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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS ANTROPOLOGIA IV – Leonardo Fígoli AUTORES: Alan Vítor, Carlos Gomes de Castro, Carolina Vaz de Carvalho, Henrique Gonçalves Rodrigues, Liliana Vasconcelos Xavier. Quem mexeu no meu texto? Autoria, autoridade e as vozes na antropologia Repetir, repetir até ficar diferente. Paulo Leminski Resumo:

Quem Mexeu No Meu Texto - Autoria e Autoridade Na Antropologia Pos-moderna

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Quem mexeu no meu texto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

CURSO DE CINCIAS SOCIAIS

ANTROPOLOGIA IV Leonardo FgoliAutores: Alan Vtor, Carlos Gomes de Castro, Carolina Vaz de Carvalho,

Henrique Gonalves Rodrigues, Liliana Vasconcelos Xavier.Quem mexeu no meu texto? Autoria, autoridade e as vozes na antropologia Repetir, repetir at ficar diferente.Paulo LeminskiResumo:

A proposta deste trabalho contextualizar, tanto no tempo quanto no campo do saber (filosfico, literrio, artstico e cientfico), a antropologia ps-moderna e apontar os questionamentos que surgiram em torno do fazer antropolgico. Explicitaremos, de forma breve, referncias filosficas, autores/antroplogos, trabalhos, bem como os dilemas (autoria, autoridade e mltiplas vozes) que constituram o paradigma ps-moderno antropolgico.Palavras-chave:

Ps-modernidade, teoria antropolgica, autoria-autoridade.Prlogo: Uma partitura (in)terminvel

Uma partitura de cinco instrumentos distintos, de cinco timbres diferentes. Um texto: cinco vozes, cinco olhares, cinco interpretaes. Ambos aparentemente desarmnicos. Entretanto, quando vistos com acuidade, partitura e texto, podem compor uma mesma sinfonia em que vozes se entrelaam na construo de uma obra harmnica. Assim se deu o processo de construo do nosso texto. Em algum aspecto ele uma collage, que se recusa a se tornar um todo contnuo. Uma apresentao longe de ser definitiva, longe de ser completa, longe de estar terminada.Captulo 1: Uma introduo

O ps-modernismo se configura como um movimento que abrange variadas reas, as quais no apenas comportam o esttico ou o artstico, mas abarcam a filosofia, a economia, dentre outras. As transformaes desse movimento alcanaram uma gama de campos distintos, como a arquitetura, a literatura, na qual o romance ps-moderno diluiu a fronteira entre a fico e a fico-cientfica, nas artes plsticas e na filosofia atravs da rejeio ao desejo de emancipao humana universal pela mobilizao das foras da tecnologia, da cincia e da razo (David Harvey). Da a prpria aceitao da nomeao ps-moderna numa conjuntura que questionava outras formulaes, tais como ps-estruturalismo, sociedade ps-industrial, pois como tal, essas nomeaes, de certa maneira, alm de rgidas e especficas, redirecionavam o termo para certa rea de origem como a filosofia e a economia, respectivamente. O contexto no qual ocorre a emergncia do ps-modernismo apontava por uma radical mudana da estrutura social com importantes transformaes cientficas, tecnolgicas e culturais.

Se para Baudelaire a modernidade o transitrio, o fugidio, o contingente; uma metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutvel, o que revelava uma preocupao e um destaque dado pelo modernismo ao novo e a tentativa de captar a sua emergncia, o ps-moderno caminha no sentido de atentar-se muito mais as rupturas, o desejo de alcanar eventos ao invs de novos mundos, a busca do instante revelador depois do qual nada mais foi o mesmo (JAMESON, 1995, p.13). Outra distino entre a modernidade e a ps-modernidade, ressaltada pelo filosofo ps-moderno Gianni Vattimo, refere-se historia do saber. A nfase dada pelo modernismo pauta por uma abordagem que salienta a progressividade das idias, apontando, assim, para um direcionamento evolutivo do campo do conhecimento. J os ps-modernos, ao romperem com a categoria da novidade, situam-se no fim da histria, o que, para Vattimo, refora a crtica de uma histria inserida num processo unitrio.

