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QUE PAPEL CABE ÀS EMPRESAS ESTATAIS NO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO ? UMA PERSPECTIVA DE DIREITO CONSTITUCIONAL Luiz Gustavo Kaercher Loureiro e Itiberê de Oliveira Castellano Rodrigues 1

Que papel cabe às empresas estatais no setor elétrico ... · quanto à função das estatais na expansão da oferta e mesmo quanto à conveniência de sua ... ideológico-prescritiva

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QUE PAPEL CABE ÀS

EMPRESAS ESTATAIS NO

SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO ?

UMA PERSPECTIVA DE DIREITO

CONSTITUCIONAL

Luiz Gustavo Kaercher Loureiro e Itiberê de Oliveira Castellano

Rodrigues

1

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QUE PAPEL CABE ÀS EMPRESAS ESTATAIS NO SETOR ELÉTRICO

BRASILEIRO ?UMA PERSPECTIVA DE DIREITO CONSTITUCIONAL

Luiz Gustavo Kaercher Loureiro e Itiberê de Oliveira Castellano Rodrigues

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Sumário

Introdução 4

I - O Cenário de Operações: a indústria da energia elétrica na Constituição 5

II – Os sujeitos: as “estatais” 10

III – As estatais federais no setor elétrico 14

IV – As conseqüências: o regime jurídico das estatais federais do setor elétrico 21

Bibliografia de Referência 25

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Introdução

É traço característico do Setor Elétrico Brasileiro (SEB) a sua composição institucional

mista, sobretudo no segmento da geração de energia: aproximadamente 62% da capacidade

instalada total do SEB está sob o controle de empresas estatais de variado tipo. Este dado por si

só é suficiente para atribuir importância à questão acerca do papel que podem ter estes entes

públicos na oferta de energia elétrica.

Se, além disso, se consideram os recentes temores acerca da possível insuficiência de

oferta de energia no médio prazo (2009-2011) e a existência de posições nitidamente antagônicas

quanto à função das estatais na expansão da oferta e mesmo quanto à conveniência de sua

existência neste setor, um estudo de caráter jurídico que investigue as possibilidades e limites de

atuação destas pessoas no SEB justifica-se também pela atualidade.

Faz-se aqui uma abordagem exclusivamente jurídico-constitucional desta questão e

procede-se através de uma apresentação e análise dos dispositivos da Constituição brasileira de

1988 que se referem (i.) ao setor econômico específico da indústria elétrica e (ii.) aos sujeitos

públicos, considerados enquanto pessoas jurídicas i.e., entes dotados de personalidade de direito

à qual se segue um determinado regime jurídico. Possui, portanto, duas perspectivas, uma

objetiva e outra subjetiva. Estima-se que cada um destes “grupos normativos” traz informações

relevantes e que apenas a visão integrada deles permite enquadrar as discussões em curso, ainda

que estas se situem fora do plano normativo. Por vezes, a desconsideração de um destes

elementos dá ensejo a afirmações juridicamente equivocadas, embora plenas de sentido político

ou econômico. Por ter este viés de análise, o estudo tem uma pretensão instrumental e não

ideológico-prescritiva. Não toma posição em favor de uma ou de outra escolha de ação concreta

das estatais no SEB. Procura, antes, articular, a partir da Constituição de 1988, um “quadro

jurídico” de referência dentro do qual deveriam ser conduzidos os debates.

O trabalho está estruturado em torno das duas perspectivas antes apontadas – a objetiva e

a subjetiva - e de sua integração: na seção I apresenta-se o “cenário de operações”, i.e., a

indústria elétrica, buscando identificar nesse âmbito as competências estatais, as formas jurídicas

de realização das diferentes atividades setoriais, o papel da iniciativa privada etc. Elaborado o

cenário, o estudo dos sujeitos públicos, feito na seção II, dará particular atenção para a Sociedade

de Economia Mista (SEM) e a Empresa Pública (EP), especialmente as federais, visto que as

atividades de produção, transporte, distribuição e comercialização da energia elétrica estão na

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órbita de competências da União. Como síntese, a seção III investiga conjuntamente as duas

perspectivas antes vistas isoladamente, ou seja, a atuação das empresas estatais (federais) no

setor elétrico brasileiro. Sustenta-se, aí, a tese de que não são concessionárias, permissionárias ou

autorizadas da União mas manifestações de sua ação direta nesse setor, do que decorrem várias

conseqüências jurídicas, algumas das quais referidas brevemente na seção IV.

I - O Cenário de Operações: a indústria da energia elétrica na

Constituição

Conquanto tenha adotado inequivocamente uma configuração da ordem econômica1 de

tipo capitalista onde as atividades de produção e circulação de bens e serviços são confiadas

primária e genericamente à iniciativa privada - com o conseqüente reconhecimento dos

instrumentos jurídicos necessários para seu desenvolvimento, tais como a propriedade privada, a

liberdade de contrato e a livre concorrência - a Constituição brasileira de 1988 não deixou de

atribuir ao Poder Público2 significativos espaços de atuação como agente econômico, para além

das tradicionais competências de regulação, fiscalização e fomento3.

Partindo de idéias desenvolvidas em outros trabalhos4, pode-se afirmar que as hipóteses

de ação econômica estatal direta estão articuladas em dois grandes e radicalmente diferentes

modos jurídicos de atuação estatal, previstos nos arts. 173 e 175 da Constituição5: ora o Estado

1 O art. 170 abre o Título VII da Carta, intitulado “Da Ordem Econômica e Financeira” nos seguintes termos:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos

existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade

privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive

mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e

prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as

empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos

públicos, salvo nos casos previstos em lei.”

Todos os artigos citados no texto e cuja fonte não for referida são de origem constitucional. 2 União Federal, Estados ou Municípios. No texto ter-se-á por intercambiáveis as expressões Poder Público e Estado. 3 Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização,

incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. (...).

4 Itiberê Oliveira, “Fundamentos Dogmático-Jurídicos dos Serviços Públicos na Constituição de 1988” in Direitos Sociais & Políticas

Públicas, organizadores: Jorge Reis e Rogério Leal, Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007, t. 7.

Luiz Gustavo Kaercher Loureiro, “A Atuação Econômica Estatal Direta: Hipóteses e Regimes Jurídicos”, em vias de publicação na

Revista de Direito Administrativo e Constitucional A&C, Belo Horizonte: Forum, 2007.

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atua em paralelo com os agentes privados, ora é o titular exclusivo da competência para a

atividade (cuja execução, apenas, ele pode delegar a empresas privadas, cfe. infra).

No primeiro caso - menos discrepante dos princípios da Carta do que o segundo - o Poder

Público não possui qualquer monopólio jurídico da área produtiva em questão e por isso não afasta

os agentes privados ali já operantes nem impõe qualquer barreira à entrada de novos: ele

simplesmente ingressa na arena onde a preexistente atividade dos particulares deve continuar a

desenvolver-se, i.e., o espaço da livre iniciativa. Nos termos vagos do texto constitucional (art.

173), essa “invasão” somente poderá ocorrer para o atendimento de “relevante interesse

coletivo” ou de “imperativos de segurança nacional,” previamente definidos por uma lei ordinária

legitimadora dessa medida6.

