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1 As minhas origens familiares Sou descendente de família real tradicional. A minha avó materna, Ermelinda Mendonça, familiarmente chamada de Pono Passo Nanhara Ubéka era filha de Joaquim Mendonça, conhecido por “Baicaran Sanca”, Régulo de Có. Nesta linha genética, sou bisneto de Régulo. Baicaran Sanca foi régulo que mais tempo esteve no poder segundo a tradução oral sobre o registo de régulos da etnia mancanha ou brame segundo a designação de alguns autores. Foram 46 anos de regulado, entre 1914 e 1960. O meu avô paterno, Fernando Sanca conhecido por Mango N’Dima e António dos Santos vulgo Sanca Malú eram irmãos, naturais de Bulamet ou simplesmente Bessal, bairro periférico de Bula. Sanca Malú era intérprete de Nanhacra Same, Régulo de Bula junto da administração colonial durante 15 anos. Após a morte de Nanhacara, Sanca Malú foi investido Régulo de Bula porque gozava da simpatia da administração colonial. Apesar da sua investidura não obedecer as regras de sucessão tradicional, neste caso, deveria estar a exercer como Régulo de Biogate, que segundo manda a tradição, é sucessor de Régulo de Bula em caso de morte. Sanca Malú esteve no trono durante 12 anos, até Dezembro de 1964, a data sua morte. Na tradição mancanha, em nenhuma circunstância ocorre a sucessão do régulo salvo em caso de morte. Tal como as outras tradições têm a designação do Rei ou Soba, na etnia mancanha o Régulo exerce o poder absoluto do seu regulado ou território, nomeadamente, o poder legislativo, executivo e judicial, muito embora não legislado. Também decide sobre os rituais da tradição, de usos e costumes mancanhas (direito consuetudinário). Actualmente, nos estados modernos onde ainda existe esta tradição, o poder tradicional é reconhecido e regulado por lei.

Quem sou

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As minhas origens familiares

Sou descendente de família real tradicional. A minha avó materna, Ermelinda

Mendonça, familiarmente chamada de Pono Passo Nanhara Ubéka era filha

de Joaquim Mendonça, conhecido por “Baicaran Sanca”, Régulo de Có.

Nesta linha genética, sou bisneto de Régulo. Baicaran Sanca foi régulo que

mais tempo esteve no poder segundo a tradução oral sobre o registo de

régulos da etnia mancanha ou brame segundo a designação de alguns

autores. Foram 46 anos de regulado, entre 1914 e 1960.

O meu avô paterno, Fernando Sanca conhecido por Mango N’Dima e António

dos Santos vulgo Sanca Malú eram irmãos, naturais de Bulamet ou

simplesmente Bessal, bairro periférico de Bula. Sanca Malú era intérprete de

Nanhacra Same, Régulo de Bula junto da administração colonial durante 15

anos. Após a morte de Nanhacara, Sanca Malú foi investido Régulo de Bula

porque gozava da simpatia da administração colonial.

Apesar da sua investidura não obedecer as regras de sucessão tradicional,

neste caso, deveria estar a exercer como Régulo de Biogate, que segundo

manda a tradição, é sucessor de Régulo de Bula em caso de morte. Sanca

Malú esteve no trono durante 12 anos, até Dezembro de 1964, a data sua

morte.

Na tradição mancanha, em nenhuma circunstância ocorre a sucessão do

régulo salvo em caso de morte. Tal como as outras tradições têm a designação

do Rei ou Soba, na etnia mancanha o Régulo exerce o poder absoluto do seu

regulado ou território, nomeadamente, o poder legislativo, executivo e judicial,

muito embora não legislado. Também decide sobre os rituais da tradição, de

usos e costumes mancanhas (direito consuetudinário).

Actualmente, nos estados modernos onde ainda existe esta tradição, o poder

tradicional é reconhecido e regulado por lei.

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Os meus pais

Filho de pais Combatentes da Liberdade da Pátria. Domingos António Sanca e

de Linda Mendonça. O meu pai era professor e Director do Semi-internato de

Morés. Aderiu a luta armada de libertação nacional em 1965, na frente norte.

Dois anos depois, em 1967, foi contemplado com uma bolsa de estudo pelo

partido PAIGC (movimento libertador) para tirar o curso de Agronomia na

República de Bulgária. Terminou o curso e regressou a luta em 1973. Já como

engenheiro agrónomo, foi incumbido de realizar o recenseamento agrícola nas

zonas libertadas.

