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Artigo crítico, sobre a obra "O cortiço."
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QUE PAS ESTE?: O CORTIO REVISITADO
Elisabeth Batista
Entre as atribuies da crtica est a de encontrar um interesse novo em um objeto,
cujo eixo volta-se para representaes literrias nada recentes. A literatura, como sabemos, uma
recriao verbal da realidade atravs da imaginao do artista e, portanto, uma forma particular na
relao sujeito (autor) objeto (obra) de conhecimento na articulao de uma viso de mundo. O
objetivo que determina a leitura revisitada a esta obra dar relevo ao que foi representado de
forma inovadora na poca, instaurando um novo modo de narrar o cotidiano e a vida social,
razo pela qual se justifica o interesse contemporneo da leitura.
A literatura do sculo XIX presencia o declnio do Romantismo face nova viso
cientificista e esta viso caracteriza um novo modelo literrio: Realismo/Naturalismo, em que o
objeto de especulao literria passa a ser a realidade social. A produo literria de ento capta
as importantes mudanas sociais que afetam significativamente a mentalidade brasileira.
Neste sentido, o ponto de vista Determinista foi, junto com o Positivismo e o
Darwinismo, uma das mais importantes tendncias desse novo fazer literrio, pois, para a
mentalidade da poca, o conhecimento racional e experimental encontrava-se em franca
evidncia. Assim, era (!) o ideal de cientificidade baseado na idia de que a cincia uma
representao da realidade tal como ela em si mesma.
Durante certo tempo, julgou-se que a cincia, como a sociedade, evolui e progride.
Neste sentido, evoluo e progresso eram princpios muito recentes para a poca datam dos
sculos XVIII e XIX - e muito aceitos pelas pessoas. As noes de evoluo e de progresso
partem da suposio de que o tempo uma linha reta contnua e homognea. O tempo seria
uma sucesso de instantes, momentos, fases, perodos, pocas, que iriam se somando uns aos
outros, acumulando-se de tal modo que o que acontece depois o resultado melhorado do que
aconteceu antes. Contnuo e cumulativo, o tempo seria um aperfeioamento de todos os seres
naturais e humanos.
Na altura, a obra Memrias Pstumas de Brs Cubas, de Machado de Assis, acolhida com
enorme entusiasmo, contribuiu para o surgimento e o sucesso do movimento Realista na
Literatura Brasileira, podendo mesmo ser considerada o marco deste movimento e O Mulato, de
Alusio Azevedo, que inaugurou o estilo naturalista no Brasil.
Dentre as obras aluisianas, O Cortio, com uma escrita fortemente vinculada ao
determinismo, a que manifesta de forma mais fiel o ideal naturalista. Baseado na literatura de
Emile Zola, pensador francs, maior representante e fundador do movimento, Alusio descreve o
desenvolvimento das aes em grupos marginalizados, enfocando o homem preso s leis sociais,
fsico-biolgicas e hereditariedade, alienado, determinado, sem perspectiva e caracterizado pela
marcante animalidade representada nas personagens de O Cortio, em que os atos das personagens
ficam reduzidos aos instintos e s necessidades vitais.
So muitas e variadas as leituras feitas sobre a obra naturalista de Alusio Azevedo.
Contudo, nesse trabalho, enfocamos o meio como fator primordial, na medida em que adquire
contornos de uma matria-prima determinante na metamorfose das personagens.
Para tanto, realizamos uma reflexo articulada em dois momentos. No primeiro,
sero revisitadas as correntes filosficas e literrias que reverberam de forma significativa na
produo literria do perodo em que se deu a concepo da obra objeto da pesquisa. O segundo
momento traz, primeiramente, uma retomada com a sntese do enredo para retomar aspectos
relevantes e, na seqncia, a anlise das principais personagens desta produo literria,
evidenciando-se, assim, a influncia determinante do meio no processo de animalizao das
personagens na obra.
NATURALISMO: UM NOVO MODO DE NARRAR O COTIDIANO E A
VIDA SOCIAL
Determinismo: as implicaes cientficas na interpretao do mundo.??
Hipolyte Taine, terico francs, criador da Teoria Determinista, conseguiu oficializar
o conjunto de idias que j no mais causavam espanto ou escndalo mentalidade do sculo
XIX, mas tornavam-se cada vez mais comuns. Em Histria da Literatura Brasileira encontramos:
Interessavam-lhe os fatos, concretos, positivos, suscetveis de anlise e
experimentao, de forma que, com base no bom senso, se procurasse saber,
no o porqu, ou o qu, ou para qu, mas o como dos fenmenos reais.
(MOISS, 1984, p. 14)
isto o que importava para os deterministas, uma vez que determinado fato
somente passaria a ter importncia caso pudesse ser submetido experimentao, observao,
elaborao e confirmao de teses. Deste modo, os demais eventos que no pudessem ser
submetidos a esta anlise pormenorizada, no lhes serviriam como objeto de anlise. O novo
saber, inaugurado pelo surgimento das cincias modernas do sculo XVIII, deu oportunidade a
um grande progresso cientfico e tecnolgico, trazendo consequentemente, no sculo seguinte, o
melhoramento industrial e mecnico, a descoberta de novas fontes de energia como o vapor, o
petrleo, o gs e a eletricidade. Taine vivenciou essa grande revoluo cientfica que modificou as
idias e a vida em todos os aspectos. Observou que o progresso humano era a representao de
um jogo previsvel de causa e consequncia que, na linguagem comum, chamado de destino.
Cincia que tem o ser humano como objeto. Vale lembrar que o homem como objeto cientfico
recente, data do sec. XIX. Antes s a filosofia estudava o homem.