A ação estatal, neste caso, não elimina as notas características normativas que regem o

cenário econômico geral: a livre iniciativa, a competição (e ausência de títulos jurídicos de

delegação para atuar), a propriedade privada e a liberdade de contrato. Tanto assim que a presença

do poder público, materializada por meio da criação da empresa pública e da sociedade de

economia mista, deve ocorrer em total “paridade de armas”, tal como ditado pelos §§ 1° e 2° do

5 Art. 173 Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida

quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem

atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I - sua função social e

formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto

aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e

alienações, observados os princípios da administração pública; IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e

fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos

administradores.

§ 2º - As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor

privado.

§ 3º - A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade.

Cumpre registrar uma diferença entre os autores que não impede, porém, que compartilhem as idéias de fundo desenvolvidas no

corpo do texto.

Enquanto o Prof. Itiberê Rodrigues, com apoio da doutrina constitucional majoritária, sustenta que os dois modos jurídicos referidos no

texto partem de dois diferentes artigos, o 173 e o 175, o Prof. Gustavo Kaercher Loureiro entende que estão ambos previstos no art.

173, citado. Nesse caso, o art. 175 seria apenas um instrumento oferecido pela Constituição ao Legislador Ordinário para dotar de um

certo regime jurídico as atividades de titularidade estatal, referidas no caput do art. 173 pela expressão “ressalvados os casos previstos

nesta Constituição”. Em todo o caso, como dito, a divergência diz respeito aos fundamentos e à exegese constitucional, mas não se

estende ao regime jurídico e às formas genéricas de manifestação do Estado como agente econômico.

6 Tal se explica porque, mesmo que o Estado não afaste os agentes privados, sua presença aí é um fenômeno especial e por isso a

Constituição exige uma norma do Parlamento para legitimar a ação estatal, por meio da definição do interesse coletivo ou do imperativo

de segurança nacional que a justifica.

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art. 173. Ou seja: a ação pública não só não elimina a presença de agentes privados como deve

desenrolar-se com observância da exigência de isonomia de tratamento7.

Daí porque o Superior Tribunal de Justiça já afirmou que, nesse âmbito, "ao Estado não é

lícito fazer concorrência desleal à iniciativa privada"8. E nessa mesma senda o Supremo Tribunal

Federal entendeu que "a norma do art. 173, § 1º, CF 1988 ... visa a assegurar a livre concorrência,

de modo que as entidades públicas que exercem ou venham a exercer atividade econômica não

se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem a

atividade econômica na mesma área ou em área semelhante"9. A partir de tais princípios, uma

série de vantagens e privilégios outorgados pelo legislador ordinário a empresas públicas e

sociedades de economia mista exploradoras de atividades de livre iniciativa foram considerados

como inválidos pelo Tribunal Supremo10.

O segundo modo jurídico fundamental (indicado genericamente pela expressão

“ressalvados os casos previstos nesta Constituição” do caput do mesmo art. 173, a qual remete a

vários artigos espalhados pela Constituição11) é muito diverso do primeiro, em sua conformação

normativa. Em princípio, nesses “casos previstos”, as atividades econômicas indicadas pela

Constituição foram confiadas ao Poder Público em regime de exclusividade jurídica12.

Aqui, ao contrário do que ocorre no primeiro grupo, o Poder Público é o titular da

competência - o sujeito econômico “primário”, do ponto devista jurídico - e a ação privada, quando

7 Dizer que há isonomia de tratamento ou paridade de armas não é o mesmo que afirmar ser o regime jurídico das estatais, mesmo

quando atuam em paralelo com os privados, rigorosamente idêntico ao que incide sobre as empresas privadas, como se verá adiante.

Diferentes regimes jurídicos podem garantir isonomia de tratamento. 8 STJ, in BDA Janeiro-1994/43. 9 STF, in RDA 195/197. 10 Cf. por exemplo STF, in RE nº 117.956, in DJU 05.03.1993; MS nº 21.200, in DJU 10.09.1993; ADIn nº 1.552, in DJU 17.04.1998;

ADIn-MC 2.126-5, in DJU 28.04.2000 e Informativo STF nº 186; AI nº 349.477, in DJU 28.02.2002; 11 À vista d’olhos, são 19 atividades econômicas atribuídas diretamente ao Estado, espalhadas ao longo do texto constitucional, grande

parte delas ligadas à infra-estrutura. Por essa simples constatação, impressiona o fato de que, conceitualmente excepcional a atuação

econômica estatal direta, os casos concretos em que ela ocorre – por querer constitucional - não são poucos, além de serem

importantíssimos 12 É como se a Constituição considerasse que a presença econômica direta do Estado fosse suplementar mas necessária e devesse se

manifestar de dois modos, um mais, outro menos desviante das bases capitalistas da ordem econômica. Nos casos mais agressivos,

de monopólio jurídico da atividade, procedeu ela própria à indicação; naquelas hipóteses em que o interesse público pode ser atendido

sem exclusão da atividade de sua esfera “natural” (livre iniciativa), limitou-se a estabelecer uma cláusula finalística geral (atendimento à

imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo), o princípio da isonomia de tratamento entre sujeitos privados e

estatais (§§ 1º e 2º) e, por último, a exigência de uma lei (meramente) ordinária de chancela.

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possível, é derivada (tecnicamente, delegada13) e fruto de uma escolha explícita do senhor da

atividade (União, Estados ou Municípios). Não se está, conceitualmente, no âmbito da livre

iniciativa (ainda que isto não vede o exercício da atividade em regime de competição titulada).

Neste segundo plano é que se situam as indústrias elétrica, do petróleo e do gás, para ficar

na área energética.

Por força do art. 21, inc. XII, letra b, “compete à União (...) explorar, diretamente ou

mediante autorização, concessão ou permissão (...) serviços e instalações de energia elétrica e o

aproveitamento energético dos cursos de água”. Vale dizer: a produção, transmissão, distribuição

e comercialização de energia elétrica são atividades de titularidade federal e a União poderá atuar

diretamente ou “indiretamente” (“mediante”), valendo-se de agentes titulados (por concessão,

permissão ou autorização). Como dito, a União Federal é o agente primário; os privados são

agentes juridicamente secundários, inteiramente dependentes de uma prévia decisão e titulação

estatal específicas para poder atuar.

Sem adentrar a infindável polêmica acerca do conceito de serviço público14, pode-se dizer

que decorrem do fato de ser a atividade em questão uma competência pública as seguintes

conseqüências normativas:

• O Estado não só regula, fiscaliza e fomenta com mais intensidade estas atividades (art.

174) como possui todas as competências a ela relativas, inclusive e sobretudo, a de

execução. No âmbito das ações produtivas, essas hipóteses materializam o mais

intenso envolvimento público.

13 Considerando o que se vem dizendo, não se pode admitir que a autorização mencionada nesses dispositivos seja meramente de

polícia, como se vem sustentando no Brasil (v., por todos, Alexandre Santos de Aragão, cit., p. 226 e segs.). Visto ser a atividade

estatal, nos termos dos dispositivos constitucionais (cfe. infra), cuja execução, apenas, pode ser atribuível a terceiros, parece

necessário considerar também a autorização como uma delegação (se de serviço público, é outra questão). Em todo o caso, uma tal

mais flexível do que a concessão ou permissão e com menor conteúdo regulatório, alcançada a todos aqueles que satisfizerem certas

exigências gerais feitas pelo poder público. Em sentido semelhante, Almiro do Couto e Silva, “Privatização no Brasil e o Novo Exercício

de Funções Públicas por Particulares. Serviço Público à Brasileira ?”, in Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro:

Renovar, 2002, v. 230. 14 Novamente aqui cabe pontuar uma diferença entre os autores. Para o Prof. Itiberê Rodrigues, estas atividades de titularidade estatal

qualificam-se como serviços públicos. Para o Prof. Gustavo Kaercher Loureiro, não necessariamente. Novamente, a diferença de

pontos de vista não impede que compartilhem as afirmações feitas no texto, mantido o plano genérico da titularidade estatal não

qualificada.

