Que é a Psicologia - Canguilhem, Georges

  • Upload
    camilo

  • View
    217

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    1/16

    QUE A PSICOLOGIA?

    Georges Canguilhem1

    A questo Que a psicologia? aparenta ser mais incmoda para o psiclogo do que a

    questo Que a filosofia? para o filsofo. Porque para a filosofia a interrogao sobreo seu sentido e a sua essncia serve mais para constitu-la do que a define uma respostaa esta pergunta. O fato de a questo renascer incessantemente, por falta de uma respostasatisfatria, , para aquele que gostaria de poder se dizer filsofo, uma situao dehumildade e no de humilhao. Mas, para a psicologia, a questo sobre sua essncia,ou, mais modestamente, sobre seu conceito, questiona ao mesmo tempo a existncia do

    psiclogo, na medida em que sua incapacidade de responder exatamente sobre o que ela torna-lhe bem mais difcil responder sobre o que ele faz. S lhe resta, ento, procurarem uma eficcia sempre discutvel a justificativa de sua importncia enquantoespecialista, importncia que ele no deploraria de nenhuma maneira com este ouaquele se ela engendrasse no filsofo um complexo de inferioridade.

    Quando se diz que a eficcia do psiclogo discutvel no se pretende dizer que ela sejailusria; mas simplesmente assinalar que essa eficcia est sem dvida malfundamentada enquanto no se provar que ela resulta realmente da aplicao de umacincia, ou seja, enquanto o estatuto da psicologia for fixado de maneira tal que se deveavali-lo mais como um empirismo heterogneo que est codificado literariamente comvistas a ser transmitido. De fato, muitos dos trabalhos de psicologia do a impresso demisturar uma filosofia sem rigor porque ecltica sob o pretexto de objetiva , umatica sem exigncias porque associa experincias etolgicas sem critic-las, a doconfessor, a do educador, a do chefe, a do juiz etc. , e uma medicina sem controle

    porque dos trs tipos de doenas menos inteligveis e menos curveis, doenas da pele,doenas nervosas e doenas mentais, o estudo e o tratamento das duas ltimas sempreforneceram hipteses e observaes psicologia.Portanto, parece que ao perguntar Que a psicologia? coloca-se uma questo que no nem impertinente nem ftil. Durante muito tempo procurou-se a unidade caractersticado conceito de cincia na direo de seu objeto. Este ditaria o mtodo a ser utilizado noestudo de suas propriedades. Mas, no fundo, isso era limitar a cincia investigao deum dado, explorao de um domnio. Quando se tornou patente que toda cincia dmais ou menos a si mesma seu dado e por essa razo apropria-se do que se chama seudomnio, o conceito de cincia progressivamente se deslocou de seu objeto para seumtodo. Ou mais exatamente, a expresso objeto de uma cincia recebeu um sentidonovo. O objeto da cincia no mais somente o domnio especfico de problemas, de

    obstculos a resolver, tambm a inteno e a visada do sujeito da cincia, um projetoespecfico que constitui uma conscincia terica como tal. Pode-se responder questoQue a psicologia? ao ressaltar a unidade de seu domnio, apesar da multiplicidadede projetos metodolgicos.

    Texto publicado originalmente na Revue de Mtaphysique et de Morale (Paris, 1: 12-25, 1958), a partirde palestra proferida em 18 de dezembro de 1956, no Collge Philosophique de Paris. Traduo

    brasileira: Osmyr Faria Gabbi Jr.

    1 Formado em medicina, o francs Georges Canguilhem (1904-1995) tornou-se um incomparvel

    professor de filosofia; dedicado instituio acadmica, foi professor da Universidade de Strasbourg e daSorbonne, na qual dirigiu o Instituto de Histria das Cincias. Deixou trabalhos profundamente originaisem filosofia das cincias da vida.

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    2/16

    desse tipo a resposta brilhante dada pelo professor Daniel Lagache, em 1947, questo formulada, em 1936, por Edouard Claparde.2

    A unidade da psicologia procurada aqui em sua possvel definio enquanto teoriageral da conduta: sntese da psicologia experimental, da psicologia clnica, da

    psicanlise, da psicologia social e da etnologia.

    Entretanto, quando se olha de perto, talvez se diga que essa unidade se assemelha mais aum pacto de coexistncia pacfica acordado entre profissionais do que a uma essncialgica, obtida pela descoberta de uma constante numa variedade de casos. Das duastendncias entre as quais o professor Lagache procura um acordo slido a naturalista(psicologia experimental) e a humanista (psicologia clnica) , tem-se a impresso que asegunda parece ter preponderncia para ele.O que explica sem dvida a ausncia da psicologia animal nesse inventrio das partesem litgio. Sem dvida, v-se claramente que ela est includa na psicologiaexperimental em grande parte uma psicologia de animais , mas aquela a contmcomo material ao qual aplica seu mtodo. Com efeito, uma psicologia s pode ser ditaexperimental em razo de seu mtodo e no de seu objeto. Enquanto, a despeito das

    aparncias, mais pelo objeto do que por seu mtodo que uma psicologia dita clnica,psicanaltica, social, etnolgica. Todos esses adjetivos so indicativos de um nico emesmo objeto: o homem, ser loquaz ou taciturno, ser social ou insocial. Assim sendo,

    pode-se rigorosamente falar de uma teoria geral da conduta enquanto no se resolver aquesto de saber se h continuidade ou ruptura entre linguagem humana e linguagemanimal, sociedade humana e sociedade animal? possvel que sobre esse ponto no caiba filosofia decidir, mas cincia, de fato, anumerosas cincias, incluindo a psicologia. Porm, nesse caso, a psicologia no pode,

    para definir-se, prejulgar o que ela chamada a julgar. Sem o que, inevitvel que apsicologia, ao propor a si mesma como teoria geral da conduta, tome como sua algumaidia sobre o homem. Ento preciso permitir filosofia interrogar a psicologia de quelugar ela retira essa idia e se no seria, no fundo, de alguma filosofia.Desejamos abordar a questo fundamental apresentada por uma via oposta uma vezque no somos psiclogo , ou seja, investigar se h ou no uma unidade de projeto que

    poderia conferir sua unidade eventual aos diferentes tipos de disciplinas ditaspsicolgicas. Mas nosso procedimento de investigao exige um retorno temporal. Parainvestigar em relao ao que se sobrepem os domnios, pode-se fazer sua exploraoseparada e sua comparao na atualidade (uma dezena de anos no caso do professorLagache). Investigar se os projetos se interceptam exige que se explicite o sentido decada um deles, no quando ele se perdeu no automatismo de sua execuo, mas quandosurge a partir da situao que o suscitou. Procurar responder questo Que a

    psicologia? torna-se para ns a obrigao de esboar uma histria da psicologia, mas, preciso enfatizar, uma histria considerada apenas nas suas orientaes e relacionadacom a histria da filosofia e das cincias, uma histria necessariamente teleolgica, umavez que destinada a transferir, para a interrogao proposta, o sentido originrio supostonas diversas disciplinas, mtodos ou empreendimentos, cuja disparidade atual legitimaessa pergunta.