Assim, Determinismo foi a palavra usada como ttulo da Teoria de Taine, que se
completa com os pressupostos de algumas teorias como Evolucionismo, do ingls Charles
Roberto Darwin, que revolucionou o pensamento sobre a origem das espcies, afirmando ser o
homem, como os demais animais, resultado da evoluo de outros seres inferiores e
microscpicos que sofreram transformaes biolgicas ao se debaterem na luta pela
sobrevivncia diante dos predadores, ou para adaptarem-se s condies do ambiente,
conseguindo gradativamente novas aptides e formas fsicas que passam s geraes posteriores
pela transmisso hereditria em que s as melhores caractersticas se afirmam.
Taine baseia-se ainda no Positivismo desenvolvido principalmente pelo filsofo
francs Augusto Xavier Comte, propondo uma sistematizao e racionalizao do conhecimento
humano num conjunto lgico que admite apenas os fatos concretos, positivos, suscetveis
anlise e experimentao e que refuta os de cunho teolgico ou metafsico por no poderem ser
submetidos observao emprica palpvel, material e visvel.
Desta forma, o Determinismo caracteriza-se como um conjunto de idias que
combina o esprito racional positivista e a definio biolgica dos fenmenos sociais numa
confirmao experimentada, porque coloca os atos emocionais e as decises racionais do homem
sob as diretrizes originais e primrias da hereditariedade, do meio fsico e do momento histrico.
O pesquisador Taine mais conhecido por suas observaes e pela elaborao de leis
sociolgicas que explicam a vida do homem atravs dos fatores raa, meio e momento histrico.
Ele considera que o homem subjugado pelo destino e que est sujeito a um determinismo fatal,
desde a sua origem at o final da vida, pois, segundo ele, tudo o que existe tem uma causa e no
existe a escolha pela liberdade, mas pela necessidade. Nesse ponto, define-se que necessidade
aquilo que tem de ser, porque leis fsicas naturais regentes da matria determinam que aconteam
fatos que no podem deixar de ocorrer.
Podemos observar ainda o seguinte:
O Homem deixava, assim, de ser o centro do Universo e medida de todas as
coisas, como pedia o Romantismo egoltrico, para se transformar numa
engrenagem do mecanismo csmico e natural, com funes anlogas s das
outras peas, pertencentes ao reino animal, vegetal ou mineral. (idem, p. 16)
De fato, esta teoria se evidencia na produo literria do sculo XIX, em que no
poderia faltar a tese que os deterministas propunham comprovar. Em seus escritos, as pessoas
assumiro as formas, os hbitos e a natureza comuns que vo se rendendo ao jeito do lugar. Sem
escape, acabam por atestar que as necessidades fisiolgicas ou primrias do homem sempre
predominam e se sobrepem aos aspectos espirituais.
Como se sabe, a formao da Literatura Brasileira recente e para se entender
qualquer movimento literrio brasileiro, faz-se necessrio um retorno aos seus primrdios, uma
vez que, desde o incio, a literatura no Brasil caracterizou-se por uma luta entre a tradio
importada da Europa, em que surgem e se desenvolvem os movimentos e linhas filosficas, com
cultura e realidade diferentes, e a busca da tradio local. Conforme afirmado em Formao da
Literatura Brasileira:
O ambiente para a produo literria nos meados do sculo XVIII era, no
Brasil, o mais pobre e menos estimulante que se pode imaginar, permanecendo
a literatura, em conseqncia, um subproduto da vida religiosa e da
sociabilidade das classes dirigentes. Neste sentido, as Academias foram a
expresso por excelncia do meio e dos letrados, sendo uma espcie de
coletividade ao mesmo tempo autora e receptora da subliteratura reinante, -
pois tratava-se de subliteratura no apenas pela qualidade esttica inferior dos
espritos nela envolvidos, mas, ainda, pela deturpao da beleza e da coerncia
que foi o Cultismo portugus na sua fase final. (CNDIDO, 1975, p. 73)
A produo literria deste perodo, canal de expresso de um ambiente que no fora
propcio para o desenvolvimento de uma literatura nacional de reconhecida qualidade, precisava
libertar-se do modelo de produo literria importado at ento da Europa. Esta produo, tida
como subproduto das classes ocupantes do pice da pirmide social brasileira, passaria ento a
incorporar elementos da realidade brasileira em busca de sua auto-afirmao como literatura
representativa de uma genuna identidade literria nacional.
neste sentido que o poeta barroco Gregrio de Matos, apesar de sua produo
literria ainda ser uma imitao do modelo europeu, contribui para o surgimento de uma
literatura nacional. Tal afirmao s acontece definitivamente no Romantismo, quando os
escritores brasileiros utilizam-se da figura do indgena em substituio ao heri medieval. Alm
do mais, o enfoque nacionalista predominante como busca de uma identidade literria para o
pas. Contudo, em dado momento, os ideais romnticos no se mostram mais capazes de atender
s novas aspiraes da sociedade do final do sculo XIX, que frente s diversas transformaes
ocorridas, passa a exigir um novo modelo de produo literria. Acerca disto, destacamos as
seguintes palavras:
Apenas deveramos acrescer que o movimento subterrneo que vinha de
longe se originava nas contradies da sociedade brasileira do II Imprio, que
os compromissos do perodo romntico j no bastavam para atenuar. [...] H
um esforo, por parte do escritor anti-romntico, de acercar-se impessoalmente
dos objetos, das pessoas. E uma sede de objetividade que responde aos
mtodos cientficos cada vez mais exatos nas ltimas dcadas do sculo.
(BOSI, 1994, p. 166-167)
A sociedade brasileira desta poca presencia o declnio do Romantismo, pois a
Burguesia, o Clero e o Trono, instituies julgadas decadentes, mostram-se incapazes de atender
aos reclamos dos novos tempos que reclamam novos sentidos. A Revoluo Industrial, o
Movimento Abolicionista, o Cientificismo, so determinantes neste processo. O movimento
subterrneo citado pelo terico refere-se escola Realista/Naturalista, que surge justamente
com o propsito de buscar o mximo de objetividade na fotografao da realidade.
