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QUANDO A “COESÃO SOCIAL” É UM DISCURSO: AS HETAIREIAS DE
EURÍPIDES E ARISTÓFANES E O TEATRO ATENIENSE COMO DISPUTA
POLÍTICA
Dolores Puga Alves de Sousa*
RESUMO:
Esta proposta de comunicação se baseou na ideia de um projeto de doutorado. Surgiu de uma
análise crítica sobre a perspectiva da historiografia francesa mais tradicional sobre o tema do
teatro grego antigo, sobretudo o teatro ateniense, a saber, Jean-Pierre Vernant, Jacqueline de
Romilly, Claude Mossé e Pierre Vidal-Naquet, os quais construíram reflexões morais,
filosóficas e generalizantes do teatro e do “homem grego”, que perdeu sua característica
plural de sujeito histórico. O conceito do “homem trágico” e a funcionalidade do teatro dentro
de avaliações apenas mitológicas foi o estopim de concepções de uma polis de “coesão
social” e de unicidade democrática. Este trabalho se fundamenta da necessidade de
reavaliação do teatro ateniense, em especial a peça Bakxai (As Bacantes) de Eurípides, e
Bátraxoi (As Rãs) de Aristófanes, ambas apresentadas nos festivais de 405 a. C. em Atenas,
com o intuito de problematizar o uso do teatro como instrumento vivo de financiamentos
estatais e privados de uma elite interessada em sustenta-lo dentro de disputas políticas. As
peças, em suas mensagens socioculturais e sociopolíticas, mais do que representar novos
olhares mitológicos, traduzem a agon política em jogo: as hetaireias de poetas, magistrados,
choregos – que, segundo Peter Wilson, financiavam os coros –, e theatronai – aqueles que,
conforme Eric Csapo, eram responsáveis pelo pagamento de franquias às cidades para
administração do teatro. Como hipótese, cada uma das peças traduz, na sutileza da mensagem
estética, o grupo político que o financiou para a sua apresentação a público.
PALAVRAS-CHAVE:
Eurípides. Aristófanes. As Bacantes. As Rãs. Disputas políticas.
De maneira geral, as discussões acadêmicas que apresentam conceitos da
funcionalidade social do teatro ático perpassam três grandes linhas de pensamento. Na
primeira, é possível combinar com a perspectiva de Jean-Pierre Vernant (VERNANT, 1973) e
(VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1977) de que o teatro teria a função de educar a plateia
sobre os ideais da polis. Concebem-se análises sobre a instituição do teatro como um fator de
completude do “espírito da cidade”, com avaliações que perpassam análises abstratas e
filosóficas sobre as tragédias e comédias. Essa visão se determina pela perspectiva religiosa
dos festivais que levaram as peças teatrais ao público da época, por vezes, romantizando e
homogeneizando o caráter político. Na segunda linha, o viés da função também religiosa e
ritualista apresentada por Bernard Deforge (DEFORGE, 1997), que, seguindo a perspectiva
do mitólogo Walter Burkert, analisa a tragédia em si mesma como um ritual de consagração a
* Doutoranda em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professora D.E. da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPCX).
2
Dionísio: um deus que representa tanto a vida quanto a morte, e, por isso, o herói trágico e sua
morte servem como uma referência sacrificial ao público. Portanto, é a partir da tragédia que
se consigna os rituais fúnebres.
Na terceira linha de pensamento, encontra-se a fundamentação deste projeto: a
perspectiva do teatro como espaço da denúncia, conforme Ubaldo Puppi (PUPPI, 1981). Para
ele, assim como para René Girard, a violência trágica, por exemplo, reflete estruturas de
poder, sobretudo das instituições da antiguidade. A fatalidade pela qual o herói possui como
destino é desconhecida por ele, apenas pelo autor que expõe ao público para que este tome
consciência; uma consciência coletiva.