    I A PSICOLOGIA COMO CINCIA NATURAL

    Emborapsicologia signifique do ponto de vista etimolgico cincia da alma, notvelque uma psicologia independente esteja ausente, tanto como idia quanto de fato, dos

    sistemas filosficos da Antiguidade; nos quais, entretanto, a psique, a alma, 2 LUnit de la Psychologie. Paris: PUF, 1949.

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    3/16

    considerada um ser natural. Os estudos relativos alma encontram-se divididos entre ametafsica, a lgica e a fsica. O tratado aristotlico Da Alma na realidade um tratadode biologia geral, um dos escritos consagrados fsica. Segundo Aristteles, e de acordocom a tradio da escolstica, os cursos de filosofia do incio do sculo XVII aindatratam da alma num captulo da fsica.3 O objeto desta o corpo natural e organizado

    que contm a vida como potencialidade; logo, a fsica trata da alma como forma docorpo vivo, e no como substncia separada da matria. Desse ponto de vista, um estudodos rgos do conhecimento, ou seja, dos sentidos exteriores (os cinco usuais) e dossentidos interiores (senso comum, fantasia, memria), no difere em nada do estudo dosrgos da respirao ou da digesto.A alma um objeto natural de estudo, uma forma na hierarquia das formas, ainda quesua funo essencial seja o conhecimento das formas. A cincia da alma um domnioda fisiologia no seu sentido original e universal de teoria da natureza. dessa concepo antiga que se origina sem ruptura um aspecto da psicologia moderna:a psicofisiologia considerada durante muito tempo exclusivamente psiconeurologia(mas atualmente tambm como psico-endocrinologia) e a psicopatologia como

    disciplina mdica.Dada essa relao, no parece ser suprfluo recordar que antes das duas revolues que

    permitiram o aparecimento da fisiologia moderna, a de Harvey e a da Lavoisier, devida a Galeno uma revoluo de no menos importncia que a teoria da circulao ouda respirao, quando ele estabelece, clnica e experimentalmente de acordo com osmdicos da Escola de Alexandria, Herfilos e Erasstratos, e contra a doutrinaaristotlica, mas conforme as antecipaes de Alcmon, Hipcrates e Plato, que ocrebro, e no o corao, o rgo das sensaes e do movimento, o lugar da alma.Galeno funda verdadeiramente, durante sculos, uma filiao ininterrupta de pesquisasde pneumatologia emprica, cujo elemento fundamental a teoria dos espritos animais,destronada e substituda no fim do sculo XVIII pela eletroneurologia.Ainda que decididamente pluralista em sua concepo das relaes entre funes

    psquicas e rgos enceflicos, Gall procede diretamente de Galeno e domina, apesar desuas extravagncias, todas as pesquisas sobre localizaes cerebrais durante os sessenta

    primeiros anos do sculo XIX, at o prprio Broca.Em suma, enquanto psicofisiologia e psicopatologia, a psicologia atual sempre recua ato sculo II.

    II A PSICOLOGIA COMO CINCIA DA SUBJETIVIDADE

    O declnio da fsica aristotlica, no sculo XVII, assinala o fim da psicologia como

    parafsica, como cincia de um objeto natural, e correlativamente o nascimento dapsicologia como cincia da subjetividade.Os fsicos mecanicistas do sculo XVII so os verdadeiros responsveis peloaparecimento da psicologia moderna como cincia do sujeito pensante.4

    Se a realidade do mundo no mais confundida com o contedo da percepo, se arealidade obtida e exposta pela reduo das iluses da experincia sensvel usual, oresto qualitativo desta experincia, dado que possvel enquanto falsificao do real,envolve a responsabilidade prpria do esprito, ou seja, do sujeito da experincia, tendo

    3 Cf. Scipion Du Pleix. Corps de Philosophie contenant la Logique, la Physique, la Mtaphysique el

    lEthique. Genve, 1636 (1d, Paris, 1607).4 Cf. Aron Gurwitsch. Dveloppement Historique de la Gestalt-Psychologie, in Thals, IIe anne, 1935,pp.167-175.

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    4/16

    em vista que ele no se identifica com a razo matemtica e mecanicista, instrumento daverdade e medida da realidade.Mas essa responsabilidade censurvel aos olhos do fsico. Portanto, a psicologia constituda como um empreendimento de remisso do esprito. Seu projeto de umacincia que, face fsica, explique o motivo do esprito, primeira vista, ser coagido,

    devido a sua natureza, a enganar a razo em relao realidade. A psicologia faz-sefsica do sentido externo para dar conta dos contra-sensos que a fsica mecanicistaimputa ao exerccio dos sentidos na funo cognitiva.

    A. A fsica do sentido externo

    Portanto a psicologia, cincia da subjetividade, comea como psicofsica por duasrazes. Em primeiro lugar porque no pode ser menos do que uma fsica para ser levadaa srio pelos fsicos. Em segundo, porque deve procurar em uma natureza, ou seja, naestrutura do corpo humano, a razo da existncia de resduos irreais na experinciahumana.

    Mas, entretanto, essas razes no implicam um retorno concepo antiga de umacincia da alma, ramo da fsica. A nova fsica um clculo. A psicologia tende a imit-la. Ela procurar determinar as constantes qualitativas da sensao e as relaes entreessas constantes.Aqui Descartes e Malebranche so os corifeus. Nas Regras para Direo do Esprito(XII), Descartes prope a reduo das diferenas qualitativas entre dados sensrios auma diferena de figuras geomtricas.Trata-se aqui de dados sensrios na medida em que so, no sentido prprio do termo, asinformaes de um corpo por um outro corpo; os sentidos externos informam umsentido interno, a fantasia, que nada mais que um corpo real e figurado. Na RegraXIV, Descartes trata expressamente do que Kant chamar da grandeza intensiva dassensaes (Crtica da Razo Pura, analtica transcendental, antecipao da percepo):as comparaes entre luzes, entre sons etc., s podem ser convertidas em relaes exatas

    por analogia com a extenso do corpo figurado. Se se acrescenta que Descartes, que no exatamente nem o inventor do termo nem do conceito de reflexo, afirmou, no entanto,a constncia de ligao entre a excitao e a reao, v-se que uma psicologia,entendida enquanto fsica matemtica do sentido externo, comea com ele para chegarem Fechner, graas ao apoio de fisilogos como Hermann Helmholtz, apesar e contra asreservas kantianas, criticadas por sua vez por Herbart.Essa variedade de psicologia ampliada por Wundt s dimenses de uma psicologiaexperimental, apoiada em seus trabalhos pela esperana de fazer aparecer, nas leis dos

    fatos de conscincia, um determinismo analtico do mesmo tipo daquele que amecnica e a fsica permitem esperar de toda cincia de validade universal.Fechner morreu em 1887, dois anos da tese de Bergson, Ensaios sobre os Dados

    Imediatos da Conscincia (1889). Wundt faleceu em 1920, tendo formado muitosdiscpulos, dos quais alguns ainda esto vivos, e no sem ter assistido aos primeirosataques dos psiclogos da Forma contra a fsica analtica do sentido externo,simultaneamente experimental e matemtica, conforme as observaes de Ehrenfelssobre as qualidades da forma (ber Gestaltqualitten, 1890), observaes aparentadass anlises de Bergson sobre as totalidades percebidas enquanto formas orgnicas que

    prevalecem sobre as partes supostas (Ensaio, cap. II).

