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[email protected] www.marcador.pt facebook.com/marcadoreditora instagram.com/marcador_editora © 2018 Direitos da edição portuguesa reservados para Marcador Editora, uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena Copyright © Bear Grylls Ventures 2013 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob qualquer forma sem permissão por escrito do proprietário legal. Título original: True Grit Autor: Bear Grylls Tradução: Paulo Mendes Revisão: Rui Augusto/Editorial Presença Paginação: Maria João Gomes Capa: Sofia Ramos/Editorial Presença Fotos do autor na capa: © Bear Grylls Ventures Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n.º 447 486/18 1.ª edição, Lisboa, novembro, 2018

Queluz de Baixo Autor: Bear Grylls Tradução: Paulo Mendes ... · 18 BEAR GRS Porém, as palavras não surgiram, pois o avião perdeu repentinamente várias dezenas de metros. Já

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© 2018Direitos da edição portuguesa reservados para Marcador Editora,uma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 Barcarena

Copyright © Bear Grylls Ventures 2013Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob qualquer forma sem permissão por escrito do proprietário legal.

Título original: True GritAutor: Bear GryllsTradução: Paulo MendesRevisão: Rui Augusto/Editorial PresençaPaginação: Maria João GomesCapa: Sofia Ramos/Editorial PresençaFotos do autor na capa: © Bear Grylls Ventures Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.

Depósito legal n.º 447 486/18

1.ª edição, Lisboa, novembro, 2018

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ÍNDICE

Introdução ........................................................................................................................ 13

Nado Parrado: O Sabor da Carne Humana ................................................................ 15

Juliane Koepcke: Caldeirão do Inferno ....................................................................... 27

John McDouall Stuart: O Explorador mais Louco de sempre? .............................. 37

Capitão James Riley: Escravos no Sara ........................................................................ 47

Steven Callahan: «Vejo o Meu Corpo Apodrecer» ..................................................... 59

Thor Heyerdahl: A Expedição do Kon-Tiki ................................................................ 71

Jan Baalsrud: A mais Grandiosa das Fugas ................................................................. 83

Louis Zamperini: Naufragou, Sobreviveu, Foi Torturado, Ressuscitou ................. 95

Alistair Urquhart: Já não Se Fazem Homens como Este ....................................... 105

Nancy Wake: Espia Conhecida como «Rato Branco» ............................................. 115

Tommy Macpherson: O Homem Que Enfrentou 23 000 Nazis .......................... 125

Bill Ash: O Rei da Solitária .......................................................................................... 137

Edward Whymper: Um Sucesso Desastroso ............................................................ 147

George Mallory: «Porque Está Ali.» ........................................................................... 157

Toni Kurz: A Face Assassina ....................................................................................... 167

Pete Schoening: A Corda de Segurança ..................................................................... 179

Joe Simpson: Cortar a Corda ou Morrer ................................................................... 189

Chris Moon: Raptado, Explodido… e ainda a Mexer ............................................. 201

Marcus Luttrell: Semana Infernal ............................................................................... 211

Aron Ralston: Autocirurgia de Sobrevivência .......................................................... 221

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Sir John Franklin: Morte no Ártico ............................................................................ 233

Capitão Scott: «Santo Deus, Que Lugar Horrível» .................................................. 243

Roald Amundsen: O Maior Explorador de sempre da Antártida ......................... 255

Douglas Mawson: Inferno Branco ............................................................................. 267

Ernest Shackleton: «O Rapaz mais Teimoso e Obstinado Que Conheci» ........... 277

Leituras complementares ............................................................................................. 289

NANDO PARRADOO SABOR DA CARNE HUMANA

«Isto não foi um ato de heroísmonem uma aventura. Foi o inferno.»

NANDO PARRADO

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Para Nando Parrado, de 22 anos, aquela seria apenas uma viagem agradá-vel em família.Jogava numa equipa uruguaia de râguebi que fretara um voo para Santiago,

no Chile, onde decorreria um jogo de preparação. Tinha convidado a mãe, Eugenia, e a irmã, Susy, para o acompanharem na viagem – um percurso que implicava sobrevoar os Andes num avião bimotor com turbopropulsor.

