Questão religiosa

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Questo religiosaOrigem: Wikipdia, a enciclopdia livre. Ir para: navegao, pesquisa

Charge de c.1870 a respeito da Questo Religiosa. A legenda diz: "Sua Majestade aproveitou a ocasio para, no desfazendo do macaroni do Papa, fazer valer as vantagens e excelncia de uma boa feijoada". No prato de macarro aparece a palavra Syllabus (ttulo de um documento de Pio IX condenando os erros da civilizao moderna) e, no de feijoada, Constituio. A questo religiosa foi um conflito ocorrido no Brasil na dcada de 1870 que, tendo iniciado como um enfrentamento entre a Igreja Catlica e a maonaria, acabou se tornando uma grave questo de Estado. Suas causas podem ser traadas desde muito tempo antes, fundadas em divergncias irreconciliveis entre o catolicismo ultramontano, o liberalismo e o regime do padroado. A questo evoluiu centrada na atuao de dois bispos, Dom Vital e Dom Macedo Costa, ardentes defensores do catolicismo ultramontano. Baseando-se em ordenaes papais no aprovadas pelo Imprio, ao interditarem irmandades sob sua jurisdio, por manterem elas em seu seio membros maons, e negando-se a levantar os interditos aps ordem expressa do governo, j que tais associaes eram regidas tambm pelo poder secular, julgou-se que feriram a Constituio do Imprio e incorreram em culpa de desobedincia civil, sendo presos e condenados a trabalhos forados. Pouco tempo depois foram anistiados, mas isso no aplacou o acrrimo debate pblico que se desencadeou a respeito da unio entre Igreja e Estado, ao contrrio, o problema permaneceu em discusso agregando outros elementos ideolgicos e sociais e faces cada vez mais extremadas, enfraquecendo a autoridade e o prestgio da monarquia. Por isso a questo religiosa considerada um dos momentos mais marcantes do Segundo Reinado e um dos fatores que precipitaram a queda do regime monrquico brasileiro, mas sua anlise permanece controversa. Com o advento da Repblica formalizou-se a separao entre os poderes religioso e secular. Embora usualmente circunscrita na bibliografia ao episdio dos bispos, a questo religiosa em seu sentido mais lato, expresso de uma complexa e dinmica realidade social e cultural, ressurgiu com fora durante a era Vargas, com a Igreja readquirindo grande influncia poltica e reconquistando constitucionalmente vrios de seus antigos

privilgios, e, segundo alguns autores, seus efeitos foram sentidos tambm ao longo de toda a segunda metade do sculo XX.

ndice[esconder]

1 Antecedentes 2 Cronologia da crise o 2.1 Incio o 2.2 A interveno do Estado o 2.3 Desfecho 3 Efeitos imediatos da questo religiosa e seus ecos tardios 4 Apreciaes 5 Referncias 6 Ver tambm

AntecedentesNuma tradio que fora herdada de Portugal, no Brasil vigorava ainda o regime do padroado, um instrumento jurdico pelo qual a Santa S atribua ao Estado a responsabilidade pela construo de templos, pela organizao das irmandades, pela indicao de sacerdotes e bispos s suas respectivas jurisdies e pelo seu sustento material, numa absoro tal que os religiosos passavam a ser funcionrios do Estado.[1] Essa transferncia de atribuies era justificada pela Igreja como sendo um privilgio concedido s administraes civis que demonstrassem dedicao "para difundir a religio e como estmulo para futuras boas obras", como disse Bruneau.[2] Reforando a ligao entre os dois poderes, o Imprio brasileiro definira o catolicismo como sua religio oficial, como expresso no artigo 5 da Constituio de 1824. Embora outros credos fossem autorizados em culto domstico e a perseguio por questo de conscincia fosse vedada pela mesma Carta, na prtica a oficializao do culto catlico eliminava do acesso a cargos pblicos quem no lhe jurasse previamente fidelidade. Ao mesmo tempo, o Estado se reservava o direito de exercer controle sobre prescries rituais e normas cannicas emanadas da Santa S se elas invadissem o terreno secular, se as considerasse atentatrias contra o princpio da soberania nacional, se ferissem leis brasileiras e se limitassem a autonomia do poder monrquico, podendo declar-las nulas e sem efeito dentro do territrio brasileiro, o que era conhecido como o privilgio do beneplcito.[3] Durante muito tempo reinara uma concrdia, ainda que por vezes algo tensa, entre as esferas civil e religiosa, a despeito das implcitas incongruncias entre a cultura e legislao brasileiras e a prtica ortodoxa do catolicismo, uma concrdia que, segundo Roque de Barros, se explica pela frouxido dos costumes religiosos no pas. Para o historiador, mesmo que os brasileiros se declarassem, em sua esmagadora maioria, como catlicos, o que se observava era um elevado grau de liberdades e interpretaes arbitrrias do cnone religioso, liberdades que eram no s toleradas como praticadas

