aparecer no meio das duas moas, quando elas confidenciavam; mas reconheceu que isso apenas o exporia ao ridculo.Quando percebeu que elas tinham sado, fugiu do gabinete, onde abafava. As duas moas, como disse, tinham j sado; Lus ainda viu de longe a formosa cabea de Augusta, dominando as outras como a de uma rainha.Deu alguns passos cambaleando; depois atravessou a sala grande, e, sem que ningum o percebesse, foi-se embora.Durante a primeira meia hora, no se reparou na ausncia dele. Mas, afinal, descobriu-se que Lus tinha sado. Sem dizer-mo! pensou Augusta. singular!No dia seguinte, Lus amanheceu doente; uma febre grave se declarou que o prostrou de cama oito dias. Mas era robusto e o organismo resistiu triunfante ao mal.Quando se levantou, escreveu o seguinte bilhete a Augusta:,Minha senhora,Ouvi tudo por simples acaso; -me impossvel satisfazer-lhe o desejo de casar por esquecer. Adeus.Lus.A carta no produziu grande comoo em Augusta; mas esta sentiu-se. Pela primeira vez, achou-se humilhada; argia-lhe a conscincia.

    XXIIIRepelindo os que a amavam, leviana em suas aes, dotada de um carter orgulhoso e altivo, Augusta teve o castigo dos prprios erros.A carta de Lus inspirou-lhe a idia de no casar mais.E cumpriu a resoluo.Ningum deve imitar Augusta; um d