Cabe ressaltar que o presente artigo pretende focalizar as reflexes ps-modernas na antropologia, e que, portanto, tentaremos enfatizar os intelectuais ps-modernos que tiveram uma influncia mais efetiva entre os antroplogos. Nesse contexto, relevante ressaltar as idias de Foucault e Lyotard que so uma fonte fecunda da argumentao ps-moderna, sendo ambos opositores da existncia de metanarrativas ou metateorias totalizantes, a prpria definio de Lyotard do ps-moderno perpassa pela incredulidade diante das metanarrativas. Tais autores so crticos das tentativas de se especificar verdades eternas e universais e apresentam importantes contribuies ao pontuar a pluralidade de formaes de poder de discurso (Foucault) e dos jogos de linguagem (Lyotard). Jacques Derrida, com seu mtodo de desconstruo, no qual questiona os pressupostos e epistemes que aliceram o discurso do autor, tambm uma importante referncia para os antroplogos ps-modernos, pois a maioria dos trabalhos destes norteada pela desconstruo, principalmente, dos discursos contidos nas etnografias clssicas. Baudrillard apresentou relevantes contribuies no estudo da dimenso simblica no uso e consumo dos objetos e, apesar de no ter influenciado os antroplogos ps-modernos, suas anlises foram apropriadas pelas antropologias simblica e interpretativa a gerao de antroplogos anterior antropologia ps-moderna (REYNOSO, Carlos, 1998). A repercusso das idias ps-modernas alcanaram o cenrio antropolgico a partir da verso feita pela antropologia interpretativa norte-americana do ps-modernismo ou ps-estruturalismo europeu. Posteriormente, o ps-modernismo antropolgico adquiriu uma dada individualidade e homogeneidade temtica, convergindo o olhar para a escrita etnogrfica.

Segundo Reynoso, os antroplogos que inicialmente se identificaram com o iderio ps-moderno encontraram na figura de Clifford Geertz uma importante referncia (considerado por alguns como o pai do ps-modernismo antropolgico), principalmente porque esse autor relaciona o fazer antropolgico ao ato da escrita e destaca as interpretaes antropolgicas (textos) como fices. Mas a figura de pai do ps-modernismo antropolgico conferida a Geertz no foi unnime no meio acadmico como crticos da etnografia geertziana, destacam-se Paul Rabinow e Vincent Crapanzano. Um marco simblico do ps-modernismo foi a realizao do seminrio de Santa F, que teve como resultado a publicao do Writing Culture. Este contribuiu para definir e pontuar mais claramente o estilo ps-moderno de argumentao.

Reynoso aponta trs grandes linhas da antropologia ps-moderna: 1) Corrente meta-etnogrfica, que tem como principais autores: James Clifford, George Marcus, Dick Cushman, Marilyn Strathern, Michael Fisher e, tambm, Clifford Geertz. O principal objetivo dessa vertente a anlise do discurso etnogrfico, dos recursos retricos e autoritrios (autor + autoridade). Tal anlise aponta para uma possvel antropologia da antropologia que, por conseguinte, permite o estudo da antropologia com gnero literrio e do antroplogo como escritor; 2) Etnografia experimental: nesta, h uma busca de compreenso e, ao mesmo tempo, de redefinio das prticas antropolgicas. Rompe com os monlogos das monografias convencionais e aponta para uma etnografia dialgica. Dennis Tedlock, Jean-Paul Dumont, Vicent Crapanzano, Renato Rosaldo, Obeseykere so os expoentes dessa corrente; 3) (Ps)Vanguarda antropolgica: tem como principais referncias Stephen Tyler e Michael Taussig. Estes propem uma completa desconstruo da antropologia: uma epistemologia contrria aos antigos projetos positivistas-cientificistas. Tyler props uma epistemologia irracionalista que reformula todo o projeto cientfico desde a raiz, em termos ainda pragmticos (Idem, p. 28 traduo livre). Taussig muda o gnero da autoridade etnogrfica com o uso da montagem e a colagem. Reynoso aponta que essas trs linhas compem um todo que questiona a escrita, a prtica e a autoridade etnogrficas, alm de caracterizarem o que o autor denominou de ps-modernismo antropolgico genrico: a crise dos meta-relatos, o colapso da razo, a desconstruo e o fim da histria.