tambm pelo prprio clero nacional.[3] Um observador da poca, Pereira Barreto, descreveu a situao nos seguintes termos: "O nosso clero quase em sua totalidade desta; toda a nossa Cmara atual desta; quase todo o Senado desta; o ensino oficial da filosofia nas academias de So Paulo, de Pernambuco, nos liceus, nos colgios, exclusivamente desta; em uma palavra o puro desmo que domina em todas as camadas mais cultas da nossa sociedade.... Se descermos agora s camadas incultas da nossa sociedade, as quais constituem com segurana quatro quintos da populao.... excluda desses quatro quintos a populao escrava que totalmente fetichista, no obstante o rtulo catlico que a cobre, resta-nos uma grande frao que vive engolfada no mais profundo politesmo primitivo".[4] Enquanto a massa do povo continuava com suas prticas religiosas tintas de folclore e sincretismo, e, inculta, ficava em muito margem do pensamento de vanguarda da poca, as elites mergulhavam em um mar de novos conceitos, doutrinas e ideologias, tais como o iluminismo, a maonaria, o cientificismo, e outras que marcaram a transio do sculo XVIII para o XIX e ainda permaneciam influentes, enfeixadas na abrangente denominao de liberalismo. Este liberalismo multiforme se caracterizava, resumidamente, por um esprito de progresso e expressava um profundo desejo de renovao social, poltica, religiosa e humanstica, onde se prezava acima de tudo a liberdade de conscincia. Mesmo grande parte do clero se via imbudo dessas doutrinas, sem que percebessem qualquer contradio com os ditames do catolicismo nem protestassem contra a orientao regalista do sistema institucional. As discrepncias em relao a Roma chegavam ao ponto de clrigos influentes como o Padre Feij, um dos regentes durante a menoridade de Dom Pedro II, pregassem o fim do celibato eclesistico e abraassem abertamente o iderio liberal e a maonaria, que fora expressamente condenada por constituies apostlicas com a pena da excomunho. Em suma, no rigor da definio, pouca gente no Brasil daquela poca era de fato catlica, embora assim se declarasse; e por isso havia paz entre Estado e Igreja.[5]

Papa Pio IX

Esta paz, como se v, era ilusria e precria, e bastaria que se levantassem defensores da ortodoxia para que ela fosse quebrada. E assim o foi quando o papa Pio IX, continuando a tendncia de seu antecessor Gregrio XVI, a partir de 1848 iniciou uma agressiva campanha em favor de um retorno ao modo de vida medieval e estrita observncia do cnone religioso, condenando a sociedade moderna em bloco por conta de uma alegada multido de erros e vcios, principalmente todas as formas do "abominvel" liberalismo, apodado de "obra de Satans", e reivindicando a liderana absoluta de Roma na conduo de todos os assuntos, fossem religiosos, fossem profanos, na doutrina conhecida como ultramontanismo, sistematizada na encclica Quanta cura e no Syllabus anexo.[6][7][8] Pio IX lanou uma volumosa srie de outras encclicas, bulas, breves e outros documentos defendendo o seu ponto de vista, reforando-o com a conquista para o papado do apangio da infalibilidade, erigida em dogma no Conclio Vaticano I (18691870). A doutrina ultramontana logo encontrou eco em alguns destacados clrigos brasileiros, como os bispos Dom Antnio de Melo, Dom Antnio Vioso e Dom Pedro Maria de Lacerda, e nos setores mais conservadores da sociedade civil, incluindo algumas escolas superiores. Este grupo, em referendando o ditado do papa atravs de pronunciamentos, cartas pastorais e intensa publicidade, passou a contestar as prprias bases constitutivas do Imprio ao defender a supremacia da Igreja sobre todos os outros poderes, embora em nenhum momento se cogitasse em uma separao formal entre Estado e Igreja. No apenas isso; defendendo uma moralizao radical da sociedade e do clero e uma rigorosa ortodoxia religiosa, entrava em choque com hbitos fundamente arraigados na cultura brasileira.[9][10] E como corolrio de sua ideologia, os eclesisticos recomendavam a desobedincia s leis civis se elas negassem o primado da religio ou causassem um problema de conscincia no devoto.[11] Para formarmos uma ideia mais viva do clima de antagonismo que se estabeleceu, seguem alguns testemunhos de poca. O jornal O Romano, de Minas Gerais, desde a dcada de 1850 j proclamava: "Os aduladores dos prncipes, ou os ministros que por eles exercem a jurisdio, tm convertido uma ideia, em si mesma mui clara e simples, em um caos de conceitos figurados, que ningum entende, nem entender jamais .... certo que os prncipes, ou poderes temporais, devem prestar seu brao em auxilio e proteo da Igreja. Mas isto mais obrigao do que direito do poder que exercem, especialmente aqueles que tm a felicidade de terem sido alumiados pela f. So Leo dizia a um Imperador: 'Deves desde j advertir que o supremo poder te foi dado no s para o governo do mundo, se no tambm muito principalmente para o amparo da Igreja'. Mas quem h de confundir a proteo e auxilio, com usurpao e ingerncia? Quem pde fundar no ttulo de proteo o direito de mandar ou apropriar-se da mesma autoridade qual se presta auxlio e proteo? No ser isto uma manifesta violao, um proceder contraditrio, destru-la em lugar de proteger?" [12] Outro exemplo, de Jos Soriano de Souza: "No h progresso moral sem o aperfeioamento do esprito, e s o catolicismo aperfeioa.... Seria muito para desejar a formao de um partido catlico, que .... tomasse a peito a defesa das doutrinas catlicas, e procurasse pass-las a todos os atos da vida poltica e social da nao, sempre em conformidade com as regras e ditames da Igreja". A reao contra o

ultramontanismo tambm no se fez esperar, dado o contexto fortemente liberalizante de ento, nas vozes, por exemplo, de Tavares Bastos e de Barros Leite. Bastos dizia: "Levantemo-nos, meu amigo, e apressemo-nos em combater o inimigo invisvel e calado que nos persegue nas trevas. Ele se chama esprito clerical, isto , o cadver do passado; e ns somos o esprito liberal, isto , o obreiro do futuro". O outro, discursando no Senado, vergastava o comportamento dos religiosos dizendo: "Antigamente os bispos entre ns prestavam juramento de obedecer ao Rei e no praticarem coisa alguma que pudesse perturbar a tranquilidade do Imprio; hoje eles no prestam outro juramento seno Santa S".[13]