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    5/16

    B. A cincia do sentido interno

    Mas a cincia da subjetividade no se reduz elaborao de uma fsica do sentidoexterno; ela se prope e se apresenta como a cincia da conscincia de si ou a cincia dosentido interno. Data do sculo XVIII o termo psicologia no sentido de cincia do eu

    (Wolff). Toda a histria dessa psicologia pode ser escrita como aquela dos contra-sensos, na qual asMeditaes de Descartes, sem serem responsveis, deram o motivo.Quando Descartes, no incio da Terceira Meditao, considera seu interior para

    procurar torn-lo o mais conhecido e o mais familiar para si mesmo, essa consideraovisa o pensamento. O interior cartesiano, conscincia do Ego cogito, o conhecimentodireto que a alma tem de si mesma enquanto entendimento puro. As Meditaes sochamadas por Descartes de metafsicas porque elas pretendem atingir diretamente anatureza e a essncia doEu penso na apreenso imediata de sua existncia. A meditaocartesiana no uma confidncia pessoal. A reflexo que d ao conhecimento do Eu origor e a impessoalidade das matemticas no aquela observao de si que osespiritualistas, no incio do sculo XIX, tiveram a ousadia de tomar Scrates como

    patrono, a fim de que o sr. Pierre-Paul Royer-Collard pudesse dar a Napoleo I agarantia de que o Conhece a ti mesmo, o cogito e a introspeo forneciam seufundamento inexpugnvel ao trono e ao altar.O interior cartesiano no tem nada em comum com o sentido interno dos aristotlicosque concebem seus objetos interiormente e dentro da cabea5 e que, como se viu,Descartes considera como um aspecto do corpo (Regra XIII). Por essa razo Descartesdiz que se conhece a alma direta e mais facilmente que o corpo. uma afirmao acercada qual se ignora muito freqentemente a inteno explicitamente polmica, uma vezque para os aristotlicos no se conhece a alma diretamente: O conhecimento da almano de nenhuma maneira direto, mas apenas por reflexo; dado que a alma semelhante a um olho que tudo v e que s pode ver a si mesmo por reflexo como emum espelho () e a alma de modo semelhante no se v e s se conhece por reflexo e

    pelo reconhecimento de seus efeitos.6

    Tese que suscita a indignao de Descartes quando Gassendi a retoma nas suas objeescontra a Terceira Meditao, e contra as quais ele responde: No de nenhumamaneira nem o olho que v a si prprio nem o espelho, mas o esprito, o nico queconhece o espelho, o olho e a si prprio.Ora, essa rplica decisiva no derrota esse argumento escolstico. Maine de Biran, maisde uma vez, utiliza-o contra Descartes em Memorial sobre a Decomposio do

    Pensamento. A. Comte invoca-o contra a possibilidade de introspeo, ou seja, contraesse mtodo de conhecimento de si mesmo que Pierre-Paul Royer-Collard emprestou de

    Reid para fazer da psicologia a propedutica cientfica da metafsica, ao justificar pelavia experimental suas teses tradicionais, prprias do substancialismo espiritualista. 7

    Mesmo Cournot, na sua sagacidade, no desdenha o argumento quando o retoma paraapoiar a idia de que a observao psicolgica se refere mais conduta do outro que do eu do observador, de que a psicologia se aparenta mais sabedoria do que cincia ede que da natureza dos fatos psicolgicos serem melhor traduzidos em aforismos queem teoremas.8

    Conheceu-se de forma equvoca o argumento de Descartes quando simultaneamente seconstitui contra ele uma psicologia emprica como histria natural do eu de Locke a

    5 Scipion Du Pleix, op. cit., Physique, p. 439.6

    Ibid., p. 353.7 Cours de Philosophie positive. 1re Leon.8Essai sur les Fondements d enos Connaissances, 1851, 371-376.

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    6/16

    Ribot, passando por Condillac, os idelogos franceses e os utilitaristas ingleses e,segundo se acreditou, de acordo com ele, uma psicologia racional fundada sobre aintuio do Eu substancial.Kant tem ainda hoje a glria de ter estabelecido que, se Wolff pde batizar esses recm-nascidos ps-cartesianos (Psicologia Emprica, 1732; Psicologia Racional, 1734), no

    entanto no conseguiu fundamentar suas pretenses de legitimidade. Kant mostra, deum lado, que o sentido interno fenomenal apenas uma forma da intuio emprica, quetende a confundir-se com o tempo, e, de outro, que o eu, sujeito de todo juzo deapercepo, uma funo de organizao da experincia, mas do qual no se poderiafazer cincia, dado que a condio transcendental de toda cincia. Os Primeiros

    Princpios Metafsicos da Cincia da Natureza (1786) contestam que a psicologia possaser uma cincia, seja imagem das matemticas, seja imagem da fsica. No h

    psicologia matemtica possvel no sentido em que h uma fsica matemtica. Mesmoque se aplique s modificaes do sentido interno, em virtude da antecipao da

    percepo relativa s grandezas intensivas, as matemticas do contnuo, no se obternada de mais importante do que seria uma geometria limitada ao estudo das

    propriedades da linha reta. Tambm no h psicologia experimental no sentido em que aqumica se constitui atravs do uso da anlise e da sntese. No podemos realizarexperincias nem sobre ns mesmos nem sobre o outro. Alm do que, a observaointerna altera seu objeto. Querer surpreender a si mesmo ao se observar conduziria alienao. A psicologia s pode ser descritiva. Seu lugar verdadeiro em uma

    Antropologia, como propedutica a uma teoria da aptido e da prudncia, coroada poruma teoria da sabedoria.