A abordagem política e social são pontos cruciais no pensamento de Puppi para o
exame das peças teatrais. Assim também o será para o atual projeto, que concebe uma análise
de dois poetas do século V a. C. a partir das obras dramáticas Bakxai (As Bacantes), tragédia
de Eurípides de 406/5 a.C. – última peça que escreveu antes de vir a falecer – e Bátraxoi (As
Rãs), comédia de Aristófanes, de 405 a.C., aprofundando investigações sobre as mensagens
sociopolíticas dessas obras, buscando elementos que descortinem suas hetaireias, as facções
políticas dos poetas, e suscitando perspectivas que permitam uma ampliação dos olhares sobre
os sujeitos históricos envolvidos na construção e produção das peças teatrais, seu
funcionamento enquanto instrumento de traduções sociais, denúncias, críticas ou
conformidades dos valores da época.
Para ampliar essas discussões, é importante a construção de um debate acerca das
teorias desenvolvidas pela historiografia francesa tradicional sobre o tema, a saber, de
historiadores tais como Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Naquet, Jacqueline de Romilly, e
Claude Mossé, cujos textos, apesar de atestarem a discussão da cidadania ou do teatro antigo
como conectada aos temas gerais da polis (da cidade) – sua criação, suas leis e seus
desdobramentos –, têm se situado no revés dessa abordagem do campo de disputas políticas
para os estudos da antiguidade clássica, sobretudo de Atenas.
De acordo com Nicole Loraux, restaria questionar se as abordagens antropológicas
da Grécia não estariam despolitizando a cidade (Cf. LORAUX, 2005, p. 18), uma vez que o
grego é considerado sempre em sua alteridade de “outro” e por isso devidamente mitificado e
ritualizado para se aproximar de nós, quase subalternos a uma cultura fixada, unificada, sem
conflitos, pois construída em bases sólidas e inquestionáveis.
Ora, a instransponível distância que nos separa da Antiguidade não poderia de modo
algum bastar para garantir a existência de um “homem grego” uno e indivisível, no
qual todos os afetos estariam em consonância. Se é verdade que “o homem grego
3
não pode ser recortado em camadas” [referindo-se a uma fala de Vernant], nossa
tarefa [...] é postular, apesar disso, como já fazia Platão, que não há psiquismo –
designado em grego pela palavra alma (psukhe) – que não reúna em sua
interioridade instâncias conflitantes. Em resumo, uma maneira de devolver o homem
grego à sua multiplicidade. (LORAUX, 2005, p. 23-24).
Segundo Loraux, o mito, presente na maioria das pesquisas tradicionais, consagrou
análises do ritual e práticas que homogeneizaram uma alteridade grega. Nesse ínterim, a
historiadora propõe uma análise política renovada, em que pese não mais um simples
apontamento das “mudanças de dirigente e de constituição” (p. 31), mas, compreender dentro
das instituições e dos valores gregos, as divisões e os conflitos presentes na “cidade grega”.
Para ela, como para este projeto, é preciso “descentralizar a cidade dela mesma” (p. 33),
propondo uma pesquisa que construa uma comparação de Atenas com ela mesma, na
avaliação de seus múltiplos traços e interesses sociais em jogo, neste caso, a partir dos estudos
do teatro como instrumento de poder, na disputa de poetas e demais integrantes da produção
da antiga tragédia e comédia. Ainda segundo Loraux, evitar a “unidade do homem grego”
traduz a polifonia das vozes e discursos, renunciando um raciocínio grego que se suponha
legítimo (Cf. p. 35).