Captulo 2: A desintegrao da autoridade antropolgicaJames Clifford, um dos principais antroplogos do ps-modernismo, situa-se, segundo Reynoso, na corrente meta-etnogrfica. O principal objetivo dessa corrente, como j foi dito, a anlise do discurso etnogrfico e das questes referentes relao de autoridade entre autor-nativos. Ao ver a antropologia por uma tica textual, ou melhor, interpretar o fazer antropolgico como gnero literrio e o antroplogo como escritor, os meta-etngrafos colocam em questo as descries universalizantes, os (des)caminhos do conhecimento da alteridade, em suma, o que explicitado e questionado, nos estudos dos autores citados acima, so as regras implcitas que regem a relao entre autor, objeto e leitor, e que permitem a produo, a legibilidade e a legitimidade do texto etnogrfico (CALDEIRA, 1988, p. 133). Clifford enfatiza tais questes em A experincia etnogrfica: antropologia e literatura no sculo XX. Nesta parte, analisaremos, sucintamente, o ensaio Sobre a autoridade etnogrfica, o qual tem como objetivo apresentar a formao e a desintegrao da autoridade etnogrfica no sculo XX.

Comparando os frontispcios de Moeurs des sauvages amricains (1724), de Padre Lafitau, e de Os argonautas do Pacfico Ocidental (1922), de Malinowski, Clifford explicita uma mudana paradigmtica que afeta a legitimidade da autoria, mudana que nortear a antropologia at 1960, aproximadamente: enquanto no frontispcio de Lafitau o que vemos um autor transcrevendo dentro de um gabinete, isto , sem uma referncia experincia etnogrfica; no de Malinowski, o que vemos uma fotografia do ritual kula melansio. Nela, tem-se a presena dos informantes, mas o que se quer afirmar, primordialmente, a presena do etngrafo, o estar l o leitor, participando tambm como observador, s pode estar no mundo melansio porque o etngrafo estava l naquele momento, naquela foto: O sistema de troca kula, tema do livro de Malinowski, foi transformado em algo perfeitamente visvel, centrado numa estrutura de percepo, enquanto o olhar de um dos participantes redireciona nossa ateno para o ponto de vista do observador que, como leitores, partilhamos com o etngrafo e sua cmera (CLIFFORD, 1998, p. 18).

primeira vista, tal fotografia arbitrria, ou talvez neutra, todavia, quando nos adentramos no processo de escrita dos Argonautas, percebemos que ela representa o projeto antropolgico de Malinowski, que, segundo Clifford, narrar sobre a vida trobriandesa e, concomitantemente, apresentar as linhas gerais de como deve ser feito um trabalho de campo etnogrfico. Com Malinowski, h um rompimento da antiga dicotomia entre antroplogo e etngrafo: a imagem do novo antroplogo do observador junto fogueira, olhando, ouvindo e perguntando, registrando e interpretando, em sntese, imerso no cotidiano. Os no-etngrafos perdem status, isto porque o sucesso do novo pesquisador estava vinculado fuso de teoria geral e pesquisa emprica, de anlise com descrio participante. Boas, Mead, Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard tambm contribuem para a institucionalizao/legitimao da autoridade etnogrfica.