A minha mãe, Linda Mário Nhaga, familiarmente tratada de Queta, de

pseudónima de Linda Mendonça, militarmente conhecida, nome que viria a

constar no assento do meu Certidão de Narrativa Completa do Registo de

Nascimento, era socorrista e responsável de um grupo feminino. Juntou-se à

luta armada um ano mais tarde, em 1966, na mesma frente.

“O combatente da liberdade da Pátria é o militante que, nos quadros do PAIGC, participou

na luta de libertação entre 19 de Setembro de 1956 e 24 de Setembro de 1973 e o que,

tendo-se integrado nas fileiras do Partido, nas frentes de combate, após esta última data e

até 24 de Abril de 1974, revelou, pela sua conduta exemplar, ser digno desse título”.

(Extrato do art. 5º, nº3 da Constituição da República da Guiné-Bissau de 16 de Maio de

1984, revista em 1991).

No entanto, em observância a este preceito constitucional, foram lhes

atribuídos as patentes de Major ao meu pai e de Alferes do Exército a minha

mãe, de acordo com as funções que exercerem durante a luta armada. O

meu pai faleceu no dia 17 de Abril de 2006, em Bissau vítima de doença

prolongada. Nunca beneficiou de quaisquer honorários como Combatente da

Liberdade da Pátria pateado a oficial superior – Major do Exército.

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O nascimento e a infância no Senegal

Nasci a 21 de Março de 1967, terça-feira, na barraca de Sahara, em Morés, na

frente norte durante a guerra colonial. Meses depois, fui levado pela mãe para

junto do meu tio, Augusto Kambanco Sanca, primeiro filho dos meus avós

paternos, na povoação de Samine, República do Senegal.

E, a pedido do irmão mais novo do meu avô materno, Albino Mário Nhaga

mais conhecido por Kanten, fomos para a tabanca de Bindabane a poucos

quilómetros de Zinguinchor, sul do Senegal.

A separação dos meus pais

Durante a nossa estadia em Bindabane, o avô Albino Nhaga proibiu a minha

mãe de voltar para a linha de frente receando a sua morte. Na altura a guerra

intensificava em todas as frentes. Pois, tinha chegado a Guiné, em Março de

1968, o General António Sebastião Ribeiro de Spínola, novo Governador e

Comandante-chefe das Forças Armadas da província ultramarina da Guiné

Portuguesa, cargo que exerceu durante seis anos, até Setembro de 1973. O

General Spínola substituiu do cargo o Governador Arnaldo Schulz.

O avô Kanten obrigou-a a casar-se com um homem com quem teve cinco

filhos e todos faleceram. Pois, o meu pai desde que foi estudar em Bulgária,

nunca mais ninguém se ouviu falar dele, talvez por circunstâncias de luta.

Muito embora, regressou dos estudos em 1973, só conseguiu deslocar-se para

junto dos meus avós maternos em 1976 com o único propósito de ir assumir a

paternidade e levar-me consigo para a Guiné-Bissau, mais concretamente

para Bula, Região de Cacheu, norte do país. A minha mãe teve 9 filhos e 6

faleceram.

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O regresso as origens

Estive em Bindabane durante 6 anos, até abril de 1976, data em que o meu pai

me foi buscar para ir viver definitivamente na Guiné-Bissau. Foi neste dia e nesta

data que conheci o meu pai. Já tinha iniciado os meus estudos primários.

Em Bula, fui confiado ao meu tio Fernando António dos Santos, familiarmente

chamado Nhaga Banambabo, funcionário público, Encarregado do Mercado

Municipal de Bula. Comecei uma nova vida, aprendei a falar o crioulo, a ler e

a escrever em português. Só falava um pouco de francês e a minha língua

materna mancanha ou brame.

Foi em Bula que adquiri a minha nacionalidade em 1977, quando fui registado

pelo meu pai na Conservatória do Registo Civil e do Notariado local. No meio

familiar sou conhecido por Mango Babanhom em homenagem a um dos

irmãos do meu avô paterno.

Os meus estudos

Iniciei os meus estudos primários em Bula na escola primária local até concluir a

4ª classe.

Ensino Básico Elementar (EBE) - Escola Primaria “Seco Wallé”

- 1976/77 – 1ª Classe

- 1980/81 – 4ª Classe

Ensino Básico Complementar (EBC) - Ciclo

- 1982/83 – 5ª Classe (EBC “23 de Janeiro” em Bula)

- 1983/84 – 6ª Classe (EBC “IIº Congresso” em Farim, região de Oio)

Ensino Secundário Geral

- 1984/85 e 1985/86 – 7ª e 8ª Classes respectivamente (Liceu Regional

“Titina Silá” em Farim, região de Oio).