A abordagem pela via de análises morais, filosóficas e generalizantes sobre o teatro
grego está presente em pesquisas como de Vernant, Vidal-Naquet e Romilly (Cf. ROMILLY,
1980 e ROMILLY, 1998). Para os primeiros, além da determinação “de uma consciência e de
um homem trágicos” (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1977, p. 9), a defesa de um “espírito”
da época é uma presença constante em suas análises. A matéria da tragédia faz parte de um
pensamento social “próprio da cidade” (p. 13), cidade esta pensada no singular. Para esses
historiadores, a tragédia se situa em um momento de incertezas e por isso constituída de
contradições e problemas entre uma tradição religiosa e mítica e o advento do pensamento
racional e filosófico; entre a avaliação do “caráter do herói” na peça (ethos), e, sobretudo, a
imposição da onipotência dos deuses (daimon), elementos sobressalentes nas análises das
obras artísticas (Cf., p. 23). A visão jurídica e das leis estariam também presentes, no entanto,
representando apenas a unicidade da polis.
Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet endossam a visão aristotélica (Cf. p. 28-
29), especificamente do capítulo XIII da obra Poética, quando Aristóteles explica que o
fundamento trágico só se estrutura pela não consciência humana dos atos, por uma “falha” em
sua própria essência, que o impede de enxergar a verdade da evolução do espírito, o que
somente seria alcançado pelos deuses. Com o auxílio de uma das principais fontes teóricas do
teatro antigo lançadas, os autores franceses ajudam, assim, a fundamentar a legitimação de um
4
pensamento apolítico e sem elementos das especificidades dos períodos históricos das obras,
das regiões e interesses sociais dos poetas trágicos antigos, uma vez que defendem sobretudo
a perspectiva espiritual e religiosa do fundamento trágico, assim como observa Aristóteles.
Claude Mossé, além de afirmar que as representações teatrais fundamentariam a
“unidade da cidade” (MOSSÉ, 1993, p. 63), ainda chega a situar as análises do teatro grego
dentro de um tópico sobre “a atividade religiosa do cidadão” (p. 62), já de antemão deixando
a arte poética relegada como apenas um apêndice da religiosidade e do valor do mito de uma
época. Seu exame sobre a criação dos festivais de teatro da antiguidade, ao invés de conceber
em si mesmo um campo de concorrência na arena das ideias sociais e políticas, se constituiu
apenas como “festas em honra de Dionísio” (p. 63), deus que a tradição vinculou como
representante do teatro entre outros fatores.
Jacqueline de Romilly também acusa a fundamentação dos festivais de teatro grego
vinculada ao culto de Dioniso, com a construção de seu templo e do teatro em Atenas como
um artifício do tirano Pisístrato no movimento de urbanização da Grécia no século VI a. C
(Cf. 1998, p. 8). No entanto, em novos estudos arqueológicos, tem-se percebido que,
conforme já foi dito anteriormente, a construção dos primeiros teatros era direcionada para a
preparação dos jovens gregos à guerra (Cf. DUARTE, 2008, p. 21-22) e, para além disso,
muito se tem discutido, por exemplo, sobre a função crítica da tragédia (e posteriormente da
comédia) de se posicionar justamente contra o poder centralizado dos tiranos. Pensar “a
origem do teatro” sob as mãos da tirania, seria, então, um pensamento equivocado da questão,
muito embora esses estudos têm definido uma série de pesquisas, inclusive brasileiras sobre o
tema (Cf. CASTIAJO, 2012).
A questão geral que acaba por delinear a problemática desta pesquisa é que os
estudos mais tradicionais tanto não souberam ampliar o debate da funcionalidade sociopolítica
do teatro em uma perspectiva mais analítica e crítica, quanto não conseguiram fazer um
apanhado menos generalizado e homogêneo da própria democracia, especialmente a
ateniense. Ao contrário de uma visão evolucionista do processo, Kurt Kaaflaub e Josiah Ober
analisam-o em rupturas descontínuas, que demarcam os interesses da aristocracia presente na
disputa de poder em cada momento (Cf. RAAFLAUB; OBER; WALLACE, 2007). Levantam
críticas da ideia aristotélica da Constituição de Atenas em conceber Sólon como o responsável
pelo “surgimento da democracia”, pois, embora tenha sido um arconte cujo poder no
Conselho do Aerópago tenha-o colocado frente à resolução de uma crise agrária, a cidadania
ainda não se fazia na prática e suas medidas alicerçaram ainda mais a rivalidade aristocrática
pelo poder das cidades com as lideranças das tiranias – questão apontada inclusive por Mossé
5
(Cf. 1993, p.21), apesar da estudiosa ainda refletir o processo dentro das ações políticas
apenas pelas obras desses legisladores.