    C. A cincia do sentido ntimo

    Se se chama psicologia clssica aquela que se pretende refutar, preciso dizer que empsicologia h sempre clssicos disponveis para qualquer um. Os idelogos, herdeirosdos sensualistas, tomaram como clssica a psicologia escocesa que pregava, como eles,um mtodo indutivo para poder melhor afirmar, contra eles, a substancialidade doesprito. Mas a psicologia atomista e analtica dos sensualistas e dos idelogos, antes deser rejeitada como psicologia clssica pelos tericos da psicologia da Gestalt, j era tidacomo tal por um psiclogo romntico como Maine de Biran. Para ele, a psicologiatorna-se a tcnica do dirio ntimo e a cincia do sentido ntimo. A solido de Descartes a ascese de um matemtico; a de Maine de Biran, a ociosidade de um delegado. O Eu

    penso cartesiano fundamenta o pensamento em si; o Eu quero de Biran, a conscinciapara si contra a exterioridade. Em seu escritrio calafetado, Maine de Biran descobre

    que a anlise psicolgica no consiste em simplificar, mas em complicar; que o fatopsicolgico primitivo no elementar, porm uma relao, relao vivida em umesforo. Ele chega a duas concluses, inesperadas em um homem cujas funes so deautoridade, ou seja, de comando: a conscincia requer o conflito entre um poder e umaresistncia; o homem no , como pensou Bonald, uma inteligncia servida por rgos,mas uma organizao viva servida por uma inteligncia. necessrio que a alma estejaencarnada, portanto, no h psicologia sem biologia. A observao de si mesmo nodispensa nem o recurso fisiologia do movimento voluntrio nem patologia daafetividade. A situao de Maine de Biran nica entre os dois Royer-Collard: dialogoucom o doutrinrio e foi julgado pelo psiquiatra. Temos de Maine de Biran um Passeiocom o sr. Royer-Collard nos Jardins de Luxemburgo e de Antoine-Athanase Royer-

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    7/16

    Collard, irmo caula do primeiro, um Exame da Doutrina de Maine de Biran.9 SeMaine de Biran no tivesse lido e discutido Cabanis (Relaes entre o Fsico e o Moralno Homem, 1798) e Bichat (Pesquisas sobre a Vida e a Morte, 1800), a histria da

    psicologia patolgica t-lo-ia ignorado, o que ela no pode. O segundo Royer-Collard ,depois de Pinel e junto com Esquirol, um dos fundadores da escola francesa de

    psiquiatria.Pinel havia defendido a idia de que os alienados so simultaneamente doentes como osoutros nem possudos nem criminosos e diferentes dos outros, devendo, portanto,ser tratados separadamente dos outros e, de acordo com os casos, em servioshospitalares especializados.Pinel fundou a medicina mental como disciplina autnoma a partir do isolamentoteraputico de alienados em Bictre e em Salptrire.Royer-Collard imita Pinel na Maison Nationale de Charenton, onde se tornou chefe dosmdicos em 1805, o mesmo ano em que Esquirol defendeu sua tese de medicina sobreas Paixes consideradas como causas, sintomas e meios de cura da alienao mental.Em 1816, Royer-Collard torna-se professor de medicina legal na Faculdade de Medicina

    de Paris, depois, em 1821, primeiro titular da cadeira de medicina mental. Royer-Collard e Esquirol tiveram como aluno Calmeil, que estudou a paralisia entre osalienados, Bayle, que reconheceu e isolou a paralisia geral, e Flix Voisin, que iniciou oestudo do retardo mental em crianas. em Salptrire que, depois de Pinel, Esquirol,Lelut, Baillarger e Falret, entre outros, Charcot torna-se em 1862 chefe de um servio,cujos trabalhos sero continuados por Thodule Ribot, Pierre Janet, o cardeal Mercier eSigmund Freud.Vimos que a psicopatologia comeou de forma positiva com Galeno, vemos que elaconduz at Freud, criador em 1896 do termopsicanlise.A psicopatologia no se desenvolveu isolada de outras disciplinas psicolgicas. Com

    base nas pesquisas de Biran, ela coage a filosofia a interrogar-se, h mais de um sculo,em qual dos dois Royer-Collard ela deve procurar a idia que preciso ter da

    psicologia. Assim, a psicopatologia ao mesmo tempo juiz e parte do debateininterrupto que a metafsica legou direo da psicologia, sem ter, alis, renunciado adizer sua palavra sobre as relaes entre o fsico e o psquico.Essa relao foi formulada durante muito tempo como somatopsquica antes de tornar-se psicossomtica. Alis, essa inverso a mesma que operou na significao dada aoinconsciente. Se se identifica psiquismo e conscincia recorrendo de forma errada ouacertada autoridade de Descartes , o inconsciente de ordem fsica. Se se pensa queo psiquismo possa ser inconsciente, a psicologia no se reduz cincia da conscincia.O psquico no to-somente o que est escondido, mas o que se esconde, o que

    escondemos, o que no mais apenas o ntimo, mas tambm de acordo com um termoretirado por Bossuet dos msticos o abissal. A psicologia no apenas a cincia daintimidade, mas a cincia das profundezas da alma.

    III A PSICOLOGIA COMO CINCIA DAS REAES E DOCOMPORTAMENTO

    Maine de Biran, ao propor que se defina o homem como organizao viva servida poruma inteligncia, demarca de antemo melhor, aparentemente, do que Gall, segundo oqual, de acordo com Lelut, o homem no mais uma inteligncia, porm uma vontade

    9 Publicado pelo seu filho Hyacinthe Royer-Collard (em Annales Mdico-Psychologiques, 1843, tomo II,p.1).

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    8/16

    servida por rgos10 o terreno sobre o qual se constituir no sculo XIX uma novapsicologia. Mas, ao mesmo tempo, ele assinala seus limites, visto que, na suaAntropologia, ele situa a vida humana entre a vida animal e a vida espiritual.O sculo XIX assiste constituio ao lado da psicologia como patologia nervosa emental, como fsica do sentido externo, como cincia do sentido interno e do sentido

    ntimo de uma biologia do comportamento humano. As razes desse evento nosparecem ser as seguintes.Inicialmente, razes cientficas, a saber, a constituio de uma biologia como teoriageral das relaes entre os organismos e os meios, o que marca o fim da crena naexistncia de um reino humano separado; em seguida, razes tcnicas e econmicas, ouseja, o desenvolvimento de um regime industrial que dirige a ateno para o carterindustrioso da espcie humana, o que marca o fim da crena na dignidade do

    pensamento especulativo; por fim, razes polticas que se resumem no fim da crena emvalores de privilgio social e na difuso do igualitarismo: o alistamento e a instruo

    pblica tornam-se questo de Estado, a reivindicao de igualdade em relao s tarefasmilitares e s funes civis (a cada um de acordo com seu trabalho, suas obras ou seus

    mritos) o fundamento real, ainda que freqentemente despercebido, de um fenmenoprprio das sociedades modernas: a prtica generalizada da especializao, entendidaem sentido amplo enquanto determinao da competncia e revelao da simulao.Ora, o que caracteriza, para ns, essa psicologia dos comportamentos em relao aosoutros tipos de estudos psicolgicos sua incapacidade constitutiva de apreender eexibir com clareza seu projeto instaurador.Se, entre os projetos instauradores de alguns tipos anteriores de psicologia, uns podem

    passar por contra-sensos filosficos, aqui, ao contrrio, uma vez que se recusa todarelao com uma teoria filosfica, coloca-se a questo de saber de onde essa pesquisa

    psicolgica pode retirar seu sentido. Ao aceitar-se que ela se torne, de acordo com opadro da biologia, uma cincia objetiva das aptides, das reaes e do comportamento,essa psicologia e seus psiclogos esquecem totalmente de situar seu comportamentoespecfico em relao s circunstncias histricas e aos meios sociais nos quais foramlevados a propor seus mtodos ou tcnicas e a tornar aceitveis seus servios.