A etnografia, um novo gnero literrio e cientfico criado pelo novo antroplogo (terico-pesquisador de campo), tornou-se a base da antropologia desenvolvida no sculo XX. Para que ela (etnografia) fosse realmente aplicvel, foram necessrias transformaes institucionais e metodolgicas. James Clifford apresenta, resumidamente, seis dessas transformaes: 1. legitimao profissional e pblica do pesquisador; 2. uso da lngua nativa pelo antroplogo, mesmo sem domin-la completamente; 3. nfase na observao participante (observador treinado); 4. papel primordial de abstraes tericas para se chegar rapidamente ao cerne das culturas observadas; 5. tematizaes de instituies especficas para se chegar ao todo (sindoque); 6. impossibilidade de pesquisas de longa durao e legitimao de pesquisas intensivas que possibilitassem traar o chamado presente etnogrfico. Alm desses seis pontos, mister ressaltar a formatao da escrita no paradigma experiencial. Marcus e Cushman (In CALDEIRA, 1988), analisam as convenes textuais que proporcionaram a legitimao da autoridade do etngrafo perante o mundo cientfico: textos separados em unidades seqenciais de acordo com partes da cultura; afastamento do antroplogo do texto; exposio do autor apenas nos apndices, notas de rodap, prefcios; indivduo sem lugar, pois o que interessa so as coletividades, o povo ou o indivduo tpico; acmulo de detalhes da vida cotidiana para retratar a realidade; o ponto de vista no texto dito do nativo, no do antroplogo; nfase em generalizaes; uso de jarges; exegese lingstica dos termos e conceitos nativos.Os Nuer exemplificam bem todos esses pontos. Evans-Pritchard teve onze meses de pesquisa de campo, a qual foi conduzida em condies quase impossveis apenas no fim da pesquisa ele pde manter conversas efetivas com os nativos. O que salvou esse antroplogo, segundo Clifford, foi a eficcia da teoria: Ele [Evans-Pritchard] focaliza a estrutura social e poltica dos nuer, analisada como um conjunto abstrato de relaes entre segmentos territoriais, linhagens, conjuntos etrios e outros grupos mais fluidos (Idem, p. 31). A abstrao direcionou a pesquisa, isto , os fatos empricos foram selecionados tendo como fundamento precpuo a teoria. Esta encapsulava as culturas em unidades discretas passveis de observao e anlise. Teresa Pires ressalta que o paradigma da experincia/presena ambguo e insuficiente: ambguo, porque o antroplogo, ao mesmo tempo, mostra-se (experincia pessoal subjetiva) e esconde-se (objetividade); insuficiente, porque no tem uma auto-crtica. Nas palavras dela: Presena insuficientemente crtica a respeito de si mesma, a respeito de seu papel na produo de representaes; presena que tende a ignorar que o conhecimento antropolgico produz-se, de um lado, em um processo de comunicao, marcado por relaes de desigualdade e poder, e, de outro, em relao a um campo de foras que define os tipos de enunciados que podem ser aceitos como verdadeiros (CALDEIRA, 1988, p. 135).

Com o fim do colonialismo, o paradigma da experincia participante revisitado e, ao mesmo tempo, colocado em xeque. De fato, o ps-colonialismo modifica a produo etnogrfica na antropologia social e novas formas de epistemologia e modelos de trabalho de campo so legitimados: Aps a reverso do olhar europeu em decorrncia do movimento da negritude, aps a crise de conscincia da antropologia em relao ao status liberal no contexto da ordem imperialista, e agora que o Ocidente no pode mais se apresentar como o nico provedor de conhecimento antropolgico sobre o outro, tornou-se necessrio imaginar um mundo de etnografia generalizada (Idem, p. 19). O paradigma interpretativo, tendo como principal representante Clifford Geertz, questiona as narrativas, tipos, observaes e descries etnogrficas at ento vigentes (paradigma experiencial) e aponta para uma leitura textual das culturas, baseando-se e transformando as idias de Paul Ricouer.O pensar sobre cultura um dos pontos caractersticos do projeto de Geertz. Segundo ele, as diversas concepes de cultura at ento em voga, ao invs de esclarecerem, criaram uma srie de confuses e, por isso, haveria a necessidade de se especificar, enfocar e conter o conceito de cultura, em suma, dar uma dimenso justa idia da mesma. Geertz trabalha com um conceito de cultura semitico: a cultura uma teia de significados que o prprio homem teceu. Tal idia de cultura aponta, por conseguinte, para a funo do antroplogo: interpretar as teias, fazer hermenutica; ou ainda, perceber as complexidades, irregularidades e sentidos que um simples gesto pode conter. O etngrafo faz a leitura de um manuscrito estranho para determinar sua base social e sua importncia.