O voo 571 descolou numa sexta-feira, dia 13 de outubro de 1972, tendo alguns membros da equipa comentado em tom de brincadeira que não seria o melhor dia para sobrevoar uma cordilheira onde os pilotos podem encon-trar condições atmosféricas difíceis e perigosas. O ar quente ascende pelas encostas e encontra o ar frio na linha de neve. Os remoinhos resultantes são perigosos para os aviões.

Contudo, estas brincadeiras não passavam disso mesmo, porque as pre-visões meteorológicas eram boas.

O estado do tempo, no entanto, tem o hábito de mudar muito rapida-mente nas montanhas. Sobretudo naquelas montanhas. O avião estava ape-nas no ar há cerca de duas horas quando o piloto foi forçado a aterrar na cidade de Mendoza, no sopé dos Andes.

Passaram lá a noite. No dia seguinte, os pilotos estavam hesitantes quanto a seguir viagem. Os passageiros queriam chegar a tempo do jogo de râguebi. Pressionaram os pilotos para levantarem voo.

O que acabaria por se revelar uma muito má ideia.A aeronave sobrevoava o Passo de Planchón quando surgiu a turbu-

lência. Quatro poços de ar. Alguns dos passageiros exultaram, como se esti-vessem a andar numa montanha-russa. A mãe e a irmã de Nando pareciam assustadas. Deram as mãos. Nando abriu a boca para as tranquilizar.

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Porém, as palavras não surgiram, pois o avião perdeu repentinamente várias dezenas de metros.

Já ninguém exultava.O avião tremia violentamente. Alguns passageiros começaram a gritar.

O passageiro que estava sentado ao lado de Nando, à janela, apontou para o exterior. A menos de dez metros da ponta da asa, Nando viu a montanha: uma enorme parede de rocha e neve.

O passageiro do lado perguntou-lhe se era suposto estarem tão perto, com a voz a tremer de pavor.

Nando não respondeu. Estava demasiado ocupado a ouvir o hor-rível chiar dos motores, à medida que os pilotos tentavam desespera-damente ganhar altitude. O avião tremia tanto que parecia prestes a desagregar-se.

Nando viu a expressão aterrada no rosto da mãe e no da irmã.Foi então que aconteceu.Um estremeção violento.Um som estridente e medonho de metal a amachucar-se contra as

rochas. O avião embatera contra a montanha. Estava a desfazer-se.Nando olhou para cima. Não viu o topo da fuselagem. Viu o céu

aberto.Sentiu ar frio no rosto.E viu nuvens no corredor.Não havia tempo para rezar. Nem para pensar. Sentiu uma enorme

força que o arrancava do assento. Havia um ruído violento, ensurdecedor, a toda a volta.

Nando Parrado deve ter tido a certeza de que iria morrer de uma forma terrível, dolorosa, aterradora.

Foi então que mergulhou na escuridão.

Nando esteve inconsciente três dias após a queda do avião. Por isso, não viu algum dos ferimentos sofridos pelos colegas.

Um homem tinha sido atravessado por um tubo de aço ao nível do estômago. Quando um amigo o tentou remover, saiu-lhe um pedaço de intestino a transbordar pela barriga.

O músculo da barriga da perna de outro passageiro tinha sido arran-cado do osso e torcido à volta da canela. Quanto ao osso da perna, estava totalmente exposto. Um amigo teve de lhe empurrar o músculo para o lugar antes de lhe aplicar ligaduras.

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Uma mulher tinha ficado de tal forma entalada entre assentos que nin-guém a conseguia libertar. Tinha as pernas partidas e gritava em sofrimento. Não havia nada a fazer, a não ser deixá-la morrer.

A cabeça de Nando inchara; estava do tamanho de uma bola de basquete. Ainda respirava, mas ninguém esperava que sobrevivesse. No entanto, contrariou as expectativas dos colegas e acordou do coma três dias depois.