O sonho romntico de uma identidade literria nacional v seus maiores frutos no
Realismo/Naturalismo. Este estilo surge em decorrncia de uma revoluo nas idias e na vida da
conhecida gerao do materialismo.
As linhas gerais de um sistema ideolgico baseado no cientificismo racionalista do
sculo XIX so expressas com maior nfase no Naturalismo que se diferencia do Realismo em
vrios aspectos. Esta diferenciao torna-se evidente:
Quando a preocupao pela anlise se aguar, sobretudo levando em conta os
comportamentos hereditrios [...] estaremos na esfera naturalista. Se no caso do
romance realista podemos falar em viso esttica, no do naturalista a viso se
torna acentuadamente cientfica; o romance assume carter experimental [...]
(MOISS, 1984, p. 40)
Notamos claramente estas diferenas, pois enquanto os escritores realistas retratam
estreitamente a vida, retirando seus assuntos da realidade social de modo objetivo, fotogrfico e
documental, os naturalistas baseiam-se na observao e experimentao, no tratamento para
diagnosticar os males causadores do declnio da sociedade capitalista, tornando-se este
movimento uma expresso exagerada em relao escola realista.
O pensamento racionalista espalha-se por todo o mundo. E, em Portugal, destaca-se
o Realismo de Ea de Queirs com o romance O crime de Padre Amaro. Este autor influencia
fortemente a produo literria do Brasil da poca. Alguns autores, tambm arraigados ao modelo
de Ea de Queirs, excedem a linha realista e introduzem o Naturalismo em nossa literatura.
Nesta viso naturalista, na concepo de Candido (1993, p. 123) a obra era essencialmente uma
transposio direta da realidade, como se o escritor conseguisse ficar diante dela na situao de
puro sujeito em face do objeto puro.
Produz-se ento uma grande obra, que foi largamente aceita, j que o momento era
propcio ao empenho dos naturalistas de mostrar publicamente a realidade, revelando os
problemas da sociedade capitalista da poca de maneira direta, objetiva e detalhada. No Brasil, O
Cortio, de Alusio Azevedo, publicado em 1890, representa os aglomerados humanos nos grandes
centros, e os pressupostos cientficos do sculo XIX so transplantados para a obra literria,
numa tentativa de comprovar o fracasso do capitalismo e a decadncia do modelo social burgus,
que no atendia aos anseios do povo.
A obra de Alusio Azevedo expressa mais do que qualquer outra, o ideal naturalista
de definir o comportamento humano pelo mtodo cientfico, enfocando-o como animal
determinado por instintos, pelo meio em que vive, e com isso alcana grande projeo nacional e
independncia literria.
UMA VISO FATDICA DO SER HUMANO
O enredo: constante processo de metamorfose
A produo literria de O Cortio segue fielmente as tendncias naturalistas e, de
acordo com Candido (1993, p. 152) desejou uma narrativa empenhada, cheia de realidade, e que
no Brasil contribuiu de maneira importante pelo fato de ter dado posio privilegiada ao meio e a
raa como foras determinantes.
justamente este determinismo, to marcante nesta obra, que se procura destacar. A
posio de privilgio dada ao meio uma constante dentro de uma produo naturalista, e os
demais elementos, de uma narrativa empenhada e que seja cheia de realidade, tambm se fazem
presentes.
(De acordo com) Flora Sssekind, no ensaio Tal Brasil, Qual Romance? afirma o
seguinte:
literatura, dentro de uma esttica naturalista, se d uma embalagem
transparente atravs da qual se veja no um texto, mas um conceito indiscutvel
de realidade; no diferenas, mas continuidades e analogias. [...] Quanto mais
tal e qual parecer um texto, maiores so os elogios que recebe se avaliado
pelos padres de uma esttica naturalista. (SSSEKIND, 1984, p. 101-102)
Esta produo aluisiana torna-se referncia de um estilo literrio no somente pela
qualidade do texto, mas principalmente pela capacidade produtiva de seu autor, que a produz
conforme preconizava os padres estticos naturalistas. Alusio, em seu exerccio intelectual, de
extrema eficincia, pois ao trazer para o campo das representaes artsticas esse tipo de
aglomerado humano em seu texto, o faz de maneira to precisa, to objetiva, possibilitando a seu
leitor uma leitura simples e transparente da realidade, sem distores e ambigidades prprias do
ficcional.
No enredo da obra em questo, suas habitaes no podem ser consideradas casas,
ao contrrio, elas so tudo o que uma casa no deve ser. O que se espera de uma moradia que
fornea abrigo, isolamento e privacidade; elementos indispensveis para que se viva dignamente.
Seus habitantes no se sentiam abrigados e preservados, nem sequer dispunham de
um mnimo de privacidade. A vida particular de um morador era conhecida por todos e suas
aes podiam ser observadas pelos demais. O ambiente cortial permeava at mesmo o interior
de cada casa. Esse espao, considerado bem de raiz essencial para que o indivduo se mantenha
seguro. Na realidade, para diversas culturas a casa comparada simbolicamente imagem da me,
do aconchego, do amparo, para onde, no fim do dia, sempre recorremos a ela.
As personagens da obra, contudo, no podiam recorrer s suas moradias nas aflies,
pois sabiam que nelas no encontrariam paz para aliviar as tenses do dia. As habitaes
construdas no cortio foram despersonificadas para dar lugar a um aglomerado e o papel que as
casas exercem contrrio ao que deveriam exercer, em vez de segurana, expem seus
moradores ao profundo desabrigo, no s de corpo, mas, sobretudo, de albergue para a alma.