Em Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa, Geertz explicita mais claramente qual o trabalho do antroplogo e qual enfoque deve ser dado s culturas. Segundo ele, necessrio que se faa uma descrio densa das culturas, a qual vai alm de uma enumerao exacerbante de dados. Descrever densamente buscar o porqu das aes, interpretar os smbolos. O etngrafo deve tratar a etnografia como um texto a ser interpretado: O estudo das culturas de outros povos (...) implica descrever quem eles pensam que so, o que pensam que esto fazendo, e com que finalidade pensam o que esto fazendo. (...) Para descobrir quem as pessoas pensam que so necessrio adquirir uma familiaridade operacional com os conjuntos de significado em meio aos quais elas levam suas vidas. Isso no requer sentir como os outros ou pensar como eles (...) [requer] aprender a viver com eles, sendo de outro lugar e tendo um mundo prprio diferente (GEERTZ, 2001, p. 26). A briga de galo, no vis economicista, seria irracional, haja vista as grandes apostas; contudo, numa interpretao geertziana, quando se faz uma descrio densa e busca-se interpretar os significados pblicos que a briga aponta, v-se que ela no irracional e, alm disso, expressa caractersticas profundas dos balineses, como, por exemplo, a grande preocupao que eles tinham com o status e o prestgio.

O etngrafo precisa perceber as diversas camadas de significao que podem ser observadas numa simples ao escolher um caminho entre diversas estruturas (descrio densa). A partir dos textos dos nativos, o antroplogo gera novos textos, isto porque ele l, traduz, anota e interpreta aquilo que v e ouve; ele faz interpretaes de interpretaes. Geertz inova em relao compreenso de cultura, alm de apontar novas possibilidades para se efetivar um trabalho de campo (etnografia). Se pelo modelo cientfico objetivista/positivista, o que se tinha em mente era a formulao de grandes teorias a partir de uma etnografia em que o sujeito cognoscente est fora ou distante, pela antropologia de Geertz, ou melhor, da escola interpretativa, os ensaios so mais valorizados e o pesquisador est inserido no campo, isto porque faz uma interpretao de interpretaes (pesquisador e pesquisado so agentes histricos contemporneos e simultneos). O que o pesquisador v uma centelha do dado bruto, no v a totalidade. E dessa centelha ele extrai o significado, no a funo ou uma gama de leis controladoras. Geertz aponta para a necessidade de se pensar o fazer antropolgico; insinua-se em novos caminhos antes deixados de lado, traz para o interior da antropologia certas desordens e questionamentos: Como observar as culturas? O que necessrio para se ler um texto? Por que a cultura um texto? Como escrever um texto antropolgico? Quem fala numa etnografia pesquisador ou pesquisado? As anlises anteriores da antropologia so colocadas em xeque pelo antroplogo norte-americano, na tentativa de apresentar possibilidades plausveis de compreenso da alteridade. Geertz critica o modelo de autoridade vigente at ento (modelo experiencial), fundando um novo modelo baseado na descrio densa a autoridade interpretativa, o etngrafo leitor do outro.

De acordo com Clifford, no h, ainda, dilogo e polifonia nos textos geertzianos, no h uma negociao entre as partes. A interlocuo e o contexto, to caros ao discurso, so apagados na escrita e o que deveria ser polifnico torna-se monolgico. O discurso, ao se autonomizar-viajar, tornar-se texto, cria atores generalizados e descontextualizados em Geertz, vemos isso na substantivao os balineses: autores e atores especficos so separados de suas produes, um autor generalizado deve ser inventado, para dar conta do mundo ou contexto do qual os textos so ficcionalmente realocados (CLIFFORD, 1998, p. 41). Tais problemas so apontados por muitos antroplogos ps-modernos, os quais tentam, de certo modo, super-los. Seguindo conceitos de Bakhitn, esses antroplogos enfatizam o carter dialgico do campo e da escrita, a polifonia (mltiplas vozes), a importncia da interlocuo e do contexto. H uma reciprocidade constante entre informante e autor : um eu pressupe um voc. As etnografias devem, indubitavelmente, apresentar essa relao de mutualidade. Uma etnografia no um monlogo, mas, sim, um texto multivocal. Turner, Donald Bahr, Dwyer, Crapanzano, June Nash (citando alguns) tentam apresentar essas mltiplas vozes em seus trabalhos, rechaando, portanto, os iderios de essencializao, de controle dos nativos (objetos sem voz). De fato, pressupem que a etnografia uma negociao em andamento e multisubjetivada, em contraposio s vises etnogrficas hermticas. Citando Bakhtin: Uma cultura , concretamente, um dilogo em aberto, criativo, de subculturas, de membros e no-membros, de diversas faces (Idem, p. 49). Sendo a cultura esse dilogo em aberto, as tentativas de modelagem dos objetos de anlise feitas pelos antroplogos clssicos tendem a oferecer falcias sobre os nativos e no verdades inquestionveis como eles (clssicos) tanto queriam. A etnografia, para os ps-modernos, assim como a cultura, um texto hbrido em movimento, uma colagem modernista (surrealismo), instvel. E mais: os informantes tm voz e reivindicam um espao, sempre: Os nativos estavam retrucando. Eles rejeitavam as representaes que fazamos deles e se recusavam a continuar imveis diante das cmaras dos etngrafos. Eles estavam envolvidos em seus prprios projetos culturais sincrticos (KUPER, 2002, p. 268). Alm de falar dos nativos (vozes), as etnografias ps-modernas falam dos prprios etngrafos, do self de cada pesquisador.

