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37 hist. historiogr. • ouro preto • n. 16 • dezembro • 2014 • p. 37-54 • doi: 10.15848/hh.v0i16.800 Quando a literatura fala à história: a ficção de Barbosa Lessa e a memória pública no Rio Grande do Sul When Literature Addresses History: the Fiction of Barbosa Lessa and Public Memory in Rio Grande do Sul, Brazil Jocelito Zalla [email protected] Professor Colégio de Aplicação Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43815 - Agronomia 91501-970 - Porto Alegre - RS Brasil Resumo O objetivo deste trabalho é analisar as intervenções de Luiz Carlos Barbosa Lessa, escritor, folclorista e militante fundador do movimento tradicionalista gaúcho, no debate público rio-grandense pela literatura de imaginação. Para tanto, parte-se de um episódio que agitou a produção letrada local na década de 1950, o chamado “caso Sepé”, em torno do qual foi ponderada a conveniência ou inviabilidade de incorporar a experiência missioneira guarani na narração do passado gaúcho. Busca- -se, portanto, não somente averiguar as posições do autor no debate, mas avaliar as possibilidades e escolhas formais de confronto, em especial a escrita literária como contraponto ao discurso histórico. A tomada de posição de Lessa sobre a questão indígena leva a críticas mais amplas ao modelo dominante de memória histórica no estado, orientando seu projeto literário para criações até então pouco comuns, como a figuração de grupos e segmentos tidos como marginais (indígenas, negros, mulheres), além da reafirmação do caráter popular do gaúcho rio-grandense. Palavras-chave Ficção; Historiografia sul-rio-grandense; Regionalismo. Abstract The objective of this work is to analyze the interventions of Luiz Carlos Barbosa Lessa (writer, folklorist and activist-founder of the Gaucho Traditionalist Movement) in the public debate of Rio Grande do Sul, using the imagination-literature. We start from the episode that shook the local literate production in the 1950s, the so-called “Sepé polemic”, on the merits or the impracticability of incorporating the experience of the Guarani Misiones in the narratives of the Gaucho past. I seek, therefore, not only to ascertain the positions of the author, but to evaluate the possibilities and formal choices for confrontation, in particular by examining literary writing as a counterpoint to the historical discourse. Lessa’s standing on the Indigenous issue leads to deeper criticisms of the dominant model of historical memory in the state of Rio Grande do Sul, guiding his literary project towards unusual creations, such as the portrayal of groups and segments previously seen as marginal ones (Indigenous groups, Afro-Brazilians, women), and a reaffirmation of the popular character of the Gaucho from Rio Grande do Sul. Keywords Fiction; South Rio Grande Historiography; Regionalism. Recebido em: 26/7/2014 Aprovado em: 15/10/2014 ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________

Quando a Literatura Fala à História - História da Historiografia

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Artigo publicado na revista História da Historiografia. Trata do debate público e da produção de memória histórica no Rio Grande do Sul nos anos 1950, com suas inflexões na obra de Barbosa Lessa, a partir das disputas em torno da imagem de Sepé Tiaraju.

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    Quando a literatura fala histria: a fico de Barbosa Lessa e a memria pblica no Rio Grande do Sul

    When Literature Addresses History: the Fiction of Barbosa Lessa and Public Memory in Rio Grande do Sul, Brazil

    Jocelito [email protected] de AplicaoUniversidade Federal do Rio Grande do SulAv. Bento Gonalves, 9500 - Prdio 43815 - Agronomia91501-970 - Porto Alegre - RSBrasil

    ResumoO objetivo deste trabalho analisar as intervenes de Luiz Carlos Barbosa Lessa, escritor, folclorista e militante fundador do movimento tradicionalista gacho, no debate pblico rio-grandense pela literatura de imaginao. Para tanto, parte-se de um episdio que agitou a produo letrada local na dcada de 1950, o chamado caso Sep, em torno do qual foi ponderada a convenincia ou inviabilidade de incorporar a experincia missioneira guarani na narrao do passado gacho. Busca- -se, portanto, no somente averiguar as posies do autor no debate, mas avaliar as possibilidades e escolhas formais de confronto, em especial a escrita literria como contraponto ao discurso histrico. A tomada de posio de Lessa sobre a questo indgena leva a crticas mais amplas ao modelo dominante de memria histrica no estado, orientando seu projeto literrio para criaes at ento pouco comuns, como a figurao de grupos e segmentos tidos como marginais (indgenas, negros, mulheres), alm da reafirmao do carter popular do gacho rio-grandense.

    Palavras-chaveFico; Historiografia sul-rio-grandense; Regionalismo.

    AbstractThe objective of this work is to analyze the interventions of Luiz Carlos Barbosa Lessa (writer, folklorist and activist-founder of the Gaucho Traditionalist Movement) in the public debate of Rio Grande do Sul, using the imagination-literature. We start from the episode that shook the local literate production in the 1950s, the so-called Sep polemic, on the merits or the impracticability of incorporating the experience of the Guarani Misiones in the narratives of the Gaucho past. I seek, therefore, not only to ascertain the positions of the author, but to evaluate the possibilities and formal choices for confrontation, in particular by examining literary writing as a counterpoint to the historical discourse. Lessas standing on the Indigenous issue leads to deeper criticisms of the dominant model of historical memory in the state of Rio Grande do Sul, guiding his literary project towards unusual creations, such as the portrayal of groups and segments previously seen as marginal ones (Indigenous groups, Afro-Brazilians, women), and a reaffirmation of the popular character of the Gaucho from Rio Grande do Sul.

    KeywordsFiction; South Rio Grande Historiography; Regionalism.

    Recebido em: 26/7/2014Aprovado em: 15/10/2014

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    Sabemos que a incorporao da histria das Misses Jesutas ao patrimnio cultural do Rio Grande do Sul foi polmica, gerando debates acalorados. Boa parte dos intelectuais ligados ao Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Sul (IHGRS) era, nas dcadas de vinte a sessenta, pelo menos, refratria ideia de que a histria das redues indgenas sob o controle jesuta e comando do imprio espanhol pudesse ser agregada histria do Rio Grande luso e brasileiro. De posio contrria, um grupo marginal de eruditos inspirava- -se na literatura gauchesca e em material folclrico para ampliar os motivos da historiografia regional. Tal polarizao se acirrou em 1955, quando uma comisso do Instituto, composta por Afonso Guerreiro Lima, Othelo Rosa e Moyss Vellinho, deu parecer negativo criao de monumento em homenagem aos duzentos anos da morte do lder guarani Sep Tiaraju, que se completariam em fevereiro de 1956.

    O ento folclorista Luiz Carlos Barbosa Lessa entrou na arena de disputa, redigindo significativo artigo sobre o tema. Sua resposta mais contundente, todavia, veio em 1958, com a publicao do livro de contos O boi das aspas de ouro, em que traava um inventrio mtico da histria sul-rio-grandense. Mais do que isso, parece que a perspectiva literria que passa a ser construda pelo autor, alm de motivos e problematizaes constantes em sua obra, tem na disputa um ponto fulcral. O objetivo deste trabalho , portanto, analisar as posies e os meios de expresso empregados por Barbosa Lessa no episdio citado e nas contendas mais profundas de memria pblica no Rio Grande do Sul. Quais so as articulaes entre seu projeto folclrico e o novo projeto ficcional? Quais so os usos e as funes da literatura de imaginao em batalhas de memria? Enfim, o que Barbosa Lessa podia dizer pela fico que seria vetado pela escrita da histria?