Estava deitado no chão da fuselagem destruída, onde se haviam refu-giado os sobreviventes. Os mortos estavam empilhados em cima da neve, no exterior. As asas tinham sido arrancadas do avião. A cauda também. Despenharam-se num vale nevado, rochoso, de onde viam apenas os picos ameaçadores das montanhas a toda a volta. Naquele momento, porém, a atenção de Nando estava concentrada na sua família.

As notícias eram más. A mãe falecera.Nando estava desgostoso, mas não cedeu ao choro. Sabia que as lá-

grimas lhe privariam o corpo de sal. Sem sal, morreria. Acordara do coma apenas há alguns minutos, mas já demonstrava sinais de se recusar a dar-se por vencido.

Estava determinado a sobreviver, a qualquer custo.Tinham falecido 15 pessoas naquele horrível acidente de aviação, mas

o pensamento seguinte de Nando foi para a irmã. Susy estava viva, mas em muito mau estado. Tinha o rosto manchado de sangue e, dados os enormes ferimentos internos, doía-lhe demasiado o corpo para se mexer. Já tinha os pés negros com queimaduras de frio. Delirante, chamava pela mãe, suplicava que os levasse para casa, para longe daquele frio horrível. Nando abraçou-a durante o resto do dia e noite adentro, na esperança de que o seu calor a mantivesse viva.

Contudo, foi percebendo gradualmente o nível do perigo em que se encontravam.

As temperaturas noturnas naquelas montanhas podiam atingir os 40 graus negativos. Enquanto estivera em coma, os outros tinham tapado os buracos na fuselagem com neve e malas, de modo a obterem alguma prote-ção contra os ventos gélidos e mortíferos da montanha. Ainda assim, Nando acordou com a roupa colada à pele. Todos tinham o cabelo e os lábios brancos de gelo.

A fuselagem – o seu único abrigo – imobilizara-se em cima de um enor-me glaciar. Apesar de estarem a grande altitude, os picos montanhosos que os rodeavam estavam tão acima que eles tinham de levantar a cabeça para os ver. O ar era tão rarefeito que queimava os pulmões. Os raios de sol iriam escaldar-lhes a pele. O reflexo da neve encandeava-os.

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Teriam mais hipóteses de sobrevivência perdidos no mar ou no deser-to. Pelo menos nesses dois ambientes há vida. Ali, nada poderia sobreviver. Nenhum animal. Nenhuma planta. Racionaram a pouca comida que con-seguiram reunir da cabina e das malas. No entanto, era muito pouca e não tardou a esgotar-se.

Os dias davam lugar a noites gélidas, e depois regressavam os dias. Ao quinto dia após o acidente, os quatro sobreviventes mais fortes decidiram tentar escalar e sair do vale. Regressaram algumas horas depois: com falta de oxigénio, exaustos e totalmente derrotados. Era impossível, disseram.

«Impossível» é uma péssima palavra para termos em mente quando ten-tamos sobreviver.

Ao oitavo dia, a irmã de Nando morreu-lhe nos braços. Mais uma vez, apesar do desgosto profundo, conteve as lágrimas.

Nando enterrou-a na neve. Perdera tudo, à exceção de uma coisa: o pai, que ficara no Uruguai. Prometeu a si mesmo que não se deixaria morrer ali, nos confins gelados dos Andes.

Havia água por todo o lado, sob a forma de neve. Porém, depressa se tornou insuportavelmente penoso comê-la, uma vez que o frio seco lhes gretara e ensanguentara os lábios. Começaram a morrer de sede, até um dos sobreviventes inventar uma forma de derreter neve com uma folha de alumínio. Amontoavam neve em cima dela e deixavam-na ao sol para derreter.

No entanto, nenhuma quantidade de água poderia retirá-los do limiar da morte por falta de alimento.

As escassas reservas de alimentos esgotaram-se numa semana. Em alti-tude, com frio, o corpo humano precisa de muito mais nutrimento do que ao nível do mar, mas eles não tinham nada. Os seus corpos começaram rapida-mente a consumir-se a si mesmos. Precisavam de proteínas. Basicamente, se não as obtivessem, morreriam.

