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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS - PPGCS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ANTROPOLOGIA “Quando é da família, é melhor!”: família e casamento entre cearenses em Santarém-Pará KEILA DE SOUSA AGUIAR BELÉM PARÁ Agosto/2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS - PPGCS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ANTROPOLOGIA

“Quando é da família, é melhor!”: família e casamento entre

cearenses em Santarém-Pará

KEILA DE SOUSA AGUIAR

BELÉM – PARÁ

Agosto/2009

KEILA DE SOUSA AGUIAR

“Quando é da família, é melhor!”: família e casamento entre

cearenses em Santarém-Pará

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais (PPGCS), área de

concentração em Antropologia, Instituto de Filosofia e

Ciências Humanas, da Universidade Federal do Pará como

requisito para a obtenção do título de mestre.

Orientadora: Profª. Dra. CRISTINA DONZA CANCELA

BELÉM – PARÁ

Agosto/2009

KEILA DE SOUSA AGUIAR

“Quando é da família, é melhor!”: família e casamento entre

cearenses em Santarém-Pará

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais (PPGCS), área de

concentração em Antropologia, Instituto de Filosofia e

Ciências Humanas, da Universidade Federal do Pará como

requisito para a obtenção do título de mestre.

Orientadora: Profª. Dra. CRISTINA DONZA CANCELA

Banca Examinadora:

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BELÉM – PARÁ

Agosto/2009

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

(Biblioteca de Pós-Graduação do IFCH/UFPA, Belém-PA)

Aguiar, Keila de Sousa

“Quando é da família, é melhor!”: família e casamento entre cearenses

em Santarém-Pará / Keila de Sousa Aguiar; orientadora, Cristina Donza

Cancela. - 2009

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências

Sociais, Belém, 2009.

1. Migração interna - Aspectos sociais - Santarém (PA). 2. Migração

interna - Amazônia. 3. Casamento. 4. Família. 5. Interação social. I. Título.

CDD - 22. ed. 304.8098115

Dedico este trabalho a Heitor que se foi antes

mesmo de chegar.

Ser do Ceará é mais do que nascer no Ceará, é conseguir reconhecer, à distância, uma

cabecinha redonda, um sotaque cantado, uma orelha de abano, um jeito maroto de

encarar a vida.

Ser do Ceará é saber a estação certa de colher um sapoti, conhecer os vários tipos de

manga e nunca comprar ata verde demais; é dar sabor a um baião de dois com

queijo coalho.

Ser do Ceará é gostar de cocada, de suco de tamarindo, de siriguela vermelha, de água

de coco docinha.

Ser do Ceará é engolir o final dos diminutivos - cafezinho vira cafezim; Antônio vira

Toim; bonzinho vira bonzim. Lá se fala aperreio na hora do sufoco; o apressado

é avexado; o triste fica de lundu; quem cria problemas, bota boneco.

Ser do Ceará é morar onde os muros são baixos; quer dizer, lá todo mundo sabe dos

outros. A melhor conversa entre cearense é fofocar sobre a vida alheia

(...)

Ser do Ceará é aprender a dormir de rede, a gostar do cheiro de lençol limpo, a tomar

banho frio, a valorizar a brisa do mar. Lá o perfume de sabonete tem outro valor.

Ser do Ceará é lidar com umidade, com camisas molhadas de suor, com mofo, com

moscas aos milhões, com muriçocas impertinentes, com baratas avantajadas, com

viroses brabas, com desidratações súbitas.

Lá os fracos morrem rapidamente; o darwinismo com sua teoria da sobrevivência dos

mais fortes se prova com facilidade. No Ceará nuvens negras são prenúncio de bom

tempo e relâmpago, uma bênção. Em dia chuvoso ninguém gosta de sair de casa.

Ser do Ceará é rir por tudo. E tudo vira piada; lá sobra humor até para vaiar o sol

quando interrompe a chuva.

Os cearenses são antes de tudo uns fortes; ao mesmo tempo deliciosamente bons e

perversamente maus. Lá é terra de pistoleiro e de santo; de revolucionário e de coronel

caudilho; de guerreiro e de preguiçoso.

O Ceará foi o meu ninho e é o meu túmulo; maior alegria e pior desgraça.

Contudo, apesar de tudo, continuo enamorado do meu berço. Não consigo desvencilhar-

me de ti, loira desposada do sol.

(Trechos de Sou do Ceará de Ricardo Gondim.)

Sumário

(Biblioteca de Pós-Graduação do IFCH/UFPA, Belém-PA) .......................................... 4

Aguiar, Keila de Sousa .................................................................................................. 4

RESUMO ..................................................................................................................... 8

Abstract: ....................................................................................................................... 9

Agradecimentos .......................................................................................................... 10

Um pouco deles e muito de mim... .............................................................................. 12

Traçando caminhos.................................................................................................. 14

Amarrada ao mastro de Ulisses ................................................................................ 16

1. Trajetos e trajetórias da migração ............................................................................ 21

1.1. Da saída à chegada: migrantes cearenses em Santarém ..................................... 21

1.2. Da diferença à identidade ou da identidade à diferença? ................................... 34

2. “Perdi a conta na hora da festa”: família e casamento .............................................. 42

2.1. Tecendo punho de rede: sociabilidade(s) ........................................................... 42

2.2. “Da mesma forma que eu”: família e valor ........................................................ 54

2.3. “É importante casar sim!”: mercado do casamento ............................................ 62

3. No embalo da rede tudo é diferente: ditos e contraditos ........................................... 72

3.1. “Tu nem sabe...”: a fofoca como fonte de informação ....................................... 72

3.2. Rapadura com açaí: pensando as gerações ........................................................ 76

Considerações finais ................................................................................................... 87

Bibliografia ................................................................................................................. 91

8

RESUMO

A presença de migrantes nordestinos na Região Amazônica constitui fato histórico que

atenta a pensar fixação e interação com os demais grupos aqui existentes. Pensando a

migração como um processo histórico e social, nestas análises, busco entender os

elementos que compõem a identidade dos cearenses na cidade de Santarém – Pará, à

medida que, quando empreendem em seus discursos e práticas sua diferenciação com os

paraenses a partir das relações de família e casamento. Assim, torna-se necessário

categorizar a naturalidade e pensar as práticas de casamento como homogâmicas,

mapear as estratégias utilizadas no intuito de estabelecer uniões preferenciais. O

confronto e interação entre gerações ajuda perceber como ocorre o processo educativo

na busca da permanência dos valores do grupo e na continuidade da compreensão e do

sentido de família.

PALAVRAS CHAVES: Migração; Família; Casamento.

9

Abstract:

The presence of Brazilian northeasterns migrants in the Amazon region is historical fact

that careful thinking about their interactions with other groups in the same area. In the

analysis about the migration as a historical and social process, I seek to understand the

elements that build the identity of Cearenses migrants in Santarém City, State of Pará,

through their discourses and practices, family relationships and marriage that are their

differentiation from Paraenses family and marriage relationships. So, it is necessary to

categorize the citizenship and consider the practice of marriage as a homogamous form,

map the strategies used to establish preferential mating. The approach and interaction

between generations help us to understand how the educational process occurs

searching to maintain the ethics rules of the group and keep on the comprehension and

family meaning.

Keywords: Migration; Family; Marriage.

10

Agradecimentos

Como acredito que nada nessa vida é feito somente por minhas mãos, mas, pelas

mãos de todos aqueles que se envolveram no processo de construção deste trabalho,

especialmente, em minhas idas e vindas de eterna migrante, chegou a hora de agradecer.

Nas águas escuras do Rio Guamá, agradeço aos professores e professoras que

conheci ou reencontrei do PPGS. Espero que vejam aqui o fruto das construções

teóricas e metodológicas de suas disciplinas. Em especial, agradeço à professora Jane

Felipe Beltrão, amiga de outros tempos, por manter a sala aberta para sempre que

sentisse vontade de conversar.

A minha orientadora Cristina Donza Cancela, a qual Deus mergulhou em uma

dose sem igual de paciência e otimismo, aplacando muitas vezes o desespero que me

consumia.

Aos amigos de Mestrado e Doutorado Socorro Lacerda, José Mendes, Ângela

Paiva, John Araújo, Ivana Oliveira, Anselmo Paes por serem companheiros, amigos

dadivosos em momentos bons e ruins.

A três amigos especiais, que conheci aqui, mas que os levarei comigo aonde

quer que eu vá: Eliane, por ter dividido comigo não só a casa, mas um pedaço de nossas

vidas em Porto Alegre; Ariadne Peres, pessoa de palavras sábias, responsáveis por

muitas lições de vida; Jorge Luiz, que como eu sempre digo “seria meu grande amor, se

não fosse meu grande amigo” e que abriu as portas da sua casa e da sua vida para mim,

serei eternamente grata por sua amizade. Obrigadíssima!

Ao Paulo, Rosângela, Dona Ana, Max e Dona Marina. Obrigada por estarem a

postos a nos ajudarem.

Mudando de paisagem e voltando as límpidas águas do Rio Tapajós, agradeço a

minha família – tios, tias, primos e primas, minhas avós – que direta e indiretamente são

responsáveis por meu lado e jeito “arigó” de ser.

11

Aos meus pais Rita e Assis, que nunca deixaram de dizer que sentiam minha

falta e nem de fazer o possível para que ela diminuísse; aos meus irmãos Kátia, Lázaro,

Lucas e Marlúcia por estarem sempre presentes, mesmo à distância, vocês dão sentido à

palavra fraternidade. Amo vocês!

A família Canuto, gostaria de agradecer na pessoa da Silvane, por me fazerem

lembrar que amigo é o irmão que a gente escolhe.

Do outro lado do Brasil gostaria de agradecer as professoras Claudia Fonseca e

Denise Jardim pela acolhida no NACI durante o PROCAD, na Universidade Federal do

Rio Grande do Sul, uma troca de experiência ímpar.

Ao Ivan que mesmo à distância tem sido meu companheiro.

Obrigada a todos!

12

Um pouco deles e muito de mim...

“A suposição de que o antropólogo, durante a

observação participante pode se manter neutro ou,

então, „pairar‟ como uma „entidade‟ acima da vida dos seus observados e nela não interferir é, sem

dúvida, uma visão pouco condizente com o trabalho

de campo.”

Vagner Gonçalves da Silva

“Como antropóloga, meu problema residia em como

encontrar uma posição privilegiada da qual pudesse

observar a água que havia vivido a vida inteira.”

Emily Martin

É verdade que o pesquisador escolhe o seu campo de pesquisa, mas, não é

menos verídico que o campo de pesquisa escolhe o pesquisador. Esse foi o meu caso!

Antes de convidá-los a adentrar aos caminhos percorridos neste trabalho, preciso

confessar – no sentido foucaultiano da palavra – as veredas que me levaram a esta seara

não tão desconhecida.

Como muitos outros estudantes de pós-graduação esse não foi tema que escolhi

ao adentrar no programa, na verdade, pretendia um trabalho bem mais “histórico-

antropológico” do que este. Pretendia fazer uma continuidade do que havia pesquisado

na graduação, ou seja, estudar a composição das famílias migrantes nordestinas entre os

séculos XIX e XX. Mas, como o próprio Vagner Silva1 já alertava, os orientadores

acabam influenciando nossas escolhas. Naquele momento, a Professora Cristina

Cancela fez-me a proposta de trazer o tema para mais perto, foi assim, que do projeto

original apresentado ficaram apenas os migrantes.

Entre muitas perguntas e recortes voltei o campo para Santarém e foquei nos

migrantes cearenses que ali residem desde a década de 50. Mais adiante defini(mos)

focar nas relações familiares e no casamento, partindo da premissa que esses migrantes

mantinham casamentos com pessoas do próprio grupo. Pronto! Senti-me em casa. E

estava mesmo. Sou filha e neta de migrantes cearenses que vieram para a região

justamente no período que delimitei para pesquisa - década de 50. Faço parte de uma

1 SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia. São Paulo: Edusp, 2006.

13

terceira geração que viajou e viaja para completar seus estudos e, em função disso,

divide a sua morada entre Santarém e outras cidades (no meu caso, Belém).

Fui criada como muitas filhas de cearenses, cercadas de primos e primas, tendo

padrinho um amigo cearense, debutando no Comercial Atlético Cearense, passando um

horário de seu dia na escola e outro na loja/comércio dos pais, aprendendo as diferenças

básicas entre os “cearenses” e os “outros”, sendo rechaçada durante a infância e

adolescência por ser cearense, enfim, fiz tudo o que qualquer pessoa que nasceu

naquele meio faria, porém, acreditava que o fato de não ter casado aos dezesseis anos

(como muitas de minhas amigas), não ser casada aos 30 (como poucas delas), de ter

feito a opção pelo trabalho intelectual me traria o benefício de ter acesso ao campo e, ao

mesmo tempo, manter distância objetiva para observar os meus com a cientificidade

necessária.

Ledo engano! No decorrer da pesquisa fui sendo guiada, interrogada e

entrevistada por meus interlocutores, me vi percorrendo o caminho de minhas próprias

memórias e sendo conduzida a refletir e explicar minhas opções de vida diante de uma

simples pergunta: “Por que você ainda não casou?”. Embora minhas repostas para as

inúmeras perguntas sobre meu estado civil, sobre minha pretensa “liberdade”, sobre

minhas “rédeas soltas” fossem para alguns dos interlocutores falsas desculpas e para

outros a possibilidade de sonhar como a sua vida poderia ser diferente se tivesse

estudado, seguido o mesmo caminho, em mim, provocaram algo mais: a percepção da

minha posição na pesquisa.

Diante desses diálogos percebi que era como Martin2 mais um peixe dentro

d‟água que precisava arranjar um lugar para observar tudo. Descobri - em conversas na

cozinha, em fofocas contadas a miúde, em palavras caladas, em festas familiares – que

eu já possuía um lugar naquele meio garantido por quem me conhecia “desde pequena”,

pelo simples fato de ser filha, neta, prima e sobrinha de cearenses. Credenciais que

abriram muitas portas, mas não todas, já que parte delas foram, ao mesmo tempo,

fechadas pela minha condição de mulher solteira que poderia ameaçar um casamento ou

que queria saber muito mais do que deveria sobre “as coisas de mulher casada”.

2 MARTIN, Emily. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Editora

Garamond, 2006.

14

Andei por muitos trajetos, conversei com muitos, escutei tantos quantos queriam

falar, vivenciei e vivencio com pessoas que vejo semelhanças, dessa maneira, foi

preciso me atar à metodologia e à bibliografia para enxergar além da espessa névoa que

antes cobria meus olhos.

Traçando caminhos

O fato de estar inserida em uma rede de sociabilidade do/no grupo fui aos

poucos traçando os caminhos que deveria percorrer para entender os propósitos das

questões que propunha. Possuir referências que me garantissem a livre circulação em

variados ambientes, bem como, o acesso às pessoas de diferentes gerações garantiu a

articulação dos métodos ora empreendidos.

Não se pode deixar de entender que o processo de produção da antropologia

passa, necessariamente, por três níveis vitais: o olhar, o ouvir e o escrever3, ou ainda, o

“estar lá”, “estando aqui”4. Dessa, forma é que estar presente diante do objeto através da

observação participante “serve como uma fórmula para o contínuo vaivém entre o

mundo „interior‟ e o mundo „exterior‟ dos acontecimentos: de um lado captando o

sentido das ocorrências; de outro, dá um passo para trás, para situar esses significados

em contextos mais amplos”5.

Com o propósito de abranger as relações intergeracionais6 e os discursos

elencados pelas gerações, inicialmente, foram empreendidas entrevistas

semiestruturadas7 com casais que pudessem representar sua geração. As conversas

3 O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira em um texto sobre o trabalho do antropólogo divide-o em

três etapas: o olhar, o ouvir e o escrever. Cf: CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do

antropólogo. Brasília: Paralelo, São Paulo: Editora da UNESP, 2006. 4 Referência às discussões levantadas por Clifford Geertz. Cf: GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2005. 5 CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro:

Editora da UFRJ, 1998, p.33. 6 Cf: DDEEBBEERRTT,, GGuuiittaa GGrriinn.. ““AAss ccllaassssiiffiiccaaççõõeess eettáárriiaass ee aa jjuuvveennttuuddee ccoommoo eessttiilloo ddee vviiddaa..”” IInn:: AA

rreeiinnvveennççããoo ddaa vveellhhiiccee.. SSããoo PPaauulloo:: EEDDUUSSPP,, 22000044..pp..3399--7700.. 7 Entendo por entrevistas semiestruturadas aquelas que tratam sobre temas, mas que possibilitam ao

interlocutor a maior liberdade acerca de suas respostas. Essa metodologia pode ser observada nos

trabalhos de Beatriz Vitar e Worcman e Pereira. Cf: VITAR, Beatriz. Inmigración, etnicidad y

experiências geracionales: El caso de los sírios e libaneses em Tucumán (Argentina). In: JARDIM,

Denise Fagundes. OLIVEIRA, Marco Aurélio de. (org) Os árabes e suas Américas. Campo Grande:

Editora da UFMS, 2008, pp.99-144; WORCMAN, Karen. PEREIRA, Jesus Vasquez. História falada:

15

iniciais mostraram a necessidade de adotar a metodologia das entrevistas a partir da

“história de vida”, posto que, possibilitava perceber a relação entre a construção do

passado, pessoal e do grupo, e sua posição atual8. Poucos foram os casais que

necessitaram ser estimulados a fazer um histórico de sua vida. Em geral, quando

explicava o intuito da pesquisa, as narrativas se construíam facilmente.

Como o acesso aos homens casados nem sempre foi possível, a maior parte das

entrevistas foi feita com mulheres. Dessa forma, alguns discursos sobre o masculino são

pensados a partir da fala delas e da observação do contexto, posto que, o que não

conseguia com o diálogo ouvia por outras fontes.

Além disso, não pude desconsiderar que o fato de fazer parte do grupo, vivenciar

experiências relacionadas a ele, bem como, possuir lembranças ativadas – tanto em

mim, quanto nos interlocutores - pelo diálogo, pelo olhar de quem viveu situações

parecidas, ou pela cumplicidade do sorriso, me obrigou a olhar pelo filtro de uma

etnografia que havia feito antes mesmo de elencar o tema como uma pesquisa, a

etnografia da minha vida, de quem nasceu filha e neta de cearenses. Dessa forma, ela

aparece no texto mostrando lugares que o discurso não alcança e que somente o desenho

fotográfico da lembrança é capaz de revelar9.

Vale ressaltar que este trabalho constitui um olhar, uma forma de perceber as

relações estabelecidas por um grupo de pessoas que sente, vive e interpreta suas ações e

a do outro, tendo consciência do que quer mostrar e o que quer saber. Diante da

multiplicidade de possibilidades e temas que poderiam ser discutidos, o foco deste

trabalho está nas relações familiares e de casamento, posto que, são percebidas como

valores específicos destas pessoas, traços de sua identidade. Para tanto, o auxílio de uma

memória, rede e mudança social. São Paulo: Sesc-SP: Museu da Pessoa: Imprensa Oficial do estado de

São Paulo, 2006. 8 Cf: PORTELLI. Alessandro. “ „O momento de minha vida‟: funções do tempo na história oral”. In:

FENELON. Déa Ribeiro (etl all). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d‟água, 2004,

pp.296-313. 9 Alguns antropólogos têm voltado seu olhar para suas experiências pessoais e como elas são passíveis de

construir etnografias. Cf: MOTTA-MAUÉS. Maria Angélica. Na “casa da mãe”/na “casa do pai”:

Anotações (de uma antropóloga e avó) em torno da “circulação” de crianças. In: Revista de Antropologia.

SãoPaulo, volume 47, nº2, pp. 427-452; DUARTE, Luis Fernando Dias. GOMES, Edlaine Gomes. Três

Famílias: identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro: FGV, 2008.

16

bibliografia direcionada às discussões sobre família, casamento, identidade, geração

estabeleceu o foco e manteve a direção da pesquisa.

Amarrada ao mastro de Ulisses

A discussão sobre família nas ciências sociais é construída com maior

intensidade a partir da década de 50 e 6010

, onde há uma preocupação com a “crise da

família” vivida em função das novas dinâmicas da modernidade, produzindo um

paradoxo entre a sociedade moderna – baseada nas relações econômicas e na

racionalidade – e a família – tradicional, com formas sociais arcaicas e arraigadas na

relação de parentesco. Surge, portanto, a necessidade de saber em que a modernização

mudou a família e como esta passava a se organizar11

.

Nas décadas de 70 e 80, a produção sociológica passou a contar com as análises

voltadas aos estudos demográficos12

. Destacam-se, ainda, os estudos voltados à

10

Isso não significa que antes deste período a família não era considerada um aspecto importante para

análise. Segalen percorre muito bem este caminho da “sociologias e ideias de família” mostrando que a

preocupação com esta instituição ocorre, na França desde a primeira metade do século XVIII com os

inquéritos médicos da Sociedade Francesa de Medicina, tornando avultosas e espessas com os estudos de

Louis René Villumé sobre os operários. Augusto Comte acreditava que a instituição sofria com os

“atentados” contra ela, baseando-se “ ... em uma abordagem psicologizante cuja pseudocientificidade

consiste em substituir Deus pela natureza humana.”. Frederic Le Play que pensou a família a partir de um

método de análise específico escrevendo “monografias de famílias”, mas, foi com Émilie Durkheim, que

a discussão sobre família toma forma e corpo contemporâneos. Durkheim tenta fazer uma relação entre

características e contexto a partir da comparação de diversas obras sobre sociedades diferenciadas,

“diríamos que se trata de encontrar modelos e as condições de produção desses modelos” usando, para

isso, análises estruturais chegando à conclusão de que houve uma “contração da família”. Cf: SEGALEN, Martine. Sociologia da Família. Lisboa: Terramar, 1999, pp. 21-36. 11

Neste período destacam-se dois autores amplamente debatidos nos estudos sobre o tema. O primeiro

Talcott Parsons “caracteriza a família como um grupo social organizado em torno de um conjunto de

valores opostos, ou até contraditórios, aos que estruturam a sociedade moderna”. Para Parsons a

industrialização requer a dissolução dos laços de parentesco e a redução do grupo doméstico a uma forma

nuclear, comportando somente o marido como membro economicamente ativo. As críticas feitas a Talcott

Parsons passam por dois pontos, o de encarar a família como uma instituição passiva que sofre com as mudanças sociais e econômicas, mas que está fora delas, e o de não analisar os processos de mudança da

família a partir da perspectiva histórica. Somando forças nas discussões sobre família, William Goode,

trouxe a perspectiva histórica para as discussões da sociologia da família propondo criar um quadro

conceitual que pudesse dar conta das transformações individuais, familiares e sociais defendendo a tese

de que a industrialização teria criado a possibilidade de individualização. Cf: SEGALEN, op.cit;

SINGLY, François de. Sociologia da Família Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007;

PEIXOTO, Clarice Ehrls Peixoto, SINGLY, François de. CICCHELLI, Vicenzo. (org.). Família e

Individualização.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000 e GOODE, William J. A Família. São Paulo:

Livraria Pioneira Editora, 1970. 12 Segalen ressalta a importância das discussões empreendidas pela Escola dos Annales, no sentido, de

desenvolver uma história de bases demográficas. Assim, várias das discussões feitas pela história

17

economia familiar, à psicologia, à relação entre os membros da família e às relações de

conjugalidade, levando em conta os sentimentos que permeavam as relações familiares.