    A memria histrica oficial e um novo escritorH cerca de vinte anos, Ieda Gutfreind (1992) apresentou uma interessante

    tese sobre a historiografia sul-rio-grandense tradicional: uma diviso entre duas matrizes historiogrfico-ideolgicas pautaria as posies dos eruditos locais. A primeira, chamada lusitana, enalteceria o papel do estado no cenrio nacional, sua vocao militar pela defesa da fronteira do pas no sul do continente e a predominncia do branco luso na composio tnica da populao. A segunda, dita platina, ainda que reivindicasse a mesma relao de insero no contexto luso-brasileiro, reconheceria a existncia de fluxos econmicos e culturais com os pases da bacia do Prata. Os recentes trabalhos de Letcia Borges Nedel1 sobre o regionalismo gacho oferecem uma via alternativa de acesso s lutas de representao no contexto citado, mas, em alguma medida, neste trabalho, concilivel com as reflexes de Gutfreind.2 Para Nedel, as disputas intelectuais

    1 Ver NEDEL 2000; 2004; 2005.2 Antes de se tornar escritor de fico, Barbosa Lessa atuou em comisses de folclore, participou da fundao do primeiro Centro de Tradies Gachas, o 35 CTG, foi tradutor e reprter da Revista do Globo. Em todos os crculos profissionais e grupos de que participava, travou relaes com historiadores, folcloristas e escritores regionalistas. Antes de iniciar a pesquisa de campo que originaria o Manual de Danas Tradicionais (1956), produzido em coautoria com Joo Carlos Paixo Cortes, foi orientado pelo folclorista Dante de Laytano, seu

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    no se davam apenas em funo da definio do lugar poltico do Rio Grande na construo do Brasil, mas pela forma como os autores negociavam suas identidades sociais e profissionais por meio desse debate. O problema que Nedel se prope em seu trabalho no determinar as contribuies ideolgicas dos intelectuais locais, mas pensar sobre os reflexos de seus compromissos nos campos literrio e acadmico da poca, estruturados por uma patrulha do particularismo que visava projeo poltica do estado, mas restringia tais campos a uma escala regional. Entre as divergncias e questes em jogo, podem-se citar os assuntos narrados, os heris celebrados e sua legitimidade para a rememorao histrica , os tipos de fonte utilizados e o dilogo com o discurso literrio. Nedel mostra que, a partir da dcada de 1920, dois registros de memria pblica foram elaborados no debate regionalista local: naquele que tambm comportava, em historiografia, o que Gutfreind e Lessa qualificaram como adeso ao lusitanismo/lusitanofilia, o foco de ateno estava dirigido geopoltica, histria das marchas e contramarchas de Portugal e Espanha sobre o Rio Grande de So Pedro; no segundo tipo, que poderamos associar matriz platina, o privilgio era dado identificao de um sujeito folk, associado ao mundo rural, condio de rebaixamento social e intimidade com o meio fsico (Cf. GUTFREIND apud NEDEL 2004, p. 358) da a aproximao com a gauchesca argentina e uruguaia.

    No final dos anos 1940, uma srie de fatores, como a constituio da Comisso Gacha de Folclore (CEF), brao da Comisso Nacional de Folclore (CNFL), o advento do movimento tradicionalista gacho e a reavaliao geral do discurso regionalista, punham em dia a antiga tenso. Nesse contexto, a questo indgena reaparecia na pauta intelectual,3 extrapolando o mbito das publicaes oficiais do IHGRS ou as monografias de seus membros, em altercaes que movimentavam os jornais locais e, como veremos, reanimariam a produo literria conhecida como gauchesca.

    Em 1947, o jovem Luiz Carlos Lessa,4 estudante do Colgio Jlio de Castilhos (o Julinho) e colaborador espordico da Revista do Globo, publicou nesse veculo reportagem sobre a vida de um grupo de tropeiros da regio sul do estado. Num misto de texto jornalstico e fico regionalista, o autor relacionava aqueles trabalhadores rurais com o gaudrio mtico do sculo XVIII, o centauro da pampa, que inspirara a literatura local precedente. Na reconstruo e atualizao discursivas do modelo romntico de campons sul-

    professor de Histria no Colgio Jlio de Castilhos, a ler toda a produo local possvel sobre a figura do gacho, o que inclua histria, folclore e literatura. Portanto, busco tanto em Gutfreind quanto em Nedel possibilidades de construo de perguntas sua obra que permitam, na anlise empreendida, reconstruir os quadros de referncia e os dilogos de um autor socializado intelectualmente num contexto erudito geral que se encontrava sob a gide do regionalismo, mas que tambm era leitor atento da produo historiogrfica em particular. Como mostrado por Nedel, a oposio platinismo/lusitanismo apenas uma dentre outras antteses acionadas nos esquemas de pensamento dos intelectuais locais (como passadismo/modernismo, regionalista/no regionalista). Como veremos ao longo do artigo, mais do que outras, tal oposio tem grande importncia para a produo literria de Lessa, configurando a crtica historiogrfica que realiza por meio da fico. 3 Como exemplo da atualidade da questo, vale lembrar que Erico Verissimo, ento maior expresso da literatura local, no primeiro tomo da saga O Tempo e o Vento, publicado em 1949, conciliava simbolicamente a tradio guarani com a histria de ocupao lusitana pelo enlace entre Pedro Missioneiro e Ana Terra.4 Nosso autor adotou o sobrenome materno Barbosa em 1953, quando assumiu a coluna Tradio do jornal Dirio de Notcias de Porto Alegre.

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    -rio-grandense, Lessa deixava clara sua adeso interpretao que via o gacho como desenvolvimento scio-racial dos povos autctones: O pampa, sem obstculos e sem limites, convidava o gacho a um viajar sem fim. E nasceram os andarengos, os carreteiros, os tropeiros herdeiros natos do sangue nmade dos ndios minuanos e charrua (LESSA 1947, p. 28-29). A filiao indgena , assim, estendida ao gacho gentlico do sculo XX, ou seja, a todo habitante do Rio Grande do Sul, visto como descendente direto do campons de antanho. O jovem jornalista revivia em seu texto uma antiga tese histrica e literria que perpassava a parca historiografia local do sculo XIX, como em Alcides Lima e Alfredo Varela, ou a obra de escritores como Simes Lopes Neto, mas que fora relegada, como dito, a um segundo plano pela historiografia tradicional.

    Naquele mesmo ano, nosso personagem ingressou no Departamento de Tradies Gachas do Julinho, durante as atividades da primeira Ronda Gacha, mais tarde batizada Ronda Crioula, em homenagem ao dia 20 de setembro, data comemorativa da ecloso da Revoluo Farroupilha, de 1835. A entidade se tornou o embrio para a fundao, em 1948, do 35 Centro de Tradies Gachas, modelo, por sua vez, para as demais sociedades cvicas que passaram a se espalhar pelo Rio Grande. Como sabido, juntamente com Joo Carlos Dvila Paixo Crtes, Lessa se tornou um dos principais tericos do movimento tradicionalista. O jornalista se valeu, ento, de sua insero (ainda incipiente) no meio intelectual para divulgar o novo gauchismo, passando a vincular seu projeto literrio em embrio ao projeto coletivo tradicionalista. Internamente, disputou os rumos e as diretrizes do movimento, propulsando o novo processo de inveno de tradies ao encontro do gacho pampiano,5 de extrao popular, em detrimento da elite lusa, nobre e militar, louvada pela memria histrica oficial. Dessa forma, ele se constitua em uma autoridade poltica e intelectual do tradicionalismo, elaborando e arbitrando sobre o legtimo e o correto em tradio folclrica. Seus textos, assim como suas composies musicais e coreogrficas, devem ser compreendidos como partcipes do esforo de configurao do iderio tradicionalista. No entanto, em sentido inverso, com a repercusso e o peso adquirido pela adeso geral crescente e a simpatia inicial da erudio local,6 o movimento se tornava, para Lessa, uma instncia de consagrao e legitimao intelectual, o que lhe permitia atingir pblicos mais amplos e disputar as perspectivas do regionalismo ento em redefinio.7