Já só dispunham de uma fonte de alimento – os corpos dos mortos que estavam empilhados no exterior, em cima da neve. A carne estava per-feitamente preservada pelas temperaturas negativas. Nando foi o primeiro a sugerir esse recurso para sobreviverem. A única alternativa era esperarem que a morte os levasse, e ele não estava preparado para isso.

Começaram pelo piloto.Quatro dos sobreviventes encontraram estilhaços de vidro na fusela-

gem. Usaram-nos para cortar tiras de carne do cadáver do piloto. Nando

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pegou num pedaço. É claro que estava congelado e tinha uma estranha tona-lidade branco-acinzentada.

Observou-a atentamente na sua mão. Em redor, via alguns sobreviven-tes fazerem o mesmo. Outros já tinham colocado os nacos de carne humana na boca e estavam a mastigar com dificuldade.

É apenas carne, disse a si mesmo. Nada mais.Enfiou a carne pelos lábios gretados e levou-a à língua.Não tinha sabor. Apenas textura: dura e tendinosa. Nando mastigou

algumas vezes, depois forçou-se a engolir o pedaço de carne humana.Não se sentiu culpado, apenas zangado por ter de chegar àquele extre-

mo para manter a vida. Apesar de a carne não parar as cólicas angustiantes de fome, deu-lhe esperança de evitar morrer à fome até serem encontrados por uma equipa de salvamento.

Porque todas as equipas de salvamento do Uruguai estariam à procura deles. Não estariam? Não teriam de manter aquela dieta atroz durante muito tempo, pois não?

Um dos sobreviventes encontrara um pequeno rádio entre os destro-ços, que conseguiram colocar em funcionamento. No dia a seguir a provarem pela primeira vez carne humana, conseguiram sintonizar um programa de notícias.

Ouviram exatamente o que não queriam. As buscas tinham sido inter-rompidas. As condições eram demasiado adversas. Não havia hipótese de encontrar sobreviventes.

«Respira», diziam a si mesmos quando o desespero começava a apode-rar-se deles. «Se respirares, é sinal de que estás vivo.»

No entanto, tendo perdido toda a esperança de um salvamento, devem ter começado a pensar quantas vezes mais iriam respirar.

A montanha reservava ainda outros horrores. Começaram sob a forma de uma avalanche noturna. Inúmeras toneladas de neve deslizaram para cima da fuselagem no meio de uma tempestade de inverno. Uma grande quanti-dade de neve penetrou na fuselagem, cobrindo Nando e muitos dos outros sobreviventes. Sufocados pelos tapetes gelados, seis perderam a vida.

Nando viria posteriormente a comparar aquela situação com estar preso num submarino no fundo do mar. Decorria uma forte tempestade, pelo que não se atreviam a sair para o exterior, e não sabiam quanta neve se tinha compactado por cima deles. Era muito provável que se tornasse o seu túmulo gelado.

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O sistema para derreter neve já não funcionava, agora que estavam escondidos do sol. Os únicos corpos disponíveis eram os dos recém--falecidos.

Anteriormente, apenas os que estavam encarregados de cortar os ca-dáveres tinham sido obrigados a ver. Agora, quase todos estavam ali perto quando alguns sobreviventes corajosos mutilaram os mortos. O sol não se-cara a carne daqueles corpos frescos e, por conseguinte, comer aquela carne era uma situação muito diferente. Não era dura nem seca, mas esponjosa e oleosa.

Crua.Húmida.Pingava sangue e estava cheia de cartilagem encaroçada. E estava longe

de não ter sabor. Nando e os companheiros tiveram de fazer um esforço enorme para não vomitar enquanto se forçavam a engolir a carne gelatinosa, rodeados do fedor pungente e doentio de gordura e tecido humano em putrefação.

O nevão terminou. Os sobreviventes demoraram oito dias a escavar a neve que cobria a fuselagem.

Sabiam que na cauda que se separara do corpo do avião havia algumas pilhas que lhes poderiam pôr o rádio do avião a funcionar, de modo a pe-direm auxílio. Nando e três dos seus colegas caminharam pela neve gelada durante algumas horas dolorosas, extenuantes, e acabaram por encontrar as pilhas. Passaram os dias seguintes a tentar arranjar o rádio, sem sucesso.