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• Essas atividades são o espaço não somente privilegiado para a formulação e execução

de políticas públicas, mas o espaço por excelência destas: políticas públicas são

possíveis e necessárias acima de tudo no âmbito daquelas atividades que são

consideradas como de interesse geral ou coletivo e de atribuição estatal. Trata-se de

uma decorrência da constatação anterior que, por sua importância e pelos reflexos que

produz, deve ser salientada.

• Sendo uma competência pública, a forma juridicamente normal de seu

desenvolvimento é a execução pelo próprio titular, o Poder Público. A participação

privada, nesses casos:

o é derivada (não originária) e inteiramente dependente de um prévio título

específico (concessão, permissão ou autorização);

o circunscreve-se exclusivamente à execução do serviço ("modos de gestão do

serviço") visto que as demais competências ("organização fundamental do

serviço") não são consideradas transmissíveis. Os privados são, juridicamente,

delegados do Poder Público.

• A atividade é juridicamente vinculada à realização dos objetivos e fundamentos da

República Brasileira (arts. 1º e 3º da Constituição) e não é orientada primariamente para

a satisfação de interesses individuais (egoístas). Esta importante nota teleológica

decorre de duas ordens de consideração. A primeira: se a atribuição de competências

econômicas ao Estado se constitui em uma importante exceção aos princípios da livre

iniciativa, livre concorrência e livre exercício de profissão, tal só poderá ser feito na

medida e porque há motivos fundamentais para tanto. A segunda: se se considera

também que o Estado, por definição, não age em seu próprio interesse e que por isso

as competências públicas não foram instituídas para o locupletamento do seu titular,

mas sim em favor do interesse público, chega-se, então, à conclusão de que esses

motivos fundamentais estão necessariamente relacionados com os valores fundantes

da República, elencados pela Constituição, tais, por exemplo, os de promoção da

cidadania, dignidade da pessoa humana (art. 1º, incs. II e III), o desenvolvimento

nacional, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e regionais (art.

3º, incs. II e III) etc. Quanto mais forte e abrangente é o princípio da organização

capitalista da economia, mais cheias de significado jurídico devem ser as exceções a

ele, como é o caso aqui. Com mais forte razão, então, vê-se como estas atividades

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prestam-se à formulação e execução de políticas públicas tendentes à realização, no

setor específico, desses objetivos gerais.

• O regime jurídico está delineado pela Constituição, mas não estabelecido em

profundidade. As idéias acima formuladas, conquanto indiquem e orientem a

construção efetiva do regime jurídico dessas atividades especiais, exigem ulterior

intervenção normativa. Em particular, não excluem uma atuação competitiva em toda

ou apenas em parte da área reservada. É tarefa do legislador ordinário estabelecer, em

atenção aos princípios constitucionais mencionados e às características empíricas

(técnicas e econômicas) da atividade, a forma concreta de sua execução. Se optar por

instaurar algum tipo de competição, não deve perder de vista que se tratará sempre de

uma competição relativa (porque previamente titulada mediante delegação a um

número previamente limitado de particulares) e incidente em uma atividade de especial

relevância social e que, acima de tudo e por isso, foi constitucionalmente concebida

como competência pública.

Estas são os traços jurídicos básicos da indústria elétrica, o cenário de operações onde

atuam as empresas estatais, objeto de atenção a se no próximo tópico.

II – Os sujeitos: as “estatais”

Seguindo a tradição do direito brasileiro, a Constituição de 1988 distingue entre a

Administração Direta e a Administração Indireta15. Direta é a “que se constitui dos serviços

integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios” (art. 4°, inc.

I, do Decreto-Lei 200•1967)16. Indireta, a “que compreende as seguintes categorias de entidades,

dotadas de personalidade jurídica própria: a.) autarquias17; b.) empresas públicas18; c.) sociedades

de economia mista19 e d.) fundações públicas.” (art. 4°, inc. II do Decreto-Lei 200•196720) 21.

15 Para uma crítica desta dicotomia, que estaria superada, v. Roberto Ribeiro Bazzili. “Serviços Públicos e Atividades Econômicas na

Constituição de 1988”, in Revista de Direito Administrativo RDA, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, v. 197.

16 No texto segue-se a legislação federal, mas é fundamental ter presente que, dada a estrutura federativa do Estado brasileiro (arts. 1°

e 60, § 4° da Constituição), estas categorias e pessoas se apresentam nos três níveis da Federação, i.e., o federal, o estadual e o

municipal. Essa distinção terá reflexos na análise a ser desenvolvida na seção III.

17 Referidas pela Constituição nos arts. 22, inc. XXVII; 37, incs. XI, XVII e XIX; 38, caput; 39, § 7º; 40, caput; 52, inc. VII; 54, inc. I, a; 61,

§ 1º, a; 109, inc. I e IV; 144, § 1º, inc. I; 150, § 2º; 157, inc. I; 158, inc. I; 160, par. único, inc. I; 163, inc. II; 202, §§ 3º e 4º; 19 ADCT e 72,

inc. I ADCT.

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O traço distintivo entre as duas grandes categorias (Administração Direta•Indireta) é a

especialização de tarefas levada a efeito por meio da atribuição - ou não - de personalidade jurídica

a um complexo de bens e pessoas destinados à realização de uma certa atividade determinada. A

imputação de personalidade a repartições estatais é uma técnica jurídica que tem estreita relação

com o fenômeno empírico de crescimento das tarefas econômicas cometidas ao Estado,

verificado ao longo do século XX: às crescentes manifestações do Poder Público como produtor

de bens e•ou riquezas, cada vez mais exigentes de especialização técnica e de pessoal, autonomia

gerencial e ordenação racional dos recursos econômicos, o direito respondeu com a

personalização que importa no destacamento dessas tarefas do corpo outrora indiviso do Estado22.

Desde logo, nota-se também que não fazem parte da Administração Indireta sujeitos (dotados

obviamente de personalidade jurídica) não criados pela entidade da Administração Direta, ainda

que encarregados por esta de realização de tarefas suas, como os concessionários,

permissionários ou autorizatários23.

Embora tenha individuado quatro espécies – ou “pessoas” - no gênero “Administração

Indireta”, a Constituição submete-as, todas, a certas regras jurídicas que constituem o núcleo do

regime jurídico-administrativo das pessoas estatais – i.e., um conjunto limitado de imperativos

18 Referidas pela Constituição nos arts. 22, inc. XXVII; 37, incs. XVII, XIX e § 9º; 54, inc. I, a; 109, incs. I e IV; 173, §§ 1º, 2º e 3º; 169, §

1º, inc. II; 202, §§ 3º e 4º; 8º, § 5º ADCT e 81 ADCT.

19 Referidas pela Constituição nos arts. 22, inc. XXVII; 37, incs. XVII, XIX e § 9º; 54, inc. I, a; 173, §§ 1º e 2º (mas não o § 3º); 169, § 1º,

inc. II; 202, §§ 3º e 4º; 8º, § 5º ADCT e 81 ADCT.