Podemos citar alguns trabalhos que enfatizam esse nova ptica antropolgica, tais como: Donald Bahr o primeiro a usar de forma explcita a polifonia em seus textos. Piman Shamanism um texto que se preocupa no s com os leitores especializados, mas tambm com os leitores nativos; Em Reflexes sobre o trabalho de campo no Marrocos, de 1977, Rabinow apresenta um documento autobiogrfico que descreve a relao entre ele e diversos informantes, tanto dispensadores de informao oficial como marginais odiados por seus prprios compatriotas. O que ele enfatiza a forma como vai se constituindo o conhecimento etnogrfico, resultado de um processo complexo no qual o antroplogo e seus informantes tratam de estabelecer bases comuns de compreenso, vendo-se obrigados a manifestar todos os seus preconceitos. Para ele, cada vez que um antroplogo penetra uma cultura, faz por treinar a gente para objetivar para ele seu mundo da vida; Crapanzano, em Tuhami. Portrait of a Moroccan, atenta-se para a construo de uma realidade negociada, em que o leitor atua como mediador (3 personagem) entre o antroplogo e seu informante; June Nash, em We eat the Mines, the Mines eat us, enfatizando a produo colaborativa, utiliza o recurso das citaes extensas e regulares dos informantes ao longo do texto.

James Clifford perpassa todos os modelos de autoridade etnogrfica firmados no sculo XX: paradigma obejtivista-cientificista da experincia participante (primeira metade do sculo), o qual legitimou a antropologia como campo cientfico; paradigma hermenutico, o qual, segundo Clifford, contribuiu para o estranhamento dessa autoridade etnogrfica e ressaltou a inventiva potica da etnografia, mas que ainda permaneceu sobre os ombros dos nativos; paradigma dialgico-polifnico que rompe com as etnografias de autoridades monolgicas e aponta mltiplas vozes que tambm tm autoridade no campo, o paradigma da conversa-dilogo entre autor-nativos, ou talvez, nativos/autores-autor. importante ressaltar que, para Clifford, esses paradigmas permanecem mo para todos os antroplogos que desejam utiliz-los e nenhum deles obsoleto.

Po ou pes questo de opinies... Espalhemos.Captulo 3: O deus Hermes e o surrealismo etnogrfico, ou o avatar da mediao entre o estranho e o familiar

Os unicrnios, ao contrrio do que se diz sobre eles, so bichos muito feios de se ver. Essa frase, atribuda a Marco Plo em sua descrio sobre o encontro com um rinoceronte, coloca em questo um dilema da antropologia: como possvel conhecer o desconhecido, compreender aquilo que no se conhece? Segundo a hermenutica, matriz filosfica da antropologia interpretativa, a compreenso s possvel com a condio de um horizonte de pr-compreenso, ou seja, s possvel chegar a conhecer o desconhecido a partir do que nele for passvel de (re)conhecimento. por isso que Marco Plo viu um unicrnio, e no um rinoceronte. Ele reconheceu o unicrnio pr-conhecido, provavelmente de mitos e lendas, e o que pde captar do desconhecido foi justamente o que nele havia de conhecido ou (re)conhecvel. Da a sua percepo acerca do unicrnio (e no de um rinoceronte): so bichos muito feios. A antropologia, na sua atividade de descrio e compreenso do outro etnogrfico, suas crenas e costumes, tenta dar conta do problema de tornar cognoscvel esse outro sempre estranho.