Entretanto, o local do acidente tornava-se cada vez mais horrível.No início, os sobreviventes tinham-se limitado a ingerir pequenas ti-

ras de carne dos corpos dos companheiros falecidos. Alguns recusavam-se a fazê-lo, mas, segundo os relatos, a maioria acabou por ceder quando se apercebeu de que não tinha alternativa. Com o passar do tempo, a realidade brutal da sua dieta estava à vista de todos.

O local do acidente estava cheio de ossos humanos. Pernas e braços amputados, com a carne ainda por comer, estavam empilhados junto a uma entrada na fuselagem – uma despensa macabra, mas de fácil acesso. Tinham estendido grandes porções de gordura humana em cima do avião, para secar ao sol. Os sobreviventes deixaram de comer apenas a carne e começaram a consumir também as miudezas. Rins. Fígado. Coração. Pulmões. Tinham até aberto os crânios dos mortos para retirarem os miolos e os comerem.As cabeças abertas e vazias estavam espalhadas pela neve.

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Porém, dois cadáveres permaneciam intactos. Por respeito a Nando, os outros tinham deixado os corpos da mãe e da irmã em paz. No entanto, Nando sabia que não podiam deixar comida perfeitamente aceitável ali muito tempo. Chegaria o momento em que a sobrevivência se sobreporia ao respei-to. Tinha de procurar ajuda antes de ser forçado a comer a própria família. Tinha de lutar contra a montanha.

Sabia que iria provavelmente perder a vida na sua tentativa. Ainda assim, seria melhor do que não tentar sequer.

Já estavam ali presos há 60 dias quando Nando e dois companheiros – Roberto e Tintin – partiram em busca de auxílio. Não tinham como des-cer de onde estavam. Só podiam subir. Contudo, não sabiam que estavam prestes a tentar escalar um dos mais altos picos dos Andes – um pico que se elevava a mais de 5000 metros acima do nível do mar.

Os alpinistas experientes teriam hesitado perante tamanha expedição. Certamente não a teriam tentado depois de 60 dias a passar fome, sem o equipamento crucial para o montanhismo extremo.

Nando e os seus companheiros determinados não tinham crampons, piolets, nem equipamento para baixas temperaturas. Não tinham cordas de segurança nem entaladores. Só traziam vestidas as roupas que conseguiram encontrar nas malas entre os destroços e estavam fracos devido à subnutrição, sede, exaus-tão e exposição aos elementos. Era a primeira vez que iam tentar escalar uma montanha. Não tardou muito para a inexperiência de Nando vir ao de cima.

Quem nunca sofreu de hipobaropatia, ou «mal da montanha», não pode imaginar como é. Provoca terríveis dores de cabeça. Mal se consegue estar em pé devido às tonturas. Sente-se um cansaço imenso. Se subirmos dema-siado, arriscamo-nos a sofrer danos cerebrais e a morrer. Dizem que, quando estamos em altitudes elevadas, não devemos ascender mais de 300 metros por dia, para nos irmos habituando.

Nando e os amigos não sabiam nada disso. Na primeira manhã, subiram 600 metros. Numa tentativa de poupar o oxigénio, o sangue deles tornou-se mais espesso. Começaram a hiperventilar. Ficaram desidratados.

Mas não pararam.O único alimento que tinham eram farrapos de carne humana que ha-

viam arrancado aos corpos dos amigos falecidos e que enfiaram numa meia para transportarem. Naquele momento, todavia, o canibalismo era a sua me-nor preocupação. O maior problema era a magnitude da tarefa que tinham pela frente.

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Na sua inexperiência, escolheram os caminhos mais difíceis para subir às montanhas. Nando ia à frente, onde foi obrigado a adquirir rapidamente competências de montanhismo avançado através da prática. Teve de encon-trar formas de escalar encostas extremamente íngremes e cobertas de gelo. Teve de evitar corredores fatais e de atravessar orlas estreitíssimas e escorre-gadias. Quando se depararam com uma face de pura rocha, com dezenas de metros de altura e coberta de neve compactada e gelo, Nando não recuou. Utilizou uma vara pontiaguda para escavar uma escada.

