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IlItmdllçtlo ENSAIO BIBLIOGRÁFICO Questão social e histoa no Brasil do pós-1980: notas para um debate A/lgcla de Castro Gomes Este texto tem um obje tivo principal. Ele deseja sustentar que as pes- quisas de h istória, espec ialmente as teses e dissertações desenvol vidas no Brasil, sobretud o a parti r dos anos 1980, pr oduziram uma inflexão n os modelos inter- prelativos que tralavam do lema da questão social, no campo das ciênc ias sociais Nmu: Es� 1X\{) foi CSCrilCl para o seminário Brasil-Argcll1ina, "A visão do outro: sobre a questão social", organizado pelo Instituto de Relações Inteacionais da Fundação Alcx311dre Gusmão, Minis:rio das Rcl:lçücs EXlcriorcs do Brasil, e pela Funclación Centro de EMUdus Brasilcirus, 1 nSli luto para la In1cgración de Amêrica Latina}' cl Caribe, realizado em 13 c 14 de novembro de 2003, em Buenos Aires. Para esta publicação, form feiTos alguns ajustes . Agradeço a meus colegas do Núclcu de Pquisas em História CuJ- I . ural da Uni\'ersidade Federal Fluminense proveitosa discussão dcste lexto. Angela de Castro Gomcs é pesquisadora do CPDOC da Fundação GClUlio Vargas e profl " Ssora Uni\!crsidadc Fedcra! Fluminense. Euud05 Hmó,.,·cos, Rio de Janeiro, nl) 34, iulho-dezembro de 2004, p. 157-186. 157

Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para

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IlItmdllçtlo

ENSAIO BIBLIOGRÁFICO

Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para um debate

A/lgcla de Castro Gomes

Este texto tem um objetivo principal. Ele deseja sustentar que as pes­quisas de história, especialmente as teses e dissertações desenvolvidas no Brasil, sobretudo a partir dos anos 1980, produziram uma inflexão nos modelos inter­prelativos que tralavam do lema da questão social, no campo das ciências sociais

Nmu: Eslt� 1l'X\{) foi CSCrilCl para o seminário Brasil-Argcll1ina, "A visão do outro: sobre a questão social", organizado pelo Instituto de Relações Internacionais da Fundação Alcx311dre Gusmão, Minislt:rio das Rcl:lçücs EXlcriorcs do Brasil, e pela Funclación Centro de EMUdus Brasilci rus, 1 nSli luto para la I n1cgración de Amêrica Latina}' cl Caribe, realizado em 13 c 14 de novembro de 2003, em Buenos Aires. Para esta publicação, for:lm feiTos alguns ajustes. Agradeço a meus colegas do Núclcu de P\!squisas em História CuJ­I.ural da Uni\'ersidade Federal Fluminense fi proveitosa discussão dcste lexto. Angela de Castro Gomcs é pesquisadora do CPDOC da Fundação GClUlio Vargas e profl"Ssora titular da Uni\!crsidadc Fedcra! Fluminense.

E.uud05 Hmó,.,·cos, Rio de Janeiro, nl) 34, iulho-dezembro de 2004, p. 157-186.

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em geral.l Essa revisão historiográfica, a meu ver, alterou de forma substancial uma certa matriz de pensamento sobre as relações de dominação na sociedade brasileira, propondo uma nova interpretação que sofistica a dinâmica política existente no interior das relações entre dominan tes e dominados. Nesse sentido, o alcance da revisão, que ainda está em curso, é grande e profundo, pois trans­forma o sentido de um conjunto de comportamen tos individuais e coletivos, politizando uma série de ações e introduzindo novos atores como participantes da política. A nova proposta, ponanto, amplia o que se pode entender por ação política em uma sociedade marcada por relações de poder extremamente desi­guais, como a brasileira.

A força e o impacto dessa revisão histOriográfica, que tem características processuais e incrementais, vêm sendo cada vez maiores na área dos estudos his­tóricos, muito embora ela sofra resistências de vários tipos, o que é compre­ensível, pois altera perspectivas de interpretação consagradas e há muito com­partilhadas. A importância desses novos estudos, que serão aqui recortados na área de uma história social do trabalho,2 precisa ser avaliada tendo-se em vista o fato de que enfrentam autores e obras que construíram reflexões sobre o tema da questão social no Brasil em sua dupla e fundamental chave. Ou seja, trata-se de um amplo conjunto de estudos que atinge tanto as formas de pensar as relações entre senhores, escravos, dependentes e o Estado imperial, quer dizer, de pensar o trabalho escravo e o trabalho livre numa sociedade agrária e escravista, quanto as formas de pensar as relações entre classe trabalhadora, patronatO e Estado, quer dizer, de pensar o trabalho assalariado e o papel do trabalhador em uma sociedade que se tOrna crescentemente urbano-industrial, a panir do século XX. Nessa dupla chave, de um lado, são particularmente interessantes os textOs que se dedicam ao estudo da crise do trabalho escravo e do início da formação de uma classe trabalhadora livre, no campo e na cidade, contemplando a segunda metade do século XIX, especialmente as décadas de 1870 e 1880. De outro, estão os es­tudos que se concentram nas lutas pela regulamentação do mercado de trabalho assalariado, focando, em especial, as décadas que vão de 1 9 1 0 a 1940, quer des­tacando a participação dos próprios trabalhadores, quer a do Estado ou do pau·o­nato. Dois períodos estratégicos, pois cOlTespondem ao enfrentamento de graves e abrangentes questões que, embora centradas no mundo do trabalho, têm des­dobramentos políticos e sociais muito amplos, como os próprios contempo­râneos do processo têm consciência e advertem com ênfase em uma vasta e diver­sificada documentação.

Esses novos estudos de história do Brasil, como é fácil imaginar, estão articulados a toda uma "grande transformação" teórica e metodológica da histo­riogI·afia em nível internacional que, brevemente, pode ser identificada como a da chamada renovação da história política e de sua articulação com uma história

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cultural, que floresceram e chegaram ao Brasil, com mais intensidade, a partir dos anos 19703 Essa também foi a década em que começaram a se expandir e a dar frutos os programas de pós-graduação de várias instituições universitárias, que cresceram em função das políticas do governo do general Geisel (1974-79), também responsável pelo início de um processo de "abertura lenta e gradual" que, contudo, não excluiu a permanência de procedimentos de repressão dura e violenta. Mas, de toda forma, a década de 1980, no Brasil, foi a da anistia (1979), a do desenvolvimento dos movimentos sociais e a de uma luta vigorosa pelo fim do regime militar, presidida pela palavra de ordem da redemocratização e materia­lizada na expressiva manifestação que foi a campanha pelas "Diretas já", em 1984.

Não surpreende assim que, no âmbim dos programas de pós-graduação de história e ciências sociais, os objetos recortados pelos alunos privilegiassem o tema dos movimentos sociais urbanos e rurais, bem como uma história social do trabalho, na qual os protagonistas eram escravos, libertos, homens livres, cam­poneses, artesãos, operários e assalariados em geral. Tais escolhas estavam clara­mente articuladas com preocupações voltadas para o estudo do que se conven­cionou chamar de pensamento social brasileiro, especialmente em suas formu­lações autoritárias, abrindo-se caminho para investigações centradas no tema da cidadania e dos direitos, em sua trajetória de transformações na sociedade bra­sileira.

Tais observações são importantes, pois iluminam a situação da acade­mia nas últimas décadas do século XX e apontam para a direção renovadora de um amplo e diversificado conjunto de estudos históricos. De uma forma geral, pode-se dizer que tal conjunto retomava o grande tema da questão social, recu­sando a predominância de um enfoque socioeconômico mais estrutural e passan­do a privilegiar abordagens que ressaltavam variáveis políticas e culturais, para um melhor entendimenro das relações sociais construídas enrre dominantes e dominados. Com isso, ao lado de categorias já empregadas e que não são aban­donadas, como a de classe social e ideologia, outras são in troduzidas e consi­deradas de eficaz valor explicativo, como é o caso das de etnia, pacto, negociação e cultura política. Esse último exemplo pode ser particularmente útil, uma vez que, apesar de ser uma categoria bastanre polêmica, sua utilização vem crescendo e sendo reconhecida como operacional nas últimas décadas. Além disso, ela reúne de forma paradigmática os dois termos da equação em que as relações de dominação vêm sendo revisitadas pela histõria social do trabalho no Brasil: cu 1-rura e polílica.

Correndo muitos riscos e usando a esrratégia do poder de veto para deli­mitar um conjunto de estudos que já se afirmou ser amplo e diversificado, vou começar caracterizando o que essa historiografia quer rejeitar, tanto teórica

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como empiricamente. Quer dizer, a despeiro da variedade de abordagens, de escolhas de temas e de períodos de análise que fragmenta essa produção histo­riográfica, pode-se afirmar que ela não deseja seguir algumas premissas até então muito fortes. A primeira delas é a que consagrava uma análise dos processos so­ciais caracterizada pela linearidade e previsibilidade, em função da adoção de modelos teóricos de matriz estruturalista, fundamentalmente economicistas, quer fossem de extração marxista, mais comum na história, quer fossem mar­cados pela lógica instrumentalista da ação coletiva, mais presente na ciência política e na sociologia4 Nesse sentido, o que se estava recusando eram expli­cações que se construíam fundamentadas em variáveis "externas" aos próprios processos históricos, isto é, que recorriam a farores definidos a priori e de "fora" dos casos concretos que estavam sendo estudados. A "verdadeira consciência de classe" ou a "racionalidade dos cálculos de cusros e benefícios dos arores", expli­cações postuladas através de modelos de análise prévios e inquestionáveis, ilus­tram o que se deseja fixar.

A proposta dos novos estudos foi afastar a possibilidade de genera­lizações e formalizações dos processos sociais, os quais seriam sempre históricos, isto é, datados e localizados no tempo e no espaço, não podendo ser compre­endidos a não ser por "dentro", vale dizer, por meio das idéias e ações daqueles que estavam diretamente envolvidos, o que não permitiria esquemas ou ver­dades preestabelecidas. Com isso, a análise dos processos sociais se "abre" à in­tervenção dos atores neles presentes, sendo aí crucial uma outra recusa teórica. Ela diz respeito ao abandono de modelos que trabalham com a relação de domi­nação - no mundo econõmico, político e culrural-, a partir da premissa de que o dominante é capaz de controlar e anular o dominado, lOrnando-o uma expressão ou reflexo de si mesmo. làl recusa tem uma face de imensa densidade teórica e

empírica. Ela significa defender teoricamente que, entre seres humanos, não há controles absol u tos e "coisificação" de pessoas, e que, nas relações de dom inação, os dominantes não "anulam" os dominados, ainda que haja extremo desequi­líbrio de forças entre os dois lados. Do ponto de vista empírico, portanto, a asser­tiva traz para a cena histórica, além de um sem número de idéias e ações dos dominantes, outro sem número de idéias e ações dos dominados, até então se­quer imaginadas como possíveis. Tudo isso se articulando em campos de análise que guardam independência relativa entre si, bem como profundas conexões e influências mútuas.