De fato, esses líderes, competitivos, flexíveis e hábeis o suficiente para moldar a
polis, sua posição e as mudanças institucionais e políticas tomaram uma parte cada vez maior
de demos – da população comum – como seus grupos de seguidores: sua hetaireiai. Eles se
posicionaram contra a liderança de inimigos políticos aristocratas até que a demos conseguiu
gerir seus negócios de maneira independente, passando a escolher seus líderes (Cf.
RAAFLAUB, In: RAAFLAUB; OBER; WALLACE, 2007, p. 17-18). É assim que, seja com
Sólon, Clístenes, Elfialtes ou Péricles – os dois últimos apresentando reformas tais como a
dissolução dos poderes do Conselho do Aerópago entre a boule, a ecclesía (assembleia) e o
tribunal de justiça, além de criarem misthos (pagamento) dos magistrados, construção do
Partenon e Acrópole, etc (Cf. JONES, 1997, p. 22-23) –, segundo Ober, os indivíduos
responderam às mudanças nas leis e reformas de maneira criativa àquilo que percebiam no
ambiente político de cada época levando ao resultado de uma ação coletiva que não é de
forma alguma vista de maneira equânime: mas um “corpo diversificado de cidadãos” (OBER,
In: RAAFLAUB; OBER; WALLACE, 2007, p. 83).
Nesse sentido, Clístenes é importante, por exemplo, na ruptura que levou as
transformações na legislação de Atenas, mas o foco maior é o agente coletivo. Ober destaca
que ele não possuía uma forte ideologia e estava disposto a aceitar um alto cargo de arconte
sob a tirania. Mas sua família era contra, o que lhe rendeu outra posição política. O fato de ter
trazido consigo as demos antes desprezadas como sua hetaireia na luta pelo reconhecimento
político demonstra sua nova estratégia (Cf. p. 86-87). Por isso, os aristocratas não
“acordaram” simplesmente para a “nova ordem das coisas”, mas a democracia foi tolhendo à
margem uma mudança epistêmica, quando as opções políticas da elite ateniense foram se
reduzindo para dentro da ordem democrática e se tornarem “oradores populares”, mas
trabalhando para derrubar a democracia. Não é sem sentido que esses fatos levaram Atenas a
um golpe oligárquico em 411 a. C. – momento de crise pelos conflitos do Peloponeso, apenas
alguns anos antes do período das peças teatrais de Eurípides e Aristófanes escolhidas para esta
pesquisa.1
1 Sobre esse assunto é necessário apontar, inclusive, que a escolha por essas obras de Eurípides e Aristófanes do
final do século V a. C. se justificaria pela maior facilidade para se abordar a questão problemática apresentada na
pesquisa: a desconstrução de uma perspectiva de democracia como uma prática social uniforme, homogênea e
sem conflitos. São nos momentos de crise que se torna possível perceber com mais afinco as disputas,
especialmente das elites pelo poder político em jogo.
6
Sobre esses conflitos é possível pensar que ao final do século V a. C., em meio a essa
crise do modelo de democracia inicialmente construído por Atenas, seus oligarcas buscavam
apoio de Esparta pelos interesses políticos e os democratas esperavam que Atenas os ajudasse
(Cf. JONES, 1997, p. 30). Entre os aliados dos atenienses estaria a Sicília, que a partir de 427
a. C. pediria socorro à cidade contra Siracusa, aliada do Peloponeso. Ao longo de algumas
lutas, Atenas conseguiu um contingente de prisioneiros espartanos, e as tensões foram sendo
suscitadas com diplomacia e pedidos de paz que mal se cumpriam nas regiões onde Atenas e
Esparta detinham alianças (Cf. p. 30-34).