A construo da imagem dO cortio caracterizada semelhana de uma habitao de
abelhas, nascido a partir da ambio de Joo Romo cujo enriquecimento, conforme Cndido
(1993, p. 127) feito custa da explorao brutal do trabalho servil, da renda imobiliria
arrancada ao pobre, da usura e at do roubo puro e simples, constituindo o que se poderia
qualificar de primitivismo econmico. Este, aps a volta do patro para a terra natal adquire
todos os seus bens, aproveita-se da morte do companheiro de Bertoleza, a quitandeira mais
afreguesada do bairro, conquista-lhe total confiana a ponto de tornar-se seu tutor e seu
amante, explorando seus bens, sua fora de trabalho e tambm seu corpo.
Com o aumento do cortio, crescia tambm o nmero e a variedade de pessoas que
vinham em busca de habitao barata e mais prxima de seus trabalhos. Entre elas haviam
lavadeiras, mascates, operrios, costureiras, prostitutas, homossexuais e mendigos que juntas
produziam grande barulho e muitas confuses. Viviam na sujeira, num ambiente imundo onde
predominavam os vcios e as necessidades bsicas como comida, diverso e sexo eram as
principais preocupaes dirias. o que vemos neste fragmento extrado da obra em questo:
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela unidade quente e lodosa,
comeou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma
gerao, que parecia brotar espontnea, ali mesmo, daquele lameiro, e
multiplicar-se como larvas no esterco (p. 27)
O cortio se personifica, passa a ter vida prpria e esse ambiente vai determinar o
comportamento das personagens. Assim, as aes dos moradores do cortio podem ser
comparadas s partes de um nico ser vivo, porque agem em conjunto e so condicionados ao
meio, e desse ambiente desregrado no podem se desvencilhar. Observa-se que a coletividade
suprime os anseios individuais que ali no encontram foras para se manifestar. As personagens
agem apenas por instintos, influenciando uns aos outros sob o regime das leis fsicas.
Neste sentido, o cortio vive e sofre com os que chegam em busca de refgio e
sobrevivncia. foco de intrigas, sujeiras e maldades tanto dos prprios moradores como dos
que com ele tinham algum vnculo.
A obra evidencia tambm no pas em transio, na passagem do Imprio para a
Repblica, um contraste entre a aristocracia burguesa e o proletariado, o que visto na constante
luta entre os representantes dessas classes. Joo Romo representa o proletariado e dele se
aproveita para conseguir uma posio na classe burguesa. Este v em Miranda a oportunidade de
fazer parte da aristocracia.
Essa oportunidade apresenta-se quando Joo Romo percebe que somente o
dinheiro no lhe seria suficiente para viver na condio de aristocrata. Era essencial para isso
maior visibilidade social. Ento, com o apoio de Botelho, velho portugus arruinado que procura
sobreviver da caridade da famlia de Miranda, tenta casar-se com Zulmira, filha de Miranda e, a
partir da, persegue este intuito. Desse momento em diante, antevisionando o seu ingresso na
aristocracia, engrendra uma grande metamorfose ao procurar mudar seus hbitos higinicos e
culturais, deixando para trs seu modo de vida anterior.
A vida no cortio prossegue e ali chega um novo morador, Jernimo, um imigrante
luso que vem para qualificado para o trabalho na pedreira. Vem justamente porque tinha bons
mritos, j que fisicamente preenchia todos os requisitos necessrios para o cargo que iria ocupar,
pois era muito forte e exercia uma grande autoridade no comando dos demais trabalhadores. Mas
o meio tambm vai determinar suas aes. Logo se adapta coletividade do cortio, passando a
agir semelhante aos outros habitantes, adquirindo destes no somente a amizade como tambm
seus costumes, vcios, molstias, acabando por perder os vnculos e a cultura da terra natal.
Piedade, sua esposa, ao se ver desprezada pelo marido, no resiste presso do lugar
no qual est inserida e se entrega a mais terrvel e deprimente das condies que o ser humano
pode chegar: a inconscincia dos prprios atos e a prostituio involuntria, devido ao seu estado
de embriaguez. O que comprovado pelas palavras do narrador:
[...] comeou a afundar sem resistncia na lama do seu desgosto, covardemente,
sem foras para iludir-se com uma esperana ftua abandonando-se ao
abandono, desistindo dos seus princpios, do seu prprio carter [...] (p. 191)
Jernimo e Piedade tornam-se parte do organismo principal, pois so vitimados pelo
instinto e pela fora ambiental. Isto observado no tringulo amoroso formado por Jernimo,
Rita Baiana e Firmo. O portugus v-se envolvido pelo fascnio e o feitio da mulata que, mesmo
estando com Firmo, usa todo seu poder de seduo para atrair cada vez mais Jernimo, fazendo
com que ele perca a cabea e acabe por praticar homicdio e eliminar o concorrente.
Uma outra personagem cujo comportamento inteiramente determinado pela
ambincia do cortio Pombinha, constituda como um ser frgil em cuja constituio, pelo
menos, at os 18 anos no apresentava a maturidade fisiolgica para o ingresso na vida
reprodutiva, desde cedo estimada e adorada pelos moradores. Pombinha em sua funo de
escrever cartas a pedido dos habitantes do cortio, capta a fragilidade emocional dos machos
diante das fmeas, fragilidade que explorar muito bem depois, na medida em que percebe a
reao dos homens que perdoam humildemente as infidelidades das esposas, demonstrando com
isto, toda a sua vulnerabilidade emocional e psquica diante da astcia destas.
Neste percurso, o fato se agrava com o estreitamento da amizade entre Pombinha e
Lenie, uma cocote que se prostitui para ganhar a vida. Esta passa a exercer grande influncia
sobre a garota, fazendo com que ela se renda ao fascnio ilusrio daquela vida, superando a
mestra na arte de seduzir, manipular e explorar sexualmente seus parceiros. O crculo vicioso
tende a continuar, pois Pombinha j atrai a filha de Jernimo e Piedade, que se encontra em
estado de orfandade, na medida em que testemunha a desagregao familiar. Esta acaba por
encontrar na prostituio e promiscuidade uma forma de sobrevivncia, na medida em que toma
gosto pelo ofcio de se dar em aluguel.