Clifford Geertz, o pai da antropologia interpretativa, considera a etnografia como um ato de traduo, em que o etngrafo assume o papel de tradutor entre duas culturas. Outro antroplogo ps-moderno, Vincent Crapanzano, em seu artigo O dilema de Hermes: o mascaramento da subverso na descrio etnogrfica, compara o antroplogo ao deus grego da escrita e da comunicao, o mensageiro dos deuses. A atividade de ambos consiste em fazer a ligao entre dois mundos estranhos, torn-los comunicveis. E para isso necessria a compreenso, atravs da funo mediadora que o antroplogo assume no papel de tradutor. Porm, at que ponto a traduo possvel, ou seja, at que ponto a transmisso da mensagem possvel? Uma citao de Walter Benjamin abre o artigo de Crapanzano: Toda traduo um modo mais ou menos provisrio de fazer um acordo entre a estranheza das lnguas (CRAPANZANO, in Teoria e Sociedade, 2004, p. 106). Nenhuma traduo se d por completo, pois ela sempre tende a turvar o texto, deixando alguns buracos que so precariamente tapados. Hermes tem o poder de compreender e transmitir a mensagem dos deuses, mas como se a mensagem contida no suposto papel que carrega sempre casse na lama, borrando para sempre a tinta e o significado. J o antroplogo, na tentativa de dar significao ao sem sentido, usa a retrica como arma para convencer o leitor da validade de sua empresa.

Se a antropologia busca tornar familiar o estranho, a proposta do surrealismo francs da dcada de 20 era o processo inverso. O ano de 1925 foi significante para os dois movimentos: enquanto Andr Breton e seu grupo lanavam o primeiro Manifesto Surrealista, era criado tambm em Paris o Institut dEthnologie, onde Marcel Mauss e Lucien Lvy-Bruhl formaram um grande nmero de pesquisadores de campo, alm da produo de importantes trabalhos etnogrficos. Pode-se dizer que a arte sempre esteve associada antropologia, e em especial o surrealismo foi uma espcie de cmplice secreto da etnografia na descrio e ampliao das bases de expresso do sculo XX, em especial na poca do entre-guerras, quando, atravs do extico, criticava-se o racional, o belo e o normal do Ocidente (CLIFFORD, 1998). O Muse Tracadro que depois de incluir o Institut dEthnologie seria tranformado no Muse de lHomme em 1938 abrigava uma confusa coleo de objetos exticos na dcada de 20, dando lugar ao cosmopolitismo anrquico e iniciando o debate sobre o problema de classificao das peas etnogrficas.A valorizao das fragmentaes e justaposies de valores culturais pelos surrealistas, o elogio s impurezas culturais e ao sincretismo, fomentaram o uso da justaposio etnogrfica na revista Documents Archologie, Beaux Arts, Ethnolographie e Varits, editada por George Bataille neste perodo, com o propsito de perturbar os smbolos culturais estabelecidos. Ao surrealista e ao etngrafo era permitido chocar, seja com o ato de revelar a non-sense do cotidiano ou de dar significao ao estranho, ao extico. Atravs das tcnicas de collage buscava-se um processo de compreenso etnogrfica, uma reinveno e recombinao da realidade, numa montagem contendo outras vozes alm da do etngrafo.