Na década de 70 persistiu a ideia de que a família “tinha um sentido mais forte de suas

responsabilidades relativamente aos jovens, velhos e doentes”13

. Neste caminho, os

estudos relacionados à sociologia da família tiveram como pano de fundo a teoria

durkheimiana, onde a família moderna é ao mesmo tempo “privada” e “pública”, na

verdade, como alguns autores argumentam “a privatização incontestável da família

moderna é, de alguma forma, uma ilusão porque é acompanhada de uma grande

intervenção do Estado e das instituições”14

. Passando pela década de 80 multiplicaram-

se os estudos sobre a relação entre gerações e, não mais unicamente, sobre o casal. A

família já não é rejeitada pelo seu sentido arcaico, surgindo, pelo contrário, como um

valor moderno15

.

A partir desse cenário torna-se possível entender os estudos sobre família em

dois sentidos. De um lado, os estudos que priorizam as análises baseadas na

individualização16

e na autonomia dos membros da família, trazendo a compreensão de

que ela passa a ser um espaço relacional no qual o comportamento do indivíduo

alimenta as novas estruturas familiares que, por sua vez, são reflexos da própria

autonomia deste indivíduo priorizando, assim, a relação conjugal.

De outro lado, os estudos que acentuam a importância dos laços de parentesco e

das relações construídas ao longo do tempo. Para esta corrente compreender tais laços

deve ser prioritário na tentativa de compreender as relações familiares.

adentraram o campo da sociologia da família. Cf: SEGALEN, idem e BURKE, Peter. A Escola dos

Annales: a Revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora UNESP, 1997. 13 SEGALEN, op.cit. p.18. 14 SINGLY, op.cit, p. 33. 15

A essas características soma-se a necessidade da quebra de uma teoria global e o abandono de

esquemas lineares trabalhando, agora, com a noção de modelos parciais e locais. SEGALEN, 1999, pp.

21-36. 16 Para Singly o indivíduo não é um ser isolado da sociedade, este autor defende uma espécie de

“indivíduo relacional” que é “... de um „nós‟ que permite ao „eu‟ construir sua identidade complexa: um

laço que sabe unir sem sufocar, pois os indivíduos buscam elos sociais „fortes‟ sem que estes, contudo, o

levem a perder a liberdade ... „individualizar-se‟, não significa que se deseje viver só ou que se sonhe

com a solidão”. PEIXOTO, Clarice Ehrls. “Prefácio: A transformação dos olhares familiares e o olhar do

sociólogo”. In: SINGLY. François de. Sociologia da Família Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora

FGV, 2007, p. 21.

18

No Brasil, os trabalhos sobre família dividem duas perspectivas: uma enfatiza a

estrutura e a organização das famílias e a outra focaliza a família enquanto valor. Nosso

desafio reside na possibilidade de interlocução dessas duas perspectivas17

.

Neste caso, as discussões sobre famílias ora empreendidas não estão dissociadas

da compreensão que o estudo ocorre em um grupo de pessoas entendidas por seu

processo de deslocamento, ou seja, da compreensão da origem migrante do grupo.

Assim, torna-se necessário entender o migrante como categoria18

é determinante para a

constituição da identidade do grupo19

.

Nos últimos anos o tema das migrações (nacionais e internacionais) tem sido

analisado à luz de teorias que buscam compreender o sentido do processo de

deslocamento que envolve grupos de pessoas em seus lugares de origem e destino. Na

verdade, a discussão teórica sobre os diversos processos migratórios tenta, ao mesmo

tempo, articular situações de contexto político e econômico às experiências pessoais

desses migrantes, e ainda, busca entender como tais experiências são responsáveis por

reforçar ou criar identidades de grupo.

Ao discutir o processo de emigração de valadarenses, Weber Soares, acredita

que apesar das diversas teorias20

debruçarem-se sobre o tema deve se perceber que a

maior parte delas não consegue explicar a dinâmica deste processo, por vezes, busca

compreendê-lo a partir de um olhar economicista observando dinâmicas de atração e

expulsão, vendo estes migrantes como sendo motivados pela busca de mercado de

trabalho. Para este autor, os processos migratórios devem, na verdade, ser entendidos

17 A especificidade brasileira, onde impera a diversidade étnica, cultural e social, não possibilita a

aplicação das análises voltadas para o contexto europeu ocidental, posto que, nem o Brasil, nem a

América Latina, vivenciaram as possibilidades criadas pelo Estado do bem-estar social, daí, a necessidade

de atentar para análises que possibilitem a ampliação da visão dos contextos sociais pesquisados.

MMAACCHHAADDOO,, LLiiaa ZZaannoottttaa.. ““FFaammíílliiaa ee iinnddiivviidduuaalliissmmoo:: tteennddêênncciiaass ccoonntteemmppoorrâânneeaass nnoo BBrraassiill..”” IInntteerrffaaccee--

ccoommuunniiccaaççããoo,, ssaaúúddee ee eedduuccaaççããoo.. vv.. 44,, nn..88,, 22000011.. pp 1111--2266.. 18 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. “Contribuições metodológicas para a análise das migrações”. In:

DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri; TRUZZI, Oswaldo. (orgs.). Estudos migratórios: perspectivas

metodológicas. São Carlos: EDUSFCAR, 2005, pp. 53-86. 19 Proponho discutir as questões sobre identidade à luz das proposições dos estudos culturais. 20 Em seu texto o autor propõe discutir algumas teorias sobre migrações, são elas: teoria da atração e

expulsão; macro e micro teorias neoclássicas e os novos economistas da migração; teoria histórico-

estrutural; teoria do mercado dual de trabalho; teorias dos sistemas sociais e análise das redes sociais.

SOARES, Weber. A emigração valadarense à luz dos fundamentos teóricos da análise de redes sociais.

In: MARTES, Ana Cristina Braga. FLEISCHER, Soraya (orgs.). Fronteiras Cruzadas: etnicidade,

gênero e redes sociais. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

19

como redes, pensando que “as unidades efetivas da migração não são nem indivíduos,

nem famílias, mas, sim, conjuntos de pessoas ligadas por relações de amizade, de

conhecimento, de parentesco e de trabalho. Não redutível às características (atributos) e

intenções individuais, a migração deveria ser pensada como estrutura comunitária que

se traslada” 21

.

As ideias defendidas por Soares vão ao encontro das proposições de Truzzi22

,

que ao analisar a migração sírio-libanesa no Brasil, defende que o fenômeno migratório

só pode ser compreendido como fato social total propondo que os estudiosos da

migração pensem este processo como um sistema migratório que “conecta duas ou mais

sociedades, cada uma composta de vários grupos sociais com diferentes interesses”23

,

ou seja, como o movimento que envolve grupos na região de origem e na região de

destino por certo período de tempo alimentando relações que inibem ou estimulam

deslocamentos.

Dessa forma, pensar o fenômeno migratório como sistema migratório fortalece a

visão da migração como um processo dinâmico e dirige atenção para ambas as pontas

do processo, possibilitando perceber o fluxo e a sua relação com os destinos

alternativos, focalizando a migração como sistema interconectado e, principalmente,

tornando possível enfocar o processo nas trajetórias individuais e familiares, à medida

que, o sistema migratório alimenta-se de redes sociais.

Na gama de possibilidades do desenvolvimento de redes sociais volto meu olhar

para o papel da família na criação de dinâmicas que conectam origem e destino, bem

como, a importância dela no processo de socialização24

das pessoas e sua relação com a

sociedade local. De modo geral, é possível perceber que o processo de migração – quer

nacional, quer internacional – não pode ser pensado como uma abstração ou uma

escolha aleatória de indivíduos, na verdade, importa perceber a existência de uma

conexão entre pessoas que migram e estas, por sua vez, estão conectadas em redes

21 Idem, p.240 22 TRUZZI, Oswaldo. Rumo a uma compreensão micro-analítica da migração sírio-libanesa ao

Brasil. In: JARDIM, Denise Fagundes. OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de. Os árabes e suas

Américas. Campo Grande: Editora UFMS, 2008, pp. 145-160. 23 Op. cit, p.146. 24 Faço a opção de utilizar o termo socialização, ao invés de adaptação, por acreditar que ele engloba os

possíveis conflitos existentes entre os grupos locais e os grupos migrados, bem como, a inserção dos

recém-migrados.

20

sociais ou redes de parentesco. Além disso, a importância dada a estas redes sociais

acabam por criar identificações responsáveis pela construção de valores e pela

manutenção deles ao longo do tempo.

Assim, o tema da migração é assunto do primeiro capítulo - Trajetos e

Trajetórias da migração - que trata do processo de chegada dos migrantes cearenses na

cidade, seu processo de fixação e a construção da identidade cearense em oposição a

comunidade local.

No segundo capítulo – “Perdi a conta na hora da festa”: família e casamento –

estarão em foco as relações familiares, os espaços de sociabilidade e o mercado do

casamento no qual estão envolvidos os que se identificam como membros do grupo.

No terceiro capítulo – No embalo da rede tudo é diferente: ditos e contraditos –

discuto a fofoca como fonte de informação e a relação das gerações, bem como, a

possibilidade de percepção a terceira geração como fonte de integração e imagem

positivada do grupo.

Por fim, as considerações finais não pretendem esgotar a discussão sobre o tema,

mas sim, lançar novas possibilidades para percebê-lo.

21

1. Trajetos e trajetórias da migração

Lá do árido Ceará bravo e distante Vieste um dia como ousado pioneiro

Ver a beleza majestosa e impressionante

Desta Amazônia que empolga o forasteiro

Evangelista Damasceno, 1954

No presente capítulo pretendo apresentar e discutir o contexto no qual estão

inseridos os interlocutores deste trabalho, migrantes cearenses residentes em Santarém-

Pará. Para tanto, me dedico a analisar os fatores elencados como sendo responsáveis por

seus deslocamentos e estabelecimentos na cidade. Assim, aliados às narrativas da

migração, é necessário compreender os mecanismos que acionam a identidade de grupo,

bem como a sua construção e formas como passam a ser acionados e re-significados em

espaços e contextos sociais.

1.1. Da saída à chegada: migrantes cearenses em Santarém

A migração compreende um fato histórico e social que compõe a formação da

Amazônia. Daí deriva a presença de diversas nacionalidades e grupos regionais25

nesta

região. Dessa forma, entendo por migrantes pessoas que partilham de laços sociais, em

um determinado espaço sociocultural onde definem sua(s) identidade(s). Portanto,

migrante é uma categoria construída historicamente que se desloca de acordo com o

tempo e o espaço26

.

Embora o termo migrante remeta a uma imagem abstrata borrada por diversos

rostos e características culturais, ela é sustentada por situações concretas, experiências

evocadas e interpretadas por pessoas ao longo de gerações. Neste sentido, penso a

25 Sobre os aspectos da migração na Amazônia conferir os seguintes autores: BENCHIMOL, Samuel.

Amazônia: Formação Social e Cultural. Manaus: Editora Valer: Editora da Universidade do Amazonas,

1999 BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: Formação Social e Cultural. Manaus: Editora Valer: Editora da

Universidade do Amazonas, 1999; LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearense no Pará: faces da

sobrevivência (1889-1906). Tese de Doutorado em História Social. São Paulo: Universidade de São

Paulo, 2006 e HOGAN, Daniel Joseph. Dinâmica demográfica da Amazônia recente. Workshop

Internacional Dinâmica populacional e mudança ambiental na Amazônia brasileira. Campinas,

UNICAMP, outubro de 2007 (mimeo). 26 SILVA, 2005, pp. 53-86.

22

migração como fato social que ecoa nas gerações subsequentes à medida que cria

substratos de diferenciação do grupo27

.

Assim, considero cearenses não somente aqueles que gozam desta naturalidade

oficial, mas também, seus descendentes, ou seja, os que se identificam ou que sejam

identificados como tal, mesmo não sendo nascidos no Ceará, que, assim são chamados

por suas relações de sociabilidade. É partindo desta premissa que olho a migração de

cearenses para Santarém durante a segunda metade do século XX.

A chegada de famílias cearenses na cidade de Santarém remonta a década de 50,

mais especificamente o ano de 1951. Este é o período reconhecido pela maioria das

pessoas desse grupo como o ponto inicial da colonização nordestina na cidade. Na

verdade, é possível perceber, através da bibliografia regional, que a presença de

migrantes nordestinos - inclusive cearenses – tornou-se densa na região Amazônica,

especialmente, a partir do período áureo da borracha - século XIX - onde as políticas de

colonização envolviam diretamente um estímulo ao deslocamento dessas pessoas28

.

Assim, muito provavelmente a presença de cearenses em Santarém ocorreu bem

antes da década de 1950. No entanto, as várias narrativas obtidas no trabalho de campo

remetem a esse período como sendo o “fundador” da colônia cearense na região, o que

nos remete a ideia de mito de origem da chegada desses migrantes cearenses29

, mas

também, a possibilidade de perceber a seletividade da memória do grupo no intuito de

construir uma memória que seja coletiva, daí o marco de 1951.

Rodrigues, em seu estudo, percebe a existência de um “mito fundador” no bairro

do Jurunas. Para a autora, diversas elaborações discursivas colocam todos os elementos

em relação cujo início remete a uma fundação e a um fundador através “de um discurso

27 O tema da diferenciação será discutido no item 1.2 deste capítulo. 28 Para conferir a presença de nordestino na região amazônica e as políticas de migração consultar os

trabalhos de AGUIAR, Keila de Sousa. Trabalho, família e habitação: cotidiano dos migrantes

nordestinos na capital paraense (1898-1908). Belém: Monografia de Conclusão de Curso (História)

Universidade Federal do Pará, 2001 e CORPES, Raimundo da Silva. Migrantes e Imigrantes no Pará da

virada do século (1898-1908). Belém: Monografia de Conclusão de Curso (História) Universidade

Federal do Pará, 2002. 29 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.

23

que se alimenta de elaborações anteriores, de repetições, reiterações, já-ditos que

circulam como parte de um discurso conhecido e dominado pela maioria”30

.

Segundo Maurice Halbwachs, “a memória individual existe a partir de uma

história coletiva no interior de um grupo, e isto acaba por garantir a coesão do grupo

enquanto unidade coletiva”31

. Assim, o individual e o coletivo agem sob ótica de

conciliação, de negociação, pois,

“Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta

que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que

ela não tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que

a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída

sobre uma base comum”32

.

A memória, ao constituir-se como fonte informativa da história de vida desses

informantes torna-se base da identidade de grupo onde suas experiências estão atreladas,

arraigadas, postas, não só ao processo de migração para Santarém, mas, a fixação na

cidade e ao reconhecimento de uma condição de grupo.

De acordo com estas narrativas tudo começou quando Pai Juca - patriarca da

família Cunha - comprou um caminhão e junto com mais 25 famílias saiu do interior do

Ceará, de uma localidade denominada Seriema – distrito da cidade Frecheirinha33

-

“rumo a um destino ainda não conhecido”. Após passarem por Feira de Santana, no

estado da Bahia, e enviarem parte das famílias para Minas Gerais, resolveram rumar

para Santarém que constava na lembrança de Pai Juca dos tempos dos seringais do

Acre, onde havia trabalhado no seringal de um primo seu.

Pese no grupo a intenção de salientar a eventualidade da escolha de Santarém

como destino final, outro sentido surge no contexto das decisões de migrar, o fato da

escolha ter sido direcionada pela passagem de Pai Juca na cidade num momento anterior

de sua vida, quando foi seringueiro no Acre - embora não tenha sido possível recuperar

30 RODRIGUES, Carmem Izabel .Vem do bairro do Jurunas: sociabilidade e construção da identidade

em espaço urbano. Belém: Editra do Naea, 2008, p. 138. 31 HALWBACS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice/Ed. dos Tribunais, 1990 32 POLLAK, Michael. Memória,esquecimento e silêncio. In:Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 1989, p. 3 33 Esta cidade está localizada a 305 km da capital cearense.

24

a história desse momento, já que, a própria personagem não é mais viva, o pouco que se

sabe foi descrito por sua neta em monografia de curso34

.

Cristina Wolf salienta que a presença de migrantes nordestinos foi comum na

região acreana, especialmente de cearenses. Segundo a autora, “vinham do Nordeste das

secas em navio a vapor com o sonho de fazer fortuna e, ricos, voltarem para suas terras

e família”35

.

As parcas informações sobre a presença de Pai Juca no Acre dão conta de

perceber que ele ainda era solteiro quando esteve na região, pois assim era preferido

pelos donos dos seringais, já que consideravam que isto estimulava o trabalho dos

seringueiros na tentativa de acumular algum pecúlio para retornar ao seu Estado ou para

trazer a família ao seu lugar de trabalho36

. No entanto, Pai Juca não esteve sozinho,

contou com apoio de um membro da família nesta empreitada citado apenas como um

primo.

No processo migratório direcionado por Pai Juca vieram as famílias Aguiar,

Machado, Walfredo, Cunha e outros 37

. Outra parte destas e de outras famílias

aportaram na cidade, sete anos depois, em 1958. Desta vez, não como pioneiros, mas

mandados buscar por parentes cujos negócios prosperaram após 1951.

Este dois anos – 1951 e 1958 - são fundamentais para pensar a migração destas

famílias, posto que as histórias narradas por este grupo de migrantes, em sua maioria,

são acionadas pelas vicissitudes da natureza. Nesse sentido, as narrativas do

deslocamento do nordeste são marcadas pela agonia da seca. A historiografia nordestina

mostra que desde o século XVI até aproximadamente a década de 80 do século XX, a

34 As informações sobre este período foram coletadas da monografia elaborada por sua neta Georgete

Cunha. Cf: CUNHA, Maria Georgete Pessoa. A imigração da família Aguiar. Monografia de conclusão

de curso apresentada ao Departamento de História da UFPA, 1994. 35 WOLF, Cristina Scheib. Mulheres da floresta: uma história – Alto Juruá, Acre (1880-1945). São

Paulo: Hucitec, 1999, p. 14. 36 Idem, p. 16 37 CUNHA, op. cit., p. 20.

25

região já havia enfrentado cerca de 40 estiagens, com variações de intensidade e

tempo38

.

Já na primeira metade do século XX, o drama da seca, da fome e da migração

era remediado por medidas governamentais e na década de 50 dois grandes períodos de

seca foram responsáveis pelos deslocamentos de famílias e pela composição da imagem

do flagelo nas cidades nordestinas.

A seca de 1951 a 1953 provocou um grande número de deslocamentos de

nordestinos para estados como Goiás e Mato Grosso. É neste momento que os

nordestinos passam a ser transportados em caminhões “pau-de-arara” perpetuando,

desta forma, a imagem do migrante nordestino associada a esse tipo de transporte, que

consiste no traslado de pessoas na carroceria de caminhões cortadas por paus que ligam

suas extremidades como se fosse o poleiro de uma ave39

.

Ainda nesta década outra seca iria devastar a região com maior intensidade. É a

seca de 1958, que chega a atingir um raio de 500km2

provocando a inevitável rotina de

deslocamento de cerca de 500 mil pessoas nos, já constantes, “paus-de-arara”. É neste

contexto, que vamos encontrar as personagens desta história.

No entanto, embora estes dois processos migratórios estabeleçam relações

intrínsecas, se diferenciam quanto a sua motivação. Os interlocutores que vieram com o

grupo de 1951 destacam como fator relevante para o deslocamento uma altercação

política existente entre Pai Juca e Antonio Capistrano, que cominou na perseguição aos

que apoiavam o primeiro40

. Embora a maior parte destas famílias já houvesse se

mudado do distrito para outras cidades41

em função da seca, permanece na narrativa do

grupo a saída em função da perseguição política. Já o grupo vindo em 1958 elenca

38 SOUZA, Itamar & MEDEIROS FILHO, João. Os degredados filhos da seca: uma análise sócio-

política das secas do Nordeste. Rio de Janeiro: Petrópolis, 1983 e GEABRA, Ivone. A mobilidade da

senzala nordestina: mulheres nordestinas, vida melhor e feminismo. São Paulo: Paulinas, 2000. 39 SOUZA, op. cit. 40 Sobre a perseguição política não consegui, nos relatos orais, referências mais sólidas, quando

interrogados os interlocutores respondiam que não se lembravam muito. Somente Cunha faz menção

direta ao nome dos envolvidos. CUNHA, op. cit. pp. 11-19. 41 No trabalho de Cunha, cita um primeiro deslocamento para a cidade de Sobral antes da decisão de sair

do Ceará. Op. cit. p.15

26

como fator principal a seca daquele ano, mas não descarta a relevância do fato de já

existirem parentes na cidade.

A maior parte dos migrantes cearenses, em Santarém, é proveniente da mesma

localidade – Frecheirinha - ou de seu entorno – Seriema - reforçando a articulação das

redes sociais, que neste caso, passam a ser estabelecidas por familiares consanguíneos.

Fazito42

- ao estudar a imigração de dekassegis - e Ridley-Leigh43

- que analisou a

presença de migrantes nordestinos em Brasília - concordam ao considerar que os

processos migratórios estabelecem redes sociais que ligam lugar de origem - lugar de

destino, e, tal ligação é alimentada pelas relações de parentesco constituindo um

imperativo moral entre os membros do grupo, ou seja, a obrigação dos migrantes

estabelecidos ajudarem os parentes recém-chegados. Desta forma, a família torna-se um

elemento importante e responsável por manter o fluxo constante e estabelecer a ligação

entre a origem e o destino.

Para Denise Jardim, ao estudar imigrantes palestinos no extremo sul, a pertença

territorial está relacionada com aspectos da vida familiar e introduz o imigrante no

convívio com outros parentes havendo, desta forma, uma relação direta entre migração e

parentesco. Destaca-se a importância dos laços de parentesco para garantir o processo

de migração e permanência em uma cidade, inclusive por possibilidade de renda e

trabalho. Esses laços são responsáveis por “acenar a possibilidade” de deslocamento.

Assim, a terra de origem assume significado através das relações familiares e os

vínculos familiares levam a reviver a identidade. Desta maneira, “em muitos casos, as

famílias eram conduzidas por redes de relações que indicavam para onde deslocar a vida

comercial – lugares onde teriam respaldo de conhecidos e patrícios” 44.

42 FAZITO, Dimitri. “A configuração dos arranjos familiares nos processos migratórios: a força dos laços

fortes para a intermediação”. 13º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, Outubro de 2007. 43 RIDLEY-LEIGH, Dominique. “Mulheres na migração redes de parentesco como uma estratégia de

sobrevivência”. In: Encontros com a civilização brasileira, nº 26, 1980. 44 JARDIM, Denise Fagundes. “Famílias palestinas no extremo sul do Brasil e na diáspora: experiências

identitárias e aduaneiras”. In: Cadernos Pagu. Dezembro de 2007, n. 29, p. 202.

27

Este foi o caso de Dona Margarida45

que migrou para Santarém com o marido e

seis filhos e com a ajuda do irmão dele que já havia fixado negócios na cidade desde

1951. Quando perguntada sobre a sua vinda narra que

“a seca era muito grande... veio muita gente cearense pra cá

nesse tempo. Mas veio mais foi de carrada de gente! Da

Seriema nós fomos de pau-de-arara. Aí nós fiquemo foi lá na hospedaria lá em Fortaleza, mas foi difici, eu trazia seis fios na

época. ...o mais velho com seis anos e o mais novo com seis

meses... era bem dizer um filho todo ano...(pausa) Na mudança

truxemos só os fios só (risos), lá na hospedaria era todo dia morrendo gente, só morrendo gente. Aí meu cunhado foi buscar

nós [o Antônio] foi buscar nós em Fortaleza, ainda passamos

uns pouco de dia lá. Meu pai trouxe a família toda e ficou lá na hospedaria esperando o navio

46 ... Nós viemo de avião foi

[Antonio], irmão do meu marido, que pagou as passage tudo”47

.