Dom Pedro II na Fala do Trono, pintura de Victor Meirelles Um outro dado relevante questo era o princpio da monarquia por direito divino, que dava um sustentculo poderoso ao Estado, revestia-o de uma aura mtica e justificava que a religio fosse protegida e prestigiada atravs da unio oficial entre ambos, mas o colocava ao mesmo tempo em uma posio ambgua, pois a tendncia laicizao da sociedade era irrefrevel e o liberalismo ganhava asas mesmo no mbito legal e at no institucional. Alm disso, a legislao era contraditria em termos fundamentais e no previa soluo jurdica coerente para um conflito aberto a respeito de precedncias caso ele surgisse, ainda mais que Dom Pedro II era de um lado cioso de suas prerrogativas imperiais e, de outro, no desejava absolutamente um rompimento com a Igreja.[14][15] Saldanha Marinho analisou o dilema da seguinte forma: "Em todo o Estado em que a lei poltica baseada sobre a f religiosa, a lei poltica baqueia, logo que a f religiosa atacada.... A primeira condio, pois, de um tal governo a necessidade absoluta de conservar intacta a fora e a unidade da f religiosa que lhe serve de base - isto , o impossvel. o impossvel e tambm pode-se dizer, o imoral, o brbaro, e medonho abuso do poder! ... Seria preciso que a lei poltica oprimisse os espritos, lhes impusesse a sua f, de alguma sorte lhes servisse de conscincia, e que os algozes acabassem a obra impossvel a seus pregadores.... Ora, a lei poltica acha-se ento entre estes dois escolhos; no pode viver mais se no mantm, pela fora, a unidade

da f; e no pode manter essa unidade pela fora, porque .... a lei poltica , pois, apesar de todos os rigores que se possa imaginar, impotente para manter as crenas religiosas. Seus rigores podem fazer vtimas ou hipcritas, mas no faro crentes".[16] Para completar o quadro, deve ser mencionado que outros elementos entraram em jogo pouco antes de a questo religiosa propriamente dita se apresentar. Os ventos liberais se tornaram intensos e diversos de seus adeptos, incluindo parlamentares, enveredaram por uma vertente radical, em que, diante das contradies que se iam revelando cada dia mais insolveis dentro do arcabouo institucional vigente, passaram a defender o regime republicano e reivindicar abertamente a separao entre Igreja e Estado, o que antes raramente havia sido aventado em pblico, pois significava ofensa Constituio. Influram tambm as ideias progressistas do positivismo, do evolucionismo, do materialismo e do cientificismo, que nesta altura se tornavam particularmente importantes. O prprio governo preparava, atravs do conservador gabinete Rio Branco, algumas reformas de amplo alcance h muito reivindicadas pelos liberais, no judicirio, na administrao, na organizao partidria, na educao e no sistema eleitoral. Tambm de notar que a campanha em favor da abolio da escravatura na dcada de 1870 ganhava mpeto, sendo promulgada a Lei do Ventre Livre em 1871. Previa-se que em breve no haveria mais escravos no Brasil, e com isso o problema de onde encontrar mo-de-obra se tornava premente. J se havia tentado substituir os escravos com programas de imigrao incentivada, que alm de darem braos para a lavoura colonizariam regies desabitadas, mas eles entravaram na recusa de pases europeus onde predominava o protestantismo, como a Alemanha, de enviar colonos para um pas onde os que no fossem catlicos tinham sua situao prejudicada.[14][17][18] Por fim, a Igreja contribua com elementos ideolgicos importantes para a legitimao da escravatura, j que o escravo era propriedade privada e o direito propriedade constitua artigo de f desde o papado de Joo XXII.[19] Desta maneira, com tantas dificuldades e contradies se agravando, patenteava-se, no contexto brasileiro, o sistema da religio de Estado como um anacronismo, e estava preparado o terreno para a crise se deflagrar.[14]

Cronologia da criseIncioDesentendimentos entre os poderes secular e religioso ocorreram vrias vezes na histria brasileira anterior, como o criticado decreto 3073 de 22 de abril de 1863, que interferiu no sistema de ensino dos seminrios, ou os protestos do bispos Dom Romualdo de Seixas e Dom Sebastio Dias Laranjeira contra o uso de igrejas para reunies polticas e realizao de eleies, mas em geral tiveram repercusso limitada.[20] A bibliografia considera, pois, como estopim da questo religiosa propriamente dita, um discurso proferido em 3 de maro de 1872 na loja manica Grande Oriente do Vale do Lavradio, no Rio de Janeiro, quando Jos Lus de Almeida Martins, padre, festejou o visconde do Rio Branco, na poca gro-mestre maom e presidente do gabinete de Dom Pedro II, pela sua vitria poltica que resultara na promulgao da Lei do Ventre Livre. O bispo da cidade, Dom Lacerda, diante do fato, insistiu que o padre se afastasse da maonaria, como exigiam as normas da Igreja, mas normas que no haviam recebido o beneplcito imperial. Indiferente ao apelo, o padre publicou seu discurso em jornais de larga circulao. Em represlia, o bispo suspendeu

o padre do exerccio das ordens sacras. Ultrajada, a maonaria, unindo os dois Grandes Orientes, um sob a gide de Rio Branco e outro dirigido por Saldanha Marinho, fez valer sua forte presena no Senado e na Cmara para desencadear uma guerra na imprensa contra o episcopado. Jornais foram fundados em vrias regies do pas com o fim expresso de combater o "jesuitismo" e o ultramontanismo, usando amide de um jargo derrisrio e ofensivo.[21][8]