    Nietzsche, ao esboar a psicologia do psiclogo do sculo XIX, escreve: Ns,psiclogos do futuro () consideramos quase como um signo de degenerao oinstrumento que procura conhecer a si mesmo: somos os instrumentos do conhecimentoe precisamos ter toda ingenuidade e preciso de um instrumento; conseqentemente notemos o direito de analisar a ns mesmos, de nos conhecer. 11 Um mal-entendidoespantoso, mas como revelador! O psiclogo quer ser apenas um instrumento, sem

    procurar saber de quem ou do que instrumento.

    Nietzsche parecia melhor inspirado quando se inclina, no incio da Genealogia daMoral, sobre o enigma que os psiclogos ingleses representam, ou seja, os utilitaristas,preocupados com a gnese dos sentimentos morais. Ele se interrogou na ocasio sobre oque teria levado os psiclogos na direo do cinismo, isto , na explicao das condutashumanas pelo interesse, utilidade e esquecimento dessas motivaes morais. E eis que,diante da conduta dos psiclogos do sculo XIX, Nietzsche renuncia provisoriamente atodo cinismo, ou seja, a toda lucidez!A idia de utilidade, como princpio de uma psicologia, resultava da tomada deconscincia filosfica da natureza humana enquanto potncia de artifcio (Hume,

    10Quest-ce que la Phrnologie? ou Essai sur la signification et la valeur des systmes de psychologie en

    general et de celui de Gall en particulier. Paris, 1836, p. 401.11La Volont de Puissance. Trad. Blanquis, livro III, 355.

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    9/16

    Burke), mais prosaicamente, enquanto fabricante de ferramentas (os enciclopedistas,Adam Smith, Franklin).Mas o princpio da psicologia biolgica do comportamento no parece ter sidodesprendido, da mesma maneira, de uma tomada de conscincia filosfica explcita;sem dvida, porque s pde ser posto em prtica sob a condio de permanecer sem ser

    formulado. Esse princpio a definio do prprio homem enquanto ferramenta. Outilitarismo, que implica a idia de utilidade para o homem, a idia do homem enquantojuiz da utilidade, foi sucedido pelo instrumentalismo, que implica a idia da utilidade dohomem, a idia do homem como meio da utilidade. A inteligncia no mais aquilo quefez os rgos e serve-se deles, porm o que serve aos rgos. No impunemente queas origens histricas da psicologia das reaes devem ser procuradas nos trabalhossuscitados pela descoberta da equao pessoal prpria aos astrnomos que utilizam otelescpio (Maskelyne, 1796). O homem foi inicialmente estudado enquantoinstrumento do instrumento cientfico antes de o ser enquanto instrumento de todoinstrumento.As pesquisas sobre as leis de adaptao e da aprendizagem, sobre a relao entre

    aprendizagem e as aptides, sobre a deteco e a mensurao de aptides, sobre ascondies de rendimento e de produtividade (quer se trate de indivduos, quer degrupos) pesquisas inseparveis de suas aplicaes em seleo ou orientao admitem todas um postulado comum e implcito: a natureza do homem ser uminstrumento, sua vocao ser colocado em seu lugar, em sua tarefa.

    Nietzsche, sem dvida, tem razo quando diz que os psiclogos querem ser osinstrumentos ingnuos e precisos desse estudo do homem.Eles se esforaram para chegar a um conhecimento objetivo, mesmo se o determinismoque procuram nos comportamentos no seja mais hoje em dia o determinismo de tiponewtoniano, familiar aos primeiros fsicos do sculo XIX, mas um determinismoestatstico, progressivamente baseado nos resultados da biometria. Mas qual , enfim, osentido desse instrumentalismo de segunda potncia? O que leva ou inclina os

    psiclogos a tornar-se, entre os homens, os instrumentos da ambio de tratar o homemcomo instrumento?

    Nos outros tipos de psicologia, a alma ou o sujeito, forma natural ou conscincia deinterioridade, o princpio que se d para justificar enquanto valor uma certa idia dehomem em relao verdade das coisas. Todavia para uma psicologia na qual a palavraalma faz fugir e a palavra conscincia faz rir, a verdade do homem est dada pelofato de que no h mais nenhuma idia de homem enquanto valor diferente daquela deum instrumento. Ora, deve-se reconhecer que preciso, para que se possa questionar aidia de um instrumento, que nem todas as idias sejam da ordem de um instrumento, e

    que preciso exatamente, para que se possa atribuir algum valor a um instrumento, quenem todos os valores sejam o de um instrumento, cujo valor subordinado consiste emencontrar um outro. Por conseguinte, se o psiclogo no esgota o seu projeto de

    psicologia em uma idia de homem, acredita ele que possa legitim-lo atravs de seucomportamento de utilizao do homem? Ns dizemos claramente: atravs de seucomportamento de utilizao, apesar de duas objees possveis.Com efeito, podemos ser advertidos, de um lado, que esse tipo de psicologia no ignoraa distino entre teoria e aplicao; de outro, que a utilizao no feita pelo psiclogo,mas por aquele ou aqueles que lhe pedem relatrios ou diagnsticos. Responderemosque, a no ser que se confunda o terico da psicologia com o professor de psicologia,

    preciso reconhecer que o psiclogo contemporneo , na maior parte das vezes, um

    praticante profissional cuja cincia na sua inteireza inspirada pela pesquisa de leisde adaptao a um meio scio-tcnico e no a um meio natural , o que sempre