Enquanto isso, Joo Romo tendo como foco, o intuito de alcanar uma posio na
alta aristocracia, v na Bertoleza um empecilho realizao dos seus propsitos imediatos. Na
medida em que Bertoleza no era mais necessria ao seu novo projeto de vida, posto que,
representava toda a vida miservel que o vendeiro dispunha em tempos nada distantes. Assim,
estuda formas de elimin-la, para isso conta com a ajuda de Botelho que tinha um antigo
preconceito pelos escravos. Surge a idia de devolv-la ao antigo dono. Bertoleza, entretanto, na
iminncia de ser assassinada, vive constantemente apreensiva e angustiada, no entanto, jamais
desconfia que seu grande amor havia lhe enganado desde o princpio e muito menos que a
devolveria escravido da qual imaginava ter-se libertado. Magoada e decepcionada, a negra
encontra no suicdio a liberdade que nunca possuiu em vida. Com a morte de Bertoleza, o
incndio do cortio e a aristocratizao de Joo Romo, o cortio sofre uma grande evoluo,
passando a ser chamado de Avenida So Romo. Juntamente com este ttulo, ganha outros ares e
j no cabe mais ali a misria, a sujeira, os barulhos, os vcios, as confuses e a prostituio
dantes. Todas estas caractersticas agora se concentram no cortio Cabea-de-Gato que decaa
medida que o outro evolua. Assim como na vida de Joo Romo, no novo ambiente do cortio
agora moravam pessoas idneas e de boas origens, enquanto no cortio Cabea-de-Gato viviam
aquelas de situao inferior.
O projeto ficcional de Alusio articula-se no estreito dilogo entre fico e vida social,
no qual o homem, enquanto persona ficcional vai ser tratado do ponto de vista experimental.
Neste contexto que prima pelo mtodo e pela cientificidade, o homem vai ser estudado a partir
do modelo hipottico-dedutivo. Buscava, desta maneira, por meio da representao artstica as
leis causais necessrias e universais para os fenmenos humanos.
O meio: elemento decisivo na personalidade das personagens
As personagens da obra foram criadas aps o autor ter entrado em contato com as
diversas tendncias cientificistas que se desenrolavam em sua poca. Desta forma aproveita-se
destes conhecimentos e do momento propcios que a realidade brasileira favorecia para
desenvolver a corrente naturalista do Brasil, j que o pas vivia e sofria grandes transformaes
naquele perodo de transio.
Percebemos na obra de Alusio Azevedo, o crescimento industrial e a decadncia
social na propriedade do cortio de Joo Romo: na viso da multido de moradores que
chegavam a cada dia no cortio, fazendo prosperar os pequenos comerciantes; na luta contra a
existncia da escravido vista atravs da personagem Bertoleza; nos grupos abolicionistas que
aparecem porta de Joo Romo no final do romance e na chegada dos imigrantes,
principalmente portugueses, em busca de novas perspectivas.
A obra de Alusio Azevedo um livro que, segundo Cndido (1993, p. 132) d
grande importncia natureza, mas concebida como meio determinante, moda naturalista. O
Cortio, diferentemente da primeira obra naturalista de Alusio Azevedo, bem recebido pela
crtica por ser um romance bem construdo e mais tarde, conquistador de grande pblico, sendo
hoje visto pelos melhores crticos como a mais representativa obra do estilo naturalista no Brasil.
Selecionamos, para examinar com maior profundidade, as seguintes personagens
femininas da obra: Pombinha e Bertoleza, que apontam com mais nitidez para a hiptese de que
o meio pode ser determinante no processo de animalizao em O Cortio. Para Cndido (1993, p.
145) a animalizao aparece como reduo voluntria ao natural, ao elementar comum, que
nivela o homem ao bicho.
medida que as personagens vo se integrando ao meio, d-se incio a um processo
de transformao que culmina com a total descaracterizao, no s fsica, mas principalmente
psicolgica, das mesmas, que passam a ser comparadas a animais, deixando de agir racionalmente
e passando a agir pura e simplesmente de maneira instintiva, ou seja, de um modo animal,
desprovido de qualquer indcio de racionalidade.
Para que se possa compreender o processo de transformao pelo qual as
personagens passam, preciso que, antes de qualquer coisa, no se perca de foco a tica
naturalista pela qual a obra deve ser analisada, pois esta perspectiva nos ajuda a compreender o
mecanismo de O Cortio, mecanismo este que, segundo Cndido (1993, p. 140) regido por um
determinismo estrito, que mostra a natureza (meio) condicionando o grupo (raa) e ambos
definindo as relaes humanas na habitao coletiva.
Pombinha: a continuidade cadeia da prostituio
Pombinha aparece na narrativa como a flor do cortio, muito bonita, frgil, ingnua,
com uma educao de menina rica. Em tudo contrasta com os demais habitantes do cortio. No
lhe permitido lavar e passar roupas, servios bsicos que as mulheres fazem quase
ininterruptamente, parando, praticamente, somente aos domingos e feriados.
A menina tinha seu noivo, Joo da Costa, que todos tratavam com grande respeito
porque lhe atribuam um timo futuro econmico e era atravs do noivo que a famlia de
Pombinha, composta por ela e pela me, esperava retornar ao antigo crculo social que havia
perdido pela falncia dos negcios e conseqente suicdio do chefe da famlia. No entanto, havia
um obstculo para a realizao do casamento de Pombinha e Joo da Costa. Apesar da idade de
dezoito anos, a garota ainda no tinha menstruado, e a me, a velha D. Izabel, mesmo vivendo na
penria e no desgosto, esperava ansiosamente que Pombinha se tornasse moa para s ento
cas-la. Fazia tudo isso porque era muito religiosa e achava errado entregar a filha a um
casamento sem ainda ser mulher de verdade.