20 Fica aqui em aberto a discussão (no plano constitucional) a respeito de sua natureza jurídica, e da possível

dualidade entre fundações estatais de direito privado e fundações "autárquicas". 21 A Constituição ainda refere “subsidiárias” e “controladas” de SEM’s ou EP’s, “empresas estatais” (art. 177, § 1º) e “empresas

mistas sob controle estatal” (art. 8º, § 5º ADCT). Como tais referências não indicam um tipo jurídico distinto, mas apenas a relação

societária existente entre as pessoas, não serão consideradas neste estudo. 22 Ainda é insuperável a análise do conceito de personalidade jurídica realizada por Riccardo Orestano, em seu clássico Il ‘Problema

delle Persone Giuridiche’ in Diritto Romano - I, Torino: Giappichelli, 1968. Em particular, a análise histórica da noção de “sujeito de

direito” (pp. 12 e segs.) é de especial interesse para a compreensão dos pressupostos e condicionantes desse instrumento técnico da

Modernidade.

23 Sobre a questão de como caracterizar esses privados “auxiliares” da Administração – tópico de renovado interesse em face do novo

“Terceiro Setor”, composto de “entidades públicas não estatais” – a literatura não é unânime, mas parece haver acordo quanto a não

considerá-los Administração Indireta.

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aplicável a elas independentemente da atividade a que se dedicam e do tipo que personificam,

incidente pelo simples fato de serem “Administração Pública”.

Tal “direito comum” ou “mínimo denominador jurídico comum” das criaturas estatais está

espalhado pela Constituição, em diversos dispositivos seus, mas é especialmente visível no art.

37, caput, que prescreve a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,

publicidade e eficiência24 e no art. 70, que institui para todas elas a “fiscalização contábil,

financeira, orçamentária, operacional e patrimonial”, levada a efeito pelo Congresso Nacional, com

o auxílio do Tribunal de Contas da União (arts. 70 e 71).

Outro traço comum às personificações estatais – que elas compartilham com a própria

Administração Direta – é a vinculação teleológica. Em um plano muito geral, as considerações aqui

são semelhantes àquelas feitas na seção anterior, quando se cuidou de apresentar os elementos

caracterizadores das ações públicas, com a diferença apenas de que ora a perspectiva é colocada

sob o sujeito público: ele persegue finalidades públicas, não suas próprias.

Em uma perspectiva mais específica, a vinculação teleológica adquire contornos técnicos

mais precisos.

Ela fica estampada na Lei de criação (ou que autoriza a criação) e nos atos subseqüentes

(regulamento, contrato social, estatuto etc.) que dão vida ou tornam operacional a instituição. Esta

vinculação diz respeito aos motivos expressos que justificam a existência do ente específico,

ligados às finalidades setoriais (cfe. adiante). Estes “fins estatutários”, ao mesmo tempo em que

indicam os vetores da ação do sujeito em um determinado âmbito da atividade econômica,

impedem – de direito, pelo menos – a sua instrumentalização para a realização de atividades ou

finalidades estranhas àquelas que motivaram sua criação (p.ex., o direito, em princípio, veda o uso

das estatais para realização de objetivos macroeconômicos, na medida em que tal uso coloca em

risco as finalidades próprias em virtude das quais essas pessoas foram criadas).

Obedecidos estes princípios comuns, há significativas diferenças entre autarquias,

fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista. Derivam elas, sobretudo, do tipo

de personalidade jurídica atribuído: as autarquias constituem pessoas jurídicas de direito público;

as demais constituem pessoas jurídicas de direito privado.

24 Em torno desses princípios tem se desenvolvido impressionante bibliografia. Por todos, Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de

Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 14 ed., 2002, especialmente o Capítulo II da Parte I.

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Muito se discute sobre a diferença entre esses dois tipos de personalidade e descabe aqui

uma apresentação sequer superficial do tema. Basta para o presente trabalho salientar algumas

idéias muito gerais.

Tendencialmente, a personalidade jurídica de direito privado garante a aplicação, em maior

grau, de um regime jurídico de direito privado. Certamente, um tal submetido às inflexões do

núcleo jurídico-administrativo, à vinculação teleológica (acima)25 e ainda conformado segundo a

área econômica da qual se trate (cfe. seção I)26; mas ainda assim capaz de dotar a empresa pública

ou a sociedade de economia mista de maior liberdade de ação e de instrumentos jurídicos que

estão à disposição das empresas privadas. Analiticamente,

• enquanto autarquias somente são criadas por lei ordinária, as EP’s e SEM’s devem ter sua

criação apenas autorizada por lei. Isso significa que elas passam a existir por ato unilateral

do Executivo, segundo a conveniência e oportunidade aferidas discricionariamente por este

25 É fundamental reiterar que a personalidade jurídica de direito privado não significa que, do ponto de vista das finalidades, estas

pessoas estejam em situação idêntica às congêneres privadas, estas últimas orientadas de modo legítimo – e preponderantemente –

para a remuneração do capital empregado na atividade (lucro).

Tal diferença de escopo se manifesta mesmo quando o Estado atua em paralelo com os privados, na medida em que a sua ação, aí, é

justificada por “imperativo de segurança nacional” ou “relevante interesse coletivo” (art. 173, caput) e a Constituição assevera que a

empresa pública e a sociedade de economia mista são fiscalizadas pelo Estado e pela sociedade e que possuem uma “função social”

(art. 173, § 1°, inc. I); ou ainda quando determina à lei que regulamente as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade

(art. 173, § 3°), quando exige a adoção de certos procedimento impessoais de contratação (art. 22, inc. XXVII), quando submete-as à

observância dos arts. 37, 70 dentre outros. Essas balizas jurídicas não valem para as empresas privadas e mostram que o Estado não

atua, aí, com os mesmos móveis que impulsionam a criação (livre) de agentes privados. Em outras palavras, juridicamente, estes entes

são sujeitos do Estado para a execução de políticas públicas (assim como as áreas reservadas são os cenários preferenciais do Estado

para execução de políticas públicas).

Idéia semelhante é encontrada na doutrina nacional: “O traço nuclear das empresas estatais, isto é, das empresas públicas e

sociedades de economia mista, reside no fato de serem coadjuvantes dos misteres estatais. Nada pode dissolver este signo insculpido

em suas naturezas. Dita realidade jurídica representa o mais certeiro norte para a intelecção destas pessoas. Conseqüentemente, aí

está o critério retor para interpretação dos princípios jurídicos que lhes são obrigatoriamente aplicáveis, pena de converter-se o

acidental – suas personalidades de direito privado – em essencial, e o essencial – seu caráter de sujeitos auxiliares do Estado – em

acidental.

Como os objetivos estatais são profundamente distintos dos escopos privados, próprios dos particulares, já que almejam o bem-estar

coletivo e não o proveito individual, singular (que é perseguido pelos particulares), compreende-se que exista um abismo profundo

entre as entidades que o Estado criou para secundá-lo e as demais pessoas de Direito Privado, das quais se tomou por empréstimo a

forma jurídica.” Curso de Direito Administrativo, Celso Antônio Bandeira de Mello, 14ª ed., 2001, Malheiros, São Paulo, p. 172. 26 O regime jurídico mais próximo daquele incidente nas empresas privadas encontra-se nas empresas estatais que operam na área

econômica não reservada (sempre com as reservadas impostas pelo regime jurídico-administrativo e pela vinculação teleológica).

Aquelas que agem na esfera reservada possuem ou podem sofrer derrogações mais intensas deste regime privado que possuem por

virtude de sua natureza jurídica.

13

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Poder. A mesma exigência também é feita para a criação de subsidiárias de EP’s e SEM’s

ou para participação delas em empresas privadas (art. 37, incs. XIX e XX).