Por sua narrativa percebo que o processo de migração deste grupo configurou-se

em um projeto apoiado por laços familiares, posto que não é estabelecido apenas por

uma escolha individual, mas por condições estruturais. É necessário poder contar com

uma estrutura já existente no lugar de destino - saber onde ficar, com quem vai poder

contar na hora da necessidade, quem vai poder indicar um trabalho ou mesmo hospedar

temporariamente a família, tudo isto é levado em consideração no momento de

direcionar o deslocamento.

Adriana Capuano observa que a emigração de brasileiros para os Estados Unidos

tem se revelado muito além de um mero projeto individual de busca de trabalho e renda

no exterior. Ao contrário, se revela, sobretudo, sendo um projeto familiar, de ascensão

financeira e mobilidade social, não raras vezes, para ambas as partes, tanto a que fica no

Brasil, quanto a que migra para os EUA48

.

45 Todos os nomes apresentados são fictícios, no sentido, de preservar a identidade dos (as) interlocutores

(as). 46 O navio Almirante Alexandrino, pertencia a Companhia Loyd Brasileira e era responsável , na década

de 50, pelo traslado de passageiros de Santos a Manaus, viagem essa, que poderia demorar cerca de 60

dias. http://www.mirantemultimodal.com.br/cgi-bin/interno.cgi?tipo=memoria&lugar=784 capturado em

26/11/2008. 47 Entrevista realizada dia 18/10/2007. 48 CAPUANO, Adriana. O caminho sem volta – Classe social e etnicidade entre os brasileiros na Flórida.

In: MARTES, Ana Cristina Braga. FLEISCHER, Soraya (orgs.). Fronteiras Cruzadas: etnicidade,

gênero e redes sociais. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

28

Neste sentido, a primeira leva de cearenses que chega em 1951, além de ponte

para a fixação de novos migrantes na cidade, passa a estabelecer critérios para mediar

esta travessia, tais como parentes primários ou secundários desde que possam auxiliar

no trabalho ou exercer a sua autonomia financeira.

Dona Cristina e Seu Damião ilustram bem este exemplo. Ela veio em 1970, para

morar com a família da prima e cuidar dos filhos dela; ele, em 1962, no entanto, ambos

vieram cumprir funções bem específicas na cidade.

“eu num queria vi, mas, ela (a prima) precisa de quem olhasse os filho dela porque era muito serviço na casa. Aí, ela escreveu

pra mãe me mandar e a mãe achou melhor eu vim porque

depois ela ia poder mandar meus irmãos”49

.

“Fui eu quem pediu pra vim pra Santarém, lá era muito difícil...

o (irmão) mandou o dinheiro da passagem para eu vim e eu já sabia que tinha que trabalhar, mas, era assim mermo que eu

queria... Daí fiquei morando na casa dele até casar”50

.

Para Ridley-Leigh51

, uma rede de relações interpessoais existe no sentido do

reconhecimento por parte das pessoas de um conjunto de obrigações e direitos com

referência a certas outras pessoas identificadas. Na análise da autora há uma oposição

entre a obrigação ideal, relacionada à distância genealógica, e as relações reais

relacionadas aos benefícios econômicos que podem ser extraídos das relações de

parentesco por um grupo social específico. Esta diferença entre as obrigações a serem

exercidas entre os parentes e os não-parentes compõem as narrativas anteriores, quando

Dona Margarida tem a possibilidade de vir de avião, custeado pelo cunhado, mas seu

pai fica para vir de navio, ou mesmo, quando se pode financiar a vinda de algum parente

em função do benefício que ela possa trazer.

A narrativa de Dona Rosa segue o mesmo percurso, saiu do sertão em 1957 com

o marido e dois filhos. A primeira parada foi Sobral onde o marido tentou trabalhar com

um de seus irmãos que lá residia, porém,

49 Entrevista, 20/08/2008. 50 Entrevista 20/08/2008. 51 RIDLEY. Dominique. “Uma mão lava a outra, e as duas banhando o rosto”: Um estudo de redes de

parentesco como uma solução estratégia dentro do contexto da migração. Dissertação de Mestrado do

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília, 1979.

29

“Não deu certo não! O serviço era pouco e o Raimundo (marido

de Dona Rosa) não tava costumado a depender de ninguém não.

Foi quando meu irmão mais velho (Zé) perguntou a ele se

queria ir embora mais ele pra Santarém. João pensou, pensou.... mas resolveu aceitar. Aí, o Zé botou ele pra fazer comércio no

interior e nós ficamo assim, morando um bom tempo no mesmo

terreno (da casa) do Zé. O João pagou uma parte das passagem e o Zé ajudou com o

resto. Aí, nos viemo no navio”52

.

Da mesma forma, a narrativa de Dona Rosa corrobora a importância exercida

pelos parentes na vinda e fixação dos recém-chegados. Sem dúvida, há algo que não é

peculiar somente para a migração cearense, mas que pode ser pensado a partir deste

contexto de análise: as decisões não são realizadas individualmente, referem-se a vários

sujeitos que compartilhavam decisões e ajudavam a viabilizá-las.

Os migrantes do período posterior a 1951, certamente, gozaram de certas

facilidades para estabelecerem-se na cidade, pois, já contavam com a presença de algum

parente que possibilitou o traslado e viabilizou o que fosse necessário para garantir a

família recém-chegada sua permanência na cidade, ao menos no primeiro momento.

Foi assim com Dona Sebastiana e seu marido, que conseguiram se instalar no

interior de Santarém,

“e viemo pra cá e daqui fomo pras colônia ... compraram [o

irmão e o marido] o terreno, fizemo uma casinha de palha ... e

fiquemo lá até que foi melhorando mais e fizeram as paredes de

barro. Moramo um bocado de tempo na colônia ... era perto da Vila Nova [Mojuí dos Campos], Paxiubinha que chamavam, e

passamo uns anos lá e depois viemos nos instalar pra cá pra

cidade. Naquele tempo quem trabalhava pra sustentar a casa era meu marido mesmo, roçava, plantava cana, malva, vendia

gordura de peixe, pagava trabalhador pra ajudar ele(...)”53

.

Trajetórias diferentes também marcam as narrativas dos cearenses que chegaram

em 1951. Seu Antônio veio junto com Pai Juca, senhor de uma fala pesada e lenta, que

ora deitado na rede, ora sentado na cadeira de balanço, mostrava-se ciente de tudo que

havia conquistado.

52 Entrevista realizada em 08/07/2007. 53 Entrevista realizada em18/10/2007.

30

“O que fez a gente vir pra cá foi a questão política, nosso líder

era o Pai Juca. Aí... lá no interior do Ceará eu era solteiro e

morava com meus pais. ... Passei pra Frecheirinha, botei uma

taberna e ganhei uns trocados. Quando chegamos aqui eu truxe 8. 641 contos de réis e cumecei a comprar mercadoria de Belém

para vender aqui. Quando cheguei aqui tinha juntado uns

trocadim e comprei esse canto, as pessoas diziam que não tinham sorte aqui [no canto], que tinha interrado uma cabeça de

anjo, ou de porco e até hoje é bom pra mim. ... Aqui montei o

barracão pra ficar as pessoa que vinha do Ceará ... só podia passar três dias no barracão e tinha que procurar seu destino

...”54

Ele foi um dos que mais prosperou com o comércio na região. Hoje, é o dono de

metade do quarteirão em uma das principais avenidas55

da cidade – inclusive o canto -

onde instalou o barracão para os migrantes cearenses recém-chegados. A maior parte

dos interlocutores o tem como referência, especialmente, porque foi um dos primeiros

cearenses a trabalhar com as atividades comerciais, enquanto outros tentaram,

inicialmente, adquirir e trabalhar na terra, porém sem êxito passaram a trabalhar no

comércio, daí, seu Antonio passou a ser fornecedor dos conterrâneos.

Para a autora Tereza Lisboa56

é muito comum nas trajetórias pessoais os

migrantes caracterizarem sua mobilidade pela busca de novas terras, já que, a maioria

advém da zona rural. No entanto, é justamente a falta de acesso à terra que os faz

procurar novas possibilidades de emprego e renda relacionadas ao trabalho na cidade.

Além disso, é possível perceber que a atividade como mascate, e posteriormente

como comerciante estabelecido, não tem relação direta com as decisões de retorno, mas

com a possibilidade de acumular capital e trazer novos parentes ou possíveis migrantes.

À medida que em se tecem possibilidades de crescimento econômico e estabilidade

financeira os benefícios abrangem mesmo os lugares onde as redes de parentesco são

inexistentes podendo, assim, serem tecidas outras bases de relações que compartilham,

não mais o parentesco, porém a ideia de pertencimento a uma mesma comunidade de

54 Entrevista realizada em 06/01/2008. 55 Esta é a Avenida Mendonça Furtado, ela aparece na lembrança de vários migrantes como o ponto de

sua primeira morada. Ao que consta foi, em sua maior parte, ocupada por migrantes cearenses na década

de 50. Algumas narrativas levam a perceber que, a partir da década de 80, os terrenos tornaram-se

valorizados sendo vendidos para compra de outros em bairros mais distantes como Aldeia, Caranazal e

Mapiri. Anotações de campo Julho de 2007. 56 LISBOA, Teresa Kleba. Gênero, classe e etnia: trajetórias de vida de mulheres migrantes.

Florianópolis: Ed. Da UFSC; Chapecó: Argos, 2003.

31

origem. Auxiliam-se aqueles que são percebidos como conterrâneos. Foi esta, por

exemplo, a função do barracão construído por seu Antonio, um ponto de chegada e nova

partida para os migrantes cearenses.

Não se pode esquecer que estes migrantes possuíam posições sociais

diferenciadas, assim, não guardam somente a imagem do flagelado da seca ou do

andante sem rumo, muitos deles – como seu Antonio – trouxeram algum dinheiro para

investir, ou contaram com a ajuda de parentes para conseguir terra ou estabelecer um

negócio. Vale ressaltar que o foco do estudo na migração da década de 50 acabou por

delimitar um grupo de migrantes, ou de filhos de migrantes, atrelados às atividades

comerciais, que por esta atividade construiu patrimônio e status na cidade.

Como conta Seu Joaquim,

“quando cheguei do navio [refere-se à viagem feita no navio

Almirante Alexadrino] fui logo procurar o Juca no Mojuí, ele tinha terra e eu queria trabalhar (...) peguei um lote no Palhal.

Cuidei mas não vingou, não! Aí foi o jeito vir pra Santarém. Eu

não tinha dinheiro, mas procurei o Antonio que era parente da minha mãe, já sabia como ele fazia com os cearense e as coisas

foram melhorando (...) Ele me fiou a mercadoria e eu andava

pela cidade vendendo, aí, eu pagava e pegava mercadoria de novo, e fui indo, até hoje!”

57

De toda forma, a atividade com o comércio pode ser pensada a partir de alguns

imperativos: “a escolha entre „trabalhar por si próprio‟ versus a alternativa de „tornar-se

colono‟ [ou seja] a condição de trabalho na terra como pequeno proprietário (...) não é

possível a todos (...)”.58

E ainda, atividade de mascate está ligada a poupança, que está

relacionada a privação, já que é necessário manter relação de dependência com um

migrante estabelecido que possa lhe fornecer produtos mediante o longo período de sua

ausência pelas cidades do interior. Da mesma forma, como bem percebe Truzzi59

ao

estudar imigrantes libaneses em São Paulo, a atividade de mascate possibilitava a

57 Entrevista realizada em 26/07/2007. 58 JARDIM, Denise Fagundes. Palestinos no extremo sul do Brasil:identidade étnica e os mecanismos

sociais de produção da etnicidades. Chuí/RS. Tese de doutorado. Rio de Janeiro : UFRJ/PPGAS/Museu

Nacional, 2000, p. 172. 59 TRUZZI, Oswaldo. De mascates a doutores: sírios e libaneses em São Paulo. São Paulo: Idesp/Ed.

Sumaré, 1992.

32

autonomia do trabalho e o acúmulo imediato de capital. Assim, Seu Joaquim se tornou

dono de lojas em Santarém e cidades vizinhas.

Na verdade, as narrativas enunciadas por estes interlocutores são recheadas por

uma dramaticidade. A forma como contam suas histórias tende a garantir que os seus

ouvintes consigam apreender a dimensão do sofrimento pelo qual passaram. Sofrimento

porque saíram de uma situação penosa, pelo trabalho árduo ao longo de suas vidas ou

pelas privações em função do traslado. Estas pessoas sentem necessidade de justificar

suas conquistas pelo sofrimento, por isso, constroem seus discursos na perspectiva de

que seus interlocutores possam, também, validá-las reconhecendo o esforço

empreendido em alcançá-las.

Ao estudar a ideia do sofrimento e a representação cultural da doença Núbia

Rodrigues e Carlos Alberto Cardoso60

mostram que a ideia e o sentido do sofrimento e

da cura são capazes de construir elos - identidade(s) - entre pessoas. O sofrimento é uma

categoria que comporta contradição de significados, pois, é ao mesmo tempo expressão

de humildade/orgulho; destino/qualidade; resignação e coragem.

No caso dos cearenses em Santarém o sofrimento não só possui o sentido de

reconhecimento pelo estado de penúria passado pelo migrante e seus descendentes, mas

também cumpre uma função pedagógica no processo de socialização das gerações.

Reconhecer a importância do sofrimento destas pessoas reforça o valor de sua cura/

êxito ao se fixarem na cidade.

Foi o que aconteceu com o marido de Dona Margarida.

“Quando nós viemo pra cá pra cidade nós moremos ali na

Mendonça. [Antonio] comprou um terreno, fez a casa e nós moramos ... depois que nós vendemo lá e compremo o terreno

aqui onde foi feita essa casa ... Depois que nós viemos para

cidade ele começou a marretar, aí montou a taberna, dava pouco mais dava pra se manter”

61.

60 RODRIGUES, Núbia e CARDOSO, Carlos Alberto. Ideia de „sofrimento‟e representação cultural da

doença na construção da pessoa. In: DUARTE, Luis Fernando Dias (org.) Doença, sofrimento,

perturbação, perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fio Cruz, 1998. 61 Entrevista realizada em 18/10/2007.

33

Ao sair da colônia de Paxiubinha - onde residiram cerca de dez anos – o marido

de Dona Margarida passou a pegar mercadoria com o irmão e mascatear nos bairros da

cidade até conseguir montar uma taberna em frente a sua casa. Sua casa comporta

grande parte de um quarteirão em um bairro residencial da cidade, ventilada, com

amplas áreas de lazer, possui vários cômodos, pois “o finado fez quase um quarto pra

cada filho”. Senhora de trejeitos modestos, mostra ter ciência do que o trabalho de seu

marido e filhos conquistou. A relação do marido com o comércio foi essencial para

inserir os filhos de Dona Margarida na atividade, hoje, são todos comerciantes em

Santarém e cidades vizinhas.

Seu Francisco e Dona Amélia, filhos de migrantes, expressam o sentido do

sofrimento gerado pela migração e o êxito ao se estabelecerem na cidade de outra

forma. Em visita a sua casa por ocasião do aniversário de um dos seus filhos, o terceiro,

Dona Amélia solta a “ladainha” quando o filho mais novo recusa-se a comer,

“ Quando eu era criança meu pai partia um ovo pra quatro

filhos. Um ovo! Isso quando tinha. Agora esse põe banca pra comer. Ah, não sabe o que é sofrer. Quero quando ver tiver de

comer farofa de tripa”62

.

E Seu Francisco faz questão de completar contando para todos que quisessem

ouvir a penúria que passou quando criança no sertão do Ceará, “quando tinha o que

comer era farinha, a mãe repartia um pouco pra cada filho”. E finaliza se orgulhando de

ter o freezer e a geladeira sempre cheios em casa.

Através destas narrativas importa perceber que tanto para os migrantes cearenses

que aportaram na cidade na década de 50, quanto para seus descendentes, a imagem da

fixação na cidade está relacionada tanto a solidariedade familiar, quanto ao árduo

trabalho para a manutenção da própria família, bem como, a identificação de um grupo

de semelhantes – conterrâneos – com os quais se poderia contar.

A percepção que eles fazem desse processo garantiu aos próprios a ideia de

diferenciação deste grupo, não somente em relação aos processos migratórios anteriores

62 Anotações de Campo, 20/ 12/2007.

34

como, também, da sociedade já estabelecida. Criando, desta forma, conflitos e

diferenciações identitárias com os locais.

Neste sentido, as narrativas dos migrantes cearenses e seus descendentes não só

traçam a imagem do deslocamento, do trabalho, da luta diária, mas também, faz

exsurgir sentimentos de pertencimento responsáveis pela composição de identidades.

1.2. Da diferença à identidade ou da identidade à diferença?

Conforme especificado anteriormente, entendo por cearense63

não somente a

pessoa que possui essa naturalidade, mas também, seus descendentes, ou seja, aqueles

que se identificam ou que são identificados como tal, mesmo não tendo nascido no

Ceará, porém, são assim denominados em função de suas relações de sociabilidade. A

partir desta categoria passo a discutir a construção da diferença e a composição da(s)

identidade(s) do grupo64

.

Posto que, segundo Hall as identidades acabam por invocar uma origem que

residiria no passado com o qual desejam manter correspondência, neste caso, o

estabelecimento de um novo grupo na cidade a partir de um determinado período

histórico (década de 50) seria responsável por acionar esta identidade. Dessa forma, a

composição da identidade dá conta “... não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual

nos tornamos”65

.

Seu Chico se expressa da seguinte forma,

“Quando cheguemo aqui (em 1951), o paraense era espantado

com a gente, parecia que não confiava. Aqui é bom pra quem

quer trabalhar, tem quem lhe ajude... não liguei para o tratamento dado pra nós, me dediquei ao trabalho. Achava

63 Termo que, de agora em diante, será grafado em itálico e passa a se referir tanto aos migrantes

cearenses, quanto a seus descendentes nascidos neste Estado ou em outro. 64 Portanto, trato esta categoria à luz das ideias de Barth entendendo-os como “um grupo de membros que

se identifica e é identificado por outros como se construísse uma categoria diferençável de outras do

mesmo tipo”. Neste sentido, atribuir ou ser atribuído como cearense classifica uma pessoa em termos de

uma identidade determinada por sua origem em relação ao meio em que vive. É justamente essa

categorização que dá ao grupo seu sentido organizacional. BATH, Frederik. Grupos étnicos e suas

fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe. Teorias da etnicidade. São Paulo: Unesp, 1998, pp. 188-189. 65 HALL, Stuart. Quem precisa da identidade?. In: SILVA. Tomaz Tadeu da. (org.). Identidade e

diferença : a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000, p109.

35

muito baixo as pessoas que apelidavam nós de arigó, eu não

tinha raiva, pelo contrário eu achava era bonito! Meu objetivo

era trabalhar”66

.

Norbert Elias67

ao analisar uma pequena comunidade na Inglaterra, interpreta os

conflitos existentes entre os estabelicidos, formados pelas “famílias antigas” da

comunidade e que se consideravam as “pessoas melhores”, superiores em relação aos

outsiders que, neste caso, são representados pelos “de fora”, as pessoas recém

estabelecidas na região, consideradas “humanamente inferiores”. O estudo de Elias

ajuda a pensar a relação entre os paraenses – estabelecidos – e os cearenses – outsiders

-, à medida que esses dois grupos criam normas de convivência baseadas no paralelo

superior/inferior, no qual o comportamento de ambos os grupos espelham-se nos

conflitos existentes entre eles.

Para quem - como eu – nasceu e cresceu em uma família de cearenses, numa

cidade do interior, como Santarém, foi ensinado a dividir as pessoas em dois grupos os

cearenses e os paraenses. Aprendeu também que nós – os cearenses - éramos

diferentes dos outros – os paraenses -, posto que, tínhamos coisas que nos

particularizavam como: as extensas relações familiares; casamentos com pessoas da

mesma origem, consideradas “parentes”; o trabalho com o comércio, entre outras coisas.

Na verdade, éramos estimulados a nos ver assim porque também éramos tratados como

diferentes.

Como recorda Ana, que chegou a Santarém no início dos anos 90 com

aproximadamente 12 anos de idade. Ao chegar foi morar com os pais e dois irmãos na

casa da avó materna, em seguida, estava matriculada na escola mais próxima para

continuar seus estudos. Desta época lembra com certa angústia, pois, o processo de

adaptação haveria de ser demorado, então, relata

“quando cheguei na sala não conhecia ninguém, já era estranho!

Aí, veio a professora pra pedir pra me apresentar. ... Disse que tinha vindo do Ceará, logo ecoou no fundo da sala a

exclamação: - Ih, é arigó!!! No começo não entendi, mas depois

sofri muito! Ninguém perdoava, tudo que dava errado era coisa

de arigó!

66 Entrevista realizada em 06/01/2008. 67 ELIAS, 2000, op. cit.

36

[Como se sentia em relação a isso?] No início me incomodava.

Eu xingava e brigava, mas depois fui entendendo que eu era

arigó mesmo...

Eles [os paraense] não têm o jeito da gente, parece desligado das coisas... a gente não. A gente trabalha, a gente sabe quem é

quem, se tu me perguntar sei te dizer tudinho, quem casou com

quem da família, quem é filho de quem... Tu sabe. Primeiro a gente é filho de alguém para depois ser a gente. Eles não, a

gente não sabe nem de onde vem!” 68

Segundo Benchimol69

, o apelido arigó foi utilizado para denominar os retirantes

nordestinos que chegaram à Amazônia partir de 1940, a alcunha refere-se a uma ave

migratória que se movimenta em grupo e alimenta-se de vermes e peixinhos, ela muda

não se contendo em permanecer em determinado lugar, pelo menos, num certo período.

Assim, na cidade o termo passou a ser utilizado para designar os cearenses e

seus descendentes que chegaram “em bando”, como foi o caso das famílias vindas na

década de 50. Carregado de sentido pejorativo, o apelido tentava mostrar que esses

migrantes e seus descendentes constituíam um grupo a parte na cidade, vivendo aos

montes, passando pelas situações mais adversas possíveis. Por isso, o relato de Ana

expressa diferenciações muito próprias que fizeram/fazem parte de vida dos cearenses

em Santarém.

Seu Chico e Ana mostram que a construção do que significa ser cearense foi

tanto um processo de atribuição, quanto de autoatribuição, por isso, a identidade

acionada significa

“...o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado,

os discursos e as práticas que tentam nos „interpelar‟, nos falar

ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os

processos que produzem subjetividades, que nos constroem

como sujeitos aos quais se pode falar ... Isto é, as identidades são as posições que o sujeito é obrigado a assumir embora

„sabendo‟ sempre que elas são representações, que é sempre

construída ao longo de uma „falta‟, ao longo de uma divisão, a partir do lugar do outro e que, assim, elas podem nunca ser

ajustadas – idênticas – aos processos de sujeito que são nelas

investidos”70

.