Walter Benjamin, que tambm participou conjuntamente com Bataille e Leiris (autor da etnografia surrealista LAfrique Fantme) do efmero grupo denominado Collge de Sociologie, cujo propsito era estudar processos coletivos em que a ordem cultural tanto transgredida quanto rejuvenescida, ao falar da literatura de Breton, em seu texto Surrealismo. O ltimo instantneo de inteligncia europia, escreveu: O domnio da literatura foi explodido por dentro, na medida em que um grupo homogneo de homens levou a vida literria at os limites extremos do possvel. Tambm os antroplogos da poca ps-estruturalista, ao fazerem a antropologia da antropologia, exploraram os limites dessa cincia. Resta-nos saber, agora, na fase atual em que o interpretativismo-hermenutico est longe do seu auge, de que forma a antropologia deve se reaproximar da arte e questionar a realidade.Captulo 4: Muito barulho por nadaMuitas foram as crticas que o movimento ps-modernista na antropologia atraiu sobre si mesmo, seja pela forma como pelo contedo de suas proposies. De um lado, o tom arrogante e irnico com que realizavam suas crticas no contribuiu para a criao de laos de simpatia entre os ps-modernos e os no-iniciados, como deixa bem claro Custdia Selma Sena em Em favor da tradio ou falar fcil, fazer que so elas, que ainda acusa o movimento de ter surgido apenas como uma forma de se destacar em um mercado de trabalho saturado para profissionais da antropologia. A qualidade literria dos textos, mais do que qualquer inovao real terica, apontada como razo para o sucesso do movimento. Para Adam Kuper, autor de Cultura: a viso dos antroplogos, o movimento pegou carona nas inovaes da filosofia e da literatura, repetindo de forma superficial e desigual uma frmula da crtica literria na anlise dos textos etnogrficos.

H um certo consenso entre os crticos da antropologia ps-modernista de que o movimento no props nada de realmente novo em termos de questionamento da cincia ou relato da Histria, estando muito aqum do revolucionarismo que alardeavam. Alis, para quem criticava todas as tradies anteriores da antropologia, e mesmo da cincia, o grupo era bastante conservador, no questionando suas prprias afirmaes e representaes (construdas) da antropologia clssica e dos nativos e oprimidos. Sena deixa claro essa deficincia, em uma passagem sua j mencionada obra: Se a nfase na ausncia evidencia na etnografia tradicional o etnocentrismo do olhar ocidental em relao a um outro empiricamente dado, essa mesma ausncia patenteia na etnografia experimental o estrabismo histrico dos ps-antroplogos em relao a um outro teoricamente construdo (SENA, 1987, p. 10). Esse estrabismo dos ps-modernos se apresentava no s em sua deficincia em auto-crtica, mas tambm na construo de modelos reducionistas e simplistas da experincia etnogrfica, da relao entre antroplogos e nativos at a construo do texto na etnografia, e no que ficou conhecido como presentismo, forma de se analisar obras escritas e situaes fora de contexto, aplicando os parmetros e conhecimentos do presente s aes e realizaes do passado, como se seus autores j pudessem prever todos os futuros avanos da antropologia e da cincia.

No fim das contas, a antropologia ps-moderna se definiu muito mais pelos nos do que pelos sins em meio a tanta proposta terica, pouca coisa foi feita na prtica. As proposies mais elementares do movimento, como a participao da voz nativa no texto etnogrfico, nunca foram bem resolvidas, ficando at hoje a questo de como operar a autoria compartilhada em um texto polifnico. E talvez o trao mais marcante do ps-modernismo antropolgico que tenha ficado na memria da disciplina o efeito paralisante do irracionalismo extremo pelo qual a Antropologia foi acometida diante de tantas impossibilidades tericas e to poucas possibilidades prticas.

Captulo 5: Uma concluso desnecessria

Os nativos mexeram no texto dos etngrafos. Retrucaram contra os monlogos, reivindicando espao para suas vozes. Ou ser que foram os prprios antroplogos que mexeram no texto pelos nativos? Ou os dois movimentos ocorreram conjuntamente? No sabemos. A nica certeza que temos que o texto foi (re)mexido.

Durante a produo textual, um constante jogo de colagem foi praticado: reviramos nosso texto at que cinco sujeitos construtores, cinco textos, se concatenassem sem perder a polifonia. Terminamos, provisoriamente, nossa partitura incompleta, todavia, o jogo no acabou, porquanto o texto escapou de nossas mos.

Algum mexeu no nosso texto. O leitor mexer em nosso texto, pois, em alguma medida, no exerccio da leitura, tentar orden-lo ou desorden-lo ainda mais.

Espalhemos...

Bibliografia:

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O pintor da vida moderna