Dom Vital Os eventos seguintes se polarizaram em torno do bispo de Olinda, Dom Vital de Oliveira, recentemente empossado no seu cargo. Em carta pastoral de 17 de maro ele j instrua seus diocesanos a abandonar o livre exame da doutrina e condenava o primado da razo e toda a liberdade de conscincia.[22] Em junho a maonaria pernambucana encomendou a celebrao de uma missa para comemorar o aniversrio da fundao de uma loja manica. O bispo ordenou reservadamente ao clero que no a celebrasse e a missa no aconteceu. Pouco depois outra missa foi encomendada em memria de um maom defunto, novamente negada pelo bispo. Os jornais manicos iniciaram ataques e o bispo fez circular uma carta pastoral prevenindo o clero para que no se envolvesse com o movimento manico. O prelado tambm deu incio publicao de uma srie de medidas e decretos censurando irmandades que tinham membros maons e punindo padres recalcitrantes, incluindo alguns que eram figuras polticas destacadas.[21] Os maons reagiram e divulgaram nos jornais artigos difamatrios contra o bispo.[23] Em 28 de dezembro Dom Vital escreveu ao vigrio da freguesia de Santo Antnio recomendando que exortasse o dr. Antnio da Costa Ribeiro, maom e membro da irmandade do Santssimo Sacramento, a se afastar da maonaria sob pena de excomunho. Caso se negasse, que fosse expulso da irmandade, e assim o vigrio procedesse com todos os outros irmos que integrassem a maonaria. A irmandade se negou a cumprir as ordens porque seus estatutos no previam expulso por tal motivo, uma vez que a maonaria era autorizada a funcionar no Brasil e os estatutos das irmandades tinham aprovao do poder civil. O bispo repetiu a ameaa, e como novamente a irmandade se negasse, lanou sobre ela um interdito.[24]

A interveno do EstadoO caso extrapolou os limites da diocese e chegou Cmara dos Deputados no Rio de Janeiro, onde se trouxe baila, abertamente, a problemtica unio entre a Igreja e o Estado. Em 20 de janeiro de 1873 a irmandade voltou-se para o bispo e solicitou que ele

transigisse, mas na mesma data a sentena foi mantida como irrevogvel. Assim sendo, irmandade no restou seno apelar Coroa, baseando seu recurso no artigo 1 do Decreto n 1911 de 28 de maro de 1857, onde se disciplinavam os casos de usurpao do poder temporal e violncia no exerccio do poder espiritual. Intensamente pressionado pelos maons, e temendo o governo que isso desandasse levando consigo o gabinete conservador, o recurso foi aceito e encaminhado ao presidente da provncia, dr. Henrique Pereira de Lucena, que interpelou o bispo e pediu-lhe explicaes.[25][23] Dom Vital no se retratou, mas em sua defesa alegou 1 - que o beneplcito imperial - que autorizava o funcionamento da maonaria no Brasil repelindo a condenao da Igreja era doutrina condenada por Roma; 2 - mesmo se fosse doutrina aceita, no cobriria o perodo em que foram publicadas as bulas In Eminenti (1738), de Clemente XII, e Provida Romanorum Pontificum (1751), de Bento XIV, reconhecidas em todo o reino de Portugal e suas colnias quando ali o beneplcito estava suspenso, e 3 - porque mesmo os defensores do beneplcito reconheciam que este no se aplicava a censuras e penas eclesisticas. O Estado no poderia aceitar nem a primeira nem a terceira das razes - a terceira pelo motivo de que as irmandades tinham amparo na lei secular embora se discutisse ao longo de toda a questo religiosa a procedncia da segunda. Ouvido o procurador da Coroa, este julgou que o bispo exorbitara de suas atribuies, invadindo a jurisdio do juiz de capelas, e encaminhou o caso ao Conselho de Estado. Antes de o Conselho emitir seu parecer, entrou em cena outro personagem principal, o bispo do Par, Dom Macedo Costa. [26]

Dom Macedo Dom Macedo, da mesma forma que Dom Vital, em 23 de maro de 1873 decretou a expulso de todos os maons das irmandades e confrarias, e caso estas resistissem, seriam interditadas. Tambm excluiu os maons do sacramento da absolvio e da sepultura em terreno consagrado. Imediatamente trs irmandades apelaram ao presidente da provncia, que encaminhou a impetrao Coroa. Antes de o governo tomar cincia do caso, o Conselho de Estado exarou seu parecer sobre o processo de Dom Vital. Todo apoiado no regalismo, o parecer refutou os argumentos do bispo, e, em ofcio de 12 de junho, deu-lhe o prazo de um ms para levantar o interdito. Sua resposta foi previsvel: sem acatar a ordem recebida, ele no s contestou ponto por ponto as alegaes do Conselho, como rejeitou a interferncia do Estado nesta polmica, chegando a questionar ousadamente toda a doutrina regalista: "Ou o Governo