68 Entrevista realizada em 22/07/2007. 69 BENCHIMOL, 1999, op. cit., pp.146-151. 70 HALL, 2000, op. cit. pp.111-112.

37

Se cearenses e paraenses são diferentes, onde reside esta diferença? Nesta

relação conflituosa, os cearenses passaram a ser identificados por, aparentemente ou

quase sempre, pertencerem a famílias extensas e pelos casamentos com pessoas do

próprio grupo consideradas “parentes”. Assim, há a compreensão de que “todo arigó é

parente”. Tal identificação pode ser percebida por uma composição de sinais sociais

como, por exemplo, estando associada ao fato de trabalhar no/com o comércio varejista

e por frequentar um clube específico - o Comercial Atlético Cearense - fundado na

década de 6071

.

Por outro lado, os paraenses são vistos como pessoas “preguiçosas”, não afeitas

ao trabalho, pessoas em que “não se pode confiar”. O maior conflito em torno destas

duas categorias gira ao redor do trabalho. A queixa dos cearenses segue no sentido de

perceber que „paraense só trabalha quando não tem o que comer‟, além disso, é alguém

que vive mais de sua esperteza do que de seu labor.

Neste sentido, a identidade do grupo foi sendo construída proporcionalmente a

diferença do outro, por isso, a marcação desta diferença envolve o problema da negação

de que haja similaridades entre os dois grupos72

.

Essas diferenças identitárias também foram transferidas para as relações de

gênero73

e construíram dicotomias na lógica destas pessoas e de seus espaços, criando

perfis para homens e mulheres com pesos e medidas diferenciados de masculinos e

femininos, cearenses e paraenses.

71 O clube figura como um dos principais espaços de sociabilidade e distinção identitária do grupo. Esta discussão será retomada no segundo capítulo. 72 WOODWARD, Katryn. Identidade e diferença: uma introdução conceitual. In: SILVA. Tomaz Tadeu

da. (org.). Identidade e diferença : a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Rio de Janeiro:

Editora Vozes, 2000, p109. 73 A historiadora Joan Scott define gênero como a relação socialmente construída entre homens e

mulheres, entre masculino e feminino, modificando-se de acordo com o contexto histórico e cultural.

Desta forma, estabelece-se o caráter relacional do conceito, ou seja, o masculino só pode ser entendido

em relação ao feminino, ou vice-versa, criando, dessa maneira uma dualidade ou dicotomia entre tais

papéis sociais. Papéis sociais estes que são entendidos como padrões ou regras de comportamento

estabelecidos pela sociedade de acordo com o gênero. SCOTT, Joan Gênero uma categoria útil de

análise histórica. Mulher e realidade: mulher e educação. Porto Alegre: Vozes, v.16, n.12, 1990

38

Sobre as mulheres cearenses recaem os benefícios de serem “boas moças para

casar”, pois são “bem criadas”, e não possuem trânsito intenso no espaço público e suas

relações com figuras masculinas são mediadas pelas relações familiares. Já os homens

cearenses, guardam suas qualidades baseadas no afinco ao trabalho, à poupança e ao

bem-estar da família.

A suposição de que tais qualidades estariam naturalizadas em mulheres e

homens cearenses acabam por construir valores fundamentais, que juntos a traços

diacríticos ajudam a compor a identidade do grupo74

.

Percorrer os caminhos apresentados por meus interlocutores levou-me a

encruzilhadas criadas pela composição dos discursos, pela contradição entre o que se

faz e o que diz que se faz a respeito do outro. Pude compreender que as fronteiras entre

cearenses e paraenses não estão demarcadas por estruturas sólidas, estão - melhor

dizendo – borradas, matizadas pela compreensão do que possa aproximar-se, ao mesmo

tempo, dos valores fundamentais e dos sinais de diacríticos que caracterizam o grupo.

Foi neste contexto que Helena, cearense de naturalidade, porém morando a

pouco mais de cinco anos em Santarém, foi rechaçada por suas primas em uma festa de

família. A queixa residia no fato de Helena passar mais tempo com os amigos de sua

escola – paraenses – do que com os parentes. Além disso, o comportamento “oferecido”

de Helena aos homens disponíveis na festa certamente não agradou as mulheres em

geral. Daí o julgamento impetuoso sobre seu comportamento:

“Caboclo é assim mesmo, não é como a gente que sabe se

comportar. Ela é assim, vem lá do interior do Ceará e a mãe não

põe rédea.”75

.

Neste sentido, para garantir a integração ao grupo e ter a si atribuída a

identidade, não basta possuir a naturalidade, é necessário alinhar-se aos

74 Como traços diacríticos aparecem: ter seu primeiro trabalho na loja de algum parente, já para os

homens, aparece detalhes como ter um “comércio no mercado”, montar loja no garimpo e comprar uma

moto. Embora estes detalhes possam ser vivenciados por qualquer pessoa, é interessante como eles

próprios destacam tais diferenças como definidoras de sua identidade, e, dependendo da geração, elas são

marcadas por uma ou outra característica, na terceira geração, por exemplo, aparece a preocupação com a

formação em nível superior. 75 Anotações de campo em 10/08/2008.

39

comportamentos e adaptar-se aos jogos identitários, cujas regras não estabelecem

fronteiras certas.

Segundo Denise Jardim, a atuação destes migrantes em redes de relações e de

informações estabelece posições diferentes para estabelecidos e recém-chegados. No

entanto, algumas inserções de recém-chegados são garantidas pelas posições sociais

assumidas por quem já se estabeleceu. Porém, quando o migrante não produz o

comportamento esperado passar a estar associado ao estrangeiro, ou seja, de fora do

grupo76

.

Estas fronteiras, matizadas conforme aproximação ou distanciamento de padrões

valorativos, aparecem na vida de Lúcia, paraense, casada há dez anos com João

cearense da segunda geração. O relato de ambos revela a matização destas fronteiras,

segundo Lúcia,

“Quando comecei a namorar o João pensei: „Nossa ele é arigó!

Como que vai ser isso? Com certeza ele é solto no mundo.‟ Pensei que a família dele não ia me aceitar... escutava aquela

história de primo que casa com primo, até de tio que casava

com sobrinha, aí eu pensei: „Vou tirar meu cavalinho da chuva‟... mas fui ficando e conheci toda a família dele, no início

me olhavam de ponta de olho – confesso que eu também olhava

– mas fui vendo que eram como a minha família, porque a gente

gosta muito de festa em família, gosta de se reunir.

[Como a família dele te aceitou?] A mãe dele me aceitou depois

que percebeu que eu era caseira e que não deixava faltar nada a ele... hoje, ela não passa um dia sem me ligar, eu não sei o que é

sogra ruim”77

.

“Quando eu e ela [Lúcia] começamos a namorar eu sei que minha mãe rezava para eu deixar ela... hoje sei que ela reza pra

Lúcia não me deixar.

[Foi difícil eles aceitarem a Lúcia?] Não sei se foi... a Lúcia

tinha um comportamento e ela não saia sozinha - o pai dela era

muito rígido – e ela também não queria um homem barriga

branca [homem que é mandado pela mulher]... acho que esse era o maior medo de meus pais: ter um filho barriga branca”

78.

76 JARDIM, 2000, op.cit. p. 121 77 Entrevista com Lúcia realizada em 05/02/2008. 78 Entrevista com João realizada em 05/02/2008.

40

Hoje, Lúcia compartilha os traços identitários do marido, aprendeu a fazer

cuscuz, gosta de forró e até a linguagem, segunda ela, mudou. “Aprendi a falar cearês”.

Por isso, segundo Halll, é precisamente

“porque as identidades são construídas dentro e não fora

do discurso que nós precisamos compreendê-las como

produzidas em locais históricos e institucionais

específicos, no interior de formações e práticas discursivas

específicas, por estratégias e iniciativas específicas. Além

disso, elas emergem no interior do jogo de modalidades

específicas de poder e são, assim, mais o produto da

marcação da diferença e da exclusão do que o signo de

uma unidade idêntica, naturalmente construída, de uma

„identidade‟ em seu significado tradicional – isto é, uma

mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras

inteiriça, sem diferenciação interna”79

.

Até agora, tratei do tema da identidade cearense a partir de discursos e pessoas

que, ou possuíam a naturalidade direta, ou vivenciaram de forma direta o processo de

fixação na cidade. O que dizer da terceira geração de cearenses? Dado que esta possui

como registro a naturalidade paraense. Onde se localizam estas pessoas? Como se

constrói o seu discurso? A elas me atenho agora.

Leandro, filho e neto de cearenses, faz parte da geração que nasceu em

Santarém, aos 27 anos, divide seu tempo entre a faculdade em Belém as idas a Santarém

– onde moram os pais e avós – e o Ceará – onde possui parentes. Diante da interrogação

sobre ser cearense exclama,

“Depende! Às vezes nem eu mesmo sei... Acho assim: quando

estou em Santarém sou cearense porque minha família é, meus

amigos são... Lá eu me sinto, sei que sou diferente dos paraenses de lá. Quando estou em Belém sei que sou de

Santarém... mas quando vou ao Ceará... aí é um problema!

Porque vejo que sou paraense. Sinto saudade de açaí, de tacacá, de tudo que lembre o Pará. Confuso isso!”

80

Embora Leandro ache confusa a ausência de uma única identidade na qual possa

se fixar, deixa de perceber que é particularidade de sua geração a multiplicidade de

identidades. Ele, na verdade, mostra que cada espaço no qual transita aciona, por sua

79 HALL, 2000, op. cit. p. 109 80Entrevista realizada em 25/02/2008.

41

vez, uma identidade diversa. Como tantos outros de sua geração vivem no “entre lugar”,

à medida que a fronteira de sua(s) identidade(s) faz-se presente nos lugares no quais

circula. De acordo com Bhabha, meu interlocutor usa o poço da escada, desta forma, “o

ir e vir ao poço da escada, o movimento temporal e a passagem que ele propicia evita

que as identidades a cada extremidade dele se estabeleçam em polaridades

primordiais”81

.

Acaba-se produzindo não a negação de uma ou outra identidade, mas sim, a

negociação entre elas, cada qual em seu espaço, arrumada em suas circunstâncias.

Assim, “a questão da identificação nunca é a afirmação de uma identidade pré-dada... é

sempre a produção de uma imagem de identidade a transformação do sujeito ao assumir

aquela imagem... implica a representação do sujeito na ordem diferenciadora da

alteridade”82

.

Na verdade, o que se acaba por construir consiste em um duplo jogo de

identidade que transita entre o público (o espaço onde se mantém a interação com outros

setores) e o privado (espaço onde se mantém a interação com a origem). Segundo Vitar,

o que importa perceber é que a construção da identidade, pelo menos em uma de suas

facetas, supõe um processo contextual e relacional no qual as definições identitárias se

realizam frente ao outro83

.

81 BHABHA, Homi, O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1999, p. 22. 82 Idem, p. 76 83 VITAR, op.cit. pp. 112113.

42

2. “Perdi a conta na hora da festa”: família e casamento

A prima nasce para o primo

O casmento foi marcado

No ato mesmo da concepção

Entre os primos é eleito o primo

Que melhor convém ao tratado. (...)

Assim nascem todas as primas,

Destinadas ao matrimônio

Do outro lado da rua

(Trechos do poema “Romance de primos e primas”

de Carlos Drummond de Andrade)

Neste capítulo pretendo discutir os espaços de sociabilidade vivenciados pelos

interlocutores, bem como as relações familiares e a forma pela qual estas relações

acabam por tecer namoros e casamentos vinculados aos espaços de sociabilidade e a

origem comum.

2.1. Tecendo punho de rede: sociabilidade(s)

Ao chegar à casa de Dona Tereza, para uma conversa mais formal do que de

costume, encontrei-a tecendo o punho de uma rede. Sentada na cadeira, ela esticava o

fio até um dos pés, passando por seu dedo e voltava para junto de seu corpo, onde

encontrava a casa na qual deveria se encaixar para, só depois, voltar a seus pés e ao fim

da repetição do processo, com todas as casas preenchidas, era amarrado, formando o

encaixe que se fixa ao armador. Explicando-me passo a passo para empunhar a rede,

lembrava que o punho é mais importante, porque não adianta ter um tecido bom com

um punho ruim porque, assim, “a rede não dura, ela desajeita”.

Desta forma, percebi que olhar as redes de sociabilidade, ou melhor, os punhos

que criavam a rede importavam para entender a articulação do grupo. Percorrer os

caminhos que levam aos espaços de sociabilidades de meus interlocutores e, mesmo,

participar desse processo requer a sutil percepção de como constroem suas diferenças.

Para tanto, a este trabalho mostro três momentos/espaços de sociabilidade: o comércio

ou loja; o clube (Comercial Atlético Cearense) e as reuniões familiares, que se dividem

em dois pontos: as casas e os balneários (igarapés e praias).

43

Observando e, por ora, narrando estes espaços, busco mostrar a construção e

forma como é negociado o valor e o sentido de família, por conseguinte, a tessitura de

um delicado mercado de relações que podem se desdobrar em várias finalidades como

namoro e casamento.

Os espaços criados para sociabilidade compõem um jogo interativo onde

interesses e necessidades convergem em um sentimento de sociação entre os membros

deste grupo – cearenses – e a satisfação derivada disto84

. Entendo esses espaços, e

formas de sociabilidades que deles derivam, como maneiras de comunhão de interesses

recíprocos e prazeres comuns, bem como, um sentimento de pertencer a uma

comunidade.

Desta forma, percebo-os como necessários para compreender as costuras que

permeiam as redes de relações e parentesco que se construíram ao longo do processo de

fixação na cidade. Assim, o conceito de sociabilidade torna-se útil por garantir a

compreensão das redes de relações estabelecidas e da construção da própria identidade e

dos elementos que a compõe85

.

Todo cearense é comerciante. Esse ideário permeia o universo destes

interlocutores, mesmo no mito da origem do grupo na cidade. A atividade com o

comércio foi incorporada aos seus valores. Necessariamente, ouso dizer, todos que ali

convivem exercem ou já exerceram atividades comerciais - quer seja como proprietário,

quer seja como empregado na loja de algum parente. Por esta razão, caminhar nas áreas

comerciais86

de Santarém é para o grupo estar entre semelhantes87

.

84Cf: SIMMEL, Georg. Simmel Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. 85 Rodrigues utiliza o conceito simmeliano para pensar a rede de relações construída por migrantes

ribeirinhos no bairro do Jurunas em Belém, o que dará ao bairro uma identidade própria. RODRGUES, 2008, pp.53-58. 86 Destaco três áreas comerciais onde é possível perceber a maciça presença de cearenses: a zona

comercial do centro da cidade, o Mercado Modelo e suas adjacências e Mercadão 2000. Essas são as

áreas em que se pode encontrar cearenses em número maior, no entanto, há de se considerar que uma boa

parte possui seu comércio nos bairros em que residem. 87 Não existe na cidade estudo que levante a quantidade de comerciantes com naturalidade cearense, ou

que deles tenha descendido. A Associação Comercial e Empresarial de Santarém (ACES) e a Câmara de

Dirigentes Lojistas (CDL) não possuem levantamento nesta área, no entanto, é perceptível que grande

parte das lojas pertence a esse grupo. Jardim destacou a mesma dificuldade para obter dados numéricos da

presença de palestinos no Chuí, embora a atividade comercial fosse extensa entre esse grupo. JARDIM,

2000, op.cit.

44

Andar pelas ruas do comércio é sempre encontrar alguém com quem se pode

conversar; lojas de parentes onde pode tirar a crédito sem precisar de burocracia;

escolher roupas que se pode levar para casa e experimentar e depois, devolver... Enfim,

o comércio acaba sendo uma extensão da casa de muitos interlocutores, posto que é o

lugar onde passam a maior parte de seu dia. Nele fazem suas refeições (em geral o café

da manhã e o almoço), esperam os filhos que chegam da escola ou os colocam para

desenvolver suas atividades escolares. A loja aparece como o lugar onde não só se

mantém relações de trabalho, mas onde o cearense dirige a sua vida familiar.

O desenho da área comercial88

é propício a esta dinâmica. Composta por ruas

estreitas ocupadas por lojas de ambos os lados, todas coladas um a outra, grandes ou

pequenas, com ou sem vitrines, dificilmente sai-se de uma e não se entra em outra.

Como zona comercial, tomo as ruas que compreendem horizontalmente da avenida

Tapajós até a avenida Rui Barbosa e, verticalmente, a área entre a travessa Barão do Rio

Branco e a travessa Francisco Corrêa. Neste entorno estão localizadas as maiores lojas

do mercado a varejo, bem como as principais instituições financeiras e de bens e

serviços. Nesta localização, os pontos comerciais sãos mais disputados e raramente

ficam vazios.

Comumente se vê, ao início da manhã ou ao final da tarde, comerciantes a porta

de suas lojas debatendo os assuntos mais variados, desde o apurado do dia ao

movimento do mês ou da semana, ou mesmo, acerca de um evento familiar.

As lojas que pertencem aos cearenses na zona central são, em geral, lojas de

confecções (adulto e infantil), tecidos, sapatarias, artigos de casa (loja de importados),

papelarias, lanchonetes, farmácias, etc. Não existe um padrão de produtos por ruas e/ou

quarteirão, em um mesmo quarteirão, é possível encontrar diversidade de lojas89

.

88 As descrições deste tópico referem-se à área comercial do centro da cidade, posto que foi onde

aconteceu a maior parte das entrevistas e onde consegui um maior número de informantes. Embora tenha

circulado pelas áreas do Mercado Modelo e do Mercadão 2000, em função tanto da pesquisa, quanto de

minhas relações, estas observações só constarão em minhas análises como adendos, pois considero que

mesmo nestes outros espaços as dinâmicas de relações são as mesmas. 89 Em períodos anteriores estudos mostram a possibilidade de encontrar, em Belém, uma profissão em

uma mesma rua fazendo com que cada rua guardasse sua especialização comercial. Em Santarém,

somente nas áreas dos mercados a distribuição das lojas é diferente. Nestas áreas, por uma questão de

distribuição do governo municipal, é possível encontrar espaços só com lanchonetes, só com lojas de

artigos de vestuário e calçado. As ruas adjacentes a esses mercados, em grande parte, são ruas

especializadas em algo como: supermercado, loja de secos e molhados, de artigos para pesca, artigos

45

No entanto, se por um lado não é possível perceber a especialização de produtos

nas ruas comerciais, por outro, é possível visualizar que uma mesma família possui

várias lojas em uma rua. Embora sejam negócios separados, pode-se perceber que no

quarteirão, ou na extensão da rua, irmãos possuam mais de uma loja, ou mesmo, pais e

filhos, ou primos e primas. Geralmente, estas famílias acabam comercializando o

mesmo produto, ou seja, todos com lojas de confecção, ou produtos de beleza, ou

armarinho, ou sapatarias. Há, ainda, a possibilidade de uma mesma família possuir dois

tipos de comércio, como armarinho e farmácia; loja de confecções e lojas de calçados;

farmácia e lojas de calçados; etc.

Para Denise Jardim, ao analisar o número de lojas de imigrantes árabes no Chuí,

importa perceber que a atuação destes migrantes em redes de relações e de informações

estabelece posições, “esses vínculos significam também uma possibilidade de ingresso

na vida social... um reconhecimento mútuo desses migrantes como participantes nas

redes de poder local, mesmo que estando à margem de decisões administrativas da

localidade.”, ou seja, “o que se passa nestes jogos de poder e na disputa por lugares

melhores é também expresso nas disputas espaciais por lojas melhores situadas e a

possibilidade de, de fato, conquistá-los”90

.

Piscitelli91

, ao trabalhar com grupos empresariais, procura entender as relações

de gênero e parentesco que percorrem as sucessivas administrações destes grupos. A

autora mostra que um mesmo negócio é fruto de discussão familiar causando rupturas

tanto na gestão dos negócios quanto na própria família. No caso dos cearenses, a

família com negócios correlatos, embora separados, trazem a possibilidade de

aproximação familiar. O comércio não é um fator de disputa familiar, ao contrário, é

percebido como agregador.

Exemplo da “especialização” mercantil, os irmãos Flores e os irmãos Cravos

preservam negócios no mesmo ramo comercial. Os Flores são donos de armarinhos e

farmácias nas travessas dos Mártires, XV de Agosto, Siqueira Campos e no Mercadão

veterinários, etc. Cf: AGUIAR, 2002, op. cit. e CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações

familiares na economia da borracha (Belém – 1870-1920). Tese de Doutorado defendida no Programa de

Pós-Graduação em História Econômica na Universidade de São Paulo, 2006. 90 JARDIM, 2000, op.cit, pp. 121-122 91 PISCITELLI Adriana. Jóias de família: gênero e parentesco em histórias sobre grupos empresariais

brasileiros. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2006.

46

2000. Ao todo são cinco lojas que pertencem a três irmãos especializadas nos mesmos

produtos. Já os três irmãos Cravos possuem cinco lojas na travessa dos Mártires e uma

loja na Rua Galdino Veloso. Todas vendendo confecções adulto e infantil. No caso dos

irmãos Cravos, cada um possui duas lojas. Volto a lembrar que em ambos os casos as

lojas são administradas separadamente, ou seja, não fazem parte de um grupo

empresarial familiar.

O fato de possuírem lojas de produtos comuns revela que a iniciação no mercado

de trabalho é feita com o suporte familiar,

“Comecei a trabalhar com confecção quando trabalhei com o

José Maria (irmão mais velho) na loja que ele tinha. Mesmo depois de casado continuei trabalhando com ele no ramo da

confecção popular, eu e minha mulher trabalhando com ele,

depois de algum tempo abri a minha loja com ela (esposa)”92

.

“... Meu pai trabalhava com armarinho, ele tinha uma portinha na Lameira com a travessa dos Mártires, aí a gente (ele e os

irmãos) foi aprendendo, ajudando ele e aí ele me passou o

ponto”93

.

O espaço comercial configura-se lugar importante para o(s) cearense(s), pois

solidificam relações familiares, laços de solidariedade com conterrâneos, um espaço

onde se constroem a ascensão social e a sobrevivência. O trabalho no/com o comércio

faz parte do discurso do sofrimento. Por isso, ele também figura como fator de ascensão

social94

. Para a maior parte destas pessoas o comércio tornou-se o lugar onde se inicia

sua vida laboral e onde se mantém relações de trabalho a partir das redes de relações

familiar.

Verónica Trpin95

, ao estudar a migração de chilenos para zonas rurais da

Argentina, fornece dados importantes para pensar a relação migração – família –

trabalho. Segundo a autora, as informações necessárias à migração são adquiridas

através de “pessoas de confiança”, no caso, a família. Ela é a responsável pela conexão

e inserção nas atividades laborais ajudando no aprendizado das tarefas.

92 Entrevista realizada com Francisco Flores em 18/07/2007. 93 Entrevista realizada com Pedro Cravos em 19/07/2007. 94 Jardim, 2000, op.cit, p.172 95 TRPIN, Verónica. “Identidades en movimiento: familias chilenas em la fruticultura del Alto Valle de

Rio Negro, Argentina” In: Cadernos Pagu. Dezembro de 2007, n. 29, pp. 227-255.

47

A família exerce a função de socializar seus membros numa identidade laboral e

cearense que se prolonga através das gerações garantindo a permanência da atividade

comercial como característica familiar. Ao mesmo tempo em que se desenvolve a

estabilidade e a fixação na cidade, esta socialização, é responsável por formar uma

identidade de grupo.