Foi nesse momento histórico que, de nascimento nobre e educado no seio da família
de Péricles estaria Alcibíades, que representava o regresso de políticos aristocratas (os aristoi
– os melhores / bem nascidos) no poder. Em 420 a. C., ele havia convencido os atenienses a
lhe dedicarem uma frota para a exploração de regiões insatisfeitas com o Peloponeso e
conseguirem ampliação do seu poderio. Acusado de realizar paródias sacrílegas nas
celebrações dos Mistérios de Elêusis – rito de iniciação no culto às deusas Deméter e
Perséfone nesta região da Ática – e chamado para enfrenta-los, Alcibíades fugiu para Esparta
onde deu conselhos sobre como submeter sua cidade natal (p. 34-36). Com os estados
revoltando-se contra o poderio ateniense a partir de 412 a. C., e com a aliança dos espartanos
junto à Pérsia – os primeiros estando dispostos a barganhar as cidades da Ásia Menor e
conquistarem o Egeu –, Alcibíades chegou a propor com os persas que deixassem de apoiar os
espartanos e, em troca, oficiais de Atenas derrubariam sua democracia e ele poderia voltar
para casa. Com a ausência da frota ateniense na cidade:
[...] o golpe oligárquico prosseguiu. Aquele era o momento pelo qual esperavam
muitos dos críticos da democracia radical. A população de Atenas foi levada, pelo
terror, a criar um corpo de quatrocentos cidadãos que deveria assumir o controle
imediato do governo. [...] Na verdade, o fato de tantos cidadãos estarem ausentes da
cidade pode explicar o sucesso inicial dos oligarcas. Os democratas de Samos
[região de forte frota ateniense], então, chamaram de volta Alcibíades, perfeitamente
disposto a oferecer seus serviços a qualquer um por vantagem pessoal. (JONES,
1997, p. 38).
Segundo Peter Jones, os oligarcas justificaram suas ações prometendo o uso de 5 mil
cidadãos nas decisões políticas o que não passava de discurso. Em 411 os atenienses os
pressionaram e os derrubaram pelo governo dos 5 mil, restaurando aquilo que consideravam
os moldes democráticos da cidade em 410 a. C (Cf. p. 39). De qualquer maneira, a presença
de todos esses elementos de disputa de poder devem ser levados em consideração para se
reavaliar a própria perspectiva de uma “democracia ideal”.
7
Apesar de todas essas questões, segundo Loraux, a própria ideia de disputa não
poderia ser apontada e debatida em Atenas em um momento histórico cuja construção e,
posteriormente busca de manutenção de um ideal democrático se fazia necessário. No
discurso dos políticos, então, comprava-se o pensamento de que o conflito era “[...] uma
exceção, uma catástrofe, uma epidemia que se apoderou do corpo cívico em sua totalidade.
Em uma só palavra: a ‘doença’ da cidade [...]” (2005, p. 138), um discurso que convenceu
historiadores como Vernant quando este aponta que a cidade era feita de “semelhantes”
responsáveis pela “unidade da polis” (Cf. VERNANT, 1972, p. 42).
No âmbito do teatro, essa multiplicidade de fatores sociais deve ser pensada para a
análise dos festivais ocorridos na Ática, sobretudo os de Atenas, objeto desta pesquisa, tais
como As Leneias e a Grande Dionísia. Isabel Castiajo aponta que o festival das Leneias
acontecia em meados de janeiro e, segundo lexicógrafos, provavelmente no mercado da
cidade, a noroeste da Acrópole, na Ágora. Pelos seus escritos, apresentavam-se comédias, mas
os comediógrafos também poderiam apresentar em outros concursos. Era um festival que teria
iniciado por volta de 440 a. C. e era puramente ático. Os estrangeiros participavam da Grande
Dionísia, que representava o maior festival deles, contemplando comédias, mas com enfoque
nas principais tragédias do ano (Cf. CASTIAJO, 2012, p. 13-21). Esta acontecia em março em
Atenas e contemplava a “ostentação” da ideia de civilidade e democracia presentes no
discurso político de unidade e grandiosidade e, por isso, tinha o intento também de ser uma
mostra para os estrangeiros que visitavam a cidade justamente nessa época. Muito
provavelmente a peça Bakxai (As Bacantes) de Eurípides tenham se apresentado no mesmo
festival da Grande Dionísia junto à peça Bátraxoi (As Rãs) de Aristófanes em 405 a. C., após
esta ter sido exibida nas Leneias do mesmo ano.