Entretanto, de meiga e sensvel menina, Pombinha ia se transformando em
serpente to lentamente que no se podia perceber no seu interior. Isso acontecia devido sua
profisso de escriba, conforme assinalamos anteriormente, os moradores do cortio faziam dela
uma confidente, acabavam por imprimir na donzela a impresso de toda sorte de problemas,
vcios, paixes desenfreadas e ressentimentos de suas vidas desregradas, como afirma o narrador:
[...] a pobre rapariga ia acumulando no seu corao de donzela toda a smula daqueles
ressentimentos s vezes mais ftidos do que a evaporao de um lameiro em dias de grande
calor. (p. 65).
Pombinha, influenciada pelo ambiente em que vivia e pela seduo da vida que
levava a depravada Lenie, prostituta requisitada pela alta sociedade, toma definitiva
conscincia da fora e do poder de seduo da fmea diante da dependncia e vulnerabilidade do
macho, escravizado pela delicadeza e pelo enorme poder sedutor do sexo feminino.
Lenie, uma espcie de dolo dos moradores daquele aglomerado, justamente pela
maneira fina como se portava, as roupas de boa qualidade que usava, a situao econmica
privilegiada, utiliza deste subterfgio para aproximar-se de Pombinha e aproveitando-se da
ingenuidade da moa, a atrai sua casa juntamente com sua me, D. Izabel. L, Lenie
embebeda a me da garota, que vem a pegar no sono, e leva a pura donzela, Pombinha, para seu
quarto, com quem mantm uma relao sexual homoertica. A partir deste episdio marcante,
Pombinha transforma-se completamente e at mesmo seu grande desejo se realiza, a chegada da
menstruao, como que inter-relacionada e provocada pela experincia sexual. Este
acontecimento descrito de maneira espetacular e simblica, prenunciando o destino posterior
da mais nova mulher que se formava para o mundo. (p. 135).
Para Pombinha, o noivo agora se mostrava fraco, inferior. Sua inteligncia era
limitada, no tinha ambies para o futuro, e ela, completamente cega e deslumbrada com a sua
descoberta, sente agora repugnncia por Joo da Costa chegando a rejeit-lo. Se no fosse pela
me, o casamento nunca se realizaria. Porm, por meio da oniscincia do narrador revelado o
destino do casamento da personagem e tambm o futuro:
E na sua lama enfermia e aleijada, no seu esprito rebelde de flor mimosa e
peregrina criada num monturo, violeta infeliz, que um estrume forte demais
para ela atrofiara, a moa pressentiu bem claro que nunca daria de si ao
marido, que ia ter uma companheira amiga, leal e dedicada; pressentiu que
nunca o respeitaria sinceramente como a um ser superior por quem damos a
vida; que nunca lhe votaria entusiasmo, e por conseguinte nunca lhe teria amor
[...] (p. 141)
Pouco tempo durou o casamento, a recm casada no suportando o marido, arranjou
vrios amantes e, com o fim do enlace matrimonial, aps a morte da me, a nada pura Pombinha
passa a morar definitivamente com a madrinha. Logo brilha na nova profisso como se durante
toda vida tivesse sido preparada para exerc-la. Pombinha consegue fugir do ambiente
deprimente e nocivo que paira no cortio, entretanto, no escapa da influncia perniciosa que
recebeu durante o longo tempo que viveu l.
O ciclo da prostituio no pararia nas duas cocotes, Lenie e Pombinha, porque
Juju, a pequena afilhada de Lenie, e Senhorinha, a filha de Jernimo e Piedade, esto sendo
muito bem preparadas pelas duas prostitutas, assim como Pombinha o foi. Juju, mesmo to
pequena, desperta a ateno dos habitantes do cortio, porque se veste com roupas e acessrios
espalhafatosa igualmente madrinha, to admirada por todos do cortio. Os pais da menina,
cegos na sua ignorncia, sentem-se felizes e orgulhosos ao exibirem a filha aos amigos e vizinhos.
A situao de Senhorinha joga-a ao encontro da Pombinha, porque a menina praticamente rf
de pai e me, pois o pai a abandona e a me j no pode ser levada em conta, uma vez que perdeu
quase por completo a prpria identidade como ser humano. Senhorinha como at o nome sugere,
tomar o lugar que foi de Pombinha no cortio, e como no poderia deixar de ser, seguir de
acordo com a narrativa a trilha percorrida pela antiga flor do cortio (p. 41).
medida que Pombinha entra em contato com a sua prpria sensualidade e se torna
mulher, instruda pelo ofcio de se dar, exercita seus dons para atrair e mensurar a fragilidade
dos homens (CNDIDO, 1993, p. 145-146), torna-se uma verdadeira serpente, o que remete ao
arqutipo bblico da Eva, sedutora de Ado, e capaz de domin-los, manipul-los e conduzi-los
conforme determina sua soberana e delicada mo feminina. Constata-se que a influncia do meio
tida como fator preponderante na formao do indivduo, mesmo uma aguda inteligncia como
a de Pombinha no escapa a essa poderosa fora do ambiente em que o ser formado.
Bertoleza: entre a escravido hereditria e a ingenuidade
Escrava de nascimento, a personagem Bertoleza, consegue relativa liberdade de seu
dono, um velho cego que mora em Minas Gerais, porm, por sua pouca independncia, paga
grande quantia por ms. O fato no a desanima, com seu trabalho de vendedora de comida,
economiza para a alforria.
No seu percurso ficcional, o que a torna frgil a submisso ao homem branco,
herana cultural comum entre seres de sua raa, que viam no branco europeu superioridade
perante os negros, uma vez que os brancos usavam-nas para todos os fins, inclusive para o
sexual. A prtica desse hbito, seguido pelo sexo masculino de gerao em gerao, fez com que
escravas como Bertoleza, se submetessem ingenuamente, ao branco portugus, na nsia de
pertencer a uma raa privilegiada, libertando-se da escravido hereditria.