• da interpretação sistemática da nova redação dada aos arts. 22, XXVII, fine, e 173, § 1º, III

da Constituição, visualiza-se que as EP’s e SEM’s gozarão de procedimentos mais flexíveis

do que aqueles aplicáveis às autarquias no âmbito das licitações e contratos;

• por outro lado, a Constituição atual não parece acolher - e a prática administrativa brasileira

desautoriza completamente - a tradicional lição doutrinária e jurisprudencial segundo a qual

à autarquia, pessoa jurídica de direito público, estaria reservada a prestação de serviços

públicos (ou atividades de exclusiva titularidade estatal) e às EP’s ou SEM’s tocaria

somente a execução de atividades econômicas stricto sensu27. O uso de uma ou outra

pessoa jurídica para execução de atividades econômicas titularizadas pelo poder público29

depende de considerações de conveniência e oportunidade (cfe. adiante).

Com esses elementos tem-se um esboço das grandes orientações jurídicas das empresas

estatais dotadas de personalidade jurídica de direito privado (EP e SEM28): criadas por ato do

Executivo, para realização de certos fins públicos no âmbito econômico, submetem-se a um

regime jurídico-administrativo específico, ainda que dotadas de instrumentos jurídicos

semelhantes àqueles vigentes para as empresas privadas. Além dessas noções básicas não se

pode ir sem trazer à análise o “cenário de operações” antes apresentado.

III – As estatais federais no setor elétrico

Para se ter uma idéia mais articulada do regime jurídico das estatais (federais) no setor

elétrico, convém juntar as informações normativas parciais fornecidas nas seções anteriores, a

primeira centrada no “objeto” e a segunda no “sujeito29”.

27 Essa posição está hoje em franco declínio mas continua a ser sustentada por alguns autores: Toshio Mukai. O Direito Administrativo

e os Regimes Jurídicos das Empresas Estatais, 2ª ed., Belo Horizonte: Forum, 2004. 28 Quanto às diferenças específicas entre SEM e EP’s, de dizer-se que, para o que ora interessa, foram significativamente atenuadas

com a Constituição de 1988. As vezes em que a empresa pública foi mencionada isoladamente são poucas (arts. 109, incs. I e IV; 144,

§ 1º, inc. I e 173, § 3º) e não são aqui relevantes.

29 Esta perspectiva articulada, de composição de vários níveis normativos (relativos ao sujeito, à área em que atua, aos entes com os

quais se relaciona etc.) é proposta por Eros Grau, com algumas diferenças, em seu A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 10

ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 122.

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A conclusão resultante desta integração é a de que no setor elétrico, uma vez que este não

constitui espécie de atividade de livre iniciativa, mas sim competência exclusiva do próprio ente

que cria a empresa estatal (União), o regime jurídico das empresas estatais federais é

fundamentalmente diferente daquele próprio das empresas privadas concessionárias, sob vários

aspectos (e relativamente diferente do regime jurídico das estatais de outras esferas federativas

atuantes no SEB30). Como dito, a tal conclusão se chega considerando (i.) o tipo de regime jurídico

que é próprio do sujeito; (ii.) o tipo de regime jurídico que é próprio da atividade e, também, (iii.) a

circunstância de que o criador do sujeito é o titular da atividade. Em grandes linhas, essas

considerações permitem dizer que as estatais federais são instrumentos de políticas públicas

setoriais (mas não gerais) e que não estão em paridade de armas com os agentes privados,

podendo possuir vantagens específicas que concorram para a realização prioritária dessas políticas

públicas (para a realização de seus fins, em última análise).

Antes, porém, de passar para os corolários “práticos” desta tese, convém pontuar algumas

coisas. A primeira: o vínculo que une as empresas estatais federais ao titular da competência

(União Federal) não é a concessão, permissão ou autorização.

Como dito antes, a União explora (a.) diretamente ou (b.) mediante autorização, concessão

ou permissão, os serviços e instalações de energia elétrica (art. 21, inc. XII, letra b). Essa estrutura

30 Considerando-se a estrutura federalista do Estado brasileiro, surge naturalmente a questão acerca do status das empresas não

federais atuantes no setor elétrico, competência exclusiva da União. Em particular, das empresas estaduais.

A questão é controvertida em direito, mas dificilmente se poderá dizer que essas pessoas são manifestações da atuação direta da

União. Assim, a maior parte dos autores inclina-se por qualificar estes entes como verdadeiros concessionários, permissionários ou

autorizados dos serviços e instalações de energia elétrica.

Conquanto certamente não se possa equipará-las às estatais federais, tampouco parece ser possível identificá-las com as empresas

privadas.

Tendo presente, de um lado, (i.) a razão que preside a criação dessas empresas, a sua submissão ao regime jurídico-administrativo e,

sobretudo, a sua vinculação teleológica, ou seja, a “lógica da estatal” (aplicam-se também a elas as considerações desenvolvidas na

seção II, acima) e (ii.) e, de outro, a “lógica da concessão”, que, como diz a doutrina, funda-se em um “antagonismo de interesses”,

entre o interesse (legítimo) de lucro do empresário e o interesse (legítimo) do Estado de garantir o serviço adequado, parece razoável

não aceitar de imediato esta solução majoritária.

Talvez a via a ser explorada seja dada pelo art. 241 da Constituição, que prevê a hipótese de uma “gestão associada de serviços

públicos” entre diferentes entes da Federação: “Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio

de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços

públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços

transferidos.”

Sobre o tema, veja-se Gustavo Kaercher Loureiro e Itiberê Rodrigues, “Algumas Observações sobre o Regime Jurídico das Empresas

Estaduais de Energia Elétrica”, publicado no IFE e disponível no endereço www. nuca.gesel.com.br. Ver também, em perspectiva mais

geral, Odete Medauar e Gustavo Justino de Oliveira, Consórcios Públicos – Comentários à Lei 11.107•2005, São Paulo: RT, 2006.

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de atuação é repetida em outro artigo sempre lembrado em contextos como o presente: o art. 175

da Carta diz literalmente incumbir ao Poder Público “diretamente ou sob regime de concessão ou

permissão (...) a prestação de serviços públicos.”

Mais do que discutir se a atividade configura ou não serviço público, importa notar dois

pontos fundamentais e prima facie incontroversos: em primeiro lugar, a quem incumbe a atividade

ou o serviço é sempre ao Estado; em segundo lugar, ele pode realizar essas atividades ou serviços

diretamente ou indiretamente. A atuação indireta ocorrerá mediante a outorga de certos títulos a

certos agentes distintos do próprio poder público.

Diante disso, a primeira indagação a ser respondida é a seguinte: como é que, escolhendo

uma das duas possibilidades constitucionalmente previstas, o Estado explora diretamente serviços

e instalações de energia elétrica31 ?

Deixando de lado longas discussões jurídicas, sugere-se que é faticamente impossível, ou

pelo menos sumamente problemático do ponto de vista da gestão adequada, acomodar estável e

continuamente qualquer uma das atividades ligadas à indústria elétrica – geração, transmissão ou

distribuição – dentro de órgãos pertencentes à “estrutura administrativa da Presidência da

República e dos Ministérios”, isto é, dentro da Administração Direta federal.

Por este motivo, se se deve dar um sentido efetivo à dicção constitucional “diretamente”,

há de se entender que a atuação direta do Estado dar-se-á (também ou sobretudo) através da

criação de um ente federal dotado de personalidade jurídica distinta (Administração Pública

Indireta) em uma típica operação de descentralização administrativa por outorga32 (espécie da

“ação estatal direta por descentralização”).