Dentro dessa organização dos festivais, havia toda uma política para o teatro. O
trabalho dos poetas como de todo aspirante à “cidade ideal” era escrutinada pelos magistrados
e seus rivais durante o planejamento e realização dessas competições. Os atenienses
mantinham uma preocupação filosófica de manutenção do estado de identidade pelo viés da
valorização pedagógica da tragédia para os cidadãos. Daí a busca de fiscalização coercitiva da
maneira como se conduziam os coros. Nestes termos, o sistema da choregia, no qual ricos
cidadãos gregos (os coregos) eram escolhidos pelo arconte-epónimo para financiar os coros
disponíveis era não apenas uma forma de vários desses elementos constituintes do teatro
honrarem seus deuses, mas também de desempenho em festivais e fundo de competição entre
as elites. Tem o papel de transmitir o poder da arché ateniense pela cultura da “segurança da
cidade” assim como o poder naval (Cf. WILSON, 2000, p. 2; 4). Conciliado a esta questão,
8
apesar de ainda não existir um fundo estatal voltado para o teatro no século V. a. C. (a
theorika), já era possível considerar um financiamento estatal para a participação de cidadãos
pobres como espectadores a partir de decisões nas assembleias (Cf. ROSELLI, 2009), além de
caber ao Estado a responsabilidade pelo pagamento dos atores e honorários dos poetas
escolhidos para os festivais, assim como o prêmio atribuído ao vencedor (Cf. CASTIAJO,
2012, p. 21).
Essa discussão traz um debate tanto sobre a visão ingênua de estabilidade política e
social da democracia da polis, quanto da definição de cidadania, demonstrando a lacuna
existente entre ideologia e prática, e a necessidade de aprofundamento das pesquisas pelo
estudo do teatro no viés econômico e a influência do pagamento das liturgias dos ricos
cidadãos que deveriam prestar serviços de financiamento para a comunidade. O sistema das
liturgias (liturgiai) estava estritamente ligado com a honra e o prestígio das elites sociais e
cívicas. A participação nos festivais estava diretamente centrada em noções de status,
identidade e obrigação honorífica (Cf. WILSON, 2000, p. 25).
De acordo com Peter Wilson, foi a partir da época de Clístenes que podemos
observar a preocupação em listar os “vitoriosos” nos festivais, segundo um monumento
instituído no século IV a.C.. O período de Clístenes foi pensado como uma ruptura no sentido
primordial desses eventos – que se colocavam antes apenas como competições de ditirambos,
ou seja, apresentações de cantos corais de louvor. Aristóteles, na obra Constituição de Atenas,
ao vincular o surgimento da choregia e outras liturgias com a “revolução democrática” de fins
do século VI a.C., acaba por fazer uma relação causal entre aquilo que entende como
desenvolvimento democrático e uma “revolução cultural” em Atenas, não observando o
sentido do controle da polis pelas instituições da choregia e o sistema de litourgiai. A
influência dos tiranos e da aristocracia nesse sistema cultural implantado (como “patrões”
pessoais) pelas performances corais urbanas (Grande Dionísia), demonstra a existência dessa
busca de controle (Cf. p. 13-14; 18).