Esta maneira de agir das escravas nesta condio, s fazia aumentar as correntes que
as prendiam a um destino desgraado, como exemplifica Bertoleza que inicialmente amigada
com um portugus e aps a morte deste, se coloca nas garras de outro, o diablico Joo Romo,
que a transforma de mulher escrava em mulher-mquina (CNDIDO, 1993, p. 130). A negra
aceita isso de forma ingnua e estpida, pois passa o comando de suas decises, de seus negcios,
da sua vida para o inescrupuloso, amante, como pode ser visto nas palavras do narrador: E por
tal forma foi o taberneiro ganhando confiana no esprito da mulher que esta afinal anda mais
resolvia por si s, e aceitava dele, cegamente todo e qualquer negcio, nem mais se dava ao
trabalho de procur-la, ia logo direto a Joo Romo. (p. 16).
V-se, pelo enredo que estava traado o destino infeliz da escrava, a qual entrega at
mesmo suas sofridas economias para ao esperto companheiro. Em troca, recebe deste a mentira
de que havia comprado a alforria, acredita piamente, passando da em diante a exercer
alegremente importante papal na escalada de sucesso econmico do seu homem. O que
Bertoleza faz, retornar sem perceber condio de escrava, agora encoberta pelas diabruras de
Joo Romo, que fazia a negra trabalhar mais que um animal de carga.
Bertoleza, na inocente crena de que estava garantindo o seu futuro, comea
juntamente com o companheiro a roubar materiais de construo nas vizinhanas e neste ato fez-
se to hbil que jamais algum desconfiou. Assim, foi mais e mais caindo em uma profunda
escravido, pior ainda do que aquela em que havia nascido.
A vida passava e ela no se asseava, no se arrumava, nem to pouco tinha o mnimo
de entretenimento e lazer, trabalhava inclusive aos domingos e feriados, sem descanso e
dormindo pouco, estava sempre suja e nojenta. Como se depreende desta citao: Bertoleza
que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de servio, sem
domingo nem dia santo [...] (p. 146).
A negra condicionada ao seu isolamento social, sem amigos foi cega, pois nunca
parou para analisar o verdadeiro carter do vendeiro, no prestou ateno ambio desvairada e
febre contagiosa por dinheiro que seu homem possua. A quitandeira certamente achando-se
forte, por viver com um homem branco, fato de que se orgulhava, supervalorizou-se,
subestimando suas prprias necessidades. Essa atitude, por assim dizer, ser o eixo que determina
a sua desgraa e o seu fim natural, porque dominada por seu ego exaltado, nem mesmo reportou-
se s tristezas vividas por suas irms de cor, sempre que se envolviam com homens brancos.
O destino trgico da negra se aproximava medida que o sonho da riqueza de seu
carrasco se realizada e isso acontecia rapidamente, como declara o a oniscincia do narrador: [...]
medida que ele galgava posio social, a desgraada fazia-se mais e mais escrava e rasteira, Joo
Romo subia e ela ficava c em embaixo abandonada como uma cavalgadura de que j no
precisava para continuar viagem. Comeou a cair em tristeza. (p. 146).
Joo Romo, agora com a vida feita, com os bolsos cheios de dinheiro, grande
maioria conseguido atravs da explorao da fora de trabalho da negra, se d conta de que o
dinheiro no tudo, ele quer mais. Quer pertencer classe alta, tornar-se ilustre, que ser
admirado como uma pessoa importante e influente e deseja ser visto como um nobre.
Com o mais recente objetivo formulado e, com os meios certeiros para obt-lo, toma
conscincia de um entrave, de um grande e terrvel obstculo para sua realizao, Bertoleza, uma
vez que precisava, segundo Cndido (1993, p. 127) liquidar os passos do passado para assumir
uma posio nova.
Deste momento em diante, o mundo da crioula comea a ruir. Seu amante engendra
grande transformao nos prprios atos, muda a maneira de vestir, de comportar-se, aproveita
bem a vida, participa dos eventos, achega-se aos vizinhos e para ela, Bertoleza, resta somente
trabalho escravo agora juntamente com grande desprezo. Pior ainda a sensao de traio e de
perigo que passa a rond-la.
A infeliz sofre terrivelmente o abandono do ex-amante, porm, apesar de
desprezada, na sua eterna cegueira deseja-o desesperadamente como seu homem, como seu
senhor. No entanto, a cada dia passa a ser odiada e desprezada como um inimigo terrvel, como
um diabo. No tem mais utilidade para seu dono, serviu-o noite e dia sem reclamar, enriqueceu-o
rapidamente com a fora do seu trabalho jovem. No obstante, j cansada, triste e maltratada, na
poca em que mais precisava usufruir seus longos anos de esforos e sofrimentos, v-se
enganada, roubada e o que pior, na iminncia de ser assassinada por aquele a quem deu as
noites de sono, o lazer, a prpria vida.
Bertoleza, no fosse a inconscincia e a degradante submisso a que se submeteu
sempre, teria percebido o relativo poder que possua para enfrentar o portugus no momento
crtico em que estava. Joo Romo sentiu este poder e, pela primeira vez na vida, pode se dizer
que ele ficou sem sada, ficou amedrontado diante do papel que a negra tinha em seus negcios,
em sua vida. Foi preciso que o comparsa, Botelho, lhe arranjasse os meios de eliminar o
obstculo que, para ele, transformou-se temporariamente em problema sem soluo.
A derrotada escrava vendo-se trada, humilhada e acuada frente s injustias,
crueldade de seu homem, torna-se ainda mais inconsciente e ingnua devido ao desprezo que
sobre ela recaa. Ento, num instinto irracional, defronte a iminncia de ser devolvida famlia de
seu antigo dono na condio de escrava que se encontrava antes de conhecer Joo Romo, pe
fim prpria vida, deixando livre o caminho para seu companheiro. Para lidar com a rejeio e o
sofrimento, a morte foi a nica maneira que a negra encontrou para adquirir a liberdade, pois em
vida jamais a conheceu.