Assim, a trajetória familiar é responsável por determinar o tipo de mercadoria

que se irá comercializar. A especialização comercial entre os membros de uma mesma

família facilita, também, a compra de mercadorias. Assim, é possível fazer uma única

compra que abasteça a todos conseguindo preços melhores, ou ainda, utilizar a viagem

de um irmão para, também, comprar mercadorias aos outros. A ação de comprar

mercadorias para revenda nas lojas, também, é responsável por qualificar as imagens

com as quais eles se identificam à medida que a principal área de compras é a capital

cearense – Fortaleza. Neste sentido, muitos refazem seus laços de origem através das

viagens para compra, ou mesmo, da venda diária de produtos oriundos do Ceará96

.

O processo de comercialização de mercadorias é intermediado por um corretor,

geralmente um parente que reside em Fortaleza, que fica com a responsabilidade de

agendar visitas dos clientes aos fornecedores e transportá-los97

. Assim, vendem-se as

melhores redes, os mais bonitos biquínis e cangas, a moda feita para um ano inteiro de

calor do jeito da capital cearense.

O peso da rede de relações familiares, também, pode ser percebido na hora de se

empregar. Tomemos como exemplo a Loja Ceará98

que trabalha, em sua maior parte,

com confecções femininas compradas na capital cearense. O dono da loja migrou ainda

criança com os pais e seus irmãos e a loja figura em um dos pontos mais nobres do

centro comercial. Quem gerencia a sua loja é sua irmã, quem organiza o caixa é sua

96 Estas viagens também servem para visitar parentes que por lá ficaram e reforça a ligação origem e

destino. Truzzi propõe que os estudiosos da migração pensem este processo como um sistema migratório

que “conecta duas ou mais sociedades, cada uma composta de vários grupos sociais com diferentes

interesses”, ou seja, como o movimento que envolve grupos na região de origem e na região de destino,

por certo período de tempo, assim, alimentam relações que inibem ou estimulam deslocamentos. TRUZZI, 2008, pp. 145-160. 97 Atualmente, outras rotas de compras têm sido utilizadas na tentativa de variar as mercadorias. Duas se

destacam: São Paulo e Minas Gerais. Até onde pude apurar, ainda, é necessário a intermediação do

corretor por coincidência, ou não, o corretor a quem fui apresentada por ocasião de suas férias na cidade

era cearense. 98 O nome da loja é fictício.

48

prima ou sua esposa; seus funcionários, geralmente, são sobrinhos, filhos de primos ou

parentes em algum grau. Seus filhos se movimentam por todos os setores da loja, ora no

caixa, ora repondo mercadorias, ora tratando com fornecedores. Embora as divisões e

hierarquias existam neste contexto, a sensação é de que elas parecem ser mediadas pelas

relações de parentesco. Afinal, sempre há de se escutar no trato destas pessoas diálogos

que lembrem suas relações familiares.

Um simples “Tia! Dá pra fazer mais desconto na calça?”, quando a vendedora se

dirige a gerente. Ou ainda: “Prima, desce a mercadoria pra gente repor!”. E mais: “Mãe,

o cheque do seu do João tá pronto?”, mostra que ali não se estabelece apenas uma

relação comercial, mas expõe o fato de que o trabalho está construído baseado e

garantido pelas relações familiares. Além disso, essa relação familiar também garante a

fidelidade da clientela, o que pode ser percebido quando a gerente atende a nora de sua

prima que foi comprar presente para a sobrinha do marido.

O fato de muitos cearenses terem construído suas vidas a partir do comércio deu

a própria área comercial (ruas, lojas, instituições financeiras) múltiplos sentidos. Assim,

o comércio tornou-se o lugar de trabalho, mas também o local de planejar as festas, de

combinar a reforma da casa, o lugar onde estabelecem relações de vizinhança – “Vai

pegar umas sacolas na loja de fulano”, ou, “Vê com a vizinha se ela empresta um cento

de sacos de presentes pra mim!”. A dinâmica do comércio é garantida pelo som do

tocador a cada porta de loja cantando “forró para chamar os fregueses”, pelas cores das

roupas vindas de Fortaleza, pelo cheiro do café servido aos fregueses. É nesse local que

as conversas se estendem, que pude saber sobre a vida e os negócios de “todo mundo”.

O comércio, tal como a casa, configura-se no lugar seguro para os filhos transitarem,

assim, é comum ver crianças e adolescentes transitando pelas lojas dos tios ou primos,

ou mesmo, fazendo o mandado dos pais.

Quando andava Laís, seu irmão mais novo, uma amiga dela e eu pelo comércio,

a amiga de Laís se admirou da falta de preocupação com a segurança da criança e logo

interrogou a respeito da despreocupação da amiga com irmão, que adiantava o passo à

frente, perguntado se não tinha medo que ele se perdesse. Laís garantiu que isso não

poderia acontecer,

49

“Mana, qualquer loja que ele entre vai encontrar algum parente.

Não tem como se perder”99

.

As ruas do centro comercial figuram como espaços familiares, como espaços

para encontrar a família e conterrâneos decorrendo, assim, um fluxo considerável de

crianças que se divide num vaivém entre lojas de parentes, em companhia de outros

primos, fazendo de máquinas de calcular, de papéis de presente, de fitas e cabides,

novos brinquedos a sua realidade. O espaço e a presença das crianças são aproveitados

para garantir a educação na economia, sendo elas estimulas a interagir com o dinheiro,

com os preços, com a marcação das etiquetas e com a marcação das mercadorias100

.

Embora a área comercial seja um importante espaço de socialização, ainda

assim, arruma-se como lugar onde se trabalha, onde é necessário ganhar a vida e

produzir o sustento da família, mesmo que nele se produza momentos lúdicos - através

do cafezinho da tarde, das conversas à porta da loja – este não é o espaço do lazer. Para

isto, são criadas dinâmicas outras em espaços diferentes, neste sentido, privilegiam-se

dois lugares o clube e áreas familiares101

.

O clube frequentado por este grupo leva, inclusive, sua denominação. O

Comercial Atlético Cearense (CAC). Fundado em 20 de Junho de 1966, em um terreno

doado, foi construída uma sede social, área para churrascaria, duas piscinas, parque

infantil, quadra de esportes e campo de futebol. A participação no clube era feita diante

da aquisição de títulos para associar-se. Por muito tempo, o clube foi o principal espaço

da vida social dos cearenses, possuindo um calendário de eventos conforme

festividades anuais.

Em fevereiro, os tradicionais eventos realizados eram o Baile do Havaí, Baile da

Jangada e festa de carnaval para as crianças – sempre realizada ao final da tarde. Tais

99 Anotações de campo em 20/12/2008. 100 A presença de crianças no espaço público tem sido evidenciada por diversos historiadores em vários

momentos históricos, para tanto conferir FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Memórias da infância na

Amazônia. In: DEL PRIORE, Mary. Histórias da criança no Brasil. São Paulo contexto, 1999, pp.321-

346; ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981; MOTTA-

MAUÉS, op. cit.; SERRA, Márcia Milena Pivatto, Algumas considerações sobre circulação de crianças

no Brasil e sua distribuição por regiões.I n: Revista Brasileira de Estudos Populacionais, Campinas, v.

20, n. 2, pp. 229-239; FONSECA, Claudia. “Pais e Filhos na Família Popular”. In: D‟INCAO, Maria

Ângela, (org). Amor e Família no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 1989, p. 95-128. 101 Para narrar o espaço do clube faço, aqui, uso de minhas lembranças aliadas às narrativas dos

interlocutores.

50

eventos eram realizados na quadra de esportes e na área da piscina. A área da

churrascaria servia de bar para os brincantes. Todo o ambiente ficava decorado a estilo

da festa e animado por bandas que tocavam ao vivo. Estes bailes duravam até o

amanhecer.

No mês de maio, ocorre o evento mais importante: O Baile das Debutantes.

Quando são apresentadas à “sociedade cearense” as “jovens flores”. O baile é

responsável pela iniciação das meninas-moças. A partir de então, elas poderão circular

pelos eventos sociais. Antes disso, as meninas são “preservadas” para não ficarem

“faladas” e serem a “novidade” da festa.

Inicialmente, o clube só aceitava a inscrição de filhas de associados ou de

pessoas de origem nordestina, porém, ao passar do tempo tornou-se possível que

pessoas fora desses perfis pudessem inscrever suas filhas mediante o pagamento de

inscrição, coisa que não era cobrada aos associados. Todavia, as entradas destas

meninas ao salão eram sempre seguidas da pergunta “É filha de quem?”. O burburinho

se espalhava até que se chegava a conclusão que seus pais não pertenciam ao meio do

clube. Eram as menos aplaudidas, pois não conseguiam adesão dos outros aos aplausos

puxados por sua família.

O baile possuía uma estrutura permanente no que se refere apresentação da

debutante. Apresentada pelo mestre de cerimônia, ela aparece de forma suntuosa no

salão, onde era recebida pela mãe, com uma rosa, e conduzida pelo pai para

apresentação à sociedade. Durante o desfile, o mestre de cerimônia narra pequeno

histórico de sua vida adjetivando-a como “menina-flor que desabrocha para sociedade

nesta estação primaveril”, ou ainda, “menina angelical de beleza suprema”, frases que

possam valorizar a apresentação e a debutante. Logo após, todas as debutantes são

chamadas ao salão para bailar a valsa com o pai e o “namorado”. No entanto, muitas

dançam a valsa com seus irmãos ou primos, ou um jovem cujos pais se encarregam de

convidar. Em alguns casos, estes parceiros de valsa se tornam o primeiro namorado com

incentivo e aprovação paterna. Segue a festa e a disputa para ver qual família consegue

ser a mais animada e permanecer no evento até o amanhecer.

51

Em junho era realizada a festa junina. Também no espaço externo do clube com

eventos separados para crianças e adultos. Geralmente, as recém-debutantes

participavam de alguma dança para começar o processo de socialização no clube.

O último evento do ano consistia no baile de ano novo, realizado em dezembro

na sede social. O baile era decorado a caráter para reunir seus participantes na

comemoração da virada de ano.

O clube é dirigido por um presidente e um vice-presidente, além de diretores de

áreas (esporte, lazer, finanças, etc.). Teoricamente, eleitos entre os associados. Conta,

ainda, com uma secretária e um casal de caseiros que habita nas dependências do clube.

Apesar da associação ao clube, a maior parte destes eventos exigia a compra de

mesas tanto do associado quanto do não associado, no entanto, estes últimos sempre

pagavam preços mais elevados. A construção do CAC ocorre como meio de garantir

formas de lazer aos cearenses, posto que estes não podiam participar dos outros clubes

da cidade102

- considerados como “clubes chiques” – que impossibilitavam sua

associação,

“Eles (os clubes) barravam a nossa participação. Neles se

realizavam as festas mais chiques... Quando aceitavam um cearense era porque ele tinha muito dinheiro”

103.

Voltado para a simplicidade do povo nordestino, em oposição ao refinamento da

elite santarena, o clube durante as décadas de 60 a 90 consistia na principal forma de

lazer e associação do grupo. Tanto para as famílias quanto para os jovens, o clube servia

como um mercado de negociação simbólica para encontrar novos parentes – afinal

“arigó é tudo parente!” -, fazer negócios e dispor os mais novos ao mercado

matrimonial.

Fora os eventos do calendário festivo do clube, ao longo do ano, eram realizados

torneios de futebol e vôlei, além de festas que tinham como o público alvo os jovens.

102 Os clubes mais importantes da época eram o Iate Clube, Centro Recreativo e Casa da Amizade. Porém,

as características do CAC eram parecidas com a do Iate Clube, inclusive no calendário festivo. 103 Entrevista com Seu Antonio em 21/01/2008.

52

Ainda é possível utilizar as dependências do clube para a realização de aniversários,

casamentos, bailes de formaturas e chás de panela. Por isso, grande parte da observação

de campo deste trabalho foi realizada em suas dependências. Aliás, a não realização de

algum evento familiar no clube é sempre motivo de discussão, ou ressentimento na

família. Jacinta foi uma das que se queixou quando a festa de casamento de seu filho

não foi realizada no salão de festa do clube,

“Ela (a noiva) não quer fazer a festa lá. Mas, eu acho que tem

que ser lá! Lá a gente conhece mais, a gente fica mais a

vontade, os convidado vão ficar mais a vontade... Mas ela não quer. Posso fazer o que?”

104

Desta forma, o clube tornou-se por muito tempo fator agregador de pessoas, o

lugar onde as famílias se reuniam para o lazer do fim de semana, os jovens se

congregavam na busca de seus pretendentes, homens e mulheres aproveitavam as festas

para socializarem as noticias do meio social. Passava-se por lá para ver e ser visto.

Até o final dos anos 90, o Comercial Atlético Cearense figurava como

termômetro da vida social do grupo, no entanto, a frequência ao clube foi se fazendo

rarefeita à medida que a trajetória econômica das famílias ascendia. Se antes importava

ser sócio do clube, agora importa ter espaços de lazer em sua própria casa ou terrenos ao

largo da cidade para tal finalidade.

Para Denise Jardim,

“A definição dos grupos organizados e associações se dava em

contraste com o poder público. Sua persistência frente aos grupos dominantes (e aos „nacionais‟) expressava-se em ações

concretas, formas associativas que pudessem fazer frente às

ações do poder público no sentido de „assimilar ou expulsar‟

populações vistas como estrangeiras. Diante da situação de exclusão social, os estudos sobre assimilação de migrantes aos

nacionais destacam o importante papel da „colônia‟ em criar

instituições, associações recreativas e ações públicas. Os clubes marcaram a presença de minoritárias, bem como intermediaram

as relações entre o Estado e a coletividade. Muitos desses

clubes serviram como forma de quantificar e dar os contornos a

uma comunidade, pois as instituições trabalhavam no sentido de criar uma autorrepresentação junto aos nacionais e ao poder

público”105

.

104 Anotações de Campo em 20/09/2007. 105 JARDIM, 2000, pp.106-107.

53

A trajetória de ascensão econômica do grupo e a ampliação dos laços familiares

com o casamento dos filhos e netos proporcionam a aquisição de propriedades que, em

geral, beneficiam toda a família. Assim, as casas – em especial dos genitores ou do filho

mais velho – tornaram-se maiores para abrigar a família que cresceu. Além disso, no

processo de enriquecimento, muitos puderam comprar terrenos com igarapés que

correm ao largo da cidade, ou nas praias como em Alter do Chão, e ainda, fazendas no

planalto santareno.

Tomo como medida de análise a casa de Dona Tereza, genitora da família

Cravos, viúva há mais de 20 anos. Sua casa foi construída pelo marido, mas

constantemente reformada por seus filhos. Nela já se realizaram de festas de casamento

a cafés da manhã em comemoração a datas festivas. Sua casa é o ponto de encontro de

todos e tornou-se ao longo dos anos o ponto de lazer para filhos e netos.

Uma visita a sua casa mostra uma ordenação espacial por faixa etária. Na

calçada da frente encontram-se, geralmente, as crianças menores jogando bola ou

simplesmente correndo. Na área com cadeiras brancas, onde ela recebe seus convidados,

ficam os jovens (meninos e meninas) conversando sobre a última ou a próxima festa,

comentando seus namoros ou o namoro dos outros, em uma conversa que segue solta

em meio a risos e cochichos para que os pais não escutem. As mulheres se encontram na

cozinha preparando algo que possa ser servido a todos e os homens na área detrás

deitados em redes sempre atadas a espera de qualquer visitante.

Na maior parte das vezes as visitas dos filhos, noras, genros ou netos não são

anunciados previamente ou combinadas, mas durante a semana ocorre, sempre à noite

depois que todos fecham a loja. Porém, é obrigatória quando se refere a alguma

comemoração, como a missa rezada em sua área durante as festividades de sua

Paróquia,

“Quando eu chamo tem que vir. Porque é aqui em casa que tudo

tem que acontecer”106

.

106 Entrevista com Dona Margarida em 20/08/2008.

54

“Quando a mamãe põe uma coisa na cabeça tem que ser feito e

essa missa a gente tem que fazer e tem que vir... Fecha a loja

mais cedo e vem”107

.

Os eventos maiores – aniversários, festa junina, batizado, 1ª comunhão, crisma

ou natal, entre outros – são capazes não só de reunir os filhos e suas famílias, mas

também seus irmãos e irmãs, cunhados(as) e sobrinhos(as). Quando os eventos não

ocorrem em sua casa são transferidos para “o igarapé”, terreno localizado cerca de trinta

quilômetros da cidade, adquirido pelos filhos e que serve a diversão de toda a família.

Deste modo, aos poucos, a maior parte da função do clube foi sendo transferida para os

espaços residenciais ou suas áreas complementares.

São nestes espaços que pessoas se encontram, desencontram, famílias se

aproximam e jovens se olham e conversas começam. Nestes espaços, imperam as

relações de origem, mas também, as relações amorosas, os namoros e as afinidades.

Dinamizados pela família, neles se discute as qualidades dos pretendentes disponíveis,

valores indispensáveis para negociação no mercado do casamento.

Os espaços de sociabilidade não estão dissociados da compreensão que estas

pessoas fazem de si mesmas e dos locais por onde podem ou se devem transitar. Todos

estes espaços fazem parte das narrativas pessoais e do sentido de família construído por

estes sujeitos.

2.2. “Da mesma forma que eu”: família e valor

Para entender o mercado do casamento e as negociações – reais e simbólicas –

que ocorrem neste contexto se faz necessário compreender as referências ao sentido de

família, bem como, a ideia e as representações que os cearenses fazem de mesma.

De forma geral, os cearenses guardam a fama de “casarem entre si”. Uma longa

história baseada em casamento entre primos ajuda a manter o ideário108

. Porém, mais do

107 Entrevista realizada com Pedro em 19/07/2007. 108 Woortman ao analisar grupos de colonos no sul e sitiantes do nordeste brasileiro mostra que estes

grupos percebem práticas de casamento de forma diferenciada. Enquanto os nordestinos tendem ao

casamento endogâmico, como forma evitar a distribuição de riquezas e partilha de bens, em especial a

terra; os sulistas mantêm práticas homogâmicas, posto que o interesse não incorre no parentesco, mas

sim, na origem comum dos pretendentes, sendo mais uma questão de casar com alguém “de dentro” do

55

que uma simples especulação o casamento entre primos de primeiro e segundo graus

comprova-se com inúmeras autorizações dadas pela Igreja Católica à realização

destes109

.

Dona Tereza comprova a dificuldade em contrair matrimônio com seu falecido

marido quando ainda moravam no Ceará,

“Nós (ela e o marido) morava no pé de serra, mas pra casar a

gente teve que subir a serra e casar, mode que, o padre de

Frecherinha não queria fazer o casamento porque nós era primo de segundo grau... Na serra a gente não disse nada porque

senão o padre não casava”110

.

Embora estes casos ainda ocorram, em menor número, compreendo que o

mercado do casamento não entende o parentesco como uma relação direta e

genealógica. Para entender o casamento “entre si” é preciso compreender o significado

e o sentido dado à família, posto que a compreensão que fazem desta instituição

permeia todos os âmbitos de relações do grupo111

.

A definição que melhor se encaixa nesta perspectiva é o sentido de família como

um valor, uma referência utilizada pelas pessoas ao se localizarem na sociedade

tornando-a um espaço onde se produz valores sociais e morais112

. Neste sentido,

que com alguém “de fora”. WOORTMAN, Ellen. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do sul e

sitiantes do nordeste. São Paulo: Hucitec, Brasília: Edunb,1995. 109 No processo de montagem do projeto de dissertação visitei a Paróquia de São Raimundo Nonato para

fazer um levantamento dos registros de casamentos entre cearenses da década de 50 a 70, a maioria dos

casamentos era realizada com autorização do bispo pelo fato dos cônjuges serem primos de primeiro e

segundo graus. 110 Anotações de campo em 15/07/2008. 111

A relação entre parentesco e casamento estará mais bem explicitada no tópico seguinte, por ora vale

ressaltar que dois caminhos teóricos ajudam a pensar o parentesco à luz da Antropologia: a teoria da

descendência, na qual “o parentesco seria uma rede de filiação socialmente reconhecida... duas pessoas

são parentes quando descendem uma da outra, ou quando ambas descendem de um antepassado comum”

e a teoria da aliança, que, para a escola francesa inaugurada por Claude Lévi-Strauss as relações de

parentesco, pelo menos nas estruturas elementares de parentesco, possuem um universo de regras que são definidas especialmente pela proibição do incesto, e estabelecidas pelo casamento preferencial entre

primos cruzados. No entanto, o ponto estrutural do parentesco para esta teoria encontra-se no princípio

da reciprocidade, baseado na teoria maussiana de dar – receber – retribuir. WOORTMANN, op.cit, 1995,

p. 69. Cf: LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. 2.ed. Petrópolis: Vozes,

1982; RADCLIFFE-BROWN, A. R. Sistemas africanos de parentesco e casamento. Introdução. In:

MELATTI, J. C., org. Radcliffe-Brown: Antropologia. São Paulo: Ática, 1978; CARSTEN, Janet. After

Kinship. Cambridge: Cambridge University Press. xiv+ 216 ,2004. WOORTMANN, Klass.

Reconsiderando o Parentesco, In Anuário Antropológico/76, pp149-186. 1977. 112 Cynthia Sarti, ao discutir famílias pobres em São Paulo ressalta que a família é pensada como uma

ordem moral, que reflete na maneira como pessoas atribuem sentidos ao seu mundo social. Desta forma,

compartilho da ideia da autora que trabalha a moralidade a partir do ponto de vista antropológico, ou seja,

56

entender a família como um valor significa compreender a representação que os

membros da família fazem sobre a mesma.

Pensando estas questões, me detive a observar a família de Dona Margarida, na

época com 80 anos. Dona Margarida possui 10 filhos e 31 netos, veio de uma família de

22 irmãos. Hoje, grande parte deles reside em Santarém. Disse que perdeu “a conta na

hora de convidar só a família para festa” de seus 80 anos, foram mais de 300

convidados 113

.

A festa se constituiu numa observação sem igual das relações familiares

vivenciadas pelo grupo, posto que reuniu pessoas de várias idades e de diferentes

gerações. Música, comida, animação eram as características particulares da festa.

Pessoas se cumprimentando, falando ao mesmo tempo, risos e abraços empolgados.

Afinal, até parentes distantes haviam vindo para a comemoração.

As mesas estavam dispostas em grupos familiares, nomeadas sempre pelo

membro mais velho ou parente mais próximo da convidada, seguida pelos filhos e

netos. Boa parte das famílias mais antigas de migrantes cearenses, certamente, estava lá

e todos se admiravam da “bonita família”. Aliás, este era o termo que mais se escutava

nas conversas entre os membros das mesas, comentários sobre a felicidade da família,

como a família havia crescido, recordações de parentes que não se viam há muito

tempo, entre outros tantos comentários.

E o termo família parecia ser proclamado com uma utilização própria, ou seja,

referia-se a todos que estavam presentes na festa. Eram irmãos, afilhados, primo de

primeiro, segundo e terceiro graus, no final, tinha-se a impressão que todos se

encaixavam na mesma árvore genealógica.

A disposição das mesas permitia perceber que a maior parte dos casais era

cearense, tanto os mais velhos quanto os mais novos. A família de Dona Margarida não

como a expressão de normas e valores concebidos na ordem social, mas que, também, tornou-se parte da

identidade social dessas pessoas. Cancela discute as mesmas questões sobre atributos morais ligados a

família considerando as especificidades sociais. Cf: SARTI, 2007, op. cit. e CANCELA, Cristina Donza.

Casamento e famílias em uma capital amazônica: estrutura e valores (Belém, 1995-2006). 13º Encontro

Anual da ANPOCS, Caxambu, Outubro de 2007. 113 A festa ocorreu no dia 27 de julho de 2007 na sede social do Comercial Atlético Cearense.