do Brasil declara-se acatlico, ou declara-se catlico.... Se o Governo brasileiro catlico, no s no chefe ou superior da religio catlica, como at seu sdito". No mesmo dia em que recebera a advertncia do governo, chegou-lhe s mos a resposta a um relatrio que fizera ao papa a respeito da interdio. O papa, no breve Quamquam dolores, recomendava-lhe que desse o prazo de um ano para que os maons pudessem se converter e retornar ao seio da Igreja. Se no o fizessem, ento o bispo poderia usar do rigor das penalidades cannicas e at dissolver a irmandade. Mas para complicar a situao, neste nterim Dom Vital j havia interditado outras irmandades, e logo depois afrontou novamente o poder civil publicando o documento papal sem o conhecimento ou autorizao do governo, contrariando o artigo 102 da Constituio, tornando-se ru de desobedincia. Se sua condenao antes era previsvel, com este ltimo ato se tornara inevitvel.[27][28] Neste meio tempo o processo do bispo do Par era examinado pelo mesmo Conselho, que deu o mesmo parecer mas enfatizou que se tratava de caso de maior gravidade, pois o bispo pegara as irmandades de surpresa e no se dera ao trabalho de responder s acusaes oficiais. Foram-lhe dados quinze dias, a partir de 9 de agosto, para levantar os interditos. Decidindo ignorar as instncias do Conselho, Dom Macedo s deu uma resposta em 4 de outubro, em que no discutiu as acusaes, mas justificou-se dizendo que no podia, "sem apostatar da f catlica, reconhecer no poder civil autoridade para dirigir as funes religiosas, nem anuir de modo nenhum s doutrinas do Conselho de Estado.... por serem elas subversivas de toda a jurisdio eclesistica, e claramente condenadas pela Santa Igreja".[29]

O baro de Penedo Para o governo a situao era clara: a rebelio dos bispos era assunto grave e ameaava se alastrar por todo o pas. Em 21 de agosto o Ministro dos Negcios Estrangeiros, o visconde de Caravelas, incumbiu o baro de Penedo de uma misso junto ao Vaticano. Devia o emissrio conseguir o apoio do papa para que ele moderasse seus bispos, impedindo que situaes semelhantes ocorressem no futuro. E no devia fazer segredo de que o governo brasileiro tencionava de usar medidas enrgicas caso no alcanasse o objetivo.[28] O prprio Penedo no acreditava no sucesso de tal misso, pois o governo no estava disposto a transigir em nada, mas depois de rduas negociaes o resultado foi um completo xito, obtendo do papa uma instruo ao cardeal Antonelli para que ele escrevesse uma carta de censura a Dom Vital, com ordem para que ele restaurasse os direitos das irmandades e recompusesse a tranquilidade geral que ele to imprudentemente perturbara. Uma cpia deveria tambm ser enviada ao bispo do Par. Por outro lado, o papa solicitava que nenhuma medida hostil se tomasse contra seus

prelados. Com isso aparentemente a questo religiosa estaria encerrada. Contudo, antes de o governo saber deste resultado to favorvel aos seus interesses, no Brasil as coisas se precipitaram, pondo a perder todo o esforo do embaixador. Somente em 20 de dezembro chegou s mos de Caravelas o informe de Penedo, mas em 27 de setembro j havia sido expedida ordem para que o procurador da Coroa, Francisco Baltazar de Oliveira, apresentasse denncia formal contra Dom Vital, acusando-o de desobedincia e de fazer guerra ao governo, ao Cdigo Criminal e Constituio. Em 17 de dezembro fora denunciado formalmente tambm Dom Macedo, sobre as mesmas bases. Em sua defesa os bispos decidiram se calar, pois responder seria reconhecer a competncia do poder civil em julgar a causa.[30]

DesfechoDom Vital foi preso em 24 de janeiro de 1874 na sua sede episcopal e remetido ao Rio de Janeiro para ser julgado. Dom Macedo teve o mesmo destino, preso em 28 de abril. E ambos, em seus julgamentos, continuaram calados, alegando que "Jesus Cristo tambm se calou", numa referncia atitude de seu mestre quando seus inimigos o acusaram diante de Caifs. No entanto, ambos contaram com defensores que se apresentaram espontaneamente. Mas a despeito da habilidade dos advogados, e da retrica emocionada que desenvolveram, o veredito do jri foi implacvel e de certa forma previsvel, movido pelo aspecto poltico da questo, condenando-os a quatro anos de priso com trabalhos forados, penalidade a ser cumprida o primeiro no Forte de So Joo, e o segundo na fortaleza da Ilha das Cobras. Pouco depois as sentenas foram comutadas em priso simples.[31][32] A condenao dos bispos desencadeou uma intensa e apaixonada polmica em todo o Brasil, repercutindo tambm no exterior.[31][8] O Vaticano respondeu indignado, alegando que fora enganado pelo baro de Penedo, o qual lhe teria assegurado a imunidade dos bispos - o que Penedo mais tarde negou ter feito. O primeiro protesto chegou atravs do internncio Sanguigni, que foi de pronto rechaado rispidamente por Caravelas. Em seguida o papa escreveu a Dom Pedro ameaando-o com o juzo divino e dizendo que "quanto mais alto estiver algum, mais severo ser o ajuste de contas". Com muita perspiccia poltica, o papa tambm disse que "Vossa Majestade.... descarregou o primeiro golpe na Igreja, sem pensar que ele abala ao mesmo tempo os alicerces do seu trono".[32] No Senado e na Cmara se formaram partidos diametralmente opostos, um criticando com veemncia a atitude do jri, e o outro vendo nela benevolncia, e desejando que a pena tivesse sido ainda mais rigorosa. O gabinete do baro do Rio Branco no suportou a presso e caiu. O duque de Caxias foi convidado pelo monarca a reorganizar o governo, mas colocou como condio a anistia dos dois bispos. O clamor popular, a exigncia do duque e a splica da princesa Isabel, intensamente devota, fizeram Dom Pedro ceder. Disse ele em nota a Caxias: "A retirada do ministrio teria mais grave consequncia do que a recusa da anistia.... Faa-o o ministrio, mas sem a aprovao de minha parte". Em decreto de 17 de setembro de 1875, a anistia se consumou e os bispos retornaram s suas dioceses, sendo recebidos em triunfo.[31][32] Pouco depois Dom Vital visitou o papa no Vaticano, que o recebeu paternalmente e disse: "Aprovo tudo o que Vossa Excelncia fez, desde o princpio".[33] Em 29 de abril de 1876 o papa dirigiu aos bispos a encclica Exortae in ista ditione, alertando que o levantamento dos interditos de forma alguma significava uma tolerncia maonaria, ao contrrio, permanecia ela