- 1987/88 – 9ª Classe (Liceu Regional “Hoji Ya Henda” em Bafatá).

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Ensino Secundário Complementar

- 1988/89 e 1989/90 – 10ª e 11ª Classes respectivamente (Liceu “23 de

Janeiro” – em ex-QG Bissau).

- 2012/13 – 12º Ano na Escola Secundária de Pedro Alexandrino – Póvoa

de Santo Adrião em Portugal.

A minha família

Sou casado segundo os usos e costumes da etnia mancanha e pai de 6 filhos.

A vida em Farim

A minha ida para Farim foi por motivos de saúde. Adoecia sempre em Bula e

tinha feridas nos pés. Quando a minha mãe soube da minha situação de saúde

foi pedir-se ao meu tio Fernando para tratamento de medicina tradicional

durante o período de férias escolares.

Fui levado a curandeira Josefina (Sossafim) no bairro de Tchada em Bissau.

Quando curei-me fui junto da minha mãe que já era casada com o agente da

Policia de Ordem Publica, Armando Sanca, colocado em Farim, para o

período de observação. A minha mãe morava no bairro de Gã-Sapo e os meus

avôs maternos viviam no bairro de Nema. Na altura tinha 16 anos, estávamos

no ano 1983.

Durante a minha estada em Farim, ia com frequência a casa dos meus avôs.

Gostei do ambiente familiar e mudei-me para junto deles. Era uma família

numerosa, mais de 30 pessoas.

O avô Alberto Mário Nhaga mais conhecido por Mancanha Sello era casado

de dez mulheres, para além dos filhos, netos, sobrinhos, cunhados e outros

parentes. Qualquer pessoa estranha que passava, ou mesmo hóspede que

chegava a casa de Mancanha Sello não acreditava no Dom desse Homem de

agregar tanta família. Os curiosos até perguntavam se vivíamos todos na

mesma casa.

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Albergamos três casas de construção tradicional sendo duas ocupadas por

esposas e filhas e outra por rapazes e o próprio chefe de família.

Mesmo assim, durante as férias escolares o número de pessoas aumenta com a

chegada de mais jovens que escolhem Farim como destino de férias ou jovens

destacados por alguns familiares para irem ajudar no trabalho de campo.

Também alguns cunhados chefes de famílias mesmo que não residem em

Farim, tiravam alguns dias para ir ajudar na lavoura.

A minha avó era a primeira esposa do casal e teve nove filhos. A minha mãe é

a primeira filha e eu sou o primeiro neto de casa. O avô durante muitos anos

era considerado o melhor produtor de amendoim (mancarra) na região de

Oio. Para além das forças de trabalho que tinha, também alugava o grupo de

jovens lavradores criado no bairro para o efeito.

Em cada época agrícola produzíamos mais de vinte toneladas de amendoim.

Vendia uma parte e a outra ficava para sementeira e consumo. Cultivávamos

também o feijão, o milho (bachil, cavalo e preto), a mandioca entre outros

produtos agrícolas.

Apreendi a caçar e a pastorar gado

Praticávamos uma agricultura itinerante. Percorríamos diariamente a uma

distância superior a 5 km. Todos os dias antes das 06h00 da manhã já

estávamos de pé para iniciar a caminhada.

Para além da lavoura também cuidávamos do gado. O meu avô tinha dois

curais de vaca. Somos nós que tomávamos a conta do curral de casa

enquanto o outro curral, foi confiado a um pastor na tabanca de Canicó a

poucos quilómetros de Farim. Eramos escalado para pastorar gado. Durante as

pastagens praticávamos a caça amadora com cães.

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Para cumprir com a tradição mancanha, no que diz respeito a chefia de

tabanca no regulado de Có reservado a família N’dica, ou seja, o território de

herança familiar, o meu avô chegando a vez dele, foi obrigado a abandonar

Farim onde vivia com a família para ir chefiar a tabanca de Kanten na

povoação de Có a 9 km de Bula. Era funcionário público reformado do

Ministério das Obras Públicas em Bissau, de profissão carpinteiro e pedreiro. Foi

transferido para Farim nos anos 60, nos primórdios da guerra colonial e faleceu

em 2005.

Importa salientar que na etnia mancanha, a família também tem a

designação de geração tanto em Bula como em Có. E são as gerações que

exercem em regime rotativo o poder tradicional - o regulado, nomeadamente,

as gerações de Bami, N´Dica e Meddo em Bula e as gerações de Dappa,

Cappo, kussy, Don’ghuy e Loyi em Có.