Wilson nos aponta que diferentemente do que se imagina – inclusive contrária à
perspectiva da Constituição de Atenas de Aristóteles –, o sistema das liturgias não era uma
questão de imposição formal e administrativa, mas especialmente para os festivais,
permaneceu para os ricos como uma questão de escolha de “render-se entusiasticamente para
o demos” (p. 54). Tratava-se de um domínio ao mesmo tempo cultural, político e econômico.
Sobre esse aspecto, Eric Csapo ainda nos apresenta os theatronai, que embora não tenha
evidências arqueológicas de sua presença no Teatro de Dionísio a comparação circunstancial
9
das evidências em períodos posteriores pode tornar sua presença provável (Cf. CSAPO, In:
WILSON, 2007):
Financing the festival combined money from the state, from donors, from private
investors [...]. By the late fifth century bc, the Athenian Dionysia caused some thirty
talants to change hands, most of it during the five days of the festival itself. This
goes well beyond the means of the traditional aristocratic or sanctuary patronage that
sponsored earlier athletic and musical festivals. It amounts to more money than five
times the annual income of Hipponikos, the richest man in fifth-century Greece. As
Bremer noted, the complexity of this kind of funding made drama less “sponsor-
directed” and more “audience-oriented” than the cultural products patronized by
aristocrats and tyrants. At the same time, the complexity and scale of the investment
introduced monetary interests with a direct financial stake in maximizing public
participation in the festival. This was, most conspicuously, the chief interest of the
theatronai or theatropolai, entrepreneurs who paid the city for a franchise to build
and manage the theater and to profit from the collection of admission fees.
Maximizing attendance was thus also in the interest of the city that sold the
franchise (for as much as an estimated two talants). From the beginning theater had
at least an impulse to expand into the mass-entertainment industry we know it to
have been by the end of the Classical period.2 (CSAPO, 2010, p. 83).
Como é possível perceber, o jogo político da organização do teatro estava nas mãos
tanto do Estado quanto desses indivíduos ricos que traduziam seus interesses pelos
financiamentos, neste caso dos theatronai, do pagamento de altas franquias para as cidades no
intuito de construir ou administrar teatros os quais pudesse fazer funcioná-lo à sua maneira
para conseguirem o maior número de audiência possível e seguindo as regras dos arcontes-
epónimos, maiores representantes dos interesses do Estado. Esse debate traz em pauta a
necessidade de refletir sobre a atuação da cultura política na antiguidade grega também no
sentido de desconstruir a visão extremamente coletiva da democracia e também do teatro.
Através dos temas e da dramaturgia das peças, é possível, assim, identificar o jogo de
interesses dos grupos políticos que estiveram por trás de seus financiamentos. No caso de
Atenas, na própria análise dos textos teatrais propostos na pesquisa verificam-se suposições
de interesses, ora de oligarcas emergentes, com vislumbre sobre a guerra, o comércio
2 “O financiamento do festival combinava dinheiro do Estado, de doadores, de investidores privados [...]. Até o
final do século V a. C., o ateniense Dionísia [o Grande Dionísia] causou cerca de trinta talentos para mudar de
mãos, a maior parte durante os cinco dias do festival em si. Isto vai bem além dos meios de patrocínio
aristocrático ou santuário tradicional que patrocinou festivais esportivos e musicais anteriores. Isso equivale a
mais dinheiro do que cinco vezes a renda anual de Hipponikos, o homem mais rico do século V da Grécia. Como
Bremer observou, a complexidade deste tipo de financiamento fez o drama menos "dirigido pelo patrocinador" e
mais "orientado pelo público" do que os produtos culturais patrocinados por aristocratas e tiranos. Ao mesmo
tempo, a complexidade e a dimensão do investimento introduziu interesses monetários com um financiamento
direto em maximizar a participação do público no festival. Este foi, mais visivelmente, o principal interesse dos
theatronai ou theatropolai, os empresários que pagaram uma franquia à cidade para construir e gerir o teatro e
para lucrar com a cobrança de taxas de admissão. Maximizando o comparecimento foi assim também no
interesse da cidade que vendeu a franquia ( tanto quanto cerca de dois talentos ). De início o teatro tinha pelo
menos um impulso de se expandir para a indústria do entretenimento de massa que conhecemos ter sido até o
final do período clássico.” [tradução nossa].