57

fugiu a regra, seus dez filhos estão casados com cearenses. Em nosso diálogo, ela

relatou com orgulho que conseguiu casar as seis filhas e que todos conseguiram

aumentar a família, agora “todos se ajudam”.

As festas como um importante fenômeno de sociabilidade - quer no clube, quer

nas reuniões familiares - tornam possível mapear as relações que podem ser

consideradas como constituinte do sentido de família. O grande número de convidados,

proclamado pela própria aniversariante, revela que a entrega do convite para participar

da festa integra o convidado ao tão proclamado sentido de família. Comum no grupo

que a entrega do convite seja seguido da afirmação de um “evento íntimo só para

família”, receber o convite é estar diretamente inserido nessa rede de parentesco mesmo

sem possuir laços genealógicos. Assim, pertencer à família está, também, ligado a

conterraneidade114

.

Em oposição, não receber o convite significa estar excluído dessa rede de

sociabilidade. Isto pode ser confirmado quando após a festa um sobrinho de Dona

Margarida se queixou de não ter sido convidado,

“ele é gente distante, não vem sempre aqui... quando vem só traz confusão. Nem se lembrei dele”

115.

Ao mesmo tempo em que o sentido de família agrega pode, também, excluir

pessoas à medida que estas relações não se encaixem nas construções socais do grupo.

Todavia, ser reconhecido como membro da família é garantir aquisição de credenciais

necessárias para estabelecer relações. Expressa, ainda aqui, que o imperativo moral

configura relevante requisito para agregar pessoas à família, é preciso ajudar para

receber ajuda, fazer parte da rede116

.

Desta forma, o sentido de família é utilizado para garantir a integração ao grupo,

estabelecendo a socialização entre as gerações, garantindo o processo de iniciação no

114 Alguns estudos mostram como as festas são espaços de socialização e inicialização de grupos sociais.

Cf: PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003; PASSOS, Mauro. A

festa na vida: significados e imagens. Petrópolis: Vozes, 2002; GIACOMINI, Sonia Maria. A alma da

festa: família, etnicidade e projetos num clube sócia da Zona Norte do Rio de Janeiro. Belo Horizonte:

Editora da UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2006. 115 Entrevista com Dona Margarida em 20/08/2008. 116 RIDLEY-LEIGH, op.cit.

58

trabalho, no namoro, nos negócios, no clube ou mesmo na vida política. Assim, ser

reconhecido e reconhecer-se como “sendo da família” atribui a essas pessoas a

identidade necessária para circular no grupo e usufruir das redes de apoio social ou

financeira.

Observando a estrutura, o sentido de família compreende, portanto, dois polos: o

primeiro polo, e menor, está agrado a casa paterna/materna, ou seja, a primeira geração

que fixa na cidade e as relações que dali derivam (irmãos, sobrinhos, primos, genros,

nora, etc.). O segundo polo compreende uma relação familiar estendida, pois, agrega ao

primeiro polo as relações derivadas do processo migratório (tanto dos que vieram para

Santarém, quanto os que ficaram no Ceará), mas ainda baseada nos laços constituídos

pela primeira geração. Assim, os casamentos das gerações posteriores são percebidos

como constituição de novas unidades domésticas que estão integradas a esta noção

maior de família. Tanto quanto Duarte e Campos, entendo que a categoria família deve,

em função do contexto, ser utilizada com o sentido de “família extensa” ou de “rede

familiar” e os núcleos familiares são entendidos como “unidades domésticas.”117

Segundo Jardim, torna-se necessário ler os laços de parentesco em dois sentidos.

De um ponto de vista holista “em que os sujeitos e suas escolhas estão subordinados a

uma totalidade, aos valores do grupo”, onde, não há uma centralidade na

individualidade, mas sim, numa ideia de continuidade entre a parte e o todo. O outro

sentido procura entender estes laços, em longo prazo, pensando as dinâmicas que

reiteram a totalidade, tendo o sangue como critério de inclusão na parentela, mas

também, também incluindo relações determinadas pelo critério de origem118

.

O sentido que faz de família passa a ser, portanto, diferencial valorado para

mediar à relação conflitiva com os paraenses, baseando o valor na compreensão

estendida de família, que por sua vez seria responsável pela solidariedade entre seus

membros. Na fala dos entrevistados o sentido de família estendida, de que “todos são

parentes” é especialmente positivado para marcar sua diferença com os locais119

. Assim,

117 DUARTE, CAMPOS, op.cit, p. 29 118 JARDIM, 2000,op. cit, p. 348 119 Cf: PETERS. Roberta. Imigrantes palestinos, famílias árabes: um estudo antropológico sobre a

recriação das tradições através das festas e rituais de casamento. Dissertação de mestrado. Programa de

Pós-Graduação em Antropologia Social, UFRGS, 2006e JARDIM, op.cit.

59

a noção de que o grupo possui uma maneira distinta de lidar e entender as relações

familiares tende a marcar diferenças, especialmente, na escolha dos pares.

Os estudos sobre família e casamento nas comunidades árabes mostram que tal

diferenciação também ocorre e produz a valorização da “família árabe” em oposição à

“família brasileira”. O que ajuda a perceber esta valorização como um aspecto utilizado

na diferenciação identitária de grupos étnicos, ou ainda, na diferenciação entre nós e os

outros120

.

Família, em seu sentido extenso, amplia possibilidades de negociação entre os

integrantes do grupo servindo de passaporte para circulação nas redes sociais e nas áreas

de sociabilidade. Assim, a abertura de uma ficha de crédito na loja, a aquisição de um

presente melhor para um novo casal, a possibilidade de frequentar as festas do grupo

podem ser garantidos ao carimbar o passaporte das redes familiares.

A discussão sobre família nas ciências sociais tem dado vazão consecutiva a

questionamentos sobre o modo de pensar a relação entre classe econômica e família.

Discursos e discussões acerca desta relação geraram modelos que seriam, segundo

alguns autores, compatíveis com determinados status ocupados por seus membros.

A partir da condição social/econômica do indivíduo considera-se a influência do

individualismo marcando o papel e a condição social de membros da família. Desta

maneira, abre-se espaço para a família conjugal, nuclear, com marcadores de gêneros

consolidados em relações simétricas seriam, portanto, características atribuídas a

núcleos familiares de camadas médias. Todavia, estudos que privilegiam em suas

análises as relações conjugais e familiares baseadas em um “contexto igualitário”,

seriam os modelos - se podemos considerar assim - predominantes e característicos das

camadas médias psicologizadas121

.

120 O sentido amplo de família só pode ser entendido através do conjunto de pessoas que “haviam

atravessado juntas um processo grupal – do passado para o futuro através do presente – que lhes dera um

estoque de lembranças, apego e aversões comuns. Sem levar em conta essa dimensão grupal diacrônica, é

impossível compreender a lógica e o sentido do pronome pessoal „nós‟ que elas usam para se referir uma

as outras”. ELIAS, 2000, op.cit. p. 38. 121 Cf: VAISTMAN, 1994, op. cit; HEILBORN, 2004, op.cit; SALEM, 2007, op. cit.

60

Por outro lado, estudos que visualizam a família ligada a uma rede extensa de

sociabilidade e de solidariedade122

, onde o valor da família “é fundamentalmente

instituidor de uma moralidade estabelecida por um conjunto de regras de reciprocidade,

obrigações e dádivas” seriam atributos pertencentes às camadas populares123

.

Cristina Santos Silva faz crítica aos estudiosos que, ao longo do tempo,

produziram um processo de nuclearização e individualização da família criado por estes

estudos. A autora, ao analisar o bairro de Alfama, trabalha com a noção de famílias

alargadas buscando perceber os processos formadores de núcleos domésticos em um

bairro caracterizado pelas relações de parentesco. No entanto, mesmo tentando burlar

teses de nuclearização da família trata “alargamento familiar” como suporte para a

análise das classes populares deixando sobe ressalva que “as famílias complexas que

resultam deste processo tendem a ser transitórias e são, provavelmente, substituídas por

famílias nucleares à medida que a industrialização progride e a prosperidade

aumenta”124

.

Para Pina Cabral o principal problema de uma noção nuclear de família está no

fato de que tende a dificultar o entendimento desta categoria social. Portanto,

“uma família é um grande grupo de pessoas que se sentem

associadas umas às outras por terem participado conjuntamente,

em momentos geracionais anteriores, no processo de reprodução social... pois não é geralmente possível estabelecer

qual o número preciso de pessoas que compõem uma família,

nem podemos afirmar que elas partilhem da mesma

definição”125

.

Na verdade, algumas discussões produzem a dicotomização sobre a

compreensão de família que não pode ser generalizada. Neste sentido, entender a

família como um valor significa compreender a representação dada a ela por seus

membros e considerar que não somente os valores ou representações, mas o significante

122 Para esta perspectiva podemos destacar SARTI, Cynthia, 2007, op.cit; FONSECA, 2004, op.cit. 123 MACHADO, op. cit, p. 16. 124 SILVA, Cristina Santos. Famílias de Alfama: dinâmicas e solidariedades familiares num bairro

histórico de Lisboa. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2001, p. 23. 125 PINA-CABRAL, João de. O homem na família: cinco ensaios de Antropologia. Lisboa: Imprensa de

Ciências Sociais, 2003, p.120.

61

e o significado atribuídos pelos cearenses à família e ao casamento circulam na

sociedade126

, entre pessoas de diferentes situações socioeconômicas.

Fechá-los em uma estrutura que define um padrão ou modelo de

comportamento, baseando em seu contexto socioeconômico, seria deixar de perceber

detalhes de uma rede bem bordada, deixar de valorizar as tramas da renda. Ao visitar a

casa de Amélia pude entender como as coisas se associam. Casada, três filhos, dona de

uma loja de confecções – na verdade duas, o marido trabalha em outra loja – sua casa

revela muito sobre sua condição social. Casa própria, reformada, dois carros na garagem

tem o cuidado de afirmar que logo comprará outro porque “os meninos” (uma menina e

um menino) estão aprendendo a dirigir. Sala de jantar e de estar mobiliadas, três quartos

(do casal, do menino e das meninas) com condicionadores de ar, aparelhos de Tv,

cozinha e quintal. Esses detalhes só foram possíveis perceber porque minha anfitriã fez

questão de mostrar toda a residência, afinal, “faz tanto que tu não vem aqui, não sabe

como ficou a casa (depois da reforma)”.

É verdade, em minhas lembranças ainda figuravam uma casa pequena, com dois

quartos, sala e cozinha do tempo em que o casal trabalhava como vendedores – ela na

loja do irmão, ele na de um cearense conhecido. Lembro do piso “vermelhão” encerado

e dado brilho com pano seco. A visita termina na cozinha com nossas lembranças a cada

cômodo visitado e a triste conclusão: o tempo também passou para mim.

Sentadas na cozinha é Amélia quem começa a entrevista com uma pergunta que

tive que responder em muitos momentos: “Então, ainda não casou?”. Respondi que não

que tinha voltado a estudar em Belém. “Quem sabe agora tu volta casada!”. Quem

sabe...

126 É necessário trabalhar com a noção de circularidade cultural presente na obra de dois autores, Carlo

Ginzburg e Stuart Hall. Para Ginzburg, ao discutir a vida de um moleiro na Europa moderna a partir de

processos inquisitoriais, se mostra como há uma relação entre a cultura oficial e a cultura popular, já Hall,

mostra que a noção de „cultura popular‟ só pode ser pensada em relação a uma „cultura dominante‟, que

muito mais do que determinar uma oposição, tais noções, circulam e interagem nas palavras de Cancela

“... trata-se, desse modo, de uma definição dinâmica e processual do que vem ser popular, sempre

determinada pela sua relação com a cultura dominante, que, por sua vez, vale sempre ressaltar, também é

fluida e capaz de absorver elementos da cultura popular...”. Cf: GINZBURG, 1998, op.cit.; HALL, 2003,

op.cit e CANCELA, 2006, op.cit, p.37.

62

Após nossa conversa que me contou o que eu queria saber - e perguntou o que o

ela queria saber - propôs me deixar em casa, pois ia casa de sua mãe, já que “tá todo

mundo lá!”127

. No carro a conversa foi estendida em tom menos formal do que na

presença do gravador. Contou que a loja estava indo bem; que os meninos estavam

estudando e dando trabalho. Então perguntei o que ia fazer na casa de sua mãe e a

reposta foi tão simples como se a pergunta tivesse sido absurda: “Nada! Tá todo mundo

lá!” E logo completou: “Pra nós a família é prioridade, é primeiro lugar”.

O processo de ascensão econômica é evidente no grupo estudado, mesmo porque

fazem questão de evidenciá-la, exibindo os objetos de conquista atrelados ao discurso

da luta e privação para possuí-los. As famílias em questão possuem padrão econômico

compatível com as camadas médias, no entanto, evidenciam em suas práticas, discursos

e sentidos as relações familiares caracterizadas como pertencentes às camadas

populares. Colocando em prática uma circulação de valores que garante sua visibilidade

econômica na sociedade sem comprometer os elementos constitutivos da identidade do

grupo.

Esta estrutura que alarga as relações familiares ao mesmo tempo em que as

estreita, as torna específicas do/ao grupo que é responsável por definir o mercado de

casamento, apontando os pretendentes e elegendo os(as) candidatos(as) preferenciais.

2.3. “É importante casar sim!”: mercado do casamento

Para pensar o mercado do casamento que ocorre entre as famílias cearenses faz-

se necessário atentar para os elementos que forjam o jogo de negociações na busca de

pretendentes e no movimento feito pelas famílias para concretizar o matrimônio. Além

disso, é preciso desvendar a lógica existente na ideia generalizada de casamento entre

parentes, bem como perceber a posição, a margem, os interstícios que acompanham os

que não correspondem aos modelos.

127 O “todo mundo” refere-se a seus irmãos, sobrinhos, cunhados e cunhadas.

63

Para mapear o movimento organizado em torno do mercado de casamento foi

necessário adentrar as portas dos relacionamentos conjugais novos e antigos, e assim

perceber como as gerações davam contam de manter o contínuo comércio do

matrimônio. Chegar aos casais não foi tão fácil, posto que eu não gozava do estatuto

para adentrar nas conversas próprias do casamento. O fato de não ser casada limitou o

meu passaporte de acesso às mulheres e aos homens, ao mesmo em tempo que me

inseriu na pedagogia do matrimônio fazendo com que no momento da entrevista eu

pudesse ser educada na “necessidade de casar” porque “é importante ter alguém para

cuidar” e “não se pode ser só no mundo”.

Em muitos momentos da etnografia tanto fui entrevistada e observada, quanto o

fiz. Minha condição de “mulher solteira” ameaçava e perturbava as mulheres, ao mesmo

tempo, constrangia os homens. As conversas com os casais, inicialmente, ocorreram no

espaço do comércio, geralmente no escritório, começava explicando o sentido da

pesquisa e antes mesmo de começar as entrevistas, eu respondia a perguntas sobre mim,

sobre meu trabalho, sobre minha moradia em outra cidade, sobre minha família, sobre

meu não casamento. Somente depois de saciar a curiosidade de meus interlocutores é

que podia fazer minhas perguntas. No entanto, nem todas eram respondidas. Perguntas

que giravam em torno da relação do casal ou da relação/namoro de seus filhos foram as

que menos consegui respostas, somente os casais que eram próximos de mim e minha

família me responderam timidamente a estas questões.

O problema do silêncio, do que não se quer falar sobre o casamento ou sobre a

relação conjugal, foi remediado através de conversas com outras pessoas, ou melhor, da

fofoca. Aliás, ela é uma grande arma para se descobrir a quebra dos modelos e a

diferença entre discurso e prática128

.

O mercado do casamento é sustentado pela busca de parceiros que cumpram as

exigências valorativas masculinas e femininas atribuídas aos cearenses, mas não aos

paraenses. Para fazer parte dos casáveis é necessário ter qualidades que são

consideradas pelo grupo como próprias deles.

128 Para Fonseca o que é dito sobre si e o que é dito sobre o outro media a relação de interesses, a fofoca

revela modelos que não se cumprem. FONSECA, 2004, op. cit.

64

Na fala dos homens aparecem referências ao fato das mulheres cearenses serem

boas moças para casar porque são “bem criadas”. Não possuem trânsito intenso no

espaço público e ao fato de suas relações com a figura masculina estarem mediadas

pelas relações familiares, ou contato com os parentes aparece como pressupostos

atrativos na escolha da pretendente. Já os homens cearenses, guardam suas qualidades

baseadas no afinco ao trabalho, à poupança e ao bem-estar da família.

A suposição de que tais qualidades estariam naturalizadas em mulheres e

homens cearenses permitiram ao grupo desenvolver práticas de casamento preferenciais

com as pessoas do próprio grupo129

.

Para Júlia, casada há 17 anos com Marcos, essas qualidades se resumem na

seguinte frase:

“ele foi criado da mesma forma que eu e isso contribui para que

o casamento permaneça”130

.

Filha de pais cearenses, Júlia lembra vários detalhes da época em que conheceu

Marcos. As datas, as conversas, a suspeita dos pais,

“Nós nos conhecemos no grupo de jovens... ele era muito

sapeca e me mandavam conversar com ele... eu sempre

conversava com ele... começamos a paquerar dentro da Igreja de Fátima, mas não foi muito tempo não! Aí ele foi lá em casa

pedir pro papai pra namorar. A gente namorou um ano e noivou

três meses...”131

.

A opinião da família influencia na escolha do pretendente. Marcos considera que

a sua influenciou na escolha porque

“(ela) tinha aquele parentesco, família e deu tudo certo...

quando eu pensei em casamento sabia que tinha que ser cearense por causa da família (porque) o pessoal falava muito

129 Considero a prática de casamento como as pessoas do mesmo grupo como homogamia. Entendo o

termo homogamia na mesma perspectiva das análises de Cancela, ou seja, para definir o casamento entre

pessoas de um mesmo grupo, quer seja social, quer seja econômico. Portanto, para esta pesquisa está

sendo considerado o fato destes migrantes casarem entre si, havendo, portanto, homogamia de origem.

CANCELA, 2006, op.cit. 130 Entrevista com Júlia em 12/07/2007. 131 Entrevista com Júlia em 12/07/2007.

65

de cearense, de arigó, e a gente já evitava de ter o contato com

paraense”132

.

O possível parentesco com o pretendente passa a ser utilizado pelos casais como

argumento positivo para a realização do casamento, à medida que valoriza a união

garantindo a ampla aceitação,

“Quando é da família é melhor, a gente já tem aquele convívio,

já sabe quem é... Não fica se perguntando se vai dar certo...”133

.

No entanto, a localização deste parentesco aparece sempre suposto, nem sempre

efetivamente concreto,

“Parece que a mãe dele era sobrinha do meu avô, porque eu

lembro que ela chamava ele de tio...”134

.

“A avó dela é prima de segundo grau da minha mãe... parece que é isso!”

135.

“Não sei direito, mas acho que sim... mana, arigó é tudo parente

se a gente procurar acha!”136

.

Embora existam casos de primos legítimos casados, os casais entrevistados não

conseguiram estabelecer seu parentesco direto. Essa averiguação é feita, em geral, pelos

mais velhos que dominam o mapa dos laços de parentesco, tanto na cidade de origem,

quanto nos seus desdobramentos no local de destino. Mas o que faz que o casal e sua

família tentem achar o parentesco? Por que remontar esta árvore é tão importante?

Analisando no grupo as tendências e o “modelo correto”, o casamento entre

primos estaria corroborando a lógica do “casar entre si”, por isso, é necessário que ele

seja localizado, percebido por todos dando o reconhecimento a uma prática que afirma a

identidade. Jardim, Peters e Vitar, em momentos diferentes, mostram que entre os

árabes a noção de casamento endogâmico existe e faz parte da visão que o outro faz do

grupo, no entanto, o próprio grupo mantém-se neutro na desconstrução deste sentido, ou

132 Entrevista com Marcos em 12/07/2007. 133 Entrevista com Dona Tereza em 15/07/2008. 134 Entrevista com Júlia em 12/07/2007. 135 Entrevista com Luzia em 18/07/2007. 136 Entrevista com Larissa em 26/07/2008.

66

seja, embora eles casem dentro do sentido da homogamia a noção do “casar entre si”

ajuda na manutenção do sentido de família.

Por outro lado, trazem para as partes envolvidas - famílias e pretendentes -

alguns benefícios. Para ele – o homem -, a garantia de uma rede de vigilância sobre ela

– a mulher – é importante de modo que seu contato com o mundo acabe por se restringir

ao círculo de parentesco dele e dela. Deste modo, foi que pude perceber que as mulheres

que trabalhavam no comércio, ao viajar para fazer compras dificilmente o faziam

sozinhas, mas geralmente em companhia da cunhada ou irmã, o que era diferente para

os homens que quase sempre viajavam sozinhos.

Para ela, a vantagem em acionar o possível laço de parentesco com o marido está

na garantia de extensão de sua rede de apoio, tanto de sentido prático (cuidar dos filhos,

da casa ou da loja), quanto no sentido moral (apoio financeiro – no caso das mulheres

que não trabalham – ou vigilância sobre o comportamento do marido e a valorização

dela diante dele). Neste sentido, a suspeita de uma traição, por exemplo, dele a ela

força-o a voltar ao eixo porque aciona as duas redes de parentesco, dando suporte para

ela diante da situação137

. Para Jardim, “nos sogros a nora pode encontrar não mais a

autoridade dos pais, mas a solidariedade dos pais do marido – que muito eventualmente

podem ser seus tios”138

.

E as famílias o que ganhariam com isso? A meu ver a efetivação do parentesco,

posto que é o casamento entre supostos primos que garante a sobrevivência do

parentesco, e, consequentemente do sentido de família.

Lévi-Strauss139

mostra que o ponto de partida do parentesco é a troca entre os

grupos, onde as mulheres são os principais bens a serem trocados, isto estabelece um

contrato social, ou melhor, uma aliança entre tais grupos. O casamento,

consequentemente, promove a troca de bens e serviços. Embora as teses deste autor

sejam relevantes, é necessário perceber que constrói regras formais nas quais o

indivíduo não se movimenta, as estruturas são dadas, entendidas como invariáveis, são

137 No capítulo seguinte tratarei acerca da quebra dos modelos através das conversas que circulam no

grupo. 138 Jardim, 2000, op. cit. 379. 139 LÉVIS-STRAUSS, 1982, op. cit.

67

os sujeitos que se adequam as estruturas, e não as estruturas aos sujeitos. O modelo é

mais importante do que seus elementos específicos.

Bourdieu140

, por sua vez, parte da ação para o modelo, enquanto Lévi-Strauss vê

o modelo como principal forma de entender a ação. Se a proposta deste último é

construir uma análise objetiva das estruturas de parentesco, a do primeiro é mostrar a

necessidade de fazer-se um caminho relativamente oposto. É necessário analisarmos

estas estruturas como sendo moldadas por estratégias e que só podem ser analisadas por

um olhar subjetivo-objetivo.

Desta forma, são os integrantes dos grupos familiares que irão determinar as

estratégias do jogo que possam garantir a perpetuação do grupo. Os indivíduos se

movimentam no sentido de garantir a permanência de seu grupo no jogo social e as

regras deste jogo somente podem ser entendidas pela regularidade de sua existência.