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    10/16

    confere a suas operaes de medida um significado de avaliao e uma importnciade especialista.De modo que o comportamento do psiclogo do comportamento humano encerra, deforma quase obrigatria, uma convico de superioridade, uma boa conscincia diretora,uma mentalidade de dirigente das relaes entre os homens. Por essa razo, preciso

    colocar a questo cnica: quem designa os psiclogos como instrumentos doinstrumentalismo? Como se reconhecem os homens dignos de atribuir ao homeminstrumental seu papel e sua funo? Quem orienta os orientadores?Evidentemente no nos colocaremos no terreno das capacidades e da tcnica. A questono saber se h bons ou maus psiclogos, ou seja, tcnicos hbeis que aprenderam ouincapazes que fazem tolices no previstas pela lei. A questo que uma cincia ou umatcnica cientfica no contm por si s qualquer idia que lhe confira seu sentido. Nasua Introduo Psicologia, Paul Guillaume fez a psicologia do homem submetido aum teste. O testado defende-se contra essa investigao, teme que se exera sobre eleuma ao. Guillaume v nesse estado de esprito um reconhecimento explcito de umreconhecimento implcito da eficcia do teste. Mas tambm se poderia ver a um

    embrio da psicologia do testador. A defesa do testado a repugnncia em se vertratado como um inseto por um homem a quem ele no reconhece nenhuma autoridade

    para lhe dizer o que e o que deve fazer. Tratar como um inseto, a palavra deStendhal, que a tomou emprestada de Cuvier.12 E se ns tratarmos o psiclogo comoum inseto; se ns aplicarmos, por exemplo, a recomendao de Stendhal ao morno einspido relatrio Kinsey?Dito de outra maneira, a psicologia da reao e do comportamento, nos sculos XIX eXX, acreditou que se tornaria independente ao separar-se de toda filosofia, ou seja, daespeculao que pesquisa uma idia de homem para alm do horizonte dos dados

    biolgicos e sociolgicos. Mas essa psicologia no pode evitar a recorrncia de seusresultados sobre o comportamento daqueles que os obtm. A questo Que a

    psicologia?, na medida em que se interdita a psicologia de procurar sua resposta, torna-se Onde querem chegar os psiclogos fazendo o que fazem? Em nome de quem sedeclaram psiclogos?.Quando Gedeo recrutou o comando dos israelitas e chefiando-os repele os madianitas

    para alm do Jordo, ele utiliza um teste em duas etapas que lhe permite, inicialmente,escolher dez mil homens entre trinta e dois mil, e depois trezentos entre os dez mil. Maseste teste devedor do Eterno, tanto em relao ao objetivo de sua utilizao quanto ao

    procedimento de seleo usado. Para selecionar um selecionador, precisonormalmente transcender o plano dos procedimentos tcnicos de seleo. Dada aimanncia da psicologia cientfica, permanece a questo: quem tem, no a competncia,

    mas a misso de ser psiclogo? A psicologia repousa realmente sobre umdesdobramento que no mais aquele da conscincia de acordo com os fatos e asnormas que a idia de homem comporta , uma massa de sujeitos e uma elitecorporativa de especialistas que investem a si mesmos de sua prpria misso.Em Kant e em Maine de Biran, a psicologia est situada em uma antropologia, ou seja,apesar da ambigidade, atualmente muito em voga desse termo, em uma filosofia. EmKant, a teoria geral da habilidade humana permanece relacionada a uma teoria dasabedoria. A psicologia instrumentalista apresenta-se como uma teoria geral da

    12 Ao invs de odiar o pequeno livreiro da cidade vizinha que vende o Almanaque Popular, dizia eu aomeu amigo Senhor de Ranvelle, aplique-lhe o velho remdio indicado pelo clebre Cuvier; trate-o como

    inseto. Investigue seus meios de subsistncia, procure adivinhar suas formas de acasalamento(Mmorires dum Touriste, ed. Calmann-Lvy, tomo II, p. 23).

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    11/16

    habilidade, fora de qualquer referncia sabedoria. Se no podemos definir essapsicologia por uma idia de homem, ou seja, situ-la dentro da filosofia, certamente notemos o poder de interditar a quem quer que seja de se dizer psiclogo e de chamar

    psicologia ao que faz. Mas ningum pode mais interditar a filosofia de continuar ainterrogar-se sobre o estatuto mal definido da psicologia, tanto do lado das cincias

    como do lado das tcnicas. A filosofia, quando procede assim, conduz-se de acordo comsua ingenuidade constitutiva, to pouco assemelhada ao simplismo que no exclui umcinismo provisrio, o que a leva a voltar-se mais uma vez para o lado popular, ou seja,

    para o lado natural dos no-especialistas.Por conseguinte, de forma muito vulgar que a filosofia interroga a psicologia e diz:

    para aonde ides, para que eu saiba quem sois? Mas o filsofo tambm pode dirigir-se aopsiclogo sob a forma de um conselho uma nica vez no cria o hbito e dizer:quando se sai da Sorbonne pela rua Saint-Jacques pode-se subi-la ou desc-la; quandose sobe, chega-se ao Panteo, o Conservatoire de alguns grandes homens, mas quandose desce, certamente se chega delegacia de polcia.

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    12/16

    Pequenas Notas a Que a Psicologia?OSMYR FARIA GABBI JR.

    Kant tem ainda hoje a glria de ter estabelecido que,se Wolff pde batizar estes recm-nascidos ps-cartesianos

    (Psicologia Emprica, 1732; Psicologia Racional,1734), no entanto no conseguiu fundamentar suaspretenses de legitimidade.1

    Essa conferncia de Georges Canguilhem que apresentamos pela primeira vez para opblico brasileiro um marco para a epistemologia da psicologia. Enquanto as objeesque ela coloca possibilidade da psicologia no forem adequadamente respondidas,

    pesa contra todo e qualquer projeto psicolgico a trplice objeo: medicina semcontrole, tica sem exigncias, filosofia sem rigor. Todas nascem de uma mesma

    suspeita e apresentam uma mesma origem.Para entend-la, preciso atentar para o fato de o horizonte da crtica esboada porCanguilhem ser delineado pela tese kantiana sobre a impossibilidade de fundamentar demodo cientfico qualquer psicologia, seja ela assemelhada psicologia racional, seja

    psicologia emprica.No primeiro caso confunde-se a condio da experincia com a prpria experincia, eassim tenta-se fazer cincia da coisa de si.2 No segundo, no se leva em conta que ascategorias da psicologia so histricas e assim no podem ser nem universais, nemnecessrias, condio bsica para todo projeto que se pretenda cientfico.3 Se a

    psicologia fosse uma cincia, ela no seria de forma intrnseca uma tica, uma vez quepara Kant a questo do conhecimento e a questo tica esto em esferas distintas eenvolvem usos distintos da Razo.Canguilhem, sem duvidar de que a psicologia seja eficaz mas visto que, de maneiraminimamente consensual, ela no cincia de fato , interroga-se sobre a origem dessaeficincia. Acreditamos que a conferncia pretenda mostrar, entre outros pontos,4 queessa eficcia reside na operao que transforma normas ticas derivadas de certas

    prticas antropolgicas inerentes psicologia em enunciados cientficos fictcios.5Assim, a mutao do deve ser, presente na norma, em um descritivo que teria oaval de cincia porm no tem leva toda concepo psicolgica a ser uma tica semexigncias, justamente porque se ignora enquanto tal, ou seja, sua eficcia decorreria deser uma tica transfigurada em saber efetivo. Na tentativa inglria de obter esse aval de

    efetividade, a psicologia recorre, sem se dar conta, a fragmentos de diferentes filosofias,recolhidos de tal maneira que perdem sua histria e especificidade, e conseqentementeela desemboca em numerosos contra-sensos filosficos, no seu reconhecido ecletismofilosfico, ou seja, em filosofia sem rigor.Passados cem anos da publicao de Traumdeutung, podemos encontrar as mesmasdificuldades na psicanlise de Freud? A resposta, como indicaremos adiante, parece serafirmativa. Entretanto, para alguns simpatizantes da psicanlise de Lacan, elas no

    parecem existir.6 A razo para tanto otimismo pode estar na tentativa de Lacan depensar uma psicanlise liberada de quaisquer traos de psicologismo. Esta doutrinaperniciosa pode ser definida provisoriamente como toda tentativa de reduzir asentidades psicanalticas, tais como, por exemplo, o inconsciente, a estados ou atividades

    mentais. Portanto, entendemos os esforos de Lacan de conceituar o inconscienteenquanto discurso do Outro, entre tantos outros, como uma forma de remover o