Numa dimensão afirmativa, o que une lOdos esses esrudos que retomam as relações sociais de dominação no mundo do u·abalho é o fato de sustentarem que os trabalhadores - todos eles, inclusive os escravos - são sujeitos de sua pró­pria história, abandonando abordagens simpl istas, dicotômicas, teleológicas etc. A partir daí, a agenda que se coloca para a pesquisa histórica é fantástica, o que é

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corroborado tanto pelo tipo de fontes enrão descobenas e utilizadas quanro pelo tipo de questões formuladas.

Nesse aspecto específico, quer os estudos que priorizam a segunda me­tade do século XIX e o mundo da escravidão, quer os que se voltam para o início do século XX e para o mundo do trabalho assalariado, se beneficiaram ampla­men te de uma literatura de história política, culrural e mesmo social do trabalho, inglesa e francesa, em grande pane. Alguns poucos autores devem ser citados, ainda que rapidamenre, pela imponância que tiveram e pela forma como foram incorporados. O primeiro deles é E. P. Thompson,5 pela conrribuição que deu ao retomar o conceito de classe social, questionando sua reificação e toda uma ló­gica de determinação "em última instância" do político e do social pelo eco­nõmico. A afirmação da centralidade dos valores e comportamentos de um gru­po social, que se relaciona com a posição que ocupa no mercado de trabalho, mas não se esgota nela, foi fundamental para a valorização de questões que abarcavam a etnia, o gênero e as tradições culturais dos trabalhadores, por exemplo. A categoria "experiência", que coloca definitivamente a vivência dos a tores histó­ricos em cena, traduz, por excelência, a forma corno Thompson influenciou essa historiografia.

Na mesma direção - a de que os fatores político-culturais são instituin­tes da realidade social e não simples "derivações" -, vêm se agregar os trabalhos de Roben Darton, Carlo Ginzbug e Seweel, entre OUU"OS.6 A possibilidade me­todológica de se trabalhar com a dimensão social do pensamento e das idéias dos atores, explorando-se fontes que indicam "pistas" e "indícios" de um mundo considerado marginal e insuspeito, foi eficientemenre perseguida e alcançada por essa historiografia. O que se tornou conhecido como o paradigma indiciário aproximou os historiadores da antropologia (principalmente a de Cliforel Geenz e ele Marshall Sahlins? e de exercícios de crítica interna às fontes mais rigorosos e proveirosos. Um elos grandes investimentos realizados foi o de procurar conhe­cer os trabalhadores pela "fala" dos oUU"os ou por resquícios de sua própria "fa­Ia", tivesse ela a forma de textos escritos, de cerimônias rituais, de manifestações de resistência etc.

Do mesmo modo, foi utilizada a esU"atégia de redução da escala de obser­vação própria à micro-história, e uma série de estudos de caso e de trajetórias individuais ganhou legitimidade para se conhecer melhor o mundo do trabalho. Para tudo isso, muito contribuíram os textOs de Giovanni Levi e Roger Char­rier.8 No caso desse último, a proposta de derrubada das fronteiras entre cultura erudita e popular, assumindo-se que as relações de dominação implicam lutas entre idéias que "circulam", sendo "apropriadas" incessantemente por domi­nantes e dominadns, deu um outro sentido e escopo às questões da história polí­tica. Assim, as categorias pensamento, imaginário e cultura política passaram a

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freqüentar os estudos do que se está chamando aqui, com alguma liberdade, de história social do trabalho. Neles, as crenças e os valores dos trabalhadores passa­ram a ser considerados orientadores de seu comportamento político, o que é defi­nido como excedendo o campo da política formal dos dominantes (parlamentar ou eleitoral, por exemplo).

Com tal procedimento, não só se politizam várias ações antes destituídas dessa dimensão (festas e práticas cotidianas), como também se entende que, no interior mesmo das relações entre os dominados, existem hierarquias e relações de poder. Alinhamentos automáticos entre dominados contra dominantes e vi­ce-versa são relativizados, e uma dinâmica política de alianças e oposições muito mais complexa e sofisticada emerge para a análise historiográfica. Ou seja, a análise das relações de dominaçâo, sem excluir o conflito aberto (sob várias for­mas), passa a atentar para um conjunto de ações que tem marcas mais sutis, envolvendo "negociações" e produzindo alinhamemos aparentememe inusi­tados. Tal abordagem, contudo, não deve ser entendida (como às vezes o é) como uma tentativa de eliminar ou minimizar as tensões e oposições sempre existentes nas relações de dominação: mascarando o conflito. Ao conrrário, essa é uma tentativa de sofisticar o tratamemo das relações de dominação, ampliando seu escopo, até para evidenciar que, em cenas circunstâncias, pode haver conver­gências de interesses entre dominantes e dominados, pode haver pacto político, pode haver negociação. O poder, nessa perspectiva te6rica, não é um monopólio do dominante, existindo também no espaço dos dominados, o que não elimina a situação de desigualdade (muitas vezes radical) entre eles.

Tendo esse pano de fundo, este artigo se propõe a examinar alguns textos produzidos no Brasil, durante as décadas de 1980 e 1990, dividindo-se em duas panes. Em primeiro lugar, serão tomados exemplos de uma literarura histórica que se concenrrou no exame da sociedade escravista do século XIX, revisitando o tema da transição do trabalho escravo para o livre e inovando ao colocar o pró­prio trabalhador escravo como ator fundamental dos rumos desse processo de "grande transformação". Em geral, em tais pesquisas, as décadas de 1870 e 1880 recebem atenção privi legiada, por serem identificadas como o período de crise de um modelo de relações de dominação que possuía mais de u'ês séculos e alcan­çava todas as regiões e camadas sociais do país. Em segundo lugar, serão exami­nados textos que se voltam para o estudo da sociedade brasileira no século XX, quando o processo de industrialização se estabeleceu e ganhou fôlego, trazendo para o cenário econômico e político as figuras do trabalhador urbano e do operá­rio fabril. Nesses estudos, pode-se indicar a importância da questão da regu­lamentação do novo mercado de trabalho pelo Estado e o exame do papel que trabalhadores e empresários tiveram no curso do estabelecimento da legislação que a materializou. Em ambos os casos, o exercício exigiu a escolha de alguns

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autores e textos, o que foi extremamente difícil, dado o amplo volume de con­tribuições valiosas existente. A proximidade que possuo com tal produção foi, portanto, um critério considerado útil, o que explica minha própria inclusao nesse conjunto de autores.

A história social do traballlO escrallo 110 Brasil oitocelltista

Um bom começo para se entender o que essa história social do trabalho escravo se propôs a fazer é indicar os mitos conu'a os quais ela investiu de forma incisiva. Mitos pois, segundo tais historiadores, tratava-se de questionar e demo­lir visões construídas sobre a sociedade escravista, cujas origens eram quase "imemoriais". Isso porque remontavam a uma literatura de viajantes e cronistas, datada do período colonial, que tinha sido sistematizada e reforçada pelos estu­dos acadêmicos, desde os anos 1930 até a década de 1 970. E tal rato ocorrera, in­clusive, nos trabalhos que se dispunham a denunciar a falsa democracia racial brasileira, apontando para as muitas desigualdades sociais fundadas no pre­conceito de cor existente no país.

O primeiro desses mitos, e também o que opunha menor resistência, era o do caráter não-violento da escravidão no Brasil. Na verdade, os argumentos que sustentavam ser a escravidão mais "doce", sendo o senhor de escravos mais "compreensivo", em função de uma tradição de escravos domésticos e de uma prática de concessão de alforrias, entre outras, já vinham caindo por terra desde os anos 1960. Nessa década, estudos sociológicos e históricos empreenderam um diálogo efetivo com uma diferenciada literatura produzida desde os anos 1940, que tinha, grosso modo, no grande livro de Gilberto Freire- Casa gra 11 de e sellzala­seu maior referencial de apoio 9 O segundo dos mi tos, que pode ser nomeado co­mo o do "escravo coisa" era, de fato, o grande inimigo a ser destruído. 10 De ma­neira muito rápida, pode-se entender esse mito como o que postulava que o tra­balhador escravo vivenciara uma situação de dominação de tal natureza que, embora fosse capaz de ações humanas, ficara destituído de consciência, tor­nando-se incapaz de ter orientações próprias. Ou seja, ele se transformara efe­tivamente em "coisa ou peça", como na l inguagem de seus senhores e contem­porâneos livres. Nessa perspectiva, o escravo, completamente vitimizado, não possuía qualquer margem de manobra na sociedade escravista, estando privado de todos os direitos, inclusive o de ter família ou qualquer tipo de bem.

Tal perspectiva interpretativa, segundo a crítica que lhe é movida, rei­terava as concepções e os valores que os fazendeiros e autoridades políticas e policiais do século XIX sustentavam a respei to dos escravos. Eles eram "coisas" e, dessa maneira, embora fossem humanos, apenas conseguiam reproduzir as formas de pensar e agir deles esperadas e imaginadas, no interior da sociedade

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escravista. O trabalhador escravo, completamente excluído e sem qualquer auto­nomia, via-se e agia da mesma forma que o senhor o via e esperava que ele agisse: como uma imagem espelhada das relações de dominação então existentes. Relações de dominação afirmadas como extremamente violentas, o que se tor­nava um elemento explicativo da subordinação do elemento negro, que essa lite­ratura, em boa parte de orientação marxista, queria denunciar como secular no Brasil.

A outra face do mito do "escravo coisa", diretamente complementar à primeira, caracterizava um terceiro ponto a ser combatido: o do perigo do es­cravo rebelde. Quer dizer, quando os escravos escapavam do verdadeiro estado de anomia social em que viviam - sem qualquer forma de consciência, orga­nização ou cooperação -, só lhes restava um caminho: o da revolta radical. Assim, nessas formulações que buscavam denunciar a democracia racial e de­fender os direitos da população negra brasileira, o trabalhador escravo oscilava entre duas concepções fundamentais: ou era a "peça", sem autonomia, ou era o rebelde, uma ameaça radical à sociedade. Duas alternativas que, como a lite­ratura do pós-1980 evidencia, não rompiam com as seculares imagens que sus­tentavam a desumanização dos escravos e, como decorrência, sua verdadeira ex­pulsão da história, pois nela só intervinham em casos excepcionais e violentos. A exceção, por conseguinte, confirmava a regra da total heteronomia do traba­lhador escravo na sociedade brasileira até o século XIX. Uma situação que lan­çava luzes sobre sua "incapacidade" de se adaptar ao mercado de trabalho livre do século XX, e sobre sua "fraqueza" cultural, pois os escravos não teriam real­mente conseguido defender suas tradições, inclusive aquelas que valoravam sua própria "cor".