    5 Durante a construo da entidade, havia uma diviso entre dois grupos de perspectivas divergentes: o primeiro buscava uma sociedade de tipo fechado, ao estilo maom, com um nmero mximo de 35 membros; o segundo, liderado por Barbosa Lessa e Paixo Crtes, pretendia um clube gacho aberto a todo interessado, independentemente de ter um vnculo direto com o campo. Composto, em grande parte, por oficiais da Brigada Militar, a primeira faco previa ainda um projeto de celebrao voltado ao panteo de heris da historiografia tradicional, oriundo da elite estancieira e militar.6 Desde cedo, os tradicionalistas pioneiros buscaram atrair para suas fileiras os intelectuais regionalistas de renome por meio de convites para palestras e pela cesso de cargos honorficos na estrutura do 35. A estratgia, inicialmente, surtiu efeito. O segundo boletim informativo do Centro, de 1950, por exemplo, foi custeado por Moyss Vellinho e J. P. Coelho de Souza, entre outros. Poucos se integrariam, entretanto, ao quadro social da entidade. Coelho de Souza, ento deputado federal, aceitaria o convite para ser posteiro no Rio de Janeiro. Apenas Manoelito de Ornellas e Walter Spalding se tornariam membros efetivos da sociedade e participariam, inclusive, dos primeiros congressos tradicionalistas, apresentando teses e coordenando suas principais mesas de discusso.7 Segundo Odaci Coradini, nos anos 1940 e 1950, o regionalismo passou por redefinies e sua verso mais herica perdeu a legitimidade na cultura erudita, o que no exclui a legitimidade dos temas regionaisou

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    Seu primeiro livro, publicado em 1953, retornava, de forma indireta, questo indgena: Histria do chimarro traava um panorama da bebida tpica desde seu cultivo primitivo e ritual pelas populaes nativas at a explorao econmica pelos conquistadores europeus. Se o autor j havia afirmado a ligao racial do sul-rio-grandense com o indgena, o chimarro era o elo cultural com o povo guarani. No momento em que os CTG buscavam reviver nas cidades os costumes de uma figura rural que para muitos estaria extinta ou em vias de extino, Lessa escrevia o seguinte: S o chimarro permanece como tradio fundamental do gacho, elevando-se ao patamar de um smbolo imorredouro e inconfundvel. Um jangadeiro sem sua jangada perde sua caracterizao, nos diz o autor, assim como o gacho sem o seu cavalo tende a perder sua identidade. Todavia, continua, mesmo sem o cavalo e sem o galpo, o gacho readquire instantaneamente sua tipicidade no momento em que leva aos lbios a bomba do chimarro (BARBOSA LESSA 1986, p. 65). O gentlico novamente unido ao gaudrio social e mtico, produto, por sua vez, do encontro entre as culturas autctones e europeias.

    Ambos os textos citados, correspondentes aos perodos pr e ps- -movimento tradicionalista, permitem-nos apreender a posio de Barbosa Lessa sobre a filiao racial e cultural (tambm) indgena do sul-rio-grandense. De certa forma, o debate em torno da figura de Sep Tiaraju, corregedor guarani de So Miguel das Misses, vinculou a questo indgena, como dito, possibilidade de admitir a tradio missioneira na histria sul-rio-grandense. Em 1955, o IHGRS foi acionado pelo ento governador do estado, Ildo Meneghetti, para verificar a validade da proposta do major Joo Carlos Nobre da Veiga de erigir um monumento em homenagem ao bicentenrio da morte de Sep. A comisso do Instituto, liderada por Moyss Vellinho, deu parecer negativo, o que causou reao de intelectuais como Mansueto Bernardi, ex-diretor da Revista do Globo, e o grupo de historiadores folcloristas ligados a Dante de Daytano e Comisso Estadual de Folclore. Como mostrado por Letcia Nedel, o episdio originou debates e protestos que ganharam as pginas dos jornais durante muito tempo e ecoaram na produo artstica tradicionalista e nativista.8

    O caso Sep e os intelectuais em confrontoO texto do parecer, publicado no suplemento cultural do jornal Correio do

    Povo em novembro de 1955, opera com uma distino entre o Sep mtico e o Sep histrico: o primeiro visto com simpatia, considerado, no plano das lendas, um dos elementos que configuram e enriquecem nosso patrimnio cultural (LIMA; ROSA; VELLINHO 1980, p. 140); o segundo o ponto da discrdia, j que a validao do monumento deveria ser dada em termos de

    locais ou, ainda, algo como o regionalismo social por oposio ao regionalismo herico. Portanto, mais do que ser regionalista, o que est em questo so os critrios de definio desse regionalismo, cujas alteraes podem acentuar determinados critrios de diferenciao, mais naturais, mais literrios, ou mais polticos (CORADINI 2003, p. 134).8 No artigo citado, a autora tambm analisa uma payada (gnero situado entre a msica e a poesia), gravada em 1981, de Noel Guarany, compositor e intrprete que, alm de reivindicar a herana missioneira para os habitantes do estado, retrata o heri civilizador gacho como tipo humano originrio (autctone) de um territrio mais antigo que o Brasil, no s contguo ao Prata, mas integrado a ele (NEDEL 2004, p. 349).

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    brasilidade. Em referncia a ensaio publicado por Mansueto Bernardi na dcada de 19209 e republicado pelo prprio Vellinho na quinta edio de sua revista Provncia de So Pedro,10 em 1946, a Comisso proferia: Quando lemos que Sep foi o primeiro caudilho rio-grandense a ns mesmos perguntamos que noo ele poderia ter do Rio Grande do Sul... (LIMA; ROSA; VELLINHO 1980, p. 141). Politicamente, a reao ao Tratado de Madri s poderia ter em vista a integridade territorial da Provncia do Paraguai e, por extenso, a defesa da Coroa espanhola, da a concluso negativa: no s inaceitvel o brasileirismo de Sep, como ainda no admissvel encar-lo como uma expresso do sentimento, das tendncias, dos interesses, da alma coletiva, enfim, do povo gacho, que se estava formando ao signo da colonizao portuguesa (LIMA; ROSA; VELLINHO 1980, p. 142).

    A resposta de Bernardi foi publicada no Correio do Povo no ano seguinte, s vsperas da data tida como da morte do lder guarani, 07 de fevereiro. Entre os argumentos desse autor, encontramos o revide historiogrfico: a luta indgena no teria sido resposta ao tratado em si, mas transmigrao forada tanto por espanhis quanto por portugueses, e mesmo pelos jesutas, da a falcia do vnculo do personagem com o imprio hispnico. Mais interessante para nossa questo o raciocnio racial de Bernardi:

    Sep Tiaraju muito mais gacho e, por conseguinte, muito mais brasileiro no no sentido moderno e poltico do vocbulo, mas no sentido autctone e racial do que os prprios membros da Comisso de Histria, os quais descendem de lusitanos aportados ao Continente de So Pedro, quando muito h 230 anos, ao passo que ele provinha de uma nao aqui radicada desde o tempo do dilvio [...] (BERNARDI 1980, p. 41).