Assim, são os espaços de sociabilidade frequentados pelas famílias que

oportunizam os possíveis casamentos. Dos casais homogâmicos todos se conheceram

em espaços que eram frequentados comumente por suas famílias

“...Tinha o Comercial (clube), aquelas brincadeiras, as festinhas

nas casas dos parentes cearenses facilitou o contato... Também as nossas famílias já se conheciam...”

141.

“Eu conheci ele no comercial, numa festa que teve lá, depois já vi ele em outras festas e a gente foi paquerando...”

142.

“Ele é amigo do meu irmão, saiam juntos e sempre passava lá

em casa... Temos muitos amigos em comum por causa dos

primos e na orla todo mundo se encontrava ... foi começando”

143.

As sociabilidades geradas pelas redes de amizade e parentesco são espaços

propícios para a escolha dos pretendentes, pois garante a ele as referências sobre as

credenciais da futura namorada/esposa, e a ela, as informações necessárias para que a

140 BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique: La terre et les stratégies matrimoniales. Paris, Ed. de Minuit.,

1980. 141 Entrevista com Marcos em 12/07/2007. 142 Entrevista com Nadir em 24/08/2007. 143 Entrevista com Larissa em 02/08/2008.

68

família aprove o relacionamento. É uma rede articulada que consegue dar conta de

informações sobre as gerações de uma mesma família, buscando informações nos

ascendentes, para traçar perfil de caráter sobre as famílias e seus descendentes. Dessa

forma, em muitos momentos as famílias são adjetivadas pela imagem que circula dela

no seu meio social:

“Os Aribaldes

144 são trabalhadores, todos! Conheci o avô deles

que era primo da minha e sei que são todos assim”145

.

“... quando é Antero é ruim, todos eles são ruim, são de opinião

e ela é do mesmo jeito parece o pai dela todinho”146

.

São esses discursos que privilegiam o casamento homogâmico e que garantem

que se reconheçam em homens e mulheres cearenses adjetivos que não se encontraria

em outro par que não fosse do grupo. A ideia de famílias caracterizadas por adjetivos

faz parte das discussões de Pina Cabral. Segundo o autor, estas marcas são frutos da

personalidade de homens e mulheres que pertenceram a gerações anteriores que

deixaram marcas profundas em seus descendentes147

.

“os valores são diferentes, sim. O cearense tem mais um

propósito de vida, quer dá uma vida melhor, proporcionar um

estudo melhor para os filhos, uma situação melhor para sua família”

148.

“ele nunca deixou faltar nada em casa. No Ceará, muita gente

passou fome, por isso, ele é farto, não tenho preocupação de

faltar comida em casa”149

.

“Ela sempre foi uma boa esposa, tem uma santa paciência

comigo. Nunca vi filho dormir sujo, nem com fome, ela nunca teve preguiça disso. Eu vejo meus vizinhos (paraenses) os filhos

sujos, remelento e a mulher só na calçada conversando... Me

diga se não é diferente?” 150

144 Os nomes das famílias também são fictícios. 145 Anotações de campo em 30/06/2008. 146 Idem 147 PINA-CABAL, op.cit, p.128 148 Entrevista com Júlia em 12/07/2007. 149 Entrevista com Luiza em 28/07/2007. 150 Entrevista com Geraldo em 29/07/2008.

69

Segundo Cancela o estabelecimento de um grande número de casamentos

homogâmicos torna-se uma tendência em contextos migratórios, portanto, a homogamia

aparece como uma tendência consolidada em meios sociais como “estratégia de

manutenção de alianças envolvendo pessoas da mesma raça, origem, pureza de sangue e

riqueza”151

. Tais situações podem ser explicadas pela divisão dos espaços de

sociabilidade, pela convivência de indivíduos parecidos.

Diante de discursos que valorizam tanto o casamento quanto a homogamia, as

famílias adotam estratégias para manter os pretendentes juntos e garantir a realização da

união. Estratégias que garantem a manutenção do namoro passam pela divisão de

sociabilidades entre as famílias. Se antes o campo de relações era aberto para a

circulação no mercado do casamento, após a confirmação do namoro ele se restringe na

tentativa de criar um compromisso entre as famílias dos pretendes, que se esmeram em

iniciá-los nos comportamentos de casal. Neste momento, os fins de semana em

balneários garantem que esta congregação aconteça. Assim, fazer com que ela se sinta

obrigada a servi-lo o almoço, a atar-lhe a rede, a dar-lhe assistência, e que ele a

acompanhe aonde queira ir, que sirva a carne do churrasco ou preocupe-se em levar-lhe

o refrigerante vão alongando o namoro e desenhando o futuro casamento com as

bênçãos familiares.

Decidido o matrimônio necessita-se pensar maneiras de dar suporte ao casal,

formas que viabilizem o seu sustento. Neste momento, o diálogo ocorre mais entre as

famílias do que entre os pretendentes. Dos móveis da casa ao sustento do casal tudo é

garantido pela rede familiar,

“foi o irmão dele que deu tudo pra gente, foi ele que mobiliou a casa, alugou ela... ele fez tudo pela gente... o Marcos já

trabalhava com ele na época”152

.

“Cada um foi dando uma coisa, os pais dele deram a casa e alguns móveis e a minha família também”

153.

Os móveis, o enxoval, a festa são engendrados por uma rede que estipula valor

ao parentesco porque é dele que chegam os melhores presentes. Deles é a

151 CANCELA, 2006, p. 155. 152 Entrevista com Marcos em 12/07/2007. 153 Anotações de campo em 23/12/2008.

70

responsabilidade de organizar a vida do casal, como a de Larissa e Renan. Dado o largo

tempo de namoro, seus pais montaram loja para eles, haja vista que “eles já tem que

pensar em casamento”154

.

Embora o casamento homogâmico seja o modelo esperado, desejado, ansiado

pelo grupo, ele não constitui uma regra absoluta. Há a possibilidade de casamento com

pretendentes que não sejam forjados pela identidade do grupo, ou seja, os paraenses.

Então, como pensar essa relação se todo o discurso e modelo perpetrado envolvem a

oposição necessária aos elementos valorativos dos últimos? Paraenses que resolvam

casar com cearenses (ou vice-versa) têm que negociar de forma mais acirrada suas

qualidades, mostrando que elas fogem dos aspectos da “preguiça” e da “infidelidade” a

que em geral são taxados.

Cearenses que se encontram nesta condição fizeram opções que, em algum

momento de suas vidas, os retiraram do convívio direto com o grupo ou o colocaram em

outros ambientes de sociabilidades. Como Marília e Leonardo, ele cearense, passou

grande parte de sua vida estudando em Belém, e ela paraense. Conheceram-se quando

ele, ao voltar à cidade para trabalhar, teve oportunidade de atendê-la.

“Fiz um levantamento da vida dela antes de pedi-la em namoro.

Queria saber se ela era „moça de família‟”155

.

O namoro se estendeu ao casamento com a necessidade de Marília negociar sua

relação com a família dele constantemente. Ela é vigiada nas formas mais sutis como a

organização da casa, o cuidado do filho, o fato de não trabalhar, ao seu comportamento

diante do grupo. Quando em algum momento desliza, a mãe dele que manifesta o seu

descontentamento: “Esse povo é assim mesmo!”

Retirar a peja de ser paraense é uma negociação delicada, que, nunca desaparece

definitivamente, mas que é omitida quando integrada ao grupo. Para as mulheres que

casam com homens paraenses ou não-cearenses essa omissão é garantida desde que ele

154 Nair mãe de Larissa. Anotações de campo em 23/12/2008. 155 Entrevista com Leonardo em 27/06/2007.

71

possua condição econômica maior que a dela, ou, que ela esteja em idade tardia para o

casamento156

. O que importa nessa negociação é casar!

E quem não casa? Quem não cumpre os modelos estipulados. Como fica? Como

a relação entre as gerações garantem a perpetuação da identidade e de um modelo de

casamento? Questões no capítulo a seguir.

156 A mulher que chega aos trinta anos e não casou é cobrada pelo grupo para que isso aconteça. Antes

disso, ela passa pela socialização dentro do grupo na busca do pretendente, esgotadas as possibilidades,

abre-se o caminho para os de fora.

72

3. No embalo da rede tudo é diferente: ditos e contraditos

Ver, Ouvir, Fofocar,

Como é fácil imaginar

O que ele vive fazendo!

Também o que posso ver de mim

Sem meu espelho que é o outro?

(José Angel Gaiarça)

Neste capítulo discutirei sobre a desconstrução dos discursos legitimados pelo

grupo. Pra tanto, se faz necessário identificar e mapear um sistema de comunicação

indireto que da mesma forma que constrói recria o discurso a partir do aprendizado de

valores importantes aos cearenses. Assim, a fofoca comunica as imperfeições e reforça

valores ao longo das gerações. Interessa, ainda, discutir as relações que se estabelecem

entre gerações e seus diferentes processos de definição.

3.1. “Tu nem sabe...”: a fofoca como fonte de informação

Nos capítulos anteriores foi possível perceber como os cearenses constroem

visões sobre si e sobre valores que movimentam o grupo - tais como família, casamento

e identidade – pensados em oposição à ausência de valores dos paraenses. Discursos

que produzem sentidos hegemônicos não são facilmente desconstruídos, à medida que

suas distorções e matizações não são explícitas, circulam na sinuosidade das falas, na

angústia dos silêncios, nos sussurros ao ouvido.

Respostas que não consegui através de minhas perguntas, procurei com minha

audição, escutando os murmúrios, as conversas em tom mais baixo, o que se queria falar

e não se podia ouvir, o que nem todos falavam, mas todos ouviam falar. Assim, a fofoca

surgiu na etnografia como uma fonte de informação, como informante, como uma

analista exigente dos discursos que se proferiam rebatendo afirmativas e criando

negações para os modelos apresentados.

Desta forma, por se tratar de informações que ninguém clamava explicitamente e

que, muitas vezes, ofendiam a pessoa de quem se tratava, e mais, colocava em risco

quem professava, tomei por metodologia não indicar as fontes de informação, como

73

também, não indicar de quem se trata a informação. Tratarei, por ora, discursos

generalizados, já que o objetivo consiste em perceber a produção de um discurso que

conflita com as falas proferidas, porém caminha de forma paralela.

Assim, entendo por fofoca um conjunto de “informações mais ou menos

depreciativas sobre terceiros, transmitidas por duas ou mais pessoas umas as outras”157

,

ou seja, “um relato de fatos reais ou imaginados sobre o comportamento alheio”158

.

Fofocas são histórias de interesse pessoal, posto que versam sobre a vida ou integridade

das pessoas do grupo e representam a integração a ele já que “não se faz fofocas sobre

estranhos, pois a estes não se impõem as mesmas normas”159

.

Os relatos sobre a vida alheia necessitam de uma teia bem articulada que possa

fazê-lo circular. Este emaranhado, nem sempre lógico, garante-se pela interação nos

espaços de sociabilidades, pelo intenso convívio das pessoas do grupo e pela integração

das gerações. Loja, casa, balneários, passeios entre famílias, festas, aniversários ou o

clube são espaços para articulação, comentário, notícias sobre a vida de alguém, já que

permitem que as notícias mais interessantes circulem e se espalhem.

A vida de todos é passível de comentários, mas, em geral, eles envolvem pessoas

com notoriedade no grupo. Fofocas sobre pessoas com status são garantia de circulação

maior da notícia. Aquelas que tratam da família, da briga de casais, ou dos deslizes dos

filhos. Assim, as notícias circulam em dois grupos de informações: de um lado as

depreciativas, que dizem respeito à falta do cumprimento a norma do grupo, à quebra de

modelos, à faltas cometidas por terceiros; de outro lado, as fofocas elogiosas que são

responsáveis por transmitir os êxitos familiares, as conquistas profissionais, as virtudes

de alguém (no caso da busca por pretendentes)160

.

Outro aspecto importante da fofoca é como se fala dela. Uma pessoa fofoqueira

não é bem vista, mas a circulação da fofoca é esperada. Porém, este limite mostra-se um

tanto quanto maleável. A principal característica de um bom “noticiador” consiste em

mostrar a não intencionalidade em falar do assunto, mas deixá-lo fluir na conversa.

157 ELIAS, op. cit. p. 121 158 FONSECA, op. cit. p. 41 159 Idem 160 Elias adota esta classificação ao tratar do tema na comunidade de Wiinston Parva. ELIAS, op.cit.

74

Algumas expressões denunciam que a notícia corre a boca miúda: “Tu nem sabe..”;

“Hein! Fulano...”; “Me contaram...”. Ficar atento ao surgimento dessas expressões

permite compreender se a informação circulava por meios lícitos ou ilícitos.

Os fatos geradores da fofoca são diversificados e abrangem várias áreas de

relações sociais. As relações familiares são intensamente alvo das fofocas,

especialmente, as notícias que envolvem a disputa por herança, quando do falecimento

dos genitores, geram grande especulação. A suposição de uma disputa acerca da herança

e a desintegração da união familiar tem sido discussões constantes, posto que muitos

dos membros da primeira geração estejam falecendo. Em geral, a suposta união familiar

dos cearenses não tem conseguido superar a disputa por bens161

. Intriga entre irmãos,

disputa por pontos comerciais ou imóveis são temas de conversas que giram sobre a

“falta de respeito com a morte do pai”. Neste sentido as fofocas são responsáveis pela

desconstrução do modelo.

Como a fofoca pretende dar conta da vida alheia, notícias de traições conjugais

que contrastam as positivações do casamento são uma constante no circuito. Casos com

empregadas, com pessoas de fora do grupo, com pessoas de dentro do grupo, casos

pequenos, casos prolongados, casos explícitos, casos escondidos, filhos fora do

casamento borram as imagens idealizadoras da segurança de uma união perfeita pelo

casamento homogâmico162

. A imagem do homem que trai é pública no meio, porém a

separação não é algo aconselhado para as mulheres. Os casos de mulheres que traem o

marido são em número menor, mas acontecem e as separações só são cobradas quando

o caso se torna público o suficiente, dando às fofocas dados reais para se tornar uma

conversa séria163

.

161 Piscitelli mostra que a disputa pelo patrimônio familiar gera intriga entre os herdeiros de grupo

familiares brasileiros. Aqui, a disputa não é gerada sobre um negócio específico, mas sim, sobre o patrimônio construído ao longo dos anos. PISCITELLI, op.cit. 162 A ideia de que pares homogâmicos, além de preferenciais, trazem consigo o ideário de um casamento

perfeito pode ser percebido nas discussões de Jardim e Peters. Cf: JARDIM, Denise Fagundes. „As

mulheres voam com seus maridos”: a experiência da diáspora palestina e as relações de gênero. In:

Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, n. 31, jun-jan 2009, pp. 189-217. PETERS, Roberta. Imigrantes

Palestinos, famílias árabes: um estudo antropológico sobre a recriação da tradição a partir da festa e

rituais de casamento. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social/PPGAS), Universidade Federal do

Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. 163 Para Malinowski a sociedade não funciona, necessariamente, a partir das normas que a regem, pois,

seus membros encontram meios de burlá-las, todavia, quando o fato se torna público se torna necessário

acionar mecanismos sociais que possam restaurar a ordem social. MALINOWSKI. Bronislaw. Crime e

75

As mulheres são em geral criticadas pela preguiça em cuidar dos filhos, pela

falta de controle sobre eles, pelos gastos avultados e, em certa medida, por cerrarem os

olhos as traições do marido. As famílias tentam manter controle sobre os “deslizes” de

seus membros, especialmente, nos que envolvem a relação entre uma geração e outra164

.

Na segunda geração, muitos dos segredos envolvem a iniciação sexual de ambos

os sexos. Os homens tentam omitir filhos que tiveram com outras mulheres e as

mulheres o fato de não terem casado virgem, ou ainda, terem casado grávidas. Essas

condutas omissas espalham-se como um conhecimento silenciado, guardado,

engavetado, mas não arquivado, ele volta à tona quando os comportamentos dos filhos

tendem imitar o dos pais. Neste confronto de gerações, os mais remotos segredos

voltam revestidos de comentários sobre a repetição de um deslize.

A fofoca, na verdade, dá conta de manter os padrões sociais de homens e

mulheres nos contextos familiares. Para Sarti165

os papéis são definidos nos espaços de

atuação de cada gênero dentro da família. Já para Fonseca,166

a fofoca reproduz e faz

circular a noção de reputação, noticiando os fatos ao mesmo tempo em que cobra o

enquadramento nos moldes da sociedade ou do grupo social em que se convive.

Não vejo a fofoca como um atributo feminino, no entanto, o fato de estar,

naquele momento, mais próxima delas foi por onde obtive a maioria das informações.

Porém, a partir da observação dos jovens da terceira geração foi possível perceber que

os homens também possuem um sistema de informação, tanto sobre outros homens,

quanto sobre as mulheres de sua geração, utilizado para saber sobre pretendentes em

potencial167

.

A fofoca não é algo que se dirige diretamente, mas converte-se na responsável

pela imagem da reputação de homens e mulheres podendo valorizar e depreciar o passe

dos pretendentes. Por mais que a fofoca alcance uma extensa rede não é capaz, neste

costume na sociedade selvagem. Brasília: Universidade Federal de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial

do Estado, 2003. 164 ELIAS, op.cit e FONSECA, 2004, op.cit. 165 SARTI, op.cit. 166 FONSECA, 2004, op. cit. p. 47 167 Tanto quanto Elias e Fonseca, Malinowisk percebe a fofoca como atributo feminino. MALINOWISK,

Bronislaw. A vida sexual dos selvagens. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983.

76

meio, de criar rivalidade entre famílias, haja vista que as notícias circulam de forma

múltipla e, quase sempre, não são de conhecimento da pessoa que é alvo da fofoca.

No entanto, “é uma forca niveladora, “um instrumento dos que se sentem

inferiores e que só podem realçar seu status rebaixando os outros”. Sendo assim, ela

funciona como um código alternativo de comportamento, um código moral, de interação

social que adota dinâmicas para garantir seu sentido168

.

3.2. Rapadura com açaí: pensando as gerações

O desenvolvimento de trabalhos voltados ao tema da imigração/migração tem

atentado a percebê-las não somente como um fato social que cria um movimento

dinâmico e constante entre origem e destino, mas também, como fatos que criam

enraizamento nos lugares de acolhida e, consequentemente, a expansão da permanência

de sujeitos sociais a partir de gerações posteriores169

.

Tratar do tema de gerações entre os cearenses surge da necessidade de perceber

a forma que estes sujeitos articulavam valores relacionados à identidade, à família e ao

casamento com o passar do tempo. Na verdade, pensar o desenvolvimento deste tópico

surgiu de minha experiência ao tentar analisar como as gerações circulavam tais valores,

ou melhor, como eles estavam inscritos nas vivências destas pessoas, além, dos

conflitos e diferenças surgidos da interação geracional.

A categoria geração se constrói em oposição à medida que estudar ou pesquisar

gerações, ainda que se escolha como objeto central uma geração ou categoria

geracional, se apresenta insuficiente à perspectiva sem a referência às relações com as

outras gerações e às condições sociais em que elas estão se dando. As gerações, como as

classes sociais, não se encontram isoladamente, mas em referência mútua, contraposição

168 FONSECA, 2004, p.50-51. 169 Representando tais preocupações estão presentes nos textos de JARDIM, Denise Fagundes.

“Identidade étnica e recriação das tradições entre os migrantes de origem palestina no extremo sul do

Brasil”. Campos 2, 2002; VITAR, op. cit e MACHADO, Fernando Luís. MATIAS, Ana Raquel. Jovens

descendentes de imigrantes nas sociedades de acolhimento: linhas de identificação sociológica. In:

http://loki.iscte.pt:8080/dspace/handle/10071/176?mode=full

77

e até oposição umas às outras: uma geração é, ou torna-se, aquilo que o jogo de relações

com as outras permite170

.

Para tal propósito os interlocutores foram divididos em três gerações a partir do

processo migratório. Assim sendo, a primeira geração se formaria pelos próprios

migrantes vindos do Ceará entre os anos de 1951 e 1958; a segunda geração

compreende os filhos desses migrantes nascidos ou não no Ceará, mas são frutos deste

processo de deslocamento; por fim, a terceira geração consiste nos filhos dos filhos dos

primeiros migrantes nascidos no Estado, ou seja, netos da primeira geração.

Vale ressaltar que, neste caso, pensar geração não consiste em estabelecer

critérios de idade, mas perceber troca de experiências e afinidades que constituem

escalas geracionais a partir do processo migratório. Neste sentido, importa entender que

os indivíduos que vivenciam a mesma contemporaneidade experimentam as mesmas

experiências culturais que os moldam, decorrente, portanto, de sua situação político-

social. São, desta forma, pertencentes a uma mesma geração porque suas influências são

unitárias. A contemporaneidade atesta a disseminação de influências similares171

.

Faz-se necessário aclarar que as gerações, por ora tratadas, não são percebidas

como estamentos, mas como experiências, ou seja, um conjunto de experiências vividas

que une pessoas em suas relações sociais. Desta maneira, há de se levar em

consideração que o movimento de entrada em patamares geracionais depende, muito

mais, da aquisição de uma maturidade do que da classificação etária172

.

Nesse sentido, além de pensar a geração a partir do ponto de origem, ou seja, em

decorrência do processo migratório, é preciso pensar, também, no aspecto que a

interação geracional assume no meio das relações familiares, neste momento, há de

considerar o conceito de geração de forma ainda mais elástica173

.

170 BRITO DA MOTTA, Alda. O par relutante. Trabalho apresentado nº13 CISO: Encontro de Ciências

Sociais do Norte e Nordeste em Maceió, 3 a 6 de setembro, 2007.Cd ROM. 171 MANNHEIN, Karl. El problema de las geraciones. In:

http://www.reis.cis.es/REISWeb/PDF/REIS_071_072_07.pdf 172 DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do

envelhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 1999. 173 Idem

78

Ao tratar, neste trabalho, sobre família e casamento, ou melhor, sobre como

valores relacionados a estas questões permanecem no grupo mesmo que um processo de

fixação na cidade já se encontre estabelecido, fez com que me sentisse impelida a mirar

os detalhes de fotografias borradas pelo tempo, ou mesmo pelas relações, e atentar para

as dinâmicas que obedeciam à lógica do casamento e da hierarquia familiar.

Assim, foi necessário pensar geração a partir de dois sentidos. De um lado

relacionada e ativada pelo processo migratório responsável por conectar valores e

englobar as pessoas em processos históricos comuns, ou melhor, estar mais próximo ou

mais distante de um dado acontecimento; por outro lado, pertencer a uma geração está

relacionado a viver/estar em uma condição, ou seja, compartilhar determinadas

experiências relacionadas ao casamento e constituição de unidade familiar. Neste último

sentido, o que se torna pertinente consiste em vivenciar uma experiência e, desta forma,

acaba por unir pessoas de diferentes gerações.

Partindo do processo migratório pode-se entender a primeira geração como

aqueles que a partir do deslocamento possuíam ou formaram unidades domésticas.

Neste grupo, estão casais que vieram com filhos - como Dona Margarida e Dona Tereza

– ou homens solteiros que casaram ao longo do processo de sua fixação na cidade, caso

de Seu Antonio e Seu Damião174

.

“Eu vim trabalhar, vim solteiro, quando consegui algum trocado fui no Ceará para casar. Ela era moça de família, não estudava e

ficava em casa ... Casei e nós viemo pra cá, porque aqui eu já

tinha meus negócio”175

.