Esses miras sobre o trabalhador escravo se articulavam perfeitamente com um certo modelo interpretativo de relações sociais de dominação vigente na sociedade escravista, chamada, pela literatura, de paternalisra11 Marcado por uma "economia de troca de favores" que abarcava os homens livres e libertos, tal modelo postulava que todos os dominados funcionavam como "dependentes", movimentando-se nas margens da sociedade e experimentando um tipo de auto­nomia, no máximo, consemida pelos dominantes. De um certo modo, portamo, também os dependentes eram apenas espelhos e vítimas dos dominantes; mas é bom observar que, coerentemente, os escravos!coisas equer estavam incluídos nessa "economia de favores" do paternalismo senhorial brasileiro.

De uma maneira geral e muito incisiva, a historiografia que se constrói a partir dos anos 1980 questiona todos esses miras e modelos. Ela tem como obje­tivo de fundo defendera idéia de que o trabalhador escravo (e também o liberto e o livre) era um sujeito histórico autõnomo na sociedade escravista, sendo capaz de representar seu próprio mundo e nele atuar, naturalmente como dominado.

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Dessa forma, tais estudos se propõem a revelar a experiência, no sentido thompsoniano, que esses trabalhadores construíram nas brechas do mundo se­nhorial. Eles vão acompanhar seus modos de pensar e agir, demonstrando que o trabalhador escravo era capaz, mesmo sob a mais violenta forma de dominação, de construir redes de relações famil iares e de solidariedade grupal; de possuir e acumular bens, e de estabelecer formas de organização de bases étnicas, alta­mente sofisticadas e atuantes. Com essa operação, querem destruir qualquer mo­delo interpretativo de tipo "espelhado", pois a premissa teórica é a de que os es­cravos (ou qualquer homem) não são "coisas", e não reproduzem passivamente os significados sociais que seus senhores lhes atribuem. Sendo assim, não é sus­tentável concebê-los como privados de pensamento e ação, o que aliás muito convém às ideologias de dominação, nada ingênuas.

Do mesmo modo que o caráter absoluto da dominação e o caráter pas­sivo dos dominados são negados, rejeita-se sua alternativa complementar: a do escravo rebelde, visto apenas como um perigo eventual a ser eliminado, e não como um interlocutor constante e atuante. Nesse sentido é que, a meu ver, duas categorias analíticas emergem de maneira muito marcante no curso das abor­dagens que esses trabalhos vão desenhando. De um lado, a categoria liberdade, que vai ser investigada e preenchida de sentidos atribuídos pelos próprios escravos, libertos e livres, e não incorporada como prenhe de significados ad­vindos do mundo dos senhores. Não é casual que tais estudos - a começar por seus titulos - [alem de visões de liberdade como experiências plurais e cam­biantes, que vão se construindo ao longo do tempo e através das vivências desses trabalhadores. De outro lado, a categoria negociação, postulada como possi­bilidade teórica de se acompanhar as múltiplas e insuspeitas formas de ação des­sa população dominada, que participava de fato da sociedade brasileira, através de uma variedade de práticas, legais ou costumeiras, que envolviam a situação de ser escravo no Brasil.

Tais abordagens, portanto, querem afirmar e privilegiar a ação dos atores históricos, inclusive a dos dominados, sem negar a importância dos constran­gimentos sociais mais amplos. Isso significa postular que toda ação social é pau­tada pela liberdade dos atores, vista como um produto de permanentes nego­ciações diante de sistemas normativos que, se por definição são limitadores, não eliminam escolhas, possibilidades e in terpretações de mundo. Uma opção teó­rica que, ao procurar combinar dimensões macro e micro-his tóricas, torna a análise mais complexa, mas também mais consistente. Um excelente exemplo desse falO é o exame das novas fontes utilizadas por esses estudos. São processos criminais, testamentos, inventários pOSI mO,.lem, escrituras de compra e venda de escravos, ações cíveis de liberdade, processos de compra de alfortia, além, natu­ralmente, de jornais, relatórios oficiais, correspondência, memórias e textos li terários, entre ou tras.

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Porém, não se trara apenas de urilizar essas fomes para sustemar as teses que estão sendo defendidas, mas de torná-Ias estratégicas para o tipo de narração historiográfica que vai ser realizado. Isso porque com tais fomes é possível reco­locar os escravos "de verdade" na dinâmica histórica, dando-lhes nomes e mui­tas trajetórias de vida. A dimensão do cotidiano do trabalhador escravo, liberto e livre surge desses documentos ainda que na "fala dos ourros", como um policial e mesmo um senhor de escravos. Os escravos passam a ser o Fortunato de um pro­cesso crime, a Liberata de uma ação de liberdade ou o Pancrácio de um como de Machado de Assis. Se "reais" ou "fictícios", não importa, pois suas u'ajetórias de vida permitem um mergulho nos semidos da liberdade e nas estratégias de nego­ciação empreendidas no Brasil dos oitocemos pela população de trabalhadores estudada.

Dito isso, é mais do que hora de se conhecer melhor autores e atores da historiografia que aqui está sendo comemada. Para tanto, minha escolha recaiu em três historiadores que, acredito, permitirão fixar e ilustrar os trabalhos rea­l izados por muitos outros. Eles são João José Reis, da Universidade Federal da Bahia, Sidney Chalhoub, da Universidade de Campinas, e Hebe Mattos Gomes de Castro, da Universidade Federal Fluminense. Com inserções institucionais diferemes, os três têm vários livros e artigos publicados, integrando grupos de pesquisa que, há anos, vêm acumulando resultados reconhecidos nacional e internacionalmente. Assim, se alguns de seus textos foram selecionados para os comentários que se seguem, eles podem ser entendidos como produtos de um diálogo coletivo mais amplo, que continua em pleno curso.

No caso de João José Reis, a escolha recaiu em dois artigos escritos com um bom intervalo de tempo, mas que tratam de um mesmo objeto, considerado muito adequado ao que se quer aqui demonstrar. Os artigos são "A greve negra de 1 857 na Bahia", publicado na Revista USp, n. 1 8, de 1993, e "De olho no cama:

trabalho de rua na Bahia na véspera da Abolição, publicado em Afro-Asia, n. 24, de 2000. Ambos os textos eSlUdam um certo grupo de trabalhadores muito nu­meroso e importame no século XIX, em várias cidades do país, entre as quais Salvador, capital do estado da Bahia. São os gallhadores, isto é, homens que tra­balhavam na rua, sendo praticamente os únicos responsáveis pela circulação de todas as coisas e pessoas, desde pequenos pacotes e cartas, até pesados volumes descarregados de navios, passando por qualquer mercadoria e incluindo o trans­porte de água, tinas de fezes e cadeiras de arruar. 12 Dito de outro modo, os ga­Ilhadores faziam as vezes do serviço de águas, esgotos, cOITeios e transportes das cidades que, diga-se de passagem, não possuíam alternativas para substituí-los, nem se colocavam essa questão durante a maior parte do século XIX.

Os gallhadores eram, na Salvador de meados do século XIX, em sua maioria absoluta, negros - escravos e libertos -, o que configurava um tipo de

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ocupação própria à escravidão urbana, desde o século XVIII, no Brasil. Com O

passar da segunda metade do século XIX, o perfil desses trabalhadores se foi aI· terando, e o autor nos informa que, às vésperas da Abolição, eles eram predo· minantemente homens libertos e livres, que podiam ser negros, mestiços e até brancos. Ou seja, apenas com esses dados fica evidenciado que trabalhadores escravos e livres (libertos ou nascidos livres) podiam compartilhar um mesmo tipo de atividade, e que suas cores vâo variando de matizes com a proximidade da década de 1 880, a do fim da escravidão.

Mas a questâo fundamental dos artigos não é bem essa, e sim a de de· monstrar que tais trabalhadores possuíam formas muito bem esu'ururadas de oro ganização de seu trabalho na rua. Eram os call1OS, "grupos etnicamente deli· m itados, que se reuniam para oferecer seus serviços em locais também deli· mitados da geografia urbana",13 podendo, aventa o autor, ter· se inspirado em

grupos de trabalho voluntário, muito comuns na Africa Ocidental. Os cal/tos re· cebiam essa designação por se localizarem em pontos estratégicos da cidade, como esquinas, encruzilhadas, largos, locais próximos ao cais etc. Nesses caI/lOS,

numerosos negros se reuniam diariamente, atuando de forma particularmente organizada na distribuição e controle dos serviços de fretes na cidade de Salva· dor. Cada canto possuía um capitão, escolhido diretamente por seus integrantes, que podia ser tanto um homem livre como um escravo. Aliás, o autor dá exem· pios de cantos, mesmo nos anos 1 880, que tinham como capitães escravos ou li· bertos, os quais comandavam o serviço de homens livres "de cor" e mesmo de brancos. Tais capitães eram empossados em seus cargos em cerimônias festivas, altamente ritualizadas, a que compareciam outros capitães e que eram do conhe· cimento das autoridades policiais e dos senhores de escravos. Tal possibilidade certamente se articulava com a prática do gal/lro, própria da escravidão urbana, pela qual os escravos iam trabalhar na rua sem supervisão de feitores, o que não

• ocorna no campo.

Numa perspectiva inteiramente diversa, os capitães faziam as vezes dos feirores ausentes, organizando as atividades dos membros do calllO por meio de uma autoridade escolhida e reconhecida como legítima por eles mesmos. Por· tanto, se a atividade realizada era dura e estafante, ou seja, "de negro", ela se fazia de forma coletiva e segundo normas que regulavam o tempo, o ritmo e mesmo o volume do trabalho, que era pensado por tarefa e não por unidade temporal. Além disso, no canto, trabalho e cultura eram inseparáveis, o que fica exem· plificado nas cerimônias de posse dos capitães, mas também no próprio coti· diano, através de práticas como a de cantar durante o trabalho, havendo incluo sive canções próprias para cerros tipos de esforço físico .