Não bastasse essa constatação, outros motivos propriamente jurídicos indicam que a

atuação direta do Estado na economia – na medida em que mobiliza de forma organizada e

contínua capital, pessoas e bens para a realização de uma determinada ação produtiva - se faz

(preferencialmente, ao menos) por meio de criaturas suas e não necessariamente pela

Administração Direta. Por exemplo:

31 A pergunta não é pelo regime jurídico, mas pelo tipo de ente•organização estatal que irá realizar a tarefa. 32 Outorga difere da delegação, como técnica específica de desconcentração e preserva a natureza direta da ação estatal. V. Hely Lopes

Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 27 ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 327 e segs.

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• talvez o caso mais saliente esteja no âmbito nuclear, onde vige o mais estrito

monopólio (jurídico) da atividade, reservada à União e considerada indelegável, nos

termos do art. 21, inc. XXIII e 177, §1°. Atualmente, as tarefas ligadas ao ciclo do

combustível nuclear são de responsabilidade da Indústrias Nucleares do Brasil – INB,

sociedade de economia mista federal.

• A Casa da Moeda do Brasil é uma pessoa jurídica distinta da União e, nada obstante,

dentre outras finalidades estatutárias cabe a ela “emitir moeda” em nome da União

(art. 21, inc. VII).

• A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos é uma pessoa jurídica distinta da União e

nada obstante isso se considera que é ela, União – por intermédio da EBCT –, que

“mantém o serviço postal” (art. 21, inc. X).

• A Radiobrás é uma pessoa distinta da União, mas cabe a ela prestar serviços de

radiodifusão sonora e de sons em nome da União Federal (art. 21, inc. XII, a).

Por fim, o próprio art. 173 da Constituição parece entender que a atuação das pessoas

jurídicas estatais de direito privado (EP e SEM) é a forma de atuação do Estado na seara

econômica não exclusiva, quando afirma que “a exploração direta de atividade econômica pelo

Estado só será permitida quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou a relevante

interesse coletivo” e, ao mesmo tempo, empenha-se em detalhar, para esta exploração, o regime

das empresas públicas e sociedades de economia mista. Assim, na área econômica não reservada

pode-se dizer que a base para a excepcional ação estatal direta é a descentralização (operação

direta por descentralização), levada a cabo por meio da criação de pessoas jurídicas de direito

privado.

Se essa última constatação ajuda a demonstrar que a atuação direta pública, in genere, se

dá por meio de pessoas estatais diferentes da Administração Direta, cria-se, por outro lado, uma

questão ulterior: qual dentre as várias pessoas que podem ser criadas pelo Estado poderia•deveria

atuar na área econômica reservada ? Para o que aqui interessa: podem as EP’s e SEM’s atuar

também nas áreas econômicas reservadas em nome do Estado, além de serem o veículo

privilegiado da ação pública na área econômica não reservada ?

A resposta já foi sugerida na seção anterior mas merece um aprofundamento.

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Não parece correto concluir - como fazem certa doutrina e jurisprudência - que, visto ter a

Constituição empregado a SEM e a EP no âmbito econômico onde vige a concorrência, a atuação

do Estado na área econômica reservada fica a cargo, única e exclusivamente, da autarquia. É por

certo juridicamente inadequado fazer-se atuar esta pessoa jurídica de direito público quando o

Estado apresenta-se em arena marcada pela concorrência (área não reservada) e precisa, portanto,

observar a paridade de armas de que se falou antes33.

Mas disso não se segue, reversamente – e este é o aspecto fundamental -, que EP’s e

SEM’s não possam agir na área reservada. No momento em que o Estado está originária e

privativamente incumbido de certas atividades e serviços, e, ipso facto, aos particulares se nega o

livre acesso à exploração dessas atividades e serviços – cabe ao próprio Estado decidir quem e

como vai prestar tais atividades e serviços.

Assim, o uso de um determinado tipo de pessoa jurídica depende das notas de seu regime

jurídico, combinadas com juízos de conveniência e oportunidade, os quais têm por pano de fundo

traços característicos da atividade, política de pessoal, aspectos tributários34, necessidades de

obtenção de capital, dentre tantas possíveis considerações. Tendo presente que muitas das

atividades econômicas reservadas não diferem, empiricamente, de suas congêneres privadas em

tema de organização econômica, técnica e empresarial – i.e., em seu modus operandi -, não é

desarrazoado que o Estado se valha de pessoas jurídicas semelhantes, i.e., dotadas de

personalidade jurídica de direito privado.

Essas considerações são suportadas juridicamente tendo presente que a Constituição não

confinou as SEM’s e EP’s à área econômica não reservada. Alguns exemplos disso já foram acima

elencados: o serviço postal e o serviço de emissão de moeda são setores econômicos reservados,

mas nem a EBCT e nem a Casa da Moeda constituem entidades autárquicas, organizadas e

funcionando sob regime de direito público. Por outro lado, a ninguém sobreveio a idéia de

33 Aliás, nesse exato sentido o Supremo Tribunal Federal já afirmou que no regime da Constituição de 1988 autarquias somente

poderiam ser criadas para atuar no âmbito reservado dos serviços públicos. Assim, dessa decisão do Tribunal Supremo se infere a

contrario sensu que as autarquias não devem ser criadas pelo Estado para exploração de atividades econômicas não exclusivas. É que,

em face dos privilégios e prerrogativas que gozam as autarquias (por exemplo, imunidade de impostos, benefícios em prazos

processuais, pagamentos de condenações judiciais mediante precatórios etc), haveria concorrência desleal com particulares que

explorassem as mesmas atividades econômicas. Cf. STF, in RDA 188/237. 34 Veja-se, por exemplo, que a imunidade tributária entre os entes federativos, relativamente aos serviços públicos só é reconhecida

quando a prestá-los são a própria Administração Direta e as pessoas jurídicas de direito público (autarquias ou fundações), cfe. art. 150,

inc. VI, a, c•c § 1º.

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considerar inconstitucional o regime jurídico-organizacional dessas entidades estatais em face das

atividades que prestam em nome da União.

Conclui-se, deste modo, que o Estado pode valer-se de uma autarquia tanto quanto de uma

EP ou SEM para atuar diretamente em atividade de sua titularidade35.

Estabelecido que o Estado pode atuar na área reservada também por meio de EP’s e

SEM’s, e tendo anteriormente já estabelecido que a criação de pessoas jurídicas é uma forma

direta de atuação do Estado (por descentralização), fica, ipso facto, justificada a afirmação antes

feita, sobre a relação entre o Estado e estas pessoas, se concessionárias, permissionárias ou

autorizatárias suas36. Desde uma perspectiva puramente constitucional37, as empresas estatais

federais que operam no setor elétrico não são concessionárias, permissionárias ou autorizatárias,

são sim manifestações da atuação direta do titular da competência econômica.

Essa conclusão tem apoio em parte da doutrina nacional38. Em obra teórica, o Ministro do

Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau, lecionou:

É que tais empresas, em verdade, são delegadas e não concessionárias de serviço

público.