A decisão de migrar aparece, nesta geração, como uma vontade masculina. As

mulheres figuraram como acompanhantes de seus conjugues176

. O trabalho no comércio

é característico para os homens, com o início da atividade de mascate. A maioria das

narrativas mostra difíceis condições de vida, número elevado de filhos e, por parte das

174 JARDIM, 2009, op.cit. 175 Seu Antônio, anotações de campo em 26/08/2007. 176 Visão da migração como uma experiência masculina é criticada por Barral, segundo ela, os estudos

tem privilegiado o processo migratório como uma experiência de homens, em geral solteiros, a presença

feminina quando aparece está relacionada a uma decisão do marido. BARRAL. Ana Inés Mallimaci.

“Nuevas miradas. Aportes de la perspectiva de género al estudo de los fenómenos migratórios. In:

COHEN, Nestor y MERA, Carolina (comp). Relaciones intercuturales: experiencias y representación

social de los migrantes. Buenos Aires: EA, s/d. pp. 115-138

79

mulheres, histórias atreladas à perda deles. Desta geração pertencem narrativas da

migração, o domínio da memória sobre a chegada do grupo ou o que pode figurar como

memória coletiva.

Para esta geração, o casamento era considerado a finalidade única, quem veio

solteiro, logo providenciou casar. As relações entre as famílias garantiam os espaços de

sociabilidade para as mulheres. As narrativas de fixação envolvem um fortalecimento

dos laços familiares que englobam parentes tanto em Santarém, quanto no Ceará. As

mulheres são donas de casa, o trabalho fora é exclusividade dos homens e o controle do

orçamento doméstico também. Família e conterraneidade se misturam, embora tenham

domínio das árvores de parentesco.

Já a segunda geração compostas pelos filhos de migrantes, uns vieram com

pouca idade durante a migração e outros nasceram na cidade, cresceu em meio à

diferenciação com os paraenses. Por isso, apresenta em suas narrativas uma segregação

de espaços de sociabilidade. O casamento também é um fim, porém, não se discute a

possibilidade do casamento fora da homogamia. O trabalho é comum para homens e

mulheres. A partir desta geração, as mulheres passam a trabalhar fora do ambiente

doméstico, isso ocorre muito em função da necessidade de ajudar no sustento da casa

tanto antes, quanto depois do casamento. A busca por novas oportunidades de trabalho,

ou mesmo de possuir seu próprio negócio, movimenta esta geração.

“Depois de uns anos de casado nós fomos para Castanhal, trabalhar com o irmão dele”

177.

“Morei em Itaituba, no garimpo e em Bragança, tudo por causa

de trabalho”178

.

“Nós já moramos em outros lugares para tentar a vida, sem

contar as mudanças de bairro. Basta aparecer a oportunidade que nós estamos lá”

179.

Na maior parte dos casos o casamento implica uma migração em busca de novas

oportunidades de trabalho, mas também, requer o retorno para Santarém. Na

escolaridade possuem, quando muito, o nível médio. No entanto, empenham-se na

177 Entrevista com Júlia em 12/07/2007. 178 Entrevista com Ana em 02/08/2008. 179 Entrevista com João em 08/07/2007.

80

formação superior dos filhos. Para esta geração, o casamento exige que as relações

sociais e de sociabilidade se restrinjam a família. Percebem diferença entre a família

cearense e a família paraense, atribuem isso a educação recebida, tal diferenciação

estaria no processo de educação de homens e mulheres e nos valores que representam.

Este processo pedagógico seria responsável pelo “êxito” das relações conjugais

garantindo identidade ao grupo.

Tanto homens, quanto mulheres trabalham no comércio. Em geral, cada qual

possui sua loja. Educam ou educaram seus filhos na diferença entre os paraenses e

cearenses, mas buscam a integração deles na sociedade.

Na terceira geração o conflito de identidade aparece evidente, pois, entendem a

existência dele, as bases de sua diferença, mas buscam mecanismos para acioná-lo.

Nesta geração prevalecem o sentimento de pertencimento a uma cidade – Santarém -,

porém, a identificação com o grupo – cearense180

. A busca pela formação em nível

superior faz parte da diferenciação geracional, em muitos casos, esses são os primeiros

membros da família a ingressarem em uma universidade para conseguir a titulação dada

pela educação superior.

A relação dos pais com filhos na escalada pela formação superior cresce

reforçada pela ideia deles fincarem os pés como profissionais liberais181

, obrigando

alguns a saírem da cidade, buscando vagas nas universidades de outros centros urbanos

- como Belém, Manaus, Fortaleza ou São Paulo. Beatriz Vitar ao estudar imigrantes

árabes na Argentina mostra que a relação entre as gerações pode ser percebida a partir

do processo de ascensão socioeconômica dos mesmos. Segundo a autora, a fixação no

país de acolhida somada a ascensão econômica torna a educação como objetivo final.

Assim, a percepção de que o processo de estabilização deles mostra a escolaridade

como um processo crescente182

.

180 Processos de identificação são discutidos por HALL, 2003, op.cit e RODRIGUES, 2008, op.cit. 181 O trabalho empreendido por migrantes para garantir que seus filhos alcancem formação superior foi

discutido por Tuzzi e Cancela mostra que a educação em nível superior tornou-se um importante capital

para as negociações de casamento. Cf: TRUZZI, 1992, op. cit; CANCELA, 2006, op.cit. 182 VITAR, op. cit, p. 139

81

No caso dos cearenses de terceira geração a saída de Santarém - quando saem,

posto que também há opção de cursar a universidade nas instituições de nível superior

existentes no município - para concluir estudos de nível superior ou pós-graduação é

acompanhada pelo retorno, muitas vezes, para trabalhar na região. Embora as conquistas

do tipo sejam crescentes entre os que compõem esta geração, elas não significam o

ingresso no mercado de trabalho a partir de profissões liberais. Crescem os casos de

pessoas que mesmo formadas – advogados, professores, enfermeiras, fisioterapeutas – a

única fonte de renda encontra-se na criação de um estabelecimento comercial.

Larissa e Renan são exemplos desta parte da terceira geração que mesmo com o

nível superior, ela no último semestre administração e ele em direito concluído, fizeram

a opção de montar seu negócio, recém-inaugurado: uma loja de confecções populares.

Ele explica,

“Fiz isso minha vida toda [vender produtos], meu avô tinha

comércio, meu pai também tinha. Eu sei que a faculdade é importante, mas isso é o que sei fazer, é o que gosto de

fazer”183

.

O fato de a terceira geração pertencer à cidade, embora se reconheça com uma

identidade própria, tornou-a uma geração integradora. Circula tanto entre o grupo,

quanto fora dele, possuindo um sentimento pluralista. Assim, o orgulho pelas raízes

étnicas manifestado pelos netos de imigrantes, se apresenta como um fenômeno da

valoração positiva da identidade do grupo. Segundo Vitar, a partir desta geração

podemos falar de uma “etnicidade herdada”, cujos conteúdos referem-se a valores

incorporados a ideia de uma origem comum que cria a diferenciação, no entanto, não

impossibilita a circulação na sociedade184

.

Mas a diferença entre os pais migrantes e os seus filhos não é apenas a da

relação com o local de origem e eventual regresso a ele. As maiores diferenças estão na

relação de uns e outros com o local de acolhimento. São diferenças de trajeto e

socialização. Os filhos nascem e/ou crescem nesta cidade e por via de outros espaços de

socialização, das sociabilidades infantis e juvenis, dos consumos materiais e culturais,

183 Entrevista com Renan em 02/08/2008. 184VITAR, op. cit, p. 139

82

dos padrões de valores e dos estilos de vida, têm experiências sociais e expectativas

muito diferentes das dos pais, que tiveram a sua socialização primária e várias

socializações secundárias no contexto da sociedade de origem. É claro que não se

podem ver apenas os contrastes de socialização e experiência social.

Mas, mesmo essas ligações, cuja intensidade varia de população para população,

não são ligações diretas à chamada cultura de origem, mas sim a versão transformada

desta cultura, consequência da adaptação progressiva ao contexto migratório, que torna

os próprios migrantes diferentes do que eram antes de migrarem. Secundariamente, as

noções de “segunda geração de migrantes” ou “migrantes de segunda geração” podem

ser criticadas por transportarem consigo um entendimento pouco criterioso do conceito

de geração. É certo que entre os imigrantes e os seus filhos, tal como entre quaisquer

jovens e os respectivos pais e mães, há descontinuidades intergeracionais de cultura e

relações sociais.

Ao determinar como metodologia de trabalho a interlocução com cearenses de

três gerações distintas, julgava que, de certa forma, a classificação geracional a partir da

origem seria responsável por acionar os ganchos de semelhanças e diferenças entre as

gerações. Todavia, as conversas, participações em eventos familiares, a observação de

todo o contexto e da minha própria condição na pesquisa para os interlocutores me

obrigou a atentar ao fato que, ao se tratar de casamento e relações familiares, os

interlocutores negociavam suas relações a partir da experiência do casamento, criando

uma hierarquia outra onde as opiniões de membros de gerações anteriores, conforme

pensadas anteriormente, se diferiam e se aproximavam a partir da posição ocupada na

estrutura familiar.

Tomo agora como ponto de partida não mais a origem, mas a posição que as

pessoas podem ocupar no contexto familiar e que podem ser percebidas de diferentes

maneiras. Em geral, as unidades familiares giram em torno da casa dos genitores

(matriarcas ou patriarcas quando viúvos), neste sentido, todos os membros da família

passam necessariamente por lá, a ausência de um represente direto da migração pode ser

substituído pelo filho (ou filha) mais velho que passa a guardar a responsabilidade de

agregar os membros da família em torno da casa da mãe ou do pai. Além disso, nele

está a autoridade para gerir os “problemas familiares”. O filho mais velho tem um papel

83

importante neste contexto, como a grande parte dos informantes são viúvos ou viúvas,

eles passam a representar a figura masculina mais importante, nada deve ser feito antes

de consultá-los.

Dona Tereza, 78 anos, viúva há vinte e dois a época da pesquisa, divide a

responsabilidade de gerir a família com o filho Francisco. Após a morte do pai

Francisco, já casado, assumiu a responsabilidade do sustento da casa de sua mãe e do

encaminhamento da família. A presença de Francisco é emblemática nas reuniões

familiares, nada se faz sem que antes ele esteja presente. As experiências de Francisco

se aproximam mais da mãe que dos irmãos. Como afirma Dona Tereza,

“Ele é meu esteio, posso contar com ele para tudo que eu

precisar, os outros [filhos] sabem disso, ninguém faz nada sem consultar ele antes... o Francisco já passou por dificuldade na

vida, já morou em outros canto, como eu e o pai dele, por isso

tem experiência para lidar com a família”185

.

Dona Tereza aproxima a experiência do filho a sua porque o reconhece no

mesmo estágio que o seu: a ausência do marido. O que possibilitou ao filho que se

aproximasse sua experiência às experiências paternas, colocando-o em outra escala das

relações sociais. Assim, Francisco mesmo membro da segunda geração, aproxima suas

opiniões as da primeira geração, tentando, a partir de sua narrativa, aproximar

temporalidade.

“Acho importante casar com cearense sim, porque a gente já

tem um conhecimento da família da pessoa, já sabe... Eu sofri muito para manter minha família, por isso sempre quis saber

com eles [os irmãos e irmãs] estavam namorando, naquele

tempo a gente tinha mais cuidado”186

. (grifo meu)

“No meu tempo a gente conhecia as famílias e sabia que tudo tava em casa, na família”

187. (grifo meu)

Para Myriam Lins de Barros188

as idades deixam de ser entendidas como

referência cronológica para a inserção do indivíduo e passam a ser compreendidas, na

185 Entrevista com Dona Tereza em 15/07/2008. 186 Entrevista com Dona Tereza em 15/07/2008. 187 Entrevista com Francisco em 25/07/2008. 188 LINS DE BARROS, Myriam. (org.) Família e Gerações. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006.

84

contemporaneidade, como estilos de vida adotados definindo fronteiras entre

indivíduos. Assim, o estágio de maturidade que possibilita a adesão às gerações, é,

portanto, diferente da data de nascimento ou mesmo ao patamar ocupado na rede

família. A troca de experiências comuns e o reconhecimento de sua semelhança

autorizam as pessoas a mover-se segundo estágio de maturidade189

. Assim, a

temporalidade e o reconhecimento de experiências comuns são percebidos pela forma

como tratam o “seu tempo” marcando com a diferença das coisas pretéritas em relação à

pretensa modernidade do presente190

.

Fora esta distribuição, os outros membros são recolocados em casados – com e

sem filhos – e solteiros. Esta última distribuição tem como objetivo não uma

classificação etária, mas de condição de experiência social e inserção em novos espaços

de sociabilidade e conversa. Embora reconheça que ocorra diversidade, este desenho

passa a desenhar opiniões que aproximam gerações. Neste contexto, as opiniões sobre

casamento, homogamia e família circulam.

Nesta perspectiva é possível compreender que no agrupamento reside a

possibilidade de compreender como o casamento é responsável pelo alocamento de

pessoas. Bia, 18 anos e recém-casada, parece estar se habituando a esta mudança de

status na estrutura familiar,

“Quero estar com as meninas [suas primas], mas a mamãe vive

me chamando para estar com as tias”191

.

O casamento funciona como divisor de águas, posto que proporciona e restringe

o acesso às conversas, aos espaços de sociabilidade. Ao mesmo tempo, exige a iniciação

em novas normas de comportamento diante do grupo. Cancela mostra que o casamento

marca a mudança de status, mas “igualmente significava perda e mudança, não apenas

de status social, mas também de lugar, de relações de amizade e lembranças”192

.

189 Debert, op.cit, p.46 190 BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: Lembranças de Velho. São Paulo: T. A. Queiroz: Universidade de São Paulo, 1987. 191 Anotações de campo em 28/01/2009. 192 CANCELA, Cristina Donza. “Destino cor-de-rosa, tensão e escolhas: os significados do casamento em

uma capital amazônica (Belém, 1870-1920)”. In: cadernos pagu (30), janeiro-junho de 2008:301-328.

85

Neste sentido, quem não mudou de status vive a margem deste processo de

socialização, foi este o problema que encontrei ao estudar as relações de casamento,

visto que desejava adentrar em assuntos que pelo grupo não me eram permitidos. Este

divisor de águas delimita e determina a relação entre gerações tanto para homens,

quanto para mulheres.

Vale ressaltar, que embora não tenha sido o foco da pesquisa, existe um

considerável número de pessoas que não se enquadram na perspectiva do grupo. Trato

aqui do caso, em especial, das mulheres de segunda geração que não casaram - as

“moças velhas”. Por mais que a idade permita a interação com as mulheres mais velhas,

o fato de não terem casado as obriga a ficar no nível das jovens solteiras, quando, muito

podem participar das conversas relacionadas aos filhos, já que grande parte delas passou

a ser responsável pelo cuidado com o(s) sobrinho(s)193

.

Todavia, mesmo essas re-classificações, não eliminam as diferenças geracionais

que se embatem em um jogo de diferenças e identificação complementares. Por um

lado, os pais da segunda geração questionam a autenticidade da identidade dos filhos

“É! Eles são cearenses, mas são mais paraenses porque comem tacacá, açaí... Viveram aqui o tempo todo.”

194

Por outro lado, a terceira geração aciona mecanismos de identidade que justifiquem seu

reconhecimento

“Nasci no Pará, mas sou mesmo é cearense porque o nosso jeito

é diferente, quem é paraense não faz o que eu faço, nem gosta do que eu gosto, por exemplo, o jeito que a gente é em família...

somos muito unidos.”195

No entanto, este conflito de opiniões não elimina a necessidade de fazer circular a

memória da migração, os valores positivados pelo grupo que são atribuídos aos

membros de primeira geração e através deles passam a ser visualizados.

193 Outro tema bastante complicado dentro do grupo é a homossexualidade, nestes casos, os comentários

surgem em tons pejorativos e de fofoca depreciativa. Pude perceber que, nestes casos, muitas pessoas

passaram a viver fora da cidade. 194 Entrevista com João em 08/07/2007. 195 Entrevista com Larissa em 02/08/2008.

86

A ideia de uma memória que circula, de valores que se estabelecem e interagem

com as gerações somente pode ser percebida ao analisar o fato de que as narrativas

empreendidas por todos estes indivíduos são parte de uma dimensão da memória e, esta

por sua vez, é capaz de dar ao indivíduo o seu lugar na sociedade. Fazer com que a

terceira geração tenha e cultive todo o sentido de ser cearense dá a esta

autoidentificação, um sentido de um legado, de um valor incorporado. Para Rodrigues,

este processo envolve, “um sentimento de pertencimento, de fazer parte de uma história,

que, uma vez criada, tal como aparece no mito de origem, é contada e recontada através

de múltiplos discursos produzidos dentro e fora através dos quais os membros se

constroem como sujeitos participantes.”196

196 Rodrigues, op. cit. pp. 192-193

87

Considerações finais

Menos do que sugerir conclusões, este trabalho se propôs trazer à luz reflexões

acerca das relações familiares e de casamento entre um grupo de pessoas percebido por

seu tempo e espaço. Ou seja, o grupo originado do processo migratório de cearenses

para a cidade de Santarém, ocorrido na década de 50. Por isso, torna-se necessário

problematizar a categoria migrante e mostrar sua reconstrução e ressignificação para os

cearenses. Atentar aos aspectos que fazem pessoas definir sua identidade e produzir

diferenciações somente pode ser entendido diante da análise do aspecto conflitivo da

relação e interação entre grupos - nesse caso cearenses e paraenses. Desta forma, tratar

de identidade(s) requer a percepção de valores que são exaltados, produzidos,

reconhecidos, rechaçados, depreciados e transmitidos no embate entre etnicidade(s)

produzidas cotidianamente.

A percepção que migrantes cearenses e as suas gerações posteriores fazem do

processo de deslocamento, mostra que a experiência faz parte da memória produzida

pelo grupo. Esta memória circulante, por sua vez, aliada as vivências da fixação na

cidade tornou estes sujeitos e suas histórias produtores de uma identidade baseada nas

vivências do grupo.

Assim, não posso desconsiderar que as múltiplas narrativas do deslocamento

estão atreladas a um conjunto de redes sociais cujo fim último pretende as conexões de

parentesco, fazendo com que o lugar de destino seja percebido a partir do movimento

das redes sociais. Além disso, as narrativas do deslocamento são construídas pela lógica

do sofrimento compensado no êxito atual, que permeiam as gerações e constroem

pontes que se possam transitar e estas pontes unem lugares e pessoas.

O tema da diferenciação entre “estabelecidos/paraenses” e

“outsiders/cearenses”197

permite entender a força que possui a origem usada em jogos

identitários, cujo esforço reside no reconhecimento do laço de parentesco. Neste

contexto, a referência valorada e positivada família, em seu sentido extenso, consiste em

197 Elias, op. cit.

88

um fator não apenas de diferenciação, pois guarda, também, a responsabilidade de

estabelecer o status e articular redes sociais no grupo.

Pensando as considerações de Hall198

é possível entender como identidades são

construídas dentro e não fora do discurso. Precisamos compreendê-las como produzidas

em locais históricos e institucionais específicos. Além disso, elas emergem no interior

do jogo de modalidades específicas de poder e se estabelecem como o produto da

marcação da diferença.

Associado, vinculado ao processo indentitário encontra-se a compreensão ao

sentido de família, que passa, necessariamente, pela definição de uma família extensa

articulada em função dos laços de solidariedade sobre o domínio dos mais velhos. O

sentido de família somente pode ser compreendido como valor a partir do momento que

se tem a percepção que ela está vinculada aos benefícios dentro da rede de

solidariedade. Assim, a procura de identificação nas árvores genealógicas é responsável

pela possibilidade de conseguir acesso aos espaços no grupo ou através dele.

Ao mesmo tempo em que o sentido de família agrega pode, também, excluir

pessoas à medida que essas relações não se encaixem nas construções socais do grupo.

Todavia, ser reconhecido como membro da família é garantir aquisição de credenciais

necessárias para estabelecer relações. O imperativo moral configura relevante requisito

para agregar pessoas à família, é preciso ajudar para receber ajuda, fazer parte da rede.

Por esta razão, o sentido de família como uma rede extensa de relações, anexa às

unidades familiares surgidas de novos casamentos no seio da família, é compatível com

a posição social de camadas médias de grande parte dos interlocutores. Esta posição

social aparece ligada a história da família e as conquistas de bens que têm como reflexo

a crescente escolarização empreendida pela terceira geração com apoio dos pais.

Embora a conquista do nível superior seja crescentemente acompanhada pela decisão de

manter a identidade laboral, surgida e negociada no seio das relações familiares, ela

aparece mais como um valor a ser negociado no mercado do casamento. Ao mesmo

tempo em que valoriza a negociação e o pertencimento a rede de relações familiares.

198 HALL, 2000, op.cit.

89

Desta lógica surge a preferência por casamentos homogâmicos, que articulam

um jogo de interesses tanto entre os pretendentes quanto entre família, a qual articula a

união do jovem casal. O casamento também é responsável pela transição de status no

contexto familiar, aproximando gerações pelas experiências e não por composição

etária.

A homogamia aparece como consolidada no meio, posto que a pessoa casa com

alguém que lhe é semelhante. Mesmo que esse casamento ocorra com pessoas fora do

grupo, obrigando estes a partilhar valores do grupo e subjugarem-se aos seus olhares,

seus comentários e suas sanções, especialmente, nos lugares de sociabilidade. As

sociabilidades geradas pelas redes de amizade e parentesco são espaços propícios para a

escolha dos pretendentes, pois garantem a ele as referências sobre as credenciais da

futura namorada/esposa, e, a ela, as informações necessárias para que a família aprove o

relacionamento. É uma rede articulada que consegue dar conta de informações sobre as

gerações de uma mesma família, buscando informações nos ascendentes, para traçar

perfil de caráter sobre as famílias e seus descendentes.

O sentido que se faz de família e casamento homogâmico, bem como os

mecanismos que surgem para acioná-los, ou justificá-los, só pode ser compreendido

quando se entende que a identidade de grupo agrega perfis determinados para homens –

o trabalho, a poupança, o cuidado com a família – e para as mulheres – o recato,

cuidado com os filhos e com o marido. Desta forma, a mediação entre o que se faz e que

se deixa de fazer é vigiado e perseguido pela rede de informações e de informantes que

percorre os espaços de sociabilidade. A fofoca media relações desiguais e estipula

valores no mercado dos pretendentes atingindo tanto pessoas, quanto famílias.

Todavia, prevalece nessas considerações o fato que a fixação na cidade e a

continuidade das gerações não eliminaram o sentido de pertencimento à identidade de

grupo, ao contrário, ela passa por um processo de valoração e ressignificação que, em

passos lentos, está sendo moldado pela terceira geração.

Assim, é pertinente ressaltar que este trabalho pretendeu um olhar e, por isso

mesmo, constitui uma visão particular a respeito dos cearenses em Santarém. A visão

90

de quem está dentro, cujas experiências partiram da mesma compreensão de grupo, que

reconhece e aciona sua identidade, mas também, percebe-a múltipla.

Este olhar, em certo, foi guiado pelo fato de pertencer ao grupo, de saber o que

significa uma família extensa, de conviver com uma, de ver em muitos dos

interlocutores as experiências com as quais vivenciei, com as quais cresci e aprendi a

valorizá-las. Neste sentido, as análises aqui presentes passam por este filtro, o filtro de

quem reconhece o sentido da identidade e o momento de acioná-la.

91

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