E exatamente essa delicada estrutura organizacional que se vê amea· çada, em 1 857, por uma tentativa de regulamentação do Estado, visando a dis·

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ciplinar esse trabalho (os ganhadores teriam que andar com placas de metal, por exemplo) e praticamenre suprimindo a auroridade do capitão do canto. A "greve negra", que então se desencadeia e paralisa Salvador, é uma reação aberta de ho­mens escravos e libertos, tendo em vista a defesa de práticas julgadas legítimas. Os ganhadores conseguem apoio até enrre seus próprios senhores, naturalmenre interessados nos lucros trazidos por seus escravos e incomodados com a inrer­venção das auroridades da cidade sobre seus negócios privados. O episódio é, assim, uma janela para se enrender a complexidade e as margens de autonomia existentes no mundo do trabalho escravo, bem como para observar as múltiplas e inusitadas alianças que podiam ser tecidas enrre senhores e escravos, livres e li­bertos, em determinadas circunstâncias. A "greve", que não questionava em tese a escravidão, mas defendia as práticas costumeiras de ganho, postulava uma certa visão de liberdade que articulava as dimensões do trabalho e da cullUra in­dissociavelmenre. Como João escreve:

A força da cultura escrava na Bahia oirocenrista deve ser entendida em conexão com a experiência de trabalho dos escravos. Não se trata de deduzir cultura de processos e relações de trabalho, uma ope­ração funcionalista conservadora, mas de considerar que os escravos não suspendiam a produção de significados culturais durante a produção de mercadorias e serviços. Isso seria verdade tivessem eles permitido uma coisificação absurda, como se "o tempo do senhor", isro é, o tempo de trabalho, fosse um momenro absolutamenre mecânico em sua exis­tência, um tempo sem qualquer significação escrava.

Ou seja, o tempo de trabalho tinha significação escrava e, com o passar do tempo, as autoridades da cidade acabaram desistindo de impor o novo regu­lamento. Que as pressões dos senhores de escravos descontentes colaboraram para tanto, nao se tem ·dúvida. Mas que a desobediência dos gallhadores negros, que interromperam por dias os serviços da cidade, teve um papel fundamenral, também não há dúvida. O canto venceu e permaneceu existindo na Salvador da segunda melade do século XIX. Assim, quando, na década de 1 880, o Estado vol­rou a tentar disciplinar a população de trabalhadores do canto, o alvo não era mais o escravo, mas uma população negra, livre e liberta, que preocupava a rodos, às vésperas da Abolição.

Sidney Chalhoub se dedica, nos dois livros que serão aqui comentados, a um período cons iderado estratégico para o exame da crise do sistema escravista no Brasil. São os anos que decorrem da chamada Lei do Ventre Livre, de 28 de

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setembro de 1871, até a Lei Aurea, a da definitiva abolição do trabalho escravo, de 1 3 de maio de 1 888. Esse é, aliás, um dos critérios para a escolha de Visões da liberdade: IIl1la história das últimas décadas da escravidão na Cor/e, de 1990, e de Machado de Assis: histórias e História, de 2003.14

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Questâo soci"! c historiografia 110 Brasil tio pós- J 980

Em Visões da liberdade, o autor se fixa na década de 1 870, que foi a do ,

apogeu do tráfico interprovincial de escravos. Findo o tráfico da Africa, desde os anos 1 8S0, iniciou-se no Brasil um processo de deslocamento de cativos do Norte para a região Sul, então dominada pela cultura do café. Dessa forma, entre 1 87 1 e 1 8 8 1 , calcula-se que cerca de noventa mil negros tenham chegado ao Sul, ba­sicamente pelo pOrtO do Rio de Janeiro. No caso desse livro, o objetivo do autor é perseguir as formas como tais cativos atuaram nesses "negócios da escravidão", que envolviam sua compra, venda e u'ansferência para novas fazendas e se­nhores. A hipótese é a de que esses homens e mulheres negros não foram mer­cadorias passivas, e que souberam alUar nas brechas do sistema escravista, ori­emados por concepções sobre a legitimidade e os limites do domínio senhorial. Quer dizer, afirma-se que os escravos tinham percepções sobre o que era um cativeiro "justo/suportável", e que articularam uma série de comportamentos por meio dos quais lutavam por seus "direitos", quando os julgavam desres­peitados.

Utilizando como fome, principalmente, processos criminais, Sidney constrói uma narrativa que se compõe de pequenos eSl"Udos de caso, pelos quais o leitor vai conhecendo figuras como o comerciante da Corte, Veludo, que levou uma sova de um grupo de escravos vindos do Norte, os quais, considerando-o "muito mau", organizaram-se para surrá-lo. Bráulio, Serafim, Filomeno e Bonifácio são alguns desses escravos, que acabaram capturados pela polícia. Nos autos, não negam sua condição de cativos e explicam seu comportamento em função da revolta que sentiam pelos maus traros que vinham recebendo. Assim, por motivos bastante compreensíveis, mas irõnicos, são ajudados pelo próprio Veludo, desejoso de recuperar seus bens apreendidos. Do mesmo modo, conhecemos Felicidade, uma escrava velha e também vinda do Norte que, comprada por um novo senhor, negava-se a trabalhar, dizendo-se livre. A lal ponto chegou a desobediência de Felicidade, que seu novo senhor procurou legalmente devolvê-la ao comerciante de quem a comprara, argumentando que a escrava estava "em período de teste". Isto é, por esse processo criminal fica comprovada a existência de uma prática cosrumeira de "experimentação" do escravo recém-comprado, o que abria um certo espaço de manobra para que ele redirecionasse os rumos de sua própria vida.

Evidentemente, Sidney está consciente de que esses são pequenos ganhos, ou migalhas, como os chama, diante do volume do tráfico interno e da violência da escravidão. Mas o que ele quer ressaltar, e eu também, é a existência de brechas para as ações dos escravos, orientadas por objetivos específicos, que delimitam uma idéia de justiça e de direitos presente em sua condição. Quando essa justiça era quebrada, era preciso resistir de múltiplas formas, o que acabou por lançar insegurança sobre os negócios de compra e venda de escravos vindos

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do Nane. E esse comportamento "miúdo", portanto, que vai alimentar o ima-ginário do "escravo mau vindo do Norte", presente nos debates políticos paulis­tas dos anos 1 870. Um imaginário que auxiliou na opção pela mão-de-obra imi­grante e que ajudou a silenciar os defensores da escravidão.

Durante as décadas de 1 870 e 1880, ponanLO, comprova-se que os negros assumiram cada vez mais claramente atitudes de resistência à escravidão e de luta por sua liberdade, demandando "direitos". Não é casual que essas sejam as décadas de uma crise na cultura política senhorial paternalista, como a chama Sidney no trabalho de 2003. Esse é o conceito que orienta as questões que o trabalho vai examinar, articulando-as em torno do episódio dos debates da chamada Lei do Ventre Livre, de 1 87 1 . Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que, para o autor, há uma cultura política paternalista marcando a lógica de dominação das relações sociais do mundo escravista, sendo que ela abarca tanto dependentes como escravos, além dos senhores e demais homens da elite impe­rial, naturalmente. Tal cultura política, tratada como um conjunto de significados sociais muito compartilhados e expressos por um vocabulário, por valores, por rituais, por medidas legais, por práticas coslllmeiras e por estratégias componamentais as mais diversas, teria entrado em crise, processualmente, a panir dos anos 1 870. Dessa forma, as questões que circundaram a aprovação e a implementação da Lei do Ventre Livre poderiam ser tomadas como um ponto de inflexão revelado r.

Seguindo as reflexões de Sidney, é possível detectar que a pedra de toque dessa cultura política paternalista era a prerrogativa exclusiva e inviolável dos senhores de alforriar seus escravos, o que sustentava toda uma ampla visão de mundo assentada na idéia de que só a obediência e a fidelidade à autoridade privada poderiam trazer a liberdade. Uma visão de mundo que se constituía numa autêntica estratégia de produção de dependentes, fossem eles homens cativos ou livres, nao mais separados teórica ou empiricameme no contexto político do Brasil oitocentista. Por outro lado, tal entendimento dá um sentido muito exato à intervenção do Estado imperial, através da produção de leis, sobre o princípio do "inviolável e absoluto" poder privado dos senhores de terras e

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escravos. E essa questão de fundo que se tornará evidente quando da discussão da lei de 1 8 7 1 no Parlamento, pois o que fica claro é que seu impacto é menos importante pelo número de escravos que pôde libertar do que pelo significado central do escravismo que ela feria. Isto é, a lei atingia a cultura política senhorial paternalista, obrigando toda a elite do país a pensar um Brasil mais dia menos dia sem escravos.

Dois ponLOs dos debates da lei são particularmente úteis para a com­preensão do argumento do autor. Um deles é como se nomear as crianças nasci­das do "ventre livre das escravas" a partir da data da lei. Seriam chamados liber-

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Questão social e historiografia /lO Brasil do pós- ) 980

tos ou ingênuos? Quer dizer, como alguém que era ainda escravo poderia dar nascimento a uma criança livre? E qual a situação do senhor desse escravo em relação a essa nova pessoa jurídica, completamenre incapaz, mas livre? Em­bora possa parecer uma filigrana semântica, o rato envolvia o reconheci­mento de que, se fossem chamados libertos (nascendo escravos e se tornando livres), abria-se a possibilidade de indenização pelo Estado; mas, se fossem chamados l ivres, não cabia qualquer ripo de indenização. Além disso, como tais crianças, possuidoras de todos os direitos constitucionais, iriam conti­nuar vivendo num mundo escravo até a idade de 2 1 anos? Esses problemas delicados não foram resolvidos quando da aprovaçâo da lei, sendo adiados pa­ra o momento de sua regulamentação, apostando-se assim no tempo e no imo­bilismo do futuro.

O outro ponto é como essa lei consagrou o direito, já em prática, de o escravo constituir um "pecúlio", administrá-lo e utilizá-lo para a compra de sua alforria, independenremente da vontade do senhor,o que era uma total inovação. Ou seja, desde 1 87 1 , um escravo que tivesse acumulado pecúlio no valor de seu preço podia, legalmente, demandar sua liberdade através do que se chamou "alforria forçada". Tratava-se uma intervenção indiscutível do poder público sobre o privado, que atingia o coração da cultura política senhorial paternalista, na medida em que suprimia a idéia de inviolabilidade do poder de alforriar, base da obediência consenrida quer por escravos, quer por dependentes liberros e l i vres.

A Lei do Ventre Livre abre assim uma grande brecha no sistema de dominação escravista, estabelecendo direitos para os cativos e incentivando o cultivo de uma série de práticas cotidianas de negociação, que incluíam o diálogo, passavam pela dissimulação, e chegavam à desobediência passiva ou à rebeldia aberta, como Felicidade, Bráulio e os ganhadores de Salvador ilustram

-

muito bem. E por isso, inclusive, que o autor chega a falar de uma "cultura po-lítica dos trabalhadores escravos" no oitocenros, apontando a emergência de um vocabulário que reconhecia a existência de escravos "altanados" e "ladinos", além de "crioulos espertos", para designar os cativos que, cada vez mais, passa­vam a se movimentar para acionar seus direitos ou para demarcar os limites da escravidão "justa" e dos castigos "suportáveis". Ourra questão que fica eviden te é como o Estado e a Lei dão um duro golpe no poder privado, delimitando-se o campo do jurídico e do cotidiano como espaços de lutas significativas para o defi­nitivo abandono da escravidão no Brasil.