    O contra-ataque do escritor seguia risca a refutao, por sua incitao,

    do Padre Lus Gonzaga Jaeger, que, durante a sesso extraordinria de 18 de outubro de 1955, havia aprovado com restries o parecer da Comisso. No encontro seguinte, em 25 de outubro, esse historiador surpreendia os colegas com sua Defesa do intrpido gacho, o Capito Jos Tiaraju, o lendrio S. Sep, em que a redeno do corregedor guarani se dava pelo apego terra natal, origem espacial do futuro Rio Grande: Coloquemo-nos uns instantes na realidade do ndio missioneiro. que ele tinha um sentido profundamente pronunciado, se no de Ptria como parecem neg-lo os confrades da Comisso , mas um apego insupervel querncia, gleba que os vira nascer (JAEGER 1980, p. 150). A impreciso dos sentimentos de nacionalidade entre os gachos do sculo XVIII, compreendidos como grupo sociorracial, invalida o critrio de apreciao empregado pela Comisso de Histria: O gacho, como tal, no

    9 O texto original, tambm intitulado O primeiro caudilho rio-grandense, foi elaborado como palestra, ministrada em 1926, a convite de Alcides Maya, no Museu Histrico Jlio de Castilhos.10 Peridico da Editora Globo voltado aos temas do Sul, dirigido por Moyss Vellinho e que circulou entre os anos de 1945 e 1954. Sobre o programa regionalista da revista, informa Coradini: Mas fica explcito tambm que consite numa reao dessa elite cultural s novas condies nas relaes centro/periferia em oposio ao centralismo ou padronizao cultural e, por outro lado, ao antigo regionalismo tradicionalista ou saudosista, ou aos exclusivismos localistas em nome dos autnticos valores do passado (CORADINI 2003, p. 136).

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    tem nacionalidade determinada. Encontramo-lo nas coxilhas rio-grandenses, no gacho uruguaio, argentino e paraguaio (JAEGER 1980, p. 153).

    Durante meses a fio, vrias personalidades intelectuais e polticas locais se pronunciaram nas pginas dos jornais, defendendo um ou outro dos pontos de vista. Para resumir o apelo e a complexidade da contenda, apontarei suas inflexes no setor mais caro a Barbosa Lessa, o movimento tradicionalista. No livro em que Bernardi compilou seus textos em favor de Sep, incluindo o parecer oficial do IHGRS (e os pareceres apcrifos que a ele se seguiram), publicado originalmente em 1957 pela Editora Globo, o escritor noticiava que o 35 CTG, como se poderia esperar, manifestara-se contrariamente deciso do Instituto em ofcio dirigido ao governador, assim iniciado:

    Sr, Governandor. O 35 Centro de Tradies Gachas do Rio Grande do Sul sente-se no dever de manifestar a V. Excia. sua desaprovao ao parecer emitido pelo Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Sul no caso da personalidade histrica do ndio Sep, em que pese a respeitabilidade daquela nobre instituio (BERNARDI 1980, p. 126).

    Contudo, em janeiro de 1956, uma pequena coluna do Correio do Povo transcrevia um ofcio da entidade, o qual solicitava ao governador a construo de um monumento em honra aos heris da guerra de demarcao, de 1801. Segundo o texto, o Tratado de Madri no teria vigorado de fato na segunda metade do sculo XVIII, o que teria deixado a populao do Continente merc de castelhanos e ndios missioneiros, que invadiam o territrio, saqueando as fazendas, incendiando casas, desacatando famlias. A situao s teria se resolvido quando um grupo de rio-grandenses e paulistas, pouco mais de 60 homens, fez capitular o governador espanhol das Misses, dominando o territrio. Dessa forma, o Centro indicava um marco diferente para a fundao simblica do Rio Grande, referente no ao gacho missioneiro, mas aos continentinos e paulistas de origem portuguesa, seguindo a recomendao do parecer do IHGRS:

    No poderemos esquecer os Conquistadores das Misses. Praticando o feito memorvel, eles no s acrescentaram um vasto e frtil territrio ao Brasil, como asseguraram a paz com a Repblica Argentina, criando uma fronteira bem caracterizada pela linha dgua do Rio Uruguai (A CONQUISTA 1956, p. 8).11

    Barbosa Lessa, que, naquele ano, residia na capital paulista,12 parece no ter gostado da resoluo proposta pelos companheiros de militncia. Um manuscrito encontrado em seu acervo pessoal13 expe a opinio de nosso autor sobre o conflito. Surpreendentemente, ele acabava por criticar ambos os grupos

    11 Assinaram o documento Cyro Dutra Ferreira, ento patro do 35 e um dos tradicionalistas pioneiros do DTG do Julinho, e Plnio de Moura, Primeiro Sota-Capataz (secretrio) da entidade. 12 Em 1954, Barbosa Lessa fixou residncia em So Paulo para atuar como consultor regionalista da Companhia Cinematogrfica Vera Cruz, que estava filmando uma adaptao de Ana Terra, trecho do primeiro tomo da trilogia de Erico Verissimo.13 O Acervo Barbosa Lessa est sediado (e aberto pesquisa desde 2002) no Forte Zeca Neto, prdio da Secretaria de Cultura do Municpio de Camaqu, na zona Sul do estado.

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    de intelectuais envolvidos no caso, recorrendo a termos muito semelhantes queles utilizados conceitualmente por Gutfreind dcadas depois:

    H duas correntes intelectuais, no Rio Grande do Sul, que bipartem os estudos histricos: a dos lusitanfilos e a dos hispanfilos. Nessas circunstncias, somente pode merecer reconhecimento pblico, na provncia, o heri que previamente tenha estudado Histria Universal e optado claramente por uma das duas filiaes (BARBOSA LESSA 1956).

    Alm disso, se Tiaraju tivesse sido um nobre cavaleiro das crtes ibricas,

    nos diz o escritor, Portugal e Espanha lutariam pela primazia em comemorar festivamente a data de sua morte, e ele seria ento heri espanhol, sob a alegao de ter combatido Portugal, ou heri portugus, sob a alegao de ter combatido Espanha. Em sua tica, a recuperao de Sep seria justa e correta, mas, na contramo da Comisso de Histria, dever-se-ia justamente sua fora como mito, j que seus feitos teriam sido conduzidos por ideais universais: Naquele momento, na alma de Tiaraj fervilhavam sentimentos que sobrepairam s correntes histricas, s escolas literrias e mesmo s convenes de nacionalidades: incentivavam-no os sentimentos mais profundos de amor famlia, gleba e liberdade. A crtica s divergncias nacionalistas dos cultores oficiais da memria do Rio Grande explcita: Valha Sep Tiaraj na poca porque passa o nosso mundo como um smbolo de resistncia s patriotadas. Com esse valor, certamente, o heri no merecer o acatamento daqueles que tomam o pulso da Histria com medidas da Poltica Internacional. Canonizado pelo povo, entretanto, Sep Tiaraju teria a reverncia de todos os humildes:

    Por isso mesmo, a data de 7 de fevereiro ser comemorada com maior grandeza ainda, pois ao invs de agitar-se no fanfarroneio das avenidas, recolher-se- ao convvio silencioso e amigo de todos os tiarajs que cada homem traz consigo no mago de sua alma (BARBOSA LESSA 1956).