castigada com a excomunho. Terminava o documento dizendo que o Vaticano e a Coroa logo iriam iniciar entendimentos, mas isso jamais aconteceu.[32]

Efeitos imediatos da questo religiosa e seus ecos tardios

Charge de Bordalo Pinheiro de 1875 fazendo referncia anistia dos bispos. A legenda original era: Afinal... deu a mo palmatria![34] Ao contrrio da previso do imperador, a anistia, mesmo encerrando oficialmente a questo religiosa, no s no resolveu o problema que ela levantou como agravou-o, enfraquecendo a posio da monarquia diante da opinio pblica. A grita se tornou generalizada, e as agresses e provocaes mtuas, mais pungentes. E mesmo com tudo isso a separao formal entre os poderes constitudos ainda no era desejada por nenhum deles.[35][21][36] Para Luiz Eugnio Vscio a incompatibilidade entre Igreja e Estado, explicitada pela questo religiosa, intensificou em muitos o desejo pela abertura de canais de expresso independentes e prprios a cada esfera.[37] E pouco a pouco o antigo padroado ia sendo desmontado: o decreto de 19 de abril de 1879 sobre o ensino livre dispensou do juramento de fidelidade ao catolicismo - ou a qualquer credo - os funcionrios pblicos das escolas primrias e secundrias; a reforma eleitoral instituda pela Lei Saraiva, de 9 de janeiro de 1881, autorizou que se tornassem elegveis pessoas de qualquer religio.[38] Mesmo assim, em 1884 Jlio de Castilhos reconhecia explicitamente que a questo ainda no fora resolvida, e exigia a ateno do legislativo.[39] A separao completa s iria ser conseguida na Repblica. De fato, os republicanos, antes desunidos, ateando mais fogo fogueira j acesa, como pitorescamente descreveu Jos Ramos Tinhoro,[40] aproveitaram o momento de confuso para congregar foras e desfraldar suas bandeiras: a imediata separao entre Igreja e Estado, a plena liberdade de culto e perfeita igualdade estatutria entre todos eles, a separao do ensino secular do ensino religioso, a secularizao dos cemitrios, a instituio do casamento civil e do registro civil de nascimento e bitos, e, claro, a adoo do regime republicano.[35] preciso ressaltar que a virada republicana no se deveu exclusivamente ao descrdito da monarquia por causa da questo religiosa. Nas palavras de Cesar Vieira, "outros ingredientes ainda seriam adicionados ao conflito, aumentando o grau de insatisfao e

exaltando os nimos de maons, republicanos, positivistas e dos prprios militares, que, liderados pelo marechal Deodoro da Fonseca, derrubaram o 36 Gabinete do Imprio e proclamaram a Repblica no dia 15 de novembro de 1889".[35] Entre esses "outros ingredientes" estavam, como observou na poca Cristiano Ottoni, a evoluo natural da ideia de repblica e a rejeio massiva da monarquia pelos senhores de escravos, que se viram despojados de sua principal fora de trabalho na abolio em 1888. Os catlicos em geral no desejavam uma troca de regime; criticavam sim o imperador reinante, mas ansiavam pela subida ao trono da princesa Isabel, conhecida por seu fervor religioso. Contudo, de assinalar que a forma como o governo entendia sua unio com a Igreja, como uma tutela e controle desta por aquele, no agradava o clero, e que a separao, neste contexto, poderia equivaler a uma libertao. significativo, neste sentido, que o papa Leo XIII tenha afirmado para o presidente Campos Sales em 1898 que "a Igreja sente-se melhor hoje no Brasil com suas instituies republicanas, do que sob o regime decado".[36] Porm, mesmo o papa saudando o novo regime, a separao oficial entre os poderes na verdade provocara protestos da Igreja, pois entre outras medidas introduzidas o clero perdeu suas imunidades e teve seu salrio cortado, membros de comunidades religiosas que incluam voto de obedincia a Roma tiveram seus direitos polticos cassados, foi institudo o casamento civil e anulados os efeitos civis dos matrimnios religiosos, o ensino religioso foi abolido nas escolas pblicas e a escusa por motivo de conscincia ou credo para no cumprimento de obrigaes civis foi rejeitada, passando a implicar em perda de direitos polticos. Na Constituio de 1891 o nome de Deus nem foi invocado. Um resultado prtico disso foi um rpido e importante declnio das vocaes, obrigando a um recrutamento massivo de clrigos estrangeiros para suprir as vagas no cobertas por nacionais.[41][42] A crise propiciou tambm, paralelamente, de acordo com Antonio Mendona, uma maior penetrao do protestantismo, ocupando um espao social aberto pelo desgaste geral causado pelos atritos.[35] A mesma brecha foi aproveitada por outros credos minoritrios, como o judasmo e o espiritismo. Alm disso, a oposio entre Igreja e maonaria no foi resolvida, entretanto, nem com o advento da Repblica, permanecendo acesa at a metade do sculo XX.[43] Os sucessores de Pio IX emitiram diversos outros documentos condenando os maons; o mesmo Leo XIII na bula Humanus genus persistia dizendo que a maonaria era a "encarnao do Diabo", o que veio a lanar-lhe uma pesada sombra no imaginrio popular e criar uma teoria da conspirao, muito porque a organizao continuava a ser uma sociedade secreta, alegando-se que o que seus membros pregavam de patriotismo, solidariedade, beneficncia, tolerncia religiosa, igualdade e fraternidade, no passavam de engodos que ocultavam perigos e subverso e buscavam a runa e perdio da humanidade.[43][8]