Finalmente, a contribuição de Hebe Mattos Gomes de Castro será examinada através de sua tese de dourorado, publicada em livro com o título Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil, século

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XIX).l) O tema é, por si só, exemplar da proposla hisroriográfica que se está acompanhando. A autora quer detectar o tipo de participação dos cativos no processo de destruição da escravidão e sua inserção nos processos sociais imediatamente posteriores ao fim do cativeiro, o que remete a análise para os últimos anos da década de 1 880. Sua estratégia de pesquisa é investigar quais os significados da liberdade para uma população de escravos, questionando a literatura até enlão mais correnle, a qual, em suas palavras, acreditava que "fora de nossas sempre restritas elites, a liberdade não tivesse significado algum" 16

O tema da abolição da escravidão é enlão reromado num enfoque que destaca a curta duração e as vivências de escravos e libertos, explorando os sen­tidos que a liberdade ganhava para esses homens, especialmenle no período final da escravidão. O livro procura se cOnlrapor aos estudos do processo de abolição que se concenlram nas dimensões econômicas e sociais, assumindo muitas vezes uma perspectiva teleológica e estrururalista, pela qual a destruição do cativeiro ocorre praticamente sem a inlerferência humana, particularmente aquela dos es­cravos. Ou seja, é como se o esgotamento da escravidão como sistema de pro­dução fosse razão suficienle para o decurso do processo de abolição, esvaziado de sentidos políticos e culturais e de todo um conjumo de enfremamenros que si­tuava senhores, escravos, libertos, políticos, juristas, abolicionistas, republica­nos, monarquistas etc.

A autora, como nos casos anteriores, também vai procurar construir sua narrativa usando como fio condutor as histórias de vida de escravos e libertos, garimpadas pelo exame cuidadoso de fontes, como inventários pOSI lllOrtelll,

documentos da Corte de Apelação e notícias de jornais. Um malerial qualitativo que é emão articulado a dados quamitativos e a interpretações que analisam a transição do trabalho escravo para o livre, cenlrando-se em fenômenos coletivos e em tendências de mais longo prazo. Uma dinâmica política ao mesmo tempo processual e cotidiana, que combina uma pluralidade de durações do tempo histórico, e que é um dos méritos do livro. Nesse sentido, a aurora também postula a existência de uma cultura política paternalista senhorial, demarcando o complexo espaço, público e privado, no qual senhores, escravos e livres negociavam "os significados da liberdade" em tempos do fim da escravidão.

Através da ação de vários escravos e forros, que podiam ser negros ou pardos, ficamos sabendo que os significados da liberdade eram definidos por meio de múltiplas experiências de reconhecimento social, onde interferiam variáveis como a existência de relações familiares, a possibilidade de cultivar a terra e graus diferenciados de autonomia na execução do trabalho escravo, além do direito de acumular um pecúlio. As inúmeras histórias de vida coma das no livro evidenciam o papel crescentemente ativo que os escravos, nas cidades e nos campos, tiveram no interior do processo da aboliçâo. Isso conduz o leitor a

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Qllcst.iio social e historiot,7'afia "0 Brasil tio ptís- 1 980

pensar numa espécie de largo "movimento" de desobediência civil, que podia recorrer à resistência passiva, a apelações jurídicas e a agressões diretas a senho­res e feitores. Mas, sem dúvida, uma das comribuições mais inovadoras da pes­quisa reside na descoberta de como lais homens lidaram com uma variável cen­tral à sociedade escravista - a questão da "cor" -, nesses anos da virada do século XIX para o século XX_

O "silêncio" da cor, que dá título ao livro, apoma para o grande esforço realizado por homens "não-brancos" para apagar a íntima correlação existente entre negritude e escravidão no Brasil. Negar-se como negro passa a ser uma das formas mais compartilhadas de alirmar-se como homem livre, quer dizer, de dar um signilicado pleno à idéia de liberdade. Considerando que qualquer noção de "raça" e de "cor" é antes de tudo uma canso'ução ideológica) o que a autora nos mostra é que, nos anos linais da escravidão e nos primeiros tempos do pós-abo­lição, IOrnara-se fundamental, particularmente para os libenos, "não ler cor", fosse ela negra ou parda. Daí a importância dos versos que circularam em maio de 1 888, e que ela cita várias vezes durante seu texto: "Negro não há mais não/ Nós tudo hoje é cidadão/ O branco que vá p'ro eito."

Negar-se como negro ou pardo, nesse contexto, não implicava, ponanto, qualquer perspectiva de valoração positiva da "cor branca". Tratava-se, isto sim, de negar/apagar o estigma da escravidão, tão inu'insecamente ligado à "cor", que ameaçava roubar a condição de liberdade dos ex-cativos e de seus descendentes. Uma operação simbólica muito complexa, pois implicava alterar os quadros referenciais de uma sociedade que, por séculos, se oriemara pelas diferenças "raciais". Uma operação que acabou sendo apropriada e ressignilicada pelas eli­tes políticas e imelectuais republicanas, alimentadas pelo cientilicismo dos anos iniciais do século XX, para desembocar no que se tornou conhecido como ideo­logia do branqueamento. Quer dizer, uma ideologia que abandonou a referên­cia aos libertos (condição jurídica sem designação de cor), a qual prevalecia no li­nal da Monarquia, para operar com a dicotomia trabalhador imigrante versus

t[abalhador nacional. Nessa oposição, os primeiros eram os "brancos e capazes" e os segundos, crescentemente, os "mestiços e incapazes", em função da marca da escravidão. Dessa forma, tem-se uma República que, ao mesmo tempo, es­tabelecia a cidadania como um direito de todo O povo brasileiro e tinha dificul­dades em reconhecer a existência de um povo brasileiro. Esse povo "ainda não existia" e precisava ser "formado" com O atLxilio da nova mão-de-obra imigran­te, que civilizaria o país, inclusive pelo branqueamento.

A autora evidencia, assim, que a inversão de sentidos presente nas ações dos libertos acaba por estimular a ideologia racial do branqueamento, já nos iní­cios do período republicano. Ela mostra que o "silêncio da cor", uma crítica radi­cal à exclusão social, política e cultural da população negra, transforma-se em

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substância para rodas essas exclusões. Dessa feita, sem a participação dos ex-es­cravos.

A história social do trabalho li",·c 1/0 Brasil do -,éculo XX

Se uma história social do trabalho escravo teve que enfrentar miros para se construir, o mesmo ocorreu com urna hisroriografia sobre a classe traba­lhadora brasileira, que, corno objero histórico, começa a ser examinada em seu processo de formação a partir do ftm da escravidão. Procurando fazer paralelos que auxiliem na aproximação dessas duas linhagens de estudos, geralmente pou­co conectadas, eu diria que essa hisroriografia também combateu miros corre­laros ao paternalismo e à "coisificação" do escravo. Os nomes mais comparti­lhados de tais mitos são, a meu ver, populismo e manipulação de trabalhadores, cujo modelo teórico de fundo é O mesmo.

Ou seja, por via de urna orientação marxista ou de qualquer outra, o que se pode chamar de modelo populista de relações de dominação postula que os do­minados podem ser e são, com freqüência, praticamente destituídos de aurono­mia e consciência, quando submetidos a estratégias políticas próprias à socie­dade urbano-industrial de massa. Esse fenômeno político-culrural de domi­nação inclui uma certa seleção de variáveis histórico-sociológicas, bem corno um certo perfil de arores: um proletariado sem consciência de classe, urna classe diri­gente em crise de hegemonia, e um líder carismático, cujo apelo transcende fron­teiras de classe, entre outras. Tentando sempre realizar pontes com as rellexões anteriores, pode-se dizer que o dragão da maldade apenas recebeu urna outra pe­le, mas sua vítima continuou a ser o trabalhador. Agora não mais o escravo ou o liberto, mas sim o homem livre, assalariado ou não.

Nesse sentido, desejo observar que um conjunro de estudos sobre a clas­se trabalhadora no Brasil, que se estruturou a partir dos anos 1980, irá dialogar com essa literatura populista latino-americana e brasileira, em que Gino Ger­mani é um dos grandes referenciais . 17 Minhas próprias pesquisas são parte desse esforço de questionamento, e i rei utilizá-Ias preferencialmente, por razões ób­vias, para os comentários que serão feiros a seguir. Portanto, estarei usando tex­tos de minha auroria corno base para essas notas, a eles agregando, mais pontual­mente, as contribuiçôes de alguns outros autores, ressalvando que elas já são muLto numerosas e diversificadas, sendo impo sível incorporá-Ias mesmo mini­mamente.

Considero que meu texro A invenção do trabalhismo, publicado em 1 988,18 pode ser útil para que se esclareça não só o tipo de crítica feiro ao conceiro de populismo, mas também a proposta da categoria de "pacto trabalhista", corno

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Qllestão "oeial c llistoriogmfia 110 Bmsil do pós- 1 9RO

alternativa analítica para a compreensão das relações entre Estado e classe tra­balhadora, nas décadas de 1 930-40. No livro, estudo essas relações durante o pro­cesso de formulação das primeiras leis que regularam o mercado de trabalho li­vre no Brasil. Um processo que entendo ter início na Primeira República e não apenas no pós-1930, e no qual os trabalhadores tiveram presença fundamental, atuando sempre como interlocutores do Estado, mesmo quando eram dura­mente reprimidos. Ou seja, meu objetivo era perseguir essa dinâmica política, recusando radicalmente a idéia de uma classe trabalhadora passiva ou sem "uma verdadeira consciência", sendo por isso capaz de ser manipulada por políticos "populistas" que, tanto antes quanto depois da chamada Revolução de 1930, a enganavam com promessas de falsos benefícios, visando unicamente a alcançar prestígio pessoal/eleitoral.

Para tanto, era preciso detectar a presença e a luta - difícil e miúda - de uma classe trabalhadora, sujeito de sua história, que se relacionava com autori­dades políticas e policiais, além do patronato, delimitando objetivos e negocian­do demandas, das mais variadas formas, apesar dos constrangimentos políticos mais amplos. Enfim, o que se queria destacar era a existência de uma relação di­nâmica entre Estado e classe trabalhadora, com conflitos e negociações, havendo a circulação de idéias e práticas, permanentemente reinventadas através do tem­po, cujo ponto inicial não era a Revolução de 1930. Justamente por isso, o livro transpõe o marco de 1930, então muito consagrado para os estudos da questão so­cial, sustentando continuidades entre o pré e o pós-1930, e mostrando que uma das razões do sucesso do discurso estatal, amplamente veiculado no Estado Novo ( I937-45), foi a "leitura" que empreendeu das lUlas dos trabalhadores do pré-1930. Isto é, que foi através dessa estratégia - que ao mesmo tempo mobilizava e obscurecia a memória operária - que a legislaçao trabalhista, previdenciária e sindical foi apresentada à população de trabalhadores brasileiros: sob a forma de uma "dádiva", de uma "ação antecipada" do Estado.