35 Leciona Ely Lopes Meirelles que a execução direta do serviço “é a realizada pelos próprios meios da pessoa responsável pela sua

prestação ao público, seja esta pessoa estatal, autárquica, fundacional, empresarial, paraestatal, ou particular. Considera-se serviço em

execução direta sempre que o encarregado de seu oferecimento ao público o realiza pessoalmente ou por seus órgãos, ou por seus

prepostos (não por terceiros contratados).” E vai ainda mais além: “Para essa execução não há normas especiais, senão aquelas

mesmas constantes da lei instituidora do serviço, ou consubstanciadora da outorga, ou autorizadora da delegação a quem vai prestá-lo

aos usuários”. Direito Administrativo Brasileiro, 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 328. 36 À luz do texto constitucional (tanto art. 21, inc. XII quanto art. 175) não parece ser admissível um tertium genus entre atuação direta e

atuação indireta por concessão, permissão ou autorização. Por força disso, os conceitos de “descentralização” ou “outorga” para

qualificar a ação das empresas estatatais controladas pelo poder público titular do serviço devem ser vistos como espécies de ação

direta (“ação estatal direta por descentralização”).

Em nossa apresentação são equivalentes as afirmações: (a.) “as EP’s e as SEM’s não são concessionárias, permissionárias ou

autorizadas” e (b.) “EP’s e SEM’s são formas de atuação direta do Estado na economia”. Estabelecida uma está a outra estabelecida,

ipso facto.

37 Sabe-se que esta não é o direito positivo infra-constitucional, mas, como afirmado no início do estudo, trata-se, aqui, de uma

investigação limitada à exegese da Constituição Federal.

38 Com diferenças, vide Celso Antônio Bandeira de Mello, Prestação de serviços públicos e Administração Indireta, São Paulo, RT, 1973

e Curso de Direito Administrativo, cit., p. 176 e segs. e Geraldo Ataliba, “Serviço público e delegação à empresa estatal – imunidade”,

RDP 92•76-77, 1989. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 29ª ed., pg. 368.

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Da leitura do que dispõe o art. 175 do texto constitucional extraem-se algumas

verificações.

Em primeiro lugar, concessionário do serviço está sujeito a regime determinado, que

supõe a celebração de contrato, dotado de caráter especial. Vale dizer: a concessão supõe

a adesão voluntária de um sujeito (o concessionário) à relação jurídica de concessão. (...)

As empresas estatais, no entanto, não celebram nenhum ‘contrato de concessão’ com o

Estado; não manifestam adesão à situação de concessionárias: são constituídas visando à

prestação do serviço. Ocupam a situação de prestadoras de serviço público não em

decorrência de manifestação de vontade própria, em aceitar a atribuição de capacidade

para o exercício da atividade, porém em decorrência de imposição legal. Para tanto foram

criadas como extensões do Estado. (...)

São situações jurídicas inteiramente distintas pois, a do concessionário de serviço público

e a da empresa estatal que tenha por objeto a sua prestação. Estas, ao contrário do que

estive, anteriormente a sustentar, são delegadas do Estado, criadas no bojo do

movimento da descentralização administrativa, para fim específico. É o próprio Estado,

então, quem através de uma sua extensão, dotada de personalidade jurídica

privada, presta os serviços.

Em sentido semelhante vai Hely Lopes Meirelles que parte dos conceitos de

descentralização, outorga (atribuição da execução atividade a ente do titular da competência

econômica) e delegação (atribuição da execução da atividade a ente privado, de todo desvinculado

do poder público competente):

Há outorga quando o Estado cria uma entidade e a ela transfere, por lei, determinado

serviço público ou de utilidade pública.

Há delegação quando o Estado transfere, por contrato (concessão) ou ato unilateral

(permissão ou autorização), unicamente a execução do serviço, para que o delegado o

preste ao público em seu nome e por sua conta e risco, nas condições regulamentares e

sob controle estatal.

A distinção entre serviço outorgado e serviço delegado é fundamental, porque aquele é

transferido por lei e só por lei pode ser retirado ou modificado, e este tem apenas sua

execução traspassada a terceiro, por ato administrativo (bilateral ou unilateral), pelo quê

pode ser revogado, modificado e anulado, como o são os atos dessa natureza.

A delegação é menos que outorga, porque essa traz uma presunção de

definitividade e aquela de transitoriedade, razão pela qual os serviços outorgados o

são, normalmente, por tempo indeterminado e os delegados por prazo certo, para

que ao seu término retornem ao delegante. (...)39 (grifou-se)

39 Hely Lopes Meirelles, op. cit. pg. 328.

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O instituto da concessão surgiu na França, no início do século XX, para estabelecer um

vínculo jurídico entre o agente privado executor da tarefa e o poder público, titular da competência,

em época que não desconhecia as figuras da Administração Indireta.

Tendo nascido nesse ambiente, foi originalmente considerada um contrato – hoje a

concessão é expressamente qualificada como tal pela Constituição, cfe. art. 175 – justamente

porque tal era a forma por excelência, para vincular voluntariamente um sujeito que nenhuma

relação possuía com o Estado. A concessão, assim, era vista como uma “defesa” do

concessionário em face do Estado, defesa essa materializada nas “cláusulas imutáveis” do

equilíbrio econômico-financeiro, consideradas a causa jurídica do negócio40. Vale dizer: o privado

aceitava de livre vontade prestar o serviço porque vislumbrava um ganho garantido

contratualmente pelo Estado.

No âmbito das empresas estatais, essas idéias fazem pouco sentido.

IV – As conseqüências: o regime jurídico das estatais federais

do setor elétrico

Se (i.) o setor elétrico é uma área econômica reservada pela Constituição ao Estado (S. I);

(ii.) as empresas estatais são sujeitos dotados de um regime jurídico peculiar pelo simples fato de

fazerem parte da Administração (S. II); e se (iii.) as empresas estatais federais são manifestações

da ação direta do titular da competência econômica no seu setor reservado e por isso não são

concessionários, permissionários ou autorizados (S. III), então, a atuação destes entes quando

exploram atividades de geração, transmissão, distribuição ou comercialização de energia é pautada

por regras em parte diversas daquelas que regem os concessionários, empresas privadas.

A visualização de algumas dessas diferenças – que deverão ser aprofundadas em trabalho

específico41 - pode ser realizada a partir da constatação de que três conjuntos normativos incidem

40 O termo é de Francisco Campos e a idéia foi bem apanhada por Eros Roberto Grau, op. cit., p. 144: “... do exame do mesmo art. 175

apura-se que a concessão, tal qual a permissão, na medida em que assegurado ao concessionário o equilíbrio econômico-financeiro da

relação – que deflui do inciso III do seu parágrafo único – é exercida pelas pessoas privadas concessionárias, tendo em vista a

realização de lucro. Não fora assim, de resto, e nenhuma razão conduziria empresas privadas a aderir à situaçaõ de concessionária de

serviço público. Já as empresas estatais, por outro lado, não visam, no exercício no exercício da atividade de pretação de serviços

públicos, precipuamente, a obtenção de lucros, mas sim a satisfação do interesse público.” 41A pesquisa referida na nota 1.

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sobre as empresas estatais federais, com intersecções parciais entre eles, a serem resolvidas

caso a caso.

Em primeiro lugar, o conjunto que, por conveniência, se qualificaria como “regulatório”,

comum a tantos quantos atuam setor elétrico, privados ou não e que tem por ideal regulativo o

conceito de “serviço adequado”. Trata-se das disposições que dizem respeito diretamente ao

usuário do serviço e que estabelecem as condições gerais do fornecimento (entendido em sentido

amplo) da utilidade a ele. Nesse âmbito, abundam as normas da agência reguladora e não há

significativas diferenças entre os variados sujeitos atuantes no setor.

Em segundo lugar, há o grupo das normas que dizem respeito à relação do sujeito com o

titular da competência.