Busto do cardeal Leme, o mais notvel expoente da nova militncia catlica na era Vargas No que diz respeito s relaes entre Igreja e Estado, depois de uma fase de indiferena entre ambos no incio da Repblica, e de dissoluo de muito do prestgio do clero, a partir dos anos 1920 e especialmente durante a era Vargas a Igreja reorganizou-se e passou a buscar ativamente a recuperao dos direitos e privilgios que a Repblica lhe havia subtrado, entendendo que o Brasil era um pas catlico e que a Igreja era a expresso mxima de sua religiosidade. Invocando novamente princpios do ultramontanismo, fazia-se referncia direta ao problema bsico que no fora resolvido no Imprio e que at ento sob a Repblica ficara adormecido, insistindo-se, como disse Schallenmueller, "no retorno daquela antiga simbiose com o poder temporal". Vrios intelectuais, como Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima, abraaram a causa catlica, e surgiram inmeras sociedades leigas que se dedicaram militncia. Ao mesmo tempo, a elite poltica, no momento de incertezas que se atravessava, entendeu que a Igreja poderia novamente servir como fora legitimadora de seus propsitos, e buscou uma reaproximao. Neste perodo destacou-se sobremaneira o ativismo do Cardeal Leme, que em 1921 aprovou a fundao, dentre outras, de uma associao sintomaticamente denominada Centro Dom Vital, conservadora e direitista, que deveria ampliar a penetrao do apostolado intelectual no pas.[44][45][46][47] Sua apologtica, que lamentava a passividade dos catlicos e no se esquivava da poltica se esta ameaasse a moral, a educao e aspectos doutrinais considerados bsicos pela Igreja, pode ser exemplificada nos seguintes trechos: "Que maioria catlica essa, to insensvel, quando leis, governos, literatura, escolas, imprensa, indstria, comrcio e todas as demais funes da vida nacional se revelam contrrias ou alheias aos princpios e prticas do catolicismo? evidente, pois, que, apesar de sermos a maioria absoluta do Brasil, como Nao, no temos e no vivemos vida catlica. Quer dizer: somos uma maioria que no cumpre os seus deveres sociais".... "Em vez de coro plangente, formemos uma legio que combata: quem sabe falar, que fale; quem sabe escrever, que escreva; quem no fala e nem escreve, que divulgue os escritos dos outros".... "Se alguma luta poltica tiver por carter diferencial pontos da doutrina catlica, j no estaramos em questes meramente polticas, mas em verdadeira questo religiosa"..... "Longe de mim a heresia de dizer que a Religio nada tem a ver com a Poltica. Seria um erro palmar, mil vezes

condenado e mil vezes condenvel"[48] .... "Ou o Estado reconhece o Deus do povo, ou o povo no reconhece o Estado". [49] Sobre a disciplina necessria militncia, dizia: "Uma autoridade, um centro orientador, uma palavra de direo, uma voz de comando necessria. Essa s pode ser a do Bispo a quem ps Deus no governo de sua Igreja". Fundando a Liga Eleitoral Catlica, conseguiu congregar o eleitorado catlico, instruindo-o a s votar em candidatos aprovados pelo clero. Por ocasio de eventos populares como a inaugurao da esttua do Cristo no Corcovado e a consagrao do pas a Nossa Senhora de Aparecida, ambos em 1931, o cardeal reuniu verdadeiras multides em praa pblica a fim de "mostrar ao novo governo a fora da Igreja e a necessidade de tom-la em considerao na nova ordem poltica que estava sendo construda". O cardeal foi amigo pessoal de Getlio Vargas e, segundo Mainwaring, influiu em muitas de suas decises e em seus muitos movimentos para estreitar os laos entre Estado e Igreja. O resultado da militncia foi significativo, e importantes reivindicaes catlicas, como o direito de voto dos sacerdotes, a proibio do divrcio, a volta do ensino religioso nas escolas pblicas, a possibilidade de subveno de escolas catlicas pelo Estado, o reconhecimento de efeitos civis para o matrimnio religioso, e o direito de os sacerdotes servirem o Exrcito como capeles, foram atendidas na Constituio de 1934. E em 1937, ainda a conselho de Leme, na esteira da aproximao com o integralismo e com o fascismo e do combate ao comunismo, outro dos projetos catlicos, Vargas no reatou relaes comerciais com a Unio Sovitica.[44][45][46] Caido o Estado Novo, j pouco se reconhecia a aliana de 1934, e no regime de 1946 o afastamento entre os poderes se aprofundou. A Igreja continuava influente, mas no tanto como antes, colhendo frutos amargos de seu malogrado flerte com as direitas. Por fim, em alguns momentos posteriores ecos do ultramontanismo e de uma espcie de novo padroado, no oficial, ainda seriam novamente ouvidos, s vezes de forma vigorosa, como no nascimento da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil, que reivindicou a direo de todas as organizaes catlicas do pas e buscou marcar presena em todos os lugares em que se decidissem os destinos da sociedade brasileira; durante o governo de Juscelino Kubitschek, que financiou muitas iniciativas da Igreja e buscou uma reaproximao, e nas "marchas pela famlia" de 1964, ou em pequenos crculos, como nas atividades da TFP.[46][50] Como se viu, os efeitos da questo religiosa tiveram repercusses de longo prazo;[51] no se limitaram ao sculo XIX, mas reaqueceram na primeira metade do sculo XX e, conforme pensa Wellington da Silva, cavaram "sulcos profundos tambm na mentalidade catlica da segunda metade desse mesmo sculo".[52]