Uma operação nada banal e cheia de significados, pois há muita força política no ato de doar, como nos ensinou Marcel Mauss. Sem desprezar essa chave ou considerá-la indicadora de mera manipulação, procurei explorar os sentidos do pacto que se construiu entre o Estado, materializado pela pessoa do presidente Vargas, e o "povo u'abalhador", interpelado pelo discurso esta­donovista dos anos 1940. A idéia é a de que esse pacto é uma forma de "co­municaçao política" fundada na apresen tação do "direito social como dádiva", criando-se, por meio dela, adesão e legitimidade. Ou seja, uma idéia apa­rentemente paradoxal - a de "direito como favor" -, que envolve um circuito de "dar, receber e retribuir" e que se faz por meio de uma lógica política e cultural abrangente, incompreensível dentro dos marcos de um mercado político ori-

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entado por cálculos de interesses instrumentais. Urna lógica política que com­bina crenças e interesses tanto dos dominantes quanto dos dominados, embora com evidente desequilíbrio de poder entre eles.

Nesse sentido é que se pode entender o esforço do Estado Novo na divul­gação desses direitos sociais, para que urna ampla parcela da população deles ti­vesse conhecimento, e urna parcela bem menor, é certo, pudesse realizar suas de­mandas. Para tanto, os mais modernos meios de comunicacão da época foram

• •

util izados, bem corno recursos humanos altamente qualificados. E certamente muito difícil saber o tipo de recepção de tais iniciativas de propaganda gover­namental. Seguindo orientações dos estudos de hislória cul rural, sabe-se que toda mensagem é recebida e apreendida por um público de forma ativa, segundo seus próprios referenciais. Não há público passivo e, portanto, entre a intenção da mensagem emitida e o entendimento do público há um grande espaço para novas elaborações.

Dessa maneira é que se pode compreender que uma outra razão do su­cesso desse discurso foi a leitura que os trabalhadores de imediato fizeram dele, "apropriando-se da dádiva" e cobrando sua execução em nome da Lei. Portanto, não se trata de afirmar que houve uma perfeita aplicação da legislação social, nem de supereslimar seu alcance, até porque ela não atingia os trabalhadores rurais, os mais numerosos na época. Trata-se porém de, para além de sa evidên­cia inquestionável e há muito apontada pela literatura, perceber o impacto pro­duzido pela intervenção do ESlado sobre os negócios empresarias e as possi­bilidades e brechas de ação abertas aos trabalhadores para reivindicar direitos no mercado de trabalho, com bases em leis, ainda que elas estivessem sendo desres­peitadas, ou talvez por isso mesmo.19

Um paralelo, mais uma vez, pode ser bastante útil. Do mesmo modo que a Lei do Ventre Livre foi importante menos pelo número de crianças que por meio dela se tornaram livres e mais pela ação do Estado quebrando o poder in­violável dos senhores, as leis trabalhistas do pós-1930 foram estratégicas, talvez menos por seu imediato alcance efetivo e mais pela intervençâo efetuada pelo Es­tado na regulamentação do mercado de trabalho. Assim, se os escravos souberam agir nas brechas que a lei de 1871 lhes abriu, também os trabalhadores urbanos, mas nao só eles,2o procuraram usar os direitos que as novas leis estabeleciam, até porque podiam defendê-los através de urna instituição igualmente nova: a Jus­tiça do Trabalho.

Com tal abordagem da ação do Estado e dos trabalhadores não era pos­sível utilizar a categoria populismo, fundada na idéia da existência de lideranças políticas orientadas pelo desejo de manipular o povo, e de trabalhadores que se deixavam enganar, comportando-se de forma inconsciente e em contradição com seus "verdadeiros interesses de classe". Um tipo de interpretação que des-

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conhece as orientações políticas e a vivência dos trabalhadores, ignorando as complexas dinâmicas que presidem as relações entre dominantes e dominados. Em função disso, minha proposta foi a de usar uma outra categoria - a de pacto trabalhista - para nomear uma experiência histórica cujas origens eu mapeava nos anos 1 940, mas que fizera carreira para além daquela década. O pacto tra­balhista e o trabalhismo tinham assim uma história e se transformavam através do tempo, ganhando múltiplos significados e diferentes enunciadores. O que eu fazia no livro de 1988 era acompanhar sua invenção em um momento histórico datado: o do Estado Novo do pós-1942. A meu juízo, tal categoria nomeava mais adequadamente um conjunto de idéias, crenças, valores, símbolos e estilos de fazer política que passaria a integrar uma certa cultura política partidária e sindical brasileira (de "empregadores, empregados" e trabalhadores em geral) a partir dos anos 1950. Essa preferência se justificava também porque a categoria trabalhismo, proposta pelo discurso estadonovista no bojo da Segunda Guerra Mundial e do exemplo político inglês, antecedera, do ponto de vista cronológico, a veiculação da categoria populismo, que datava dos anos 1950, afirmando-se apenas após 1 964.21 Como eu queria rejeitar os significados contidos na categoria populismo e tratava de um período, de personagens e de experiências com os quais essa categoria não havia historicamente convivido, procurei evitar tal palavra. Daí a utilização de pacto trabalhista e trabalhismo, mais precisos para ressaltar os novos significados de um conjunto de idéias e práticas da história política brasileira, especialmente no que se referia à práxis do Estado e àprâx is da classe trabalhadora.22

Daí também a necessidade que senti de introduzir a "fala" dos traba­lhadores nessa história, não só procurando me servir de jornais operários, mas rambém de en trevistas de história de vida, então pouco utilizadas, que pudessem dar cor e sabor às afirmativas e interpretações de teor mais generalizante. Dessa forma, pude ouvir, entre outras, as experiências de um ex-comunista e trotskista como Hilcar Leite, que viveu o sindicalismo da Primeira República, foi preso nos anos 1930 e entendeu, já nesse contexto, que os trabalhadores "gosravam" de Getúlio Vargas, devido às leis do trabalho e a outras políticas governamentais. Leis que, de fato, não eram inteiramente aplicadas e se imbricavam com um pac­to entre desiguais que comportava conflitos e acordos. Esse era o problema a ser enfrentado, e não apenas pela esquerda dos anos 1940-50, da qual o velho mili­tante fazia parte n

No mesmo curso, algumas pesquisas têm demonstrado facetas interes­santes desse processo comunicativo, acompanhando melhor a ação dos traba­lhadores na luta por seus direitos e pela utilização da legislação trabalhista im­plementada a partir dos anos 1930. Jorge Ferreira, por exemplo, em seu livro Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular,24 dedica-se a compreender a dinâ-

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mica das relações construídas entre Vargas e o povo trabalhador, tomando como fio condutor a ótica desse último. Sua premissa teórica é a de que o poder do Es­tado, como forma de dominação, abarca a questão da legitimidade, o que não ex­clui a participação e reivindicação dos dominados. O desafio é entender como o discurso trabalhista foi "apropriado" por diversos atores sociais, que viven­ciaram essa experiência política em seu cotidiano, com margens de autonomia nada desprezíveis. Para isso, ele se beneficiou de uma documentação preciosa e até então não explorada: a correspondência que uma ampla parcela da população brasileira endereçava a Vargas.

Embora essa prática antecedesse o Estado Novo, foi nesse período que o volume de cartas cresceu, sendo que um significativo número delas reclamava providências em questões trabalhistas. Ou seja, o que tais cartas demonstravam é que a população, conhecendo o discurso governamental que prometia o cum­primento da legislação trabalhista, dele se utilizava, pedindo e até exigindo tal obediência, além de servir-se do canal propagandeado pelo mesmo discurso: o presidente da República em pessoa, que se apresentava como "o pai dos pobres". Uma correspondência que era recebida, respondida e às vezes até atendida em suas reivindicações por um setor específico da administração pública: a Secre­taria da Presidência da República.

Importa aqui destacar que o autor vai utilizar essas canas para, na voz! letra desse "povo remetente", falar de uma culrura política dos trabalhadores no

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primeiro governo Vargas. E dessa maneira que ele procura reconstiruir algumas idéias, valores, práticas políticas e estratégias de vida que podem ser claramente detectadas do texto dessas cartas. U m único exemplo fixa o cerne do argumento e

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das relações povo-presidente que se articulavam. E a carta que, em 1938, Ame-rida de Mattos Diniz escreveu a Vargas, de Diamantina, Minas Gerais .2S Ela começa se apresentando como "uma pobre e humilde funcionária postal" que se dirige ao presidente "a procura de proteção". E continua: "Aliás, não faço senão cumprir os desejos de Va. Excia. que já declarou que no Estado Novo não existem intermediários entre o governo e o povo". Atenta ao discurso vciculado, expõe seus argumentos - fez concurso e é mãe de uma família numerosa -, concluindo com o pedido de sua nomeação "por caridade e justiça". Outros exemplos pode­riam ser citados para fortalecer a tese que sustcnta o empenho do regime em pro­pagar os direitos do trabalho, e a utilização que a população faz do próprio dis­curso governamental para, ao mesmo tempo, pedir proteção e lutar por direitos, exigindo a aplicação das novas leis sociais.

Essa cultura política do direito como dádiva ou favor do Estado, e do di­reito de cidadania como "direito social do trabalho" tornou-se, desde então, fuo­damental para a constituição de um espaço público e de um tipo de pacto entre Estado e sociedade no Brasil. Um pacto em que o Estado é forre e tem amplo pa-

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pel imervencionista e protetor, mas no qual a sociedade não pode ser emendida como um sujeilO passivo, o que, de falO, nunca ocorre. Nessa dinâmica complexa, há tanto crença e adesão ao modelo de pacto proposto pelo Estado quamo um cálculo que visa à defesa de interesses individuais e colctivos, quer assumam uma face mais material (a dos benefícios), quer uma face mais simbólica (a de ser re­conhecido como interlocutor pelo Estado e pelo empresariado). Nesse paclO en­tre alOres políticos desiguais, as relações de dominação comportam tanto lutas e confrontos quanto acordos e negociações, havendo possibilidades de alianças e disputas, quer entre setores da burocracia estatal, quer no interior do patronato, quer na classe trabalhadora, quer entre todos eles.