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    13/16

    psicologismo, patente em Freud. Mas realmente basta remov-lo para que umapsicanlise assim depurada esteja livre das crticas formuladas por Canguilhem?Se nos voltarmos paraFonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse,7encontramos como obstculos a uma teoria psicanaltica fundamentada na funo da

    palavra a pedagogia maternal, a ajuda samaritana e a mestria dialtica.8 No entanto,

    mesmo que aceitemos que a psicanlise de Lacan no vise promover a cura, que elareconhea a dimenso tica em que se move, que, no limite, seja entendida qua teoriatica, e que ela, de alguma maneira supondo que possa ser lida dessa forma apropriada

    , possa ter seu horizonte filosfico perfeitamente equacionado, escaparemos, assim, scrticas de Kant em relao possibilidade de uma psicologia cientfica? Afinal, estaqui o n da questo. No pretendemos desat-lo, mas apenas ressaltar alguns dos ns

    prvios que precisam ser desfeitos para quem se d a esta tarefa herclea e temerria.

    1 Que a Psicologia?,p. 18, desta revista.2 Algo semelhante a confundir estudos sobre fundamentos da matemtica com pesquisas sobre a forma

    pela qual as crianas aprendem a tabuada.3 A psicologia, no melhor dos mundos possveis, pode dizer-nos algo sobre como os homens em umacerta sociedade, em um tempo histrico preciso, em uma determinada classe social compreendiam a simesmos e aos outros. Toda tentativa de tornar esses ensinamentos universais enganosa. Ela opera afamosa substituio sublinhada pelos marxistas: substitui a histria pela psicologia. Nesse sentido, no fazmais do que os desenhos americanos que encontram a mesma famlia americana de classe mdia tanto nofuturo longnquo como na pr-histria.4 Um dos outros pontos exibir a natureza antifilosfica da psicologia como cincia das reaes e docomportamento.5 A psicologia considerada uma tica sem exigncias porque associa experincias etolgicas semcritic-las, a do confessor, a do educador, a do chefe, a do juiz etc.,Ibid, p. 12. Em outras palavras, essasexperincias no aparecem como so, elas so descritas de tal maneira que se tornam inerentes aodesempenho profissional do psiclogo, desempenho esse que seria justificado pelo fato de a psicologia

    ser uma cincia. Assim, por exemplo, na psicologia clnica, se o paciente, cliente ou analisando v arelao entre ele e o o clnico, o conselheiro ou o analista como ela realmente, ou seja, comoassimtrica, essa viso decodificada cientificamente como sintoma.6 A conferncia de Canguilhem, proferida em 18 de dezembro de 1956 e publicada em 1958 na Revue deMtaphysique et de Morale em 1958, foi reeditada em 1966 pelo Cahiers pour lAnalyse.7 O chamado Discurso de Roma, proferido na Universidade de Roma nos dias 26 e 27 de setembro de1953 por Lacan, um divisor de guas na tentativa de conceber uma psicanlise com inconsciente, pormsem psicologismo (LACAN, J. Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse. In crits,Paris: Seuil, 1966, pp. 237-322).

    AS REFERNCIAS DE CANGUILHEM PSICANLISE

    A psicanlise presente na descrio de Canguilhem sobre os projetosfilosficos inequivocamente a de Freud. Segundo ele, essa teoriaestaria localizada na interseo de dois projetos bastante distintos: enquanto

    psicopatologia, remontaria ao sculo II, a Galeno; ou seja, estarialigada ao projeto de constituio de uma psicologia enquanto cincia natural.Mas tambm teria como origem a tentativa de fundar uma psicologiacomo cincia da subjetividade. Nessa ltima derivao, a psicanliseteria operado a passagem de um inconsciente fsico para um inconsciente

    psicolgico,9 de modo a pensar que O psquico no tosomenteo que est escondido, mas o que se esconde, o que escondemos,o que no mais apenas o ntimo, mas tambm de acordo com

    um termo retirado por Bossuet dos msticos o abissal. A psicologiano apenas a cincia da intimidade, mas a cincia das profundezas da

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    14/16

    alma.10 Na medida em que a psicologia como cincia da subjetividadenasce da tentativa de explicar o motivo de a razo enganar-se emrelao realidade,11 a teoria psicanaltica pode ser entendida comoaquela que encontra esse motivo na oposio entre a conscincia cognitivae a conscincia moral.12

    Essa dupla insero da psicanlise problemtica. Sem examinara questo prvia de saber se as condies epistemolgicas a serem satisfeitaspara que ambos os projetos sejam considerados cientficos soas mesmas, pode-se entender, sem muito esforo, que no primeiro

    8 No um exerccio intil tentar articular esses trs obstculos com trs dos quatro discursos que Lacandistinguiu mais tarde (ver LACAN, J. Le Seminaire, Livre xx: Encore. Paris: Seuil, 1975): o dauniversidade,o da histrica e o do mestre. Ou seja, interessante procurar mostrar como esses trs discursos, presentesnas prticas analticas que Lacan critica, impedem o nico discurso que seria produtor da verdade noregistrodo simblico: o discurso do analista.

    9 Pode-se apreender essa passagem no significado de inconsciente em Entwurf einer Psychologie(FREUD,S. GW, Nachtragsband, pp. 373-477). Alis, a grande novidade de Freud considerar que sintomas

    psicolgicospodem ter causas psicolgicas mesmo sabendo que, em ltima anlise, elas so fisiolgicas e tratloscomo se tivessem efetivamente causas psicolgicas. O preo a ser pago para tanto romper com aidentidadeentre o psquico e a conscincia.10 CANGUILHEM, op. cit., p. 20.11Ibid., pp. 15-16.12 A psicanlise de Freud at 1920 compreende o sintoma como uma m representao construda a

    partirda oposio entre essas duas conscincias. Em outras palavras, a questo cognitiva mediada pela

    questotica. No entanto, os limites da tica freudiana so os limites de toda concepo naturalista da moral.