Apreciaes

Capa do livro A questo religiosa do Brazil perante a Santa S ou a Misso especial a Roma em 1873 luz de documentos publicados e ineditos pelo Bispo do Par (1886), de autoria do bispo Dom Macedo Costa A questo religiosa foi, de acordo com Joaquim Nabuco, "o maior abalo que experimentou a Igreja do Brasil no segundo reinado",[53] e para Luiz Delgado foi um dos episdios decisivos da histria brasileira.[54] um tema candente e controverso que vem atraindo a ateno de muitos historiadores brasileiros. Um levantamento bibliogrfico realizado na dcada de 1950 acusou j naquela poca a existncia de cerca de 500 obras sobre a matria. Entretanto, nas palavras de Roque de Barros, corroboradas por outros autores, a grande maioria dos estudos no foi desenvolvida com a necessria imparcialidade, buscando acima de tudo julgar quem teve razo no conflito e justificar suas aes com argumentos claramente partidrios.[3][55][17][56] Mesmo recentemente o assunto ainda desperta paixes. Pode-se tomar como exemplo a declarao do cardeal Dom Eugnio Sales, dizendo que na questo religiosa "foram dados os primeiros passos para a correo de graves obstculos ao florescimento da vida da Igreja no Brasil. Foi o incio de um despertar", e que Dom Vital foi um heri que sofreu as agruras da injustia, e "seu exemplo de fidelidade doutrina do Sucessor de Pedro um valioso estmulo a todos ns, do clero e do laicato".[33] Est em andamento a causa de sua beatificao.[57] Raimundo de Menezes afirmou que o governo no deveria ter interferido, pois o fazendo desencadeou uma tempestade em que se martirizaram dois inocentes.[58] Fernando Cmara chamou ambos de intrpidos mrtires vitimizados.[31] Barros, na dcada de 1970, em um painel abrangente, entendeu que a questo propriamente dita foi, antes de tudo, apenas o clmax gritante de uma intrincada rede de contradies que se avolumavam mais ou menos surdamente h muito tempo na sociedade brasileira, sem que encontrassem antes da crise um escape para manifestao visvel em larga escala, contradies nascidas de um igualmente multifacetado contexto de transformaes provocadas pela introduo de novos ideais a respeito das formas de governo e de administrao pblica, das instituies, das tradies, da educao, da moralidade, da poltica e do direito, do progresso, da sociedade, da religiosidade, da liberdade e autonomia individuais. O mesmo autor considerou que a ambgua legislao imperial que condenou os bispos tambm poderia ter sido interpretada de forma a salvlos, embora isso fosse improvvel no contexto poltico da poca, como de fato veio a

suceder.[3] Luiz Delgado tambm interpretou a questo como reflexo de um amplo contexto, dizendo que "mais do que muitos outros (episdios da histria brasileira), embora tenha de ser considerado em si mesmo, em suas causas remotas ou imediatas e seu desenvolvimento prprio, principalmente como smbolo que ele vale, indcio de uma realidade subterrnea e obscura que se prende a algumas de nossas caracterizaes essenciais.... A densidade do tema , a bem dizer, infinita.... Talvez possa isso ser razo de se considerar a questo menos em si mesma, isolada e ntida, do que como simples apresentao de um estado de coisas antigo e impreciso, concentrando-se nela como se fosse para explodir".[54] Segundo vrios outros autores, como referiu Maria Martins de Arajo, mais do que uma crise pontual, foi o "momento culminante da luta entre a mentalidade catlico-conservadora e o esprito laico liberal".[59] Por outro lado, seguindo uma linha de interpretao adotada j em 1876 por Rui Barbosa,[8] Vieira disse que h uma tendncia recente, que vem se tornando consensual, de concentrar a anlise no confronto poltico entre a Igreja e o Estado, "dramatizada pela presena dos dois bispos brasileiros e suas intransigncias em considerar a maonaria.... Esta tese, no que tem se demonstrado, encontra nas questes doutrinrias a chave interpretativa privilegiada para entender a questo".[17]

Referncias