Todas essas lógicas, ao mesmo tempo individuais e coletivas, materiais e simból icas, não são excludentes, podendo sc combinar na conformação de uma certa cultura política que hierarquiza direitos de cidadania e postula um dado estilo de relações entre governallles e governados. Dessa forma, uma concepção de cidadania que fugiu ao modelo clássico, mas que não podc ser ignorada ou minimizada, foi experimentada no Brasil dos anos 1 940, deixando sólidas raízes. Esse talvez seja um dos pOIllOS mais complexos do processo de construção dc cidadania no país, mas é igualmente um dos pontos mais rcveladores de sua dimcnsão histórica e de suas características singulares. Até porque ele csclarece uma das razões pelas quais os direitos sociais (e os do trabalho em especial) ocupam uma posição tão cemral na história da cidadania brasileira, sendo iden­tificados pela população como expressão de justiça social e como obrigação do Estado, embora não tenham contribuído necessariamente para o avanço da de-

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mocraCla no pais. A redemocrmização do Brasil após a queda do Estado Novo, em 1 945,

esteve longe de significar uma ruptura com essa tradição política, que acabava de se articular pelo discurso trabalhista, pela momagem da organização sindical corporativa e pela fundação de um partido de trabalhadores, o Partido Traba­lhista Brasileiro, o PTB. Esse é, inclusive, um dos achados dessa historiografia. Portanto, trabalhismo, sindicalismo e corporativismo são termos comple­mentares para o conhecimento das ações do movimento operário e de suas rela­ções com a burocracia estatal e o novo sistema partidário, estabelecido no país após 1 945. Por isso, esses são os temas privilegiados por historiadores e cientistas sociais dedicados ao estudo dos "trabalhadores do Brasil", no período que vai de 1946 a 1964. Dessa forma, para uma brevíssima apreciação de pOntoS con­siderados particularmente importantes para a argumelllação deste artigo, recorremos a duas coletâneas que reúnem autores que pesquisam o movimento sindical de algumas "categorias" de trabalhadores, em algumas cidades do país, como Rio de Janeiro, Volta Redonda, Santos, São Paulo, Porto Alegre, entre outras. Essa, aliás, é uma característica desses estudos. Eles procuram discutir

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realidades "profissionais" e regionais, relurando em fazer generalizações, muitO comuns nas pesquisas nesse campo de esrudos aré os anos 1960.

As colerâneas, que basicameme consolidam pesquisas realizadas para a redação das reses de dou IOrado dos au tores, são Na lI/ta por direitos: eswdos rece1lles em h istória social do trabalho, que apresenta rextos de Alexandre Fones, Antonio Luigi Negro, Fernando Teixeira da Silva, Hélio da COSia e Paulo Fomes26 e TI'a­balho e tradição silldical no Rio de Jalleiro: a trajetória dos metalúrgicos, organizada por José Ricardo Ramalho c Marco Aurélio Samana.27

De uma forma geral, esses esruclos se concenrram no complexo período que vai de 1 945 a 1964, delimirando fromeiras flexíveis, pois realizam recuos à história dos rrabalhadores durame a Primeira República e avançam para a silUação cio movimemo sindical após o golpe mili tar, istO é, as décadas de 1960 e 1970. Ou seja, uma de suas contribuições está jusrameme em rejeirar ruplUras profundas, e até emão muiro companilhadas, afirmando conrinuiclades, sem negar rransformações. Questões teórico-melOdológicas sustentam esse tipo de abordagem do movimenlO sindical, o que pode ser ilusrrado pelo uso eficaz do conceilO de "gerações operárias" para investigar as formas coridianas, através das quais rradições políticas eram transmiridas no mundo do trabalho, tamo du­rante o Estado Novo quanto nos anos de chumbo do regime militar. Dessa for­ma, por exemplo, Elina da Fonte Pessanha demonstra como as velhas gerações de operários navais do Rio de Janeiro conservaram inúmeras de suas práticas sindicais de luta, passando-as para as novas gerações, muitas vezes in tegradas por seus próprios filhos. Por isso, referindo-se ao sindicalismo reaniculado em 1 978-79, afirma:

O novo sindicalismo não surgiu do nada, e embora re­nha sido bem-sucedido em criar ou Iras regras de convivência sindical, de negociação coletiva e de relações com o Esrado, deve mui lO a essa ex­periência sindical anterior, como o velho sindicalismo [do período 1945-6'jt deve muilO, por sua vez, ao sindicalismo pioneiro que o ante­cedeu Z

Esses aUlores colocam novas questões a seu objeto - como a do signi­ficado de uma cullUra sindical e fabril e a do uso da lei como campo de lUla por direiros -, servindo-se de fomes primárias, como a documentação de arquivos sindicais, e de procedimentos merodológicos, como o da hisrória oral. Mais uma vez, a voz dos rrabalhadores é privilegiada nesses texlOS acadêmicos, que per­mitem uma viva aproximação das perspecrivas cognitivas e das expectativas

desses arores. E exatameme essa pOSlUra que vai permitir uma revalorização do movimento sindical do período 1945-64 que, durame as décadas de 1960 c 1970, vinha sendo desqualificado pelo palronato, pelo "novo" sindicalismo e também

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por boa parte dos estudos acadêmicos. Segundo tais visões e interpretações, co­mo era uma criatura do período "populista", rambém o sindicalismo era "popu­lista". Vale dizer, não tinha raízes nas bases operárias (ilegítimo e comprometido com políticos "populistas"), e se voltava apenas para lutas "econômicas", en­tendidas como meras defesas de "interesses corporativos". Um movimento sin­dical inteiramente equivocado e sem "consciência de classe", responsável, até certo pODlO, pelos rumos autoritários que o Brasil vivia desde 1 964, embora ti­vesse sido um de seus alvos preferenciais, o que também se reconhecia.

Ora, o que se pôde ver através desses novos esrudos foi um movimenlO sindical bastante diferente do construído por esse diagnóstico. Em primeiro lu­gar, um movimento sindical que atuou "por dentro" da organização sindical cor­porativa e usou a legislação trabalhista como campo de luta para a extensão de direitos. Exemplar, nesse sentido, é o estudo de Regina de Moraes Morei sobre os metalúrgicos da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), uma empresa estatal símbolo do projeto trabalhista dos anos 1 940.29 Seu modelo "mili tarizado" de gestão do trabalho, que apresentava os benefícios oferecidos pela fábrica (muitos dos quais efetivos) através de um discurso muito bem acabado de "paternalismo empresarial", não impediu e, muito pelo contrário, até estimulou, a ação do sindicato, existente desde 1945. Ou seja, a estratégia das lideranças sindicais ­que mantinham relações de representação com suas bases -, era utilizar o dis­curso da empresa para transformar seus "benefícios" em "direitos", até porque eles estavam presentes na Consolidação das Leis do Trabalho (a CLT) e na Constituição de 1946.

O ponto é afirmar a compatibilidade entre luta por direitos e estrutura sindical corporativa, deixando claro que o corpora tivismo não foi somente a &é/e /loir do sindicalismo brasileiro, imobilizando-o e desqualificando-o. Uma observação, é bom remarcar, que não elimina o fato de os líderes sindicais, independentemente de preferências ideológicas, terem permanecido agarrados ao corporativismo, mesmo criticando-o veementemente) devido às "vantagens" que ele oferece (com destaque à unicidade e ao "imposto" sindical), até o início do século XXI.

A atenção para as formas de atuação e representação sindicais, que não se manifestavam necessariamente em movimentos de rebeldia, como greves, embora não os excluíssem, cresceu no interior dessa literatura, como cresceu no interior dos textos que lidaram com o trabalho escravo, mostrando sua resis­tência em práticas cotidianas, sempre articulando as dimensões política e cul­tural. Lutas simbólicas e legais recebem tratamento cuidadoso nessas pesquisas, e o sindicalismo corporativo é entendido como um canal institucional legítimo, que se articula com partidos políticos - tanto o PTB quanto o Partido Co-

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munista, que até atuavam juntoS -, sendo capaz de construir espaços razoáveis de autonomia, a despeito de seu vínculo com o Estado.

Trabalhando com os marítimos do porto de Santos, em um amplo espaço temporal ( 1930-64), Fernando Teixeira da Silva30acompanhou uma dinâmica de ação comparável à dos metalúrgicos de Volta Redonda. Ele verificou o desen­volvimento de uma "culrura de solidariedade" entre esses trabalhadores durante os anos 1950 e destacou a intensa atividade sindical que mobilizou os doqueiros nos quatro prime iros anos da década de 1960. Após 1964, assim como os ope­rários navais do Rio e os metalúrgicos de Volta Redonda, os marítimos de Santos seriam duramente reprimidos. Mas, como os demais, conseguiram atravessar os anos de chumbo do regime militar, reaniculando-se nos anos 1980 para, em seguida, sofrer os efeitos dessa década perdida para a economia do país, nos anos 1990. Nesse sentido, o que todos esses estudos sobre o sindicalismo do pós-1946 evidenciam é a existência de um movimento operário muito mais rico e com­plexo, que se relaciona com o empresariado, com os panidos políticos e com se­tores da burocracia governamental, além, é claro, da Justiça do Trabalho. Entre todos esses atores políticos, com pesos muito distintos, as relações de dominação comportam tanto conflitos quanto acordos, havendo sempre múltiplas possibi­lidades.

Não é objetivo deste texto navegar nas águas revoltas das questôes que agitam o movimemo sindical na virada do século XX para o XXI. Para concluir, ponamo, vale apenas uma pequena observação. Trata-se de ponderar que os "tra­balhadores do Brasil", desde o século XIX, foram sujeitos de sua história, es­tando longe das figurações de passividade/inconsciência ou de rebeldia radical, mesmo nas mais duras condições de violência. Além disso, particularmeme des­de os anos 1 930, eles passaram a lutar por, e a constituir, uma "cultura de direi­tos", entendida como de responsabilidade do Estado, dos patrões e dos sindi­catos. Essa "cultura de direitos" se articulava com um modelo de economia fabril e com um estilo de vida operária fundados, politicamente, em boa pane, no trabalhismo e no corporativismo sindicais. Mesmo após o movimento militar de 1964, essa cultura política de direitos sobreviveu, mas, conforme inúmeras análises indicam, nos anos 1990, foi-se esgotando ante as u'ansformações do mundo do trabalho e da economia internacional. Contudo, vale a pena pensar que tais fatos não constituem um impedimento radical para que algumas carac­tcrísticas fundamentais do modelo de sindicalismo corporativo, ainda exis­tentes, sobrevivam, para o bem e para o mal. Por Otmo lado, diante dc tantas transformações, é possível que uma ouu'a "cultura de direitos" possa ser arti­culada pelos trabalhadores no século XXI.