    Apesar da condenao indiscriminada dos motivos de ambos os grupos que se digladiavam no caso, os alvos principais do artigo eram, obviamente, os intelectuais que negavam a reverncia ao heri indgena. Em muitos momentos, como no texto de apresentao do Boletim do 35, nosso autor no teve pudor em manifestar seu patriotismo, expresso tambm no lema da entidade: Em qualquer cho, sempre gacho! (O 35 1950, p. 1). O patriotismo, no entanto, no deveria ser confundido com as patriotadas que cegavam os homens de cultura frente a valores to nobres como aqueles que Sep simbolizaria. Entretanto, tal postura universalista no pode esconder suas simpatias pela incluso da memria missioneira ao patrimnio do estado.

    Das contendas de memria literatura de imaginaoO projeto intelectual de Barbosa Lessa, at ento dominado pelo jornalismo

    e pelo folclore, dialogava com a tradio literria regionalista e com os projetos contemporneos de literatura e de identidade regional, disputando, como dito, a redefinio do prprio regionalismo. Nesse sentido, um elemento formal

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    deve ser avaliado: a natureza dos gneros discursivos empregados pelos dois registros de memria pblica. Alm das questes colocadas por cada posio, como apontado por Nedel, a manifestao do discurso folk, desde o comeo do sculo XX, deu-se majoritariamente pelo texto de fico. Comprometidas com uma perspectiva de histria monumento, as primeiras pesquisas em Histria no estado fizeram recair sobre os heris farroupilhas e os tropeiros de origem lusitana o ttulo de fundadores do Rio Grande. Mesmo a aproximao dessa elite portuguesa com o termo gacho, tornado denominativo de todo o habitante do estado, dava-se de cima para baixo, pela nobilitao do gentlico,14 estratgia que permitia desviar dessa disciplina as complicaes implcitas ao predomnio do sermo rusticus comum ao regionalismo da prosa literria (NEDEL 2005, p. 68). Se verdade que a oposio tambm aparecia na literatura,15 o privilgio do gacho popular no conto e no romance regional e o predomnio do heri militar em historiografia estabeleciam uma espcie de diviso discursiva do trabalho de elaborao da memria local.

    Se, na segunda metade da dcada de 1950, o foco do projeto intelectual de Barbosa Lessa passou a ser a literatura, no podemos negligenciar a afinidade histrica do folclore regional com a fico como possvel constrangimento para algum, nessa altura, reconhecido pela pesquisa de campo e atuao, para alm do movimento tradicionalista, como dito, nas Comisses Gacha e Paulista de Folclore.16 Aps a redao de um livro hbrido, que passava pelo ensaio histrico, pela crnica e por instrues do tipo manual para o correto preparo do chimarro, nosso autor publicou, em 1958, uma coletnea de contos gauchescos. O boi das aspas de ouro , ento, um novo artefato de interveno nos rumos do tradicionalismo gacho, na cena literria, mas tambm no desenho de um patrimnio cultural etnicamente agregador. Assim, a atualizao do mito do gacho a cavalo, que servira de modelo formalizao da ritualtisca tradicionalista, tambm passava pela ampliao dos grupos sociais nele encarnados. Essa avaliao aparece na crtica de Gilda Bittencourt ao livro de Barbosa Lessa, mas a autora no alcana a inovao representada por suas apostas literrias e pelas ideias polticas nelas contidas:

    Embora na obra de Lessa haja uma constatao das mudanas da sociedade campeira (como a chegada do colono, do trem e da lavoura) e o conseqente empobrecimento do gacho, e at mesmo o autor aborde

    14 Em virtude da confuso incontornvel entre o gacho, de significado originalmente pejorativo, e o sul-rio- -grandense, no caso da Revoluo de 1835, a soluo, como mostra Letcia Borges Nedel, seria, justamente, aproximar o primeiro termo da classe social que sustentara o episdio farroupilha; assim, o sentido nobre da palavra, exclusivo aos habitantes do estado brasileiro, seria [...] uma decorrncia da extrao social superior das elites locais ou seja, do papel desempenhado no pela plebe na sustentao do Imprio, mas pelos representantes legalmente constitudos por um Estado nacional forte e organizado. (NEDEL 2005, p. 68).15 Mesmo na literatura, os crticos de ento identificaram duas vertentes, uma platina e outra sul-rio- -grandense, que abordavam de diferentes formas a figura do gacho, sendo a segunda mais conservadora em termos estticos e de linguagem. O exemplo clssico da primeira seria a obra de Alcydes Maia, que mesclava vocabulrio e estrutura narrativa erudita com temtica popular.16 A convite de Dante de Laytano, Barbosa Lessa e Paixo Crtes ingressaram na CEF em 1950. O acesso s discusses do movimento folclrico brasileiro possibilitou, alm do material necessrio (como o gravador de voz), a instrumentalizao nas tcnicas de pesquisa folclrica que fundamentaram a coleta de elementos, entre 1950 e 1952, para a criao das danas tradicionais gachas, difundidas pelo j citado Manual. Com o estabelecimento em So Paulo, Barbosa Lessa passou a frequentar a Comisso Paulista, pela qual empreendeu estudos no interior daquele estado e mesmo viagens regio Norte do pas.

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    uma questo quase ignorada pela gauchesca tradicional a escravido nas fazendas , os textos, em seu conjunto, reproduzem o mesmo modelo de antes, cultuando idnticos valores e expressando a mesma concepo de uma sociedade fechada, com valores prprios, e refratria a tudo o que vier de fora (BITTENCOURT 1999, p. 32).

    Atualizado, ampliado e ressignificado, seu modelo, entretanto, j no o mesmo da literatura precedente. Joana Bosak de Figueiredo chega a concluses diametralmente opostas s de Gilda Bittencourt. Para ela, ao tomar como foco de seus escritos o gacho empobrecido, Barbosa Lessa teria se afastado drasticamente dos mitos do centauro dos pampas e do monarca das coxilhas (FIGUEIREDO 2006, p. 38). Ambas as posies, no entanto, devem ser matizadas. Como Figueiredo mesmo aponta, a literatura de Barbosa Lessa se configura em um meio-termo na tradio regionalista, ou seja, coloca-se entre (e podemos dizer tambm contra) o ufanismo e o disforismo, nos termos da proposio de Cyro Martins, com seu gacho a p,17 conciliando o elogio do mito crtica da realidade. O modelo prescrito por Lessa diferente porque o autor reconstri o mito a partir de novos elementos e responde a outro contexto, mas ainda se apropria criativamente dos signos do gauchismo romntico. Nesse processo, o projeto literrio de Barbosa Lessa se abre para vozes at ento esquecidas ou marginalizadas:

    [...] em sua visada ao Rio Grande do Sul, esto presentes o ndio, o negro e a mulher como fundadores dessa pequena ptria, tanto quanto o elemento aoriano, o jesuta, o espanhol, o tropeiro e todo o tipo de figura masculina privilegiada por uma leitura mais tradicional do que seja a formao social sul-rio-grandense (FIGUEIREDO 2006, p. 38).