À noite, a temperatura desceu tanto que a garrafa de água se estilhaçou. Mesmo durante o dia, os homens não conseguiam parar de tremer devido ao frio cortante e à exaustão. Contra todas as probabilidades, alcançaram o cume da montanha, mas os Andes cruéis ainda tinham mais um golpe reser-vado para eles. Nando contava ver para além da cordilheira. Ao olhar à volta daquele incrível ponto de observação, além de picos, não viu nada até onde a vista alcançava.

Não havia verde.Não havia civilização.Não havia ajuda.Nada, a não ser neve, gelo e rochedos.Quando tentamos sobreviver, o moral é tudo. Apesar da desilusão,

Nando não se deixou abater.Conseguia ver dois cumes mais pequenos que não tinham as pontas co-

bertas de gelo. Seria um bom sinal? Talvez indicassem o limiar da cordilheira. Mas estavam, segundo os seus cálculos, a cerca de 80 quilómetros de distân-cia. Não tinham carne humana suficiente para os três prosseguirem viagem. Por isso, mandaram Tintin, o mais fraco dos três, de volta para o local do acidente, de modo que Nando e Roberto pudessem continuar. Bastou-lhe uma hora para deslizar até aos seus amigos junto à fuselagem.

Começaram a descer em direção às nuvens, colocando-se não só à mer-cê da montanha, mas também da gravidade. Nando caiu e foi aos trambo-lhões até embater contra uma parede de gelo. O seu corpo magro e fraco ficou pisado e macerado. Ainda assim, Nando e Roberto seguiram caminho, forçando-se a colocar um pé à frente do outro, apesar de estarem exaustos e em sofrimento.

À medida que foram perdendo altitude e a temperatura aumentava, a carne humana que tinham armazenado na meia começou a descongelar e a apodrecer. O fedor de carne em decomposição já era suficientemente mau, mas também se começava a tornar evidente que a carne já não seria comestí-vel. Se não encontrassem ajuda em breve, teriam de a deitar fora.

Ao nono dia de viagem, porém, a sorte mudou. Viram um homem.

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Ao décimo dia, esse homem trouxe ajuda.Também trouxe mantimentos. Nando e Roberto tomaram a sua primei-

ra refeição quente, não humana, após 72 dias. O mais importante foi trans-mitirem à polícia local a mensagem que os motivara a atravessar os Andes. «Venho de um avião que caiu nas montanhas… Nesse avião ainda estão catorze pessoas feridas.»

Nos dias 22 e 23 de dezembro, graças à recusa obstinada de Nando e Roberto de se darem por vencidos, mesmo a tempo para o Natal, um heli-cóptero transportou os sobreviventes até um local seguro.

Das 45 pessoas desse voo aziago, 16 sobreviveram. O mais espantoso é não terem ocorrido mais mortes.

Muitas pessoas, quando ouvem a história de Nando Parrado e dos seus companheiros desesperados, só apreendem uma narração horripilante de ca-nibalismo humano. Algumas chegam a criticá-los pela decisão que tomaram.

É claro que estão enganadas.Num dos seus momentos mais negros, os sobreviventes fizeram um

pacto entre si. Se algum falecesse, os outros tinham permissão para comer o seu corpo. Com esse conhecimento, ao comerem a carne dos seus compa-nheiros falecidos estavam apenas a demonstrar respeito pela vida humana. Estavam apenas a mostrar como é valiosa. Tão valiosa que estavam dispostos a tudo para a manter, enquanto um ambiente de uma hostilidade inimaginá-vel tentava ao máximo privá-los dela.

Os sobreviventes do voo 571 demonstraram coragem, engenho e (creio) dignidade impressionantes. Provaram um facto tão antigo como a própria vida: quando a morte parece certa, uma das reações mais humanas é recusarmo-nos a baixar os braços e deixá-la vencer.