    caso estamos tratando com causas e no segundo com motivos. No hsentido em falar em causas inconscientes, mas sem dvida razovelexpressar-se em termos de motivos inconscientes.13Muitos comentadores referem-se a essa caracterstica problemticada psicanlise de Freud: uma contnua passagem de um vocabulriocausal para um vocabulrio intencional, e vice-versa.14 Essa passagem

    j est presente em Studien ber Hysterie, de 1895. Nesta obrapodemos constatar uma diferena marcante entre o caso de Emmy

    von N. e todos os outros casos clnicos descritos. No primeiro, possvelater-se a um modelo causal e patolgico para que o caso se torneinteligvel. A histria da paciente s relevante para apresentao dosseus sintomas e para a descrio dos procedimentos utilizados. Nosoutros casos, a histria das pacientes essencial para a compreensoda gnese dos prprios sintomas. Em outras palavras, passa-se de umadimenso causal para uma dimenso intencional.15Por conseguinte, quem desejar submeter a psicanlise de Freud smesmas crticas formuladas por Canguilhem seja para rejeit-las, seja

    para aceit-las deve inicialmente se interrogar se vivel manter asduas dimenses ou se preciso optar entre elas. Para os que se inclinarem

    pela hiptese de que vital contemplar as duas dimenses, a tarefaser mostrar a possibilidade de construir, sem gerar paradoxos,

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    15/16

    uma mquina intencional.16 Caso tenham sucesso, o n seguinte a serdesatado apontar como essa teoria seria capaz de fazer predies esta a caracterstica marcante de uma cincia sem adjetivos apesardo seu carter intencional.17 A opo pela dimenso causal parece sera menos interessante, pois, alm de no poder assimilar uma parte relevante

    da teoria freudiana, tambm fracassa na tentativa de mostrar sua adequao a padresreconhecidos de cientificidade. Resta priorizar a dimenso intencional, como ocorre porexemplo com Lacan.

    13 Podemos ter a pretenso de estender a nossa responsabilidade ao inconsciente, mas no a eventosnaturais. Uma das premissas da cincia moderna o abandono de qualquer teleologia no plano danatureza, ou seja, j faz algum tempo que no atribumos intenes aos eventos naturais.

    14 Ver, por exemplo, BOUVERESSE, J. Philosophie, Mythologie et Pseudo-Science: Wittgensteinlecteur de Freud. Combas: ditions de Lclat, 1991, em especial o quarto captulo, pp. 82-96.

    15 O prprio Freud assinala que os seus casos se assemelham mais a contos do que a casos clnicos:Nem sempre fui um psicoterapeuta () e ainda me impressiona de forma peculiar que os histricos decaso que escrevo so para ser lidos como contos e que lhes falta, por assim dizer, a estampa sria do que cientfico. GW, I. Frankfurt: S.Fischer, 1977, p. 227.

    16 Acreditamos que, pelo menos at 1920, a psicanlise de Freud possa ser reconstruda como a tentativade formular de modo consistente uma teoria do aparelho psquico enquanto mquina intencional. Essamquina tambm padece desse mesmo engano assinalado por Canguilhem em relao psicologia comocincia da subjetividade: transforma a teoria da conhecimento que se origina em Descartes em teoriaemprica quando constitui uma histria natural do eu (Ich).

    17 A psicanlise parece ser construda de forma a fazer retrodies e no predies, ou seja, a teoria noseria capaz de prever, mas apenas de justificar as aes de um agente. Se houver acordo sobre este ponto,

    a tarefa desloca-se para mostrar que teorias desse tipo podem ser cientficas; demonstrao que no denenhuma maneira trivial. Se, por outro lado, a teoria fosse capaz de prever, ela no poderia conter numadimenso intencional sem gerar paradoxos, pois ou a teoria preveria intenes e estas no seriam maisintenes ou a teoria no seria capaz de prever intenes e, por conseguinte, no preveria.

    A PSICANLISE DE LACANEstamos supondo que, se no for possvel provar sua cientificidade,a psicanlise passvel de cair sob a trplice objeo formulada

    por Canguilhem. Assim, para que se revele isenta de tal crtica comoquerem alguns simpatizantes da psicanlise lacaniana , preciso indicaros motivos pelos quais o afastamento do psicologismo, por parte

    de Lacan, estariam ligados ao projeto de uma psicanlise realmentecientfica. Para entend-los, basta recordar as crticas de Politzer contraa psicologia clssica.18 Essa crtica igualmente inspirada em Kant ,

    pode ser resumida em poucas palavras: a psicologia padece de um profundoengano, pois ela resulta da transformao indevida da teoria doconhecimento que nasce com Descartes em teoria emprica.19 Assim,a psicologia teria abandonado o estudo dos atos de homens concretos

    para consagrar-se anlise de processos abstratos, ela tentaria ser a impossvelcincia da coisa em si. No caso de Freud, Politzer acredita queseria justamente a teoria sobre o inconsciente que levaria a psicanlise

    para o caminho da psicologia clssica, o que contraria a sua tendncia,

    presente na clnica, de ser uma psicologia concreta no sentido de privilegiara dimenso intencional. O psicologismo de Freud estaria presente

  • 7/27/2019 Que a Psicologia - Canguilhem, Georges

    16/16

    na sua metapsicologia, na sua teoria do aparelho psquico que,pelo menos at 1920, uma teoria da representao. Por conseguinte,um dos ns a desatar consiste em estudar as relaes entre Politzer eLacan, de modo a mostrar que a crtica do segundo ao modelo representativoda psicanlise clssica seria feita no sentido da crtica do primeiro

    a Freud. Em outras palavras, Lacan teria suposto que a remoodo psicologismo da teoria psicanaltica abriria o caminho para uma psicanlisecientfica. Remov-lo significaria afastar as cinco teses da psicologiaclssica sobre o fato psicolgico: a tese de que a forma ltimado psicolgico seria atomista (T1); de que o psicolgico apreendidode forma imediata pela percepo (T2); de que o psicolgico de naturezarepresentativa (T3); de que o psicolgico o que resulta de processos,e no de atos concretos de agentes (T4); e finalmente de que afuno da palavra denotar o psicolgico (T5). Assim, outro n paraser desatado certificar-se se possvel mostrar que a psicanlise lacaniana

    pode ser concebida enquanto crtica a essas cinco teses da psicologia clssica. Um outro

    ainda, talvez mais rduo, consiste em verificar se a remoo dessas teses suficientepara garantir a possibilidade de uma psicanlise realmente cientfica.

    18 POLITZER, G. [1928] Crtica dos Fundamentos da Psicologia. Piracicaba: Editora UNIMEP, 1998.19 Como bem observa Canguilhem, A meditao cartesiana no uma confidncia pessoal, ou seja, elano de natureza emprica, mas metafsica. Op. cit.,p. 17.

    CONCLUSOComo qualquer leitor atento de Que a Psicologia? pode constatar, essa conferncia

    plena de pistas e sugestes para pensar a psicologia nas suas mais diversas formas. Nonosso caso, foi a oportunidade para apresentar algumas reflexes epistemolgicas sobrea psicanlise de Freud e de Lacan.