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N o t a s

I. O cone na década de 1980 poderia ser discutido c até um pouco antecipado. Mas, embora se possa encontrar trabalhos que contribuíram para o que se irá apontar durante os anos 1970, O acúmulo de uma reflexão e a realização de um debate amplo se farão de forma mais sistemática a partir de 1980, por razôes que se ligam à situação da academia no Brasil e também ao contexto político mais amplo, como se verá.

2. A reilexâo que se fará neste artigo tem como campo o que se convencionou chamar de história social do trabalho, quer dizer, um campo que privilegia a análise das relações de dominação a partir do mundo do lrabalho. Seria possível, com o mesmo objetivo e a mesma tese do arrigo, lidar com uma produção que disclIlc as relações enrre Metrópole e Colônia, bem como com trabalhos que recorram o tema da indtistria cultural, entre OUtros.

3. Não é o caso de traçar maiores informações sobre esse processo, já assinalado em muitos artigos, entre eles um de minha própria autoria: "Política: hisrória, ciência, cultura etc.", Estudos Históricos, Rio de 1aneiro, vaI. 9, n. 17, 1996, p. 59·84.

4. Nas Ciências Sociais, o livro de Mancur 0lson, The logic of co/lective aClioll: public goods and theory of groups (New York, Schokero Books, 1970) era um dos grandes referenciais do debate.

5. São vários os trabalhos desse aULOr que exerceram grande influência, sendo o mais importanrcA formação da classe operán'(l inglesa (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987).

6. Por exemplo, R. Danon, O grande massacre de gatos e outros episódios de história cullUral francesa (Rio de Janeiro,

Graal, 1986); C. Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e (IS idéias de um moleiro perseguido pela Inqu isição (São Paulo, Cia. das Letras, 1987), e W. H. Sewell Jr., "Social change and lhe rise of working-class politcs in Lhe nineteemh cenrury Marseille") Past alld Preselll, n. 65, nov., 1974 e "Le ciroyen/la ciwyenne: activity, passiviry, and the revolucionary concept of citizenship") em Colin Lucas (ed.), The Flellch R(Jvoüaion (md lhe creation of modem political clIlwre (Oxford, Pergumon Prcss, 1988).

7. De C. Geertz, A illlerpretação das cullllras (Rio de Janeiro, Zahar, 1978) e de M. Sahlins, Cultura e raziio prática (Rio de Janeiro, Zahar, 1 979) e Ilhas da História (Rio de Janeiro, Zahar, 1987).

8. Entre Outros, G. Levi, "Sobre a m icro-hislória", em Peter BlIrke, A escrita da Histôria: novas perspecrivas (São Paulo, Unesp, 1992) e R. Chartier,A hislúria culfUral elltre práticas e representações ( Lisboa, DireI, 1990).

9. A primeira edição do livro de Gilberto Freyre é de 1933.

10. Dois livros são mais citados para caracterizar esse tipo de enfoque que eSlá sob discussão. Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro lia sociedade escravista do Rio Grallde do Sul (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, [ 1962]) e J acob Gorender, O escravismo colonial (São Paulo, ÁLica, 1978).

1 I. O referente por excelência dessa visão é o livro de Roberto Schwarz,Ao vencedor as balaras (São Paulo, Duas Cidades, 1977).

12. Havia também mulheres ganhadoras que rrabalhavam na rua, geralmeme

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vendendo alimentos. Elas não são tratadas nos afligos examinados e não serão aqui consideradas.

13. João José Reis, liA greve negra de 1 857 na Bahia", op. cit., p. I l

14. Vis"es da liberdade foi publicado pela Companhia da LetTaS e produzido como tese de doutorado em História, em 1989. Machado de Assis: his/órias e flisl6ria foi defendido como tese de concurso de professor titular na Unicamp c ainda não foi publicado.

15. A tese foi defendida na UFF, em 1993, e a primeira edição do livro ê de 1995. Estou usando a segunda edição, Das cores do silêncio (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1 998).

/6. Hebe Manos Gomes de Castro, op. eit. , p. 1 5.

1 7. No Brasil, um autor e alguns de seus • •

textos se tornam a m31S lmponanre referência: Francisco \Xlefforl, Classes populares e política (São Paulo, USJ� 1968) e "Democracia e movimento operário: algumas questões para a história do período 1930-1964", Revista de Cultura COlltemporôlIea, anO I, n. 1 e 2, e Revista de Cu/rura e Po/{rica, ano. I, n . 1 (São Paulo, Cedec, 1 978-9).

18. O livroA illVCl1fcl0 do trabalhismo ( I !l eel., Sâo Paulo, Vértice, 1 988; 21\ cd., Rio de Janeiro, RcJume-Dumarã, 1 999) foi escrito como rese de doutorado em Ciência PolíLica no luperj.

19. As resistências patronais às leis que regulam o mercado de trabalho no Brasil datam da Primeira Repúhlica c

permanecem existindo até O século XXJ. Sem dúvida, a aplicação da legislação depende muito do empenho do Estado, sendo a carência de fiscalização uma das razões básicas desse desrespei to. Porém, constatar a não-aplicação e a burla de muiLas leis é difcren te de considerar que tais leis já tivessem sido elaboradas para não serem aplicadas por intenção

explícita do legislador. Toda legislação tem sempre um sentido normativo, aponrando para uma direção e um objetivo a serem alcançados, ainda que o legislador reconheça que eles estão distantes. Essas são as razôes que me afastam de interpretações que auibuem à legislação trabalhista das décadas de 1 930-40 a intenção explícita de ter sido elaborada para ser desrespeitada, isLO é, de ser lima legislação de fachada.

20. Uma literarura recel1le reconhece o impacto que a legislação trabalhista exerceu sobre os trabalhadores rurais, que passaram a conhecer e a demandar tal tipo de regulamemação. Assim} há trabalhos que registram a ação de trabalhadores rurais (não sindicalizados), alravcs de processos judiciais (Vanderlei V. Ribeiro, Um /UnJO olhar sobre a roça: a

questão agrária no Estada Novo, Rio de Janeiro, UFRJ, Dissertação de MeStrado, 200 1 » e que acompanham um projeto do Estado Novo de extensão dessa legislação ao campo, ressaltando os vínculos construídos pelo imaginário político entre a figura de Vargas e lia verdC:!deira abolição do cativeiro" no Brasil (Angela de Caslfo Gomes c Hebc Manos Gomes de Castro, 'I Sobre apropriações e circularidades: memória do cativeiro e política culturaJ na Era Vargas", J-listória Oral, ABHO, n. 1, junho, 1998).

2 J. Sobre o lema, vcr Angcla de Castro Gomes, "O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito", em Jorge Ferreira, O populismo e sua história: dcbatt' e crítica (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001), p. 17-57.

22. Quero destacar a importãncia de uabalhos vindos da área da ciência política para a construçâo de minha abordagem, entre eles os de Luis \V'crncck Viana, Amaury de Souza e Wanderley Guilherme dos Samos, que foi meu orientador.

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23. Algumas das emrevistas que re<llizei foram publicadas no livro Velhos milirallles: depoimentos (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988), em co-autoria com Dora Rocha e Eduardo SlOtz.

24. O livro é uma dissertação de mestrado defendida na UFF e publicada no Rio de Janeiro, pela editora da FG\I, em 1 997.

25. Cf. Jorge Ferreira, op. cir., p. 26-7.

26. O livro foi publicado em Campinas, pela editora da Unicamp, em 1999.

27. A coletânea, que reúne artigos de mais cinco autores. foi publicada no Rio de Janeiro, pela DP&A, em 2001. Muitos OUlros trabalhos poderiam ser citados, inclusive alguns orientados por mim no PPGH da UFE A estratégia escolhida, contudo, foi a de não sobrecarregar o texto com títulos, donde a opção pelas coletâneas.

Resumo

28. Elina da Fonte Pessan ha, "Metalúrgicos, sempre operários navais", em j. R. Ramalho e M. A. Santana (orgs.), Trabalho e lradiçü.o sindicll/ no Rio de

Janeiro: a trajetória dos metalúrgicos, op. cit., p. 93.

29. Regina de Moraes N\.orel, "A construçâo da 'família siderúrgica': gestão paternalista e empresa estata)", op. cir. , p. 47-79.

30. Fernando Teixeira da Silva, UDireitos, política e trabalho no Porto de Santos", em Na boa por direiros: estudos recelllcs de história social do trabalho, op. cit. � p. 5 1 -87, e também Fernando Teixeira da Silva e Hélio Costa, uTrabalhadores urbanos e populismo: um balanço dos estudos recentes", em Jorge Ferreira, op. cil.

(Recebido para publicação em marra e aceito em o1l1ubro de 2004)

Este artigo deseja mostrar que as pesquisas de história, especialmente as teses e dissertações desenvolvidas a partir dos anos 1980, produziram uma inOexao nos modelos interpretativos que tralavam da questão social no campo das ciências sociais em geral. Os novos estudos históricos afastaram a possibilidade de generalizações e formalizações dos processos sociais, que são sempre datados e localizados no tempo e no espaço, e só podem ser compreendidos por "dentro", vale dizer, por meio das idéias e ações daqueles diretamente envolvidos. Para sustentar este ponto de vista, foram escolhidos alguns aumres e texms que procuraram contemplar tanto a questão do trabalho escravo quanm a do trabalho livre nO Brasil. Palavras-chave: hismriografia brasileira, trabalho escravo, trabalho livre.

Abstract This paper in tends to show thar academic historical studies in Brazil after the 80's have broughr a change in the interpreta tive models used by social sciences ar large LO describe lhe social issue. The new historical srudies gave up generalizations and modelling of social processes, which, on the contrary, are always dated and localized in time and space, and can be explained only

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from inside, that is, raking inro accounr the ideas and actions of those direcrly involved. To susrain this argumen t, we have picked a certain number af authors and texts that deal with slave and [ree work in Brazil. Key words: hisLOrical studies in Brazil, si ave IVork, free work.

RéSlllllé Cet anicle veut monrrer que les études historiques au Brésil, surrout les disserrations et les rheses produites apres les années 80, onr modifié les modeles imerprétatifs utilisés par les sciences saci ales en général pour décrire la question sociale. Les nouvelles études historiques om abandonné les généralisarions et les formalisations des processus sociaux, qui, au conrraire, som toujours datés et localisés dans le temps et I'espace, et ne peuvent êrre expliqués que du "dedans", c'est à dire, en considérant les idées et les actions de ceux direcremenr impliqués. Pour soutenir notre argument, nous avons choisi un cerrain nombre d'auteurs et de textes sur le travail esclave et libre au Brésil. MOls-c/és: érudes hisLOriques au Brésil, travail esclave, travail libre.