10
mercantil e o exterior, e, por isso, ligados ao porto do Pireu, ora de aristocratas, os “melhores”
e “bem nascidos”, ligados à própria terra e à agricultura, cultuando somente seus deuses e
execrando tudo que representa o estrangeiro. O símbolo do poder aristocrata está na figura da
Ágora e a tradição do debate público.
Segundo Eric Csapo, quanto à análise artística das peças antigas, a partir do final do
século V a. C. é possível verificar esse apelo na construção de personagens cada vez mais
individualizados (Cf. 2008, p. 160), em que o coro, embora representasse tradicionalmente o
“corpo cívico” democrático, perde cada vez mais sua importância ou modifica sua função
cênica. De qualquer forma, mesmo com essas mudanças, permanece o discurso oficial
democrático da “igualdade”, pois aquilo que é diferente é estigmatizado, como a
representação de um coro totalmente diferenciado a exemplo da própria peça As Bacantes, em
que o coro não representa a “cidade”, mas o “outro”. De acordo com o estudioso, as obras
passam a apresentar cada vez mais uma espécie de “realismo social”, com uma linguagem
mais próxima da realidade, diferentemente da “pompa” utilizada por poetas como Ésquilo,
por exemplo – muito embora ainda não é possível vincular o movimento realista da arte nesse
período.
A linguagem das interpretações de Eurípides e Aristófanes, nas últimas décadas do
século V, tendia para o realismo social, na representação do discurso comum, mas
isso não produziu mudança na vida, uma vez que a diversidade da linguagem na
pólis era mal representada como discurso comum sem diferenças sociais. A estética
emergente era um realismo limitado pela perspectiva do cidadão democrático, cujo
“outro” era um estranho, um estrangeiro, ou possivelmente uma mulher [caso do
coro das mulheres de As Bacantes]. Mas ele evitou a representação linguística da
diferença social no corpo do cidadão, e até mesmo na população residente. Essa era
uma distinção que apelava mais para as elites antidemocráticas que prontamente
equacionaram a diferença cultural entre elite e massa [...]. (CSAPO, 2008, p. 168).
Seja pelos traços da linguagem da peça, a caracterização dos personagens, os
conceitos e termos gregos utilizados, bem como a estética, todos são instrumentos de análise
da tragédia de Eurípides e a comédia de Aristófanes escolhidas como fontes documentais.
Aliadas as outras discussões do projeto, esta pesquisa pretende ser uma ferramenta de
enriquecimento dos estudos na área.
De forma geral, este trabalho apresenta as seguintes problemáticas: de que maneira a
historiografia francesa tem trabalhado o tema da democracia e do teatro ateniense?
Comparado a isso, como os recentes estudos anglo-americanos auxiliam a pesquisa para
descortinar conceitos e ampliar questões referentes à atuação dos cidadãos ricos e do público
no teatro dentro das disputas de poder, incluindo os estudos da arqueologia teatral? Quais as
mensagens sociais e políticas das obras dramáticas a serem examinadas nesse projeto? O quê
11
Aristóteles tem para nos dizer, sobretudo do século V a. C. e sobre a poética e como é
possível construir uma comparação dessas ideias? De que forma conciliar essas discussões
com as análises das instituições presentes no teatro grego antigo e a descoberta das hetaireias
dos poetas?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARISTÓFANES. As Rãs. Tradução de Américo da Costa Ramalho. Coimbra: Edições 70,
2008.
ARISTÓTELES. A Poética. Tradução de Eudoro de Souza. Edição Bilíngue. São Paulo: Arte
Poética, 1992.
CASTIAJO, Isabel. O teatro grego em contexto de representação. Coimbra: Coimbra
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