    Dado que o debate sobre o caso Sep adentrara o ano de 1957, pelo menos, nas pginas dos jornais locais,18 o tratamento da questo indgena no novo livro de Barbosa Lessa ainda deve ser compreendido como uma resposta negao da contribuio missioneira formao sociorracial e cultural do sul-rio-grandense. O nico conto da coletnea que no apresentado por um narrador personagem, aparentemente identificado com o prprio autor, intitulado A mboi-guau de So Miguel, narrado pela voz de uma mulher missioneira descendente dos povos autctones. A lenda teria sido contada ao autor (que a teria transcrito da mesma forma) pela mestia guarani Sebastiana Gonalves de Oliveira, aos 97 anos de idade (BARBOSA LESSA 1958, p. 38). O que h de mais inovador na literatura regionalista de Barbosa Lessa, como apontado por Joana Bosak de Figueiredo, possivelmente seja a ateno dada ao papel da mulher na formao do carter regional. mboi-guau uma histria de resistncia, alm de indgena, feminina. A voz da velha mestia apresenta a lenda da cobra grande que cercara as runas

    17 Ver MARTINS 1979. Esta oposio ser explorada mais adiante.18 Em novembro de 1957, por exemplo, trs textos sobre a questo apareceram no suplemento cultural do Correio do Povo: no dia 02, Arthur Ferreira Filho defendia a posio da Comisso de Histria em artigo de opinio; no dia 09, Eurico Rodrigues chamava, em ensaio, a tese de Bernardi de fraude histrica; no dia 23 de novembro, Jlio Srgio de Castro, lamentava em versos a viso oficial de Sep, segundo o IHGRS: Se sobraste na Histria, ainda cabes num poema.

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    de So Miguel aps a Guerra Guarantica. Com seus homens mortos nas batalhas, restara s mulheres abrigarem-se, com as crianas, no interior da sala grande da igreja. O mato tomara conta das lavouras e aproximara-se das portas da reduo. Com ele, chegou a mboi-guau, conhecida outrora apenas pelos relatos daqueles homens que se aventuravam pelo serto. A cobra grande espantou os tigres e os morcegos que rondavam o lugar, mas, impossibilitada de chegar ao centro da praa devido barreira aos matagais constituda pelo cho pisado por muita gente, abrigou-se na sala dos sinos, de onde exigia, com seu badalar, a refeio que saciasse sua fome. O barulho ensurdecedor enlouqueceu a primeira mulher que sacrificou seu filho para cessar o martrio. Quando a fome de mboi- -gua voltava, outra mulher seguia seu exemplo, at que, de tanto se alimentar de carne tenra, a cobra explodiu e deixou as ltimas sobreviventes seguirem sua sina em paz. Barbosa Lessa no se furtou de interpretar a lenda. Na apresentao da narrativa, nosso autor relaciona o sacrifcio dos filhos cobra quele feito para as tropas de guerra:

    Se, dentre os leitores, encontrar-se algum propenso a traar simbolismos, talvez possa perceber, na histria da Mboi-Guau, certa correlao com a compreensvel angstia que as pobres vivas guaranis vtimas da guerra, e desamparadas em sua desdita por certo sentiam ao entregar seus filhos s foras de recrutamento militar (BARBOSA LESSA 1958, p. 38).

    Recolhido/escrito e publicado no calor daquele embate, o conto de Barbosa Lessa indicava pblica e claramente sua posio: incluir como parte do repertrio de contos regionais uma lenda missioneira de matriz indgena significava incorporar memria oficial aquele pedao de Rio Grande cuja historicidade fora negada pelos intelectuais do IHGRS. Sendo, ainda, narrada por uma descendente de guaranis e portugueses (uma complacente e significativa concesso dentro da lgica da obra), a histria une simbolicamente os dois povos na formao do brasileiro sul-rio-grandense. A relao entre Barbosa Lessa e o grupo de historiadores folcloristas que apoiava Mansueto Bernardi tambm se dava pela sua opo por uma memria tanto tributria da literatura gauchesca quanto coletora da tradio oral, que, como mostrado por Letcia Nedel,

    sugeria uma relativa variao de temas em relao ao repertrio clssico da historiografia, sobretudo porque o local ali se fazia representar por um novo sujeito histrico, pelo guardio de um passado vivenciado na prtica: o povo, nico elemento capaz de revelar o substrato psquico da provncia (NEDEL 2005, p. 368).

    A preocupao com a definio de povo e popular e com polticas de espectro variado para o suporte do objeto designado por esses termos esteve, como dito, presente na formulao do projeto individual de Barbosa Lessa e na sua perspectiva de projeto tradicionalista, manifestando-se em 1956 na constatao de que as gentes humildes no abandonariam o santo Sep no bicentenrio de seu sacrifcio. O foco da tradio deveria ser, pois, esse sujeito histrico identificado ao gacho campeiro e simples e, portanto, mais uma

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    vez, oposto ao gacho elitista, militarizado e nobilitado pela historiografia. Se este ltimo, entretanto, tambm aparecer nos escritos de nosso autor, talvez isso se deva ao seu anseio pela incorporao dos mais variados segmentos da sociedade sul-rio-grandense na atualizao do mito. Ainda que o campo intelectual local estivesse pouco especializado, sendo mesmo comum o trnsito de escritores por diversos gneros discursivos,19 naquele momento, em vista do debate em torno da efetividade da herana indgena e missioneira cultura local, o histrico da literatura de fico se revelava a Lessa como a melhor possibilidade de expresso textual para tal projeto.

    A ampliao do gacho e a reafirmao do popularA tomada de posio frente questo indgena na memria histrica local

    dificilmente se manteria sem uma crtica mais profunda ao modelo lusitano, militar, latifundirio e masculino de heri celebrado oficialmente. Incorporar o passado missioneiro e a contribuio indgena formao do povo gacho implicava desenvolver o olhar para outros fatores, tnicos e sociais, h muito tempo discriminados. O boi das aspas de ouro tambm direcionaria a ateno da histria (e da literatura) para o longo e velado preconceito contra o negro no Rio Grande do Sul. Em outro conto do livro, intitulado Cabos Negros, nosso autor relata a dura vida de escravo nas fazendas de plantao. Junto crtica da escravido, encontramos ainda uma tnue recuperao da lavoura como espao de produo da cultura gauchesca, esta h muito tempo tomada como exclusividade simblica da grande propriedade pecuria. Na apresentao desse texto, nosso escritor questiona o que considera o grande tabu da literatura regionalista do estado: no se concebe histria que fuja s lides pastoris; Conto que, deixando o cenrio das estncias de criao de gado, penetre nas fazendas de agricultura, poder ser brasileiro mas jamais rio-grandense (BARBOSA LESSA 1958, p. 45). A argumentao do autor recorre histria da regio, j que sua primeira grande fora econmica teria sido a proveniente das plantaes de trigo dos imigrantes aorianos. Mesmo depois de a peste da ferrugem ter dizimado tais lavouras, geraes inteiras de rio-grandenses plo duro continuaram estoicamente dedicados ao cultivo da terra.

    Outrossim, o texto incorpora a contribuio negra formao do sul- -rio-grandense. A crtica se volta novamente para a historiografia, que teria transformado como idia feita, sem que pesquisas mais acuradas tivessem dado veredicto final, a posio de que a escravido havia sido inexpressiva no sul do pas. Os causos de escravido, mantidos pela tradio popular, no possuiriam, assim, legitimidade para ocupar as pginas da literatura. Barbosa Lessa recorre, ento, ao trabalho do historiador Jorge Salis Goulart20 para mostrar

    19 Como mostrado por Mara Rodrigues (2006) no caso de Moyss Vellinho, a literatura poderia servir, inclusive, como porta de entrada para a crtica histrica.20 A obra citada o livro A formao do Rio Grande do Sul, publicado em 1927. Cabe lembrar que este autor conhecido como um dos construtores do mito da democracia racial no Rio Grande do Sul. O uso que Lessa faz de seu texto , entretanto, meramente probatrio, para indicar a presena negra, negada por grande parte da historiografia tradicional. Como veremos nas prximas linhas, Barbosa Lessa centra sua narrativa justamente no conflito entre escravos e escravistas.