O projeto ficcional de Alusio afina-se com o estudo do humano como objeto de
investigao. Esta opo epistemolgica remonta ao sculo XV, a partir de onde, a investigao
do humano realizou-se de trs maneiras diferentes. Pelo Humanismo, no sec. XV idias
renascentistas dignidade do homem como centro do universo. Continua nos secs. XVI e XVII
com o estudo do homem como agente moral, poltico e tcnico-artstico, destinado a dominar e
controlar a natureza e a sociedade, chegando ao sec. XVIII quando surge a idia de civilizao,
isto , do homem como razo que se aperfeioa e progride temporalmente por meio das
instituies sociais e polticas.
O perodo do Positivismo: inicia no sec. XIX com Auguste Comte a humanidade
atravessa trs etapas progressivas, indo da superstio religiosa metafsica e teologia para
chegar finalmente cincia positiva, ponto final do progresso humano. Comte enfatiza a idia do
homem como ser social e prope o estudo cientfico da sociedade.
Como resposta aos postulados positivista, por meio do seu projeto ficcional a obra
de Alusio Azevedo procura comprovar, via representao artstica, que o comportamento do
homem condicionado pelo meio em que vive e por esse pressuposto no chegaria a diferenciar
dos animais irracionais, uma vez que as aes realizadas pelos personagens do livro so sempre
motivadas pelo princpio da instintualidade, ou seja, so impensadas e movidas pela compulso
egiaca.
Essa animalidade mostrada no romance pelas aes das personagens como
Jernimo, Pombinha e Bertoleza, as quais so representadas de tipos comuns sem perspectivas,
alienados, agindo instintivamente, presos s necessidades do momento.
Alusio no s compara os moradores do cortio a animais, atravs de apelidos,
como tambm faz uma elaborao artstica que nos permite ver nas personagens, e ainda, na
coletividade, os fenmenos evolutivos de um ciclo vital e a confirmao de que agem,
basicamente, como simples animais na busca diria por satisfazer a voracidade de suas
necessidades bsicas imediatas.
Jernimo apresentado como chefe de famlia bem, educado e com bons hbitos
que no consegue resistir s fortes influncias do cortio. proporo que se entrega ao amor de
Rita Baiana, vai sendo absorvido pela terra, de etapa em etapa, at a completa mudana da
personalidade. Esta famlia o modelo para pr em prova o poder do meio sobre todos que ali
vivem, pois nela recai a mxima imundcie do lugar e as conseqncias so a degradao e at
mesmo a morte.
Com Pombinha, Alusio procura comprovar que as influncias negativas do meio
tm uma continuidade, semelhana do aspecto fsico e se impe a qualquer tipo que venha a
conviver naquele ambiente viciado da prostituio. Lenie o foco central que envolve
seqencialmente as trs representantes da cadeia da prostituio no cortio, dando exemplo de
uma continuidade malfica que parece contaminar as demais. Sem qualificao profissional,
adotaro a prostituio como ofcio e como forma de obterem o seu sustento atravs dos
machos.
Em relao Bertoleza, vemos que ela a encarnao daquela coletividade e o seu
valor simblico alcana extraordinria fora ao se revelar pessoa explorada at a ltima gota,
tendo contribudo de todas as formas para o enriquecimento do taberneiro para, em seguida, ser
descartada por ele. compelida, tambm por essa razo, a agir de forma irracional e acaba por
suicidar-se em busca de liberdade, aps a revelao de a sua condio de ser escrava encontrava-
se irrevogavelmente mantida.
A obra O Cortio rende a Alusio Azevedo um lugar de destaque dentro de nossa
Literatura. Uma produo cone do estilo naturalista, em que seu autor demonstra nesta to bem
realizada narrativa que o meio pode ser fator determinante no processo de animalizao de suas
personagens e que tal fator tambm determinante na fantstica construo da vida, ou seja, o
ser humano condicionado pelo meio em que vive e muitas vezes age instintivamente,
semelhana dos animais.
Assim, na medida em que a representao artstica do espao e da vida social na poca
do Imprio em transio para a Repblica no Brasil apresenta-se perpassada pela animalizao
das personagens e a crueldade social articula-se como um eixo temtico relevante da literatura
naturalista, a representao do gnero feminino vem associada concepo que se tinha da
mulher no perodo medieval: ambgua e sedutora. Identificada assim, traduz o mal estar
sintomtico que marca a projeo do olhar masculino, seu oposto complementar, de acordo com
a conceituao patriarcal e como um produto de prticas crticas institucionalizadas, bem como
prticas da vida cotidiana. Para finalizar, ao seguir a trilha aberta pelo olhar do Alusio Azevedo
sobre o pas em transio, sou da opinio de que ser pela via da pesquisa e dos estudos do
percurso da mulher que encontraremos uma chave interpretativa para o secular enigma que
deixou em aberto a pergunta: Que pas este?
REFERNCIAS
AZEVEDO, Alusio. O Cortio. So Paulo: Martin Claret, 2004.
BOSI, Alfredo. Histria concisa da Literatura Brasileira. Ed. 42. So Paulo: Cultrix, 1994.
CNDIDO, Antnio. Formao da Literatura Brasileira. Belo Horizonte Rio de Janeiro: Itatiaia
Limitada, 1975.
______. O Direito Literatura. In: Vrios Escritos. So Paulo: Duas Cidades, 1995.
______. O discurso e a cidade. So Paulo: Duas Cidades, 1993.
MOISS, Massaud. A Literatura Brasileira atravs dos textos. Ed. 23. So Paulo: Cultrix, 1971.
______. Histria da Literatura Brasileira. Vol. III. So Paulo: Cultrix, 1984.
SSSEKIND, Flora. Tal Brasil, Qual Romance? Rio de Janeiro: Achiam, 1984.