Nesse caso, como já restou indicado, estão em situações bastante diferentes as empresas

privadas e as estatais: as primeiras, vinculando-se ao Estado voluntariamente por um contrato,

possuem aí seu estatuto básico em face do poder público que nas cláusulas econômico-

financeiras da concessão encontra seu limite de ação. As segundas vêm ao mundo por meio da

atuação unilateral do Executivo em base a uma lei ordinária prévia, e têm nessa lei, nesse ato

posterior e em outros atos administrativos societários, os termos de seu relacionamento com

aquele de quem são criaturas e instrumentos de ação. A União, para a estatal federal, não é

apenas a titular da atividade econômica em questão mas é também o sujeito criador dela própria.

E aqui sequer está preferencialmente presente a agência reguladora; muitas vezes a empresa

estatal responde a autoridades administrativas com as quais o concessionário privado nunca terá

de lidar.

Por isso se diz que pode o Estado sujeitar as empresas estatais a regimes de atuação

inaceitáveis para um privado - o qual tem por intuito primeiro obter remuneração para seu

investimento - e que as empresas estatais não possuem as mesmas proteções que beneficiam os

particulares42. Aproveitando questão de momento, parece plenamente justificado, desde o ângulo

42 Idéia semelhante foi expressada por Eros Roberto Grau, op. cit., p. 144: “Em segundo lugar, da análise do proceito constitucional

verifica-se também que o concessionário é beneficiado pela estipulação legal de política tarifária. Vale dizer: à capacidade de exercício

do serviço atribuída ao concessionário adere um direito a remuneração por tal exercício, em condições de equilíbrio econômico-

financeiro. Às empresas estatais preetadoras de serviço público não assiste contudo direito à percepção de remuneração pela

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puramente jurídico, que o Estado se utilize das estatais federais nos leilões de expansão do

parque gerador brasileiro para garantir modicidade tarifária e segurança de abastecimento, mesmo

que isto diminua a “pureza competitiva”. O que não lhe é lícito fazer é tratá-las como elementos

de vantagem para agentes privados, aí sim, em evidente ofensa aos princípios constitucionais da

isonomia de tratamento, impessoalidade e moralidade administrativa e interesse público.

Por outro lado, esses sujeitos (estatais federais) têm, ou podem ter, vantagens específicas

que mirem à realização dos mesmos desígnios estatais que as levam a eventualmente atuar em

regime econômico desfavorável. Em concreto, não parece ser correto juridicamente aplicar-se-lhes

instrumentos típicos do contrato de concessão, tais o de caducidade, encampação ou rescisão

que pautam a relação do poder público com o empresário particular. Como salientou Eros Roberto

Grau, “não se estabelece, quanto às funções nas quais são investidas, nada, absolutamente nada

que corresponda à prorrogação do contrato e às condições de caducidade, fiscalização ou rescisão

da concessão43.” Em sentido semelhante, José Afonso da Silva entende que às empresas estatais

atuantes nas áreas econômicas reservadas não se aplicam os princípios da reversão, encampação

ou mesmo do equilíbrio econômico-financeiro44.

Especificamente com relação a prazos contratuais, Hely Lopes Meirelles afirma ser

inerente aos sujeitos públicos que realizam serviços por outorga (e não por delegação) a

presunção de definitividade: “A delegação é menos que a outorga, porque esta traz uma

presunção de definitividade e aquela de transitoriedade, razão pela qual os serviços outorgados o

prestação do serviço, em condições de equilíbrio daquele tipo. Pode inclusive o Estado (o poder concedente) sujeitá-las a regime de

atuação deficitária – o que ocorre com freqüência – fixando as remunerações que lhes devem ser pagas pelos usuários dos seus

serviços em níveis inferiores aos que seriam necessários à reposição dos custos da prestação dos serviços. Neste caso (...) essas

remunerações resultam subsidiadas, responsabilizando-se o Estado pela cobertura dos seus déficits.” Há que se ter cautela na

interpretação dessa passagem pois ela não deveria levar a concluir-se que o Estado pode fazer atuar as empresas estatais de modo

deficitário para fins estranhos às finalidades específicas para cuja realização foram criadas. Em outros termos, não é possível aceitar-se

que o Estado valha-se, como fez no passado, das estatais para fins de controle da inflação, busca de financiamentos externos para

outras atividades etc.

43 Nesse sentido, novamente Eros Roberto Grau, op. cit., p. 145.

44 “A natureza das empresas estatais prestadoras de serviço público se assemelha às concessionárias de serviço público com

diferenças importantes, quais sejam, a de não se sujeitarem inteiramente aos ditames do art. 175, pois não se lhes aplicam as regras

de reversão, nem de encampação, nem, rigorosamente, o princípio do equilíbrio econômico e financeiro do contrato, já que os serviços

não lhes são outorgados por via contratual, mas por via de lei instituidora, e porque são entidades do próprio concedente...”. Curso de

Direito Constitucional Positivo, 23ª ed., apud Eros Roberto Grau, op. cit., p. 145.

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são, normalmente, por tempo indeterminado e os delegados, por prazo certo para que ao seu

término retornem ao delegante45.”

Sequer seria o caso de falar-se de licitação organizada pelo Estado para justificar a

prestação do seu serviço por uma criatura sua. Com efeito, pouco ou nenhum sentido teria o

próprio titular da competência dar vida uma empresa de energia elétrica para depois submetê-la a

uma competição por um contrato que a legitime a atuar na área para a qual fora criada pelo próprio

senhor da atividade.46

Essas diferenças todas nada mais fazem do que indicar tecnicamente o que já se disse de

modo genérico, ou seja, que as empresas estatais são instrumentos de políticas públicas do titular

do serviço.

Por certo que, em se tratando de uma atividade reservada, o poder público pode e deve

traçar aí, politicas a serem realizadas por todos os agentes, públicos ou privados concessionários

(cfe. S. I). O ponto a observar, porém, é que sendo público também o sujeito que atua na área

reservada, o Estado não tem que observar nem a paridade de armas a que está jungido quando

ingressa na área de livre iniciativa nem a igualdade de tratamento entre os privados (que deve

pautar sua ação na área reservada). E, muito importante, também não se encontra limitado pela

“intocável” equação econômico-financeira. O limite, aqui, é o interesse público e a finalidade

específica da empresa estatal. Vale dizer: o criador não pode – a menos que deseje modificar as

“condições de existência” de sua criatura – desviar-se o plano que ele mesmo traçou para ela,

usando-a para fins de momento ou objetivos que nada têm a ver com sua função setorial.

Por fim, um terceiro grupo de normas diz ao sujeito em si mesmo considerado. Também

aqui são bastante diferentes as disciplinas dos agentes privados e dos públicos. Estes últimos

estão submetidos ao regime jurídico administrativo (arts. 37 e 70 da Constituição, cfe. acima) e

possuem uma inegável vinculação com os objetivos gerais da República brasileira estampados nos

arts. 1° e 3° da Constituição e com as finalidades específicas presentes em seus estatutos sociais.

45 Hely Lopes Meirelles, op. cit., p. 328.

46 No mesmo sentido, Eros Roberto Grau, op. cit., p. 146: “Por isso que, no caso não há como cogitar de licitação. Esta se impõe, nos

termos do que define o art. 175 do texto constitucional, unicamente quando se trate de concessão ou permissão, ou seja, de atribuição

de capacidade para o exercício da atividade de serviço público a pessoas privadas, estranhas ao Estado.

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Enfim, estas são algumas das conseqüências jurídicas decorrentes das conclusões a que

se chegou em cada uma das partes deste trabalho.

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