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    que as zonas de intensa agricultura e os centros de fabricao de charque, como Pelotas e Porto Alegre, pela natureza dessas indstrias, exigiam numerosa escravaria, a qual vergava ao peso dos mais rduos trabalhos (BARBOSA LESSA 1958, p. 46). O conto narra a valentia do escravo que domou o selvagem potro Cabos Negros, utilizado para castigar os rebeldes: O negro fujo, reconduzido estncia, era arrojado aos ps de Don Pepe para optar entre a dor e o medo. O que escolhes, crioulo? A estaca ou Cabos Negros? (BARBOSA LESSA 1958, p. 48). Todos preferiam o aoite na estaca a enfrentar o perigoso cavalo. Para salvar a vida de Pai Nncio, que fora pego pelo feitor da fazenda ao tentar trazer Joo Batista de volta da sua fuga e evitar o confronto com o potro, esse ltimo decide matar Cabos Negros. Da luta nasce uma surpreendente amizade, e o escravo ganha a liberdade no lombo do cavalo, longe das terras do Sinh, num s corpo, ao feitio dos centauros (BARBOSA LESSA 1958, p. 67). A imagem significativa, uma vez que centauro um dos termos utilizados desde o romantismo oitocentista para designar o cavaleiro sulino. Na verso dominante de memria, ele era o militar estancieiro. Logo, a metfora se tornava quase exclusividade branca.

    Em outra frente, Barbosa Lessa daria ateno ao papel da mulher em seu escrutnio literrio do Rio Grande. Como vimos, um dos contos tem como narradora e protagonista uma personagem feminina. Seu primeiro romance, Os Guaxos,21 publicado em 1959, escolhido melhor romance do ano pela Academia Brasileira de Letras, desenvolvia a questo.22 Chama a ateno o fato de que a primeira edio condensada (a 3a) do livro, publicada em 1984, recebeu o expressivo subttulo de o romance do gacho a cavalo e da mulher de estncia.23 Mesmo que Barbosa Lessa construa seus personagens seguindo um modelo andro-heterocentrado, em que o binmio masculino/feminino estruturador da lgica narrativa continua reservando ao primeiro polo os privilgios da diferena, encontramos tambm certa flexibilizao dos padres de feminilidade tradicional. As personagens femininas mais relevantes, Celita, Sia Bela, Zefinha e Ruana, encarnam diferentes papis que, grosso modo, ocupam lugares distintos numa escala valorativa entre dois modelos de ser mulher: a mulher guaxa, com sina de china (companheira do gacho vago do passado fronteirio), e a mulher prendada, esposa e me. O segundo o ideal, a regra, o desejado; o primeiro mais do que marginal, o do ostracismo social. Em ambos os casos limite, a mulher gacha o elemento passivo como a terra a quem no cabe uma palavra de queixume ou gesto de revolta. a sina de todas: Se assim , foi porque o destino quis (BARBOSA LESSA 1959, p. 118). No entanto, as constataes acabam por se revelar grandes crticas condio

    21 A palavra guaxo designa o terneiro criado sem o leite materno, ou seja, denomina metaforicamente o desgarrado, indivduo sem razes e sem paradeiro fixo.22 O texto foi bem recebido pela crtica do estado e do centro do pas. Em Porto Alegre, por exemplo, Aldo Obino o saudava como romance enxuto, spero e de paixo. Walter Spalding o elegia como o melhor e maior romance do Rio Grande at hoje aparecido. No Rio de Janeiro, Antonio Olinto o caracterizava como romance bem realizado. Em So Paulo, Srgio Milliet recomendava sua leitura sem medo de errar e afirmava que nosso autor havia conquistado lugar de honra entre os romancistas nacionais.23 A quinta e ltima edio, publicada pela Editora Alcance em 2002 por meio de convnio com a COPESUL, carrega apenas o epteto de romance do gacho a cavalo.

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    de subordinao, deixando brechas para outra interpretao: Mas esta religio fatalista jamais imps que os humanos se sentissem indefesos e, de antemo, derrotados. Cada um deve tirar e descobrir dentro de si a fora que possui.24 As mulheres, assim, ao mesmo tempo em que so iguais, so tambm todas diferentes. Na diferena, elas podem encontrar sua fora no domnio das lidas domsticas, no domnio do amor ou no domnio da vida , mas na igualdade que brota a fora especfica de cada uma delas. Tia Velha, por exemplo, temida por todos, pois faz mandingas, benzeduras, cura doenas, protege as plantas e, se quiser, cria paixes: E os homens todos, na estncia, sabem que Tia Velha, a velha escrava, um traste, tem mais fora que eles prprios. Tem fora porque mulher. Mexe os cordes do Destino. S as mulheres tem tal fora (BARBOSA LESSA 1958, p. 118).

    A valorizao de sujeitos histricos pouco lembrados pelas narrativas oficiais tem um ltimo contraponto, no menos importante: a reafirmao do carter popular do gacho histrico. A posio parece bvia para um folclorista e literato filiado tradio gauchesca. Contudo, Barbosa Lessa olhava mais para frente do que para trs, se dirigindo a dois campos de produo letrada: fora da literatura, como temos visto, contra o gacho elitizado da memria histrica dominante no IHGRS; dentro do gnero gauchesco, contra a declarao de morte do gacho a cavalo.

    Seguindo a linha de Cyro Martins,25 Ivan Pedro de Martins denunciou o pauperismo do homem do campo no Rio Grande do Sul em seus livros Fronteira agreste (1944) e Caminhos do sul (1946). Em 1955, num momento prximo estreia de Barbosa Lessa na fico, tal escritor publicou um livro de contos intitulado Do campo e da cidade. A seleo de histrias curtas escritas ao longo de 18 anos pretendia dar conta das pobrezas rural e urbana, de conflitos entre campo e cidade, entre peo e patro, pobre e rico. Para Antnio Hohlfeldt:

    A contribuio de Ivan Pedro de Martins consiste na abordagem explcita da vida dos homens marginalizados dessa sociedade, a partir dos prprios espaos fsicos e geogrficos que ocupam, evidenciando que tambm a localizao dos povos no nem gratuita nem destituda de sentido (HOHLFELDT 1998, p. 19).

    No conto intitulado Tapera, a degenerao do ambiente se confunde com a pobreza dos personagens principais: O capim, o mato, as embabas esguias, o sap amarelado, as tiriricas deselegantes, tudo parece morto por excesso de seiva (MARTINS 2000, p. 27). A lida de tropeiro o objeto do primeiro texto. A vida descrita dura, destituda de qualquer encanto, em nada lembrando a figura h alguns anos celebrada por Barbosa Lessa. O personagem que cede o

    24 Lina Peixoto alimentou em seu ventre o filho que lhe trouxe a redeno. Sia Bela alimentou em seu rancho a filha com que voltou casa-grande. Ruana alimenta em seu corpo feitios que os homens temem. E se Zefinha no possui tais feitios pode porm apelar s artes de Tia Velha (BARBOSA LESSA 1959, p. 118).25 Juntamente com Pedro Wayne e Aureliano de Figueiredo Pinto, segundo Regina Zilberman, tais autores ilustram a perspectiva da produo literria regionalista sul-rio-grandense que marcou as dcadas de trinta e quarenta: Recuperam, pois, os aspectos caractersticos do regionalismo, porm despem-no de seu ufanismo gauchesco, sepultando a ndole festiva em troca da expresso da desigualdade social (ZILBERMAN 1980, p. 68).

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    nome ao conto, Man, de doze anos, quem questiona a explorao, na crtica da resignao do companheiro de tropeada: Inh na cidade outro homem. Patro t longe, ele conta vantaje. Home devia s home em toda parte. Si Inh quisesse derrubava o patro de um soco s... e fica quieto quando o veio passa pito (MARTINS 2000, p. 17). A faina na estncia tambm passa ao largo das festas de marcao relatadas pelo jovem Lessa. Em Sina, o Maneco se torna peo por necessidade e, talvez, por falta de alternativas: A infncia igual de todos os filhos de pobres. Botando vacas, trazendo a cavalhada do piquete, enchendo mate para o patro velho, mandalete das moas da casa, at os dezesseis anos o encontraram estreando numa esquila (MARTINS 2000, p. 44).

    Os dois livros de fico compostos por Lessa no perodo tambm discutem, portanto, questes prpias ao gnero gauchesco na literatura, traando alternativas narrativas, estticas e polticas gerao regionalista realista que dominava a produo local. A denncia da pobreza e da morte do gacho tambm ganhariam as novas pginas de Barbosa Lessa. O ltimo conto, intitulado Papai Noel conta um causo, narra a triste histria de um peo que, sem trabalho no campo, incorpora-se s filas de desempregados na cidade. Na noite de Natal, o velho senhor aceita se vestir de Papai Noel em troca de um prato de comida e de alguns trocados. Na apresentao do texto, nosso autor relata resumidamente o processo pelo qual o Rio Grande da pecuria se moderniza e se transforma, cedendo espao agricultura e gerando o xodo rural. Com a introduo dos arados pelos colonos alemes e italianos e com os cercamentos das terrras, Fazendas de criao, que antes necessitavam de dezenas de empregados, agora podiam prover s suas necessidades com meia dzia de pees (BARBOSA LESSA 1958, p. 167). Disfarando uma lgrima, o velho peo termina seu relato de vida com uma prece a Papai Noel:

    Tu, que todos os anos vens visitar as cidades, por que te esqueceste dos campos?... Ser que a luz do progresso fez os teus olhos cegar? Fez os teus olhos no ver que ali atrs das coxilhas hai muita gente que espera um presente de Natal?... Hai muito pi sonhando com um petio pra montar... Hai muita chinoca linda que no tem gua-de-cheiro pra esperar o namorado. Hai muito gacho velho que no tem no seu ranchito o po que traz a alegria, a luz que d a inteligncia. Papai Noel... Por que que te esqueceste dos campos do meu Rio Grande?... (BARBOSA LESSA 1958, p. 178).

    Dessa forma, Barbosa Lessa aliava um canto de luto crtica social, utilizando o mito do gacho pampiano como fonte para a denncia, mas tambm, diferentemente dos regionalistas disfricos, como modelo para a redeno do Rio Grande: Escuta, Papai Noel... De outra vez que tu voltares, traz o que eu te peo, meu Santo! traz consigo mil cavalos pra espalhar nos rancherios. Pois j existe, neste pago, gachos sem nazarenas... sem esporas... sem querncia... (BARBOSA LESSA 1958, p. 178).

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    Concluses O projeto ficional de Barbosa Lessa tributrio de seus projetos de memria

    e de folclore, mas no no sentido de transposio direta de perspectiva de uma frente de produo a outra. O caso da representao do feminino exemplar dessa constatao. Se nas danas tradicionais,26 no aparato visual (vestimentas, adereos, gestual) e na categoria de prenda,27 inventada para comportar a mulher tradicionalista e desviar dela a suspeita que pesava sobre a china do passado gacho, destaca-se um modelo patriarcal bastante rgido, na literatura de imaginao, ao contrrio, h espao para ambiguidades, oscilaes, para a manifestao de padres feminininos marginais, a valorizao da mulher como um todo e uma sutil denncia da submisso, culturalmente construda. A fico deve ao folclore na medida em que este apresenta quela uma matria bruta para a estetizao: motivos, personagens, estratgias narrativas, frmulas. Mas sua lapidao sempre criativa, comprometida com o literrio e dirigida a frentes de debate mais atuais, com novas oportunidades para a reflexo. O confronto dos textos com os contextos discursivos mais amplos revelaram, assim, uma ambio ficcional de tipo moderno: o literato explica a realidade pela fico. A representao no subalterna ao real. A autonomia do literrio mais do que textual, cognitiva. A fico objetiva produzir um saber sobre o mundo sem postular que esse saber tenha uma natureza superior e irredutvel quele das Cincias Sociais (ANHEIM; LILTI 2010, p. 255, traduo nossa).28

    O caso Sep exigiu de Barbosa Lessa a reflexo no somente sobre o passado missioneiro, mas, principalmente, sobre o estado do debate historiogrfico no Rio Grande do Sul. A sua tomada de posio lhe permitiu a organizao do projeto ficcional nascente para atender a demandas de memria que o autor considerava reprimidas. Evidentemente, a avaliao exigia o reconhecimento da vida social: a excluso na memria histrica estava vinculada condio das massas subalternas e de atores sociais marginalizados. A confiana na fico como explicao tinha como reverso a aposta em seu poder de mobilizao. Para solucionar problemas da estrutura social, era necessrio transformar o universo simblico.

    Ao tratar da distino entre biografia histrica e biografia literria no sculo XIX, Philippe Levillain chegou seguinte constatao: Quando a Literatura recorre Histria, esta pode desempenhar o papel de simples suporte, como a parede para o afresco, se se trata de um romance, como a tela para o retrato, se se trata de uma biografia (LEVILLAIN 2003, p. 154). A obra de Barbosa Lessa demonstra uma mudana radical na funo do literrio, mesmo que construda

    26 Barbosa Lessa e Paixo Crtes so os criadores das coreografias que ainda hoje se apresentam nos CTG. As danas tradicionais so composies inspiradas em pesquisa folclrica, como dito. Alm do Manual, de 1956, foram divulgadas num LP gravado por Inezita Barroso.27 O termo no foi historicamente utilizado como denominao da mulher gacha. Tratou-se de uma escolha do movimento tradicionalista baseada em dois antecedentes. Prenda, no vocabulrio rural, significava objeto de valor. Somava-se a isso a existncia, no parco repertrio folclrico sobre o gacho, a msica Prenda minha, registrada por Carlos Von Koseritz, no final do sculo XIX e reproduzida por Mrio de Andrade em seu Ensaio sobre a msica brasileira, na qual um campeiro se referia amada como seu bem valioso. O termo denota claramente a posio de objeto da mulher e sua posse pelo homem.28 No original: [...] sans postuler que ce savoir soit dune nature suprieure et irrductible celui des sciences sociales.

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    Quando a literatura fala histria_________________________________________________________________________________

    hist. historiogr. ouro preto n. 16 dezembro 2014 p. 37-54 doi: 10.15848/hh.v0i16.800

    na j longa durao da histria (e da historiografia literria) ps-romantismo.29 Quando a literatura fala histria, j no h hierarquia entre suportes e mensagens; a fico disputa a representao do passado, pois conhece seus usos polticos.

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    29 No se trata aqui de atestar uma singularidade lessiana, mas de apontar para uma reorientao, em relao ao sculo XIX, nos usos da fico que sua obra compartilha. Essa interpretao tambm no nova, mas diante das discusses recentes em historiografia sobre o potencial cognitivo da literatura de imaginao, este um ponto que vale a pena lembrar. Para mais exemplos e anlises pormenorizadas de teses histricas sustentadas na literatura rio-grandense, ver tambm RODRIGUES 2006.

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    hist. historiogr. ouro preto n. 16 dezembro 2014 p. 37-54 doi: 10.15848/hh.v0i16.800

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