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1 QUESTÕES DE GÊNERO EM JOGOS DIGITAIS: UMA COLEÇÃO DE RECURSOS EDUCACIONAIS ABERTOS DE APOIO À MOBILIZAÇÃO LETÍCIA RODRIGUES1 LUIZ ERNESTO MERKLE2 MARINÊS RIBEIRO DOS SANTOS3 Resumo: O contexto dos jogos digitais apresenta-se em um processo de transformação, onde vários grupos têm reivindicações de participação. Parte dessas mudanças é decorrente da maneira como determinadas pessoas vem sendo marginalizadas e invisibilizadas devido à questões de sexo/gênero, raça/etnia e outras clivagens. Estas pessoas ou grupos têm reivindicado de modo crescente, a partir de diversas táticas, seu reconhecimento. Este trabalho discorre sobre a construção, ainda em andamento, de uma coleção de recursos educacionais aberta que visa facilitar o a preservação, a recuperação e o acesso, assim como a circulação e a aproriação de recursos que possam auxiliar na problematização de questões de gênero e suas transversalidades no âmbito dos jogos digitais. Fundamentamos a análise destas questões na perspectiva dos estudos de gênero e do feminismo interseccional, e procuramos refletir sobre a atividade de jogar através do conceito de tecnologias de gênero, no qual relações de gênero específicas são muitas vezes reiteradas ou até mesmo forjadas, considerando como estes jogos são muitas vezes desenvolvidos, divulgados, jogados individual ou coletivamente e participados através de práticas diversas. O caráter aberto da coleção visa proporcionar futuras contribuições ao seu “acervo”, ou conjunto de itens depositados e disponibilizados, permitindo atualizações frente as transformações recorrentes no cenário dos jogos digitais em relação às dimensões históricas, culturais, sociais e axiológicas. Uma tal coleção é um primeiro passo no reconhecimento de participantes desse meio cuja invisibilização é clara. Palavras-chave: Jogos Digitais, Estudos Queer, Feminismo Interseccional, Recursos Educacionais Abertos, Coleção Aberta. PORQUE GÊNERO EM JOGOS DIGITAIS No presente artigo apresentamos o projeto de construção de uma coleção de recursos educacionais abertos (AMIEL, 2012) referente às intersecções entre jogos digitais e questões de gênero com objetivo de questionar padrões vigentes na comunidade que perpetuam práticas excludentes e violentas contra determinados grupos de pessoas que são marginalizadas nesse meio. Por meio desta coleção, ainda em projeto e estudo piloto, buscamos a elaboração de um artefato de empoderamento e mobilização para grupos subalternizados, por meio da 1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná/ Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná/ Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná/ Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil. E-mail: [email protected].

QUESTÕES DE GÊNERO EM JOGOS DIGITAIS: UMA COLEÇÃO DE … · meninas e mulheres (CONSALVO, 2012), resultando em casos de ameaça de morte, ameaça de estupro ou outras formas de

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QUESTÕES DE GÊNERO EM JOGOS DIGITAIS: UMA COLEÇÃO DE RECURSOS

EDUCACIONAIS ABERTOS DE APOIO À MOBILIZAÇÃO

LETÍCIA RODRIGUES1

LUIZ ERNESTO MERKLE2

MARINÊS RIBEIRO DOS SANTOS3

Resumo: O contexto dos jogos digitais apresenta-se em um processo de transformação, onde

vários grupos têm reivindicações de participação. Parte dessas mudanças é decorrente da

maneira como determinadas pessoas vem sendo marginalizadas e invisibilizadas devido à

questões de sexo/gênero, raça/etnia e outras clivagens. Estas pessoas ou grupos têm

reivindicado de modo crescente, a partir de diversas táticas, seu reconhecimento. Este trabalho

discorre sobre a construção, ainda em andamento, de uma coleção de recursos educacionais

aberta que visa facilitar o a preservação, a recuperação e o acesso, assim como a circulação e a

aproriação de recursos que possam auxiliar na problematização de questões de gênero e suas

transversalidades no âmbito dos jogos digitais. Fundamentamos a análise destas questões na

perspectiva dos estudos de gênero e do feminismo interseccional, e procuramos refletir sobre a

atividade de jogar através do conceito de tecnologias de gênero, no qual relações de gênero

específicas são muitas vezes reiteradas ou até mesmo forjadas, considerando como estes jogos

são muitas vezes desenvolvidos, divulgados, jogados individual ou coletivamente e

participados através de práticas diversas. O caráter aberto da coleção visa proporcionar futuras

contribuições ao seu “acervo”, ou conjunto de itens depositados e disponibilizados, permitindo

atualizações frente as transformações recorrentes no cenário dos jogos digitais em relação às

dimensões históricas, culturais, sociais e axiológicas. Uma tal coleção é um primeiro passo no

reconhecimento de participantes desse meio cuja invisibilização é clara.

Palavras-chave: Jogos Digitais, Estudos Queer, Feminismo Interseccional, Recursos

Educacionais Abertos, Coleção Aberta.

PORQUE GÊNERO EM JOGOS DIGITAIS

No presente artigo apresentamos o projeto de construção de uma coleção de recursos

educacionais abertos (AMIEL, 2012) referente às intersecções entre jogos digitais e questões

de gênero com objetivo de questionar padrões vigentes na comunidade que perpetuam práticas

excludentes e violentas contra determinados grupos de pessoas que são marginalizadas nesse

meio. Por meio desta coleção, ainda em projeto e estudo piloto, buscamos a elaboração de um

artefato de empoderamento e mobilização para grupos subalternizados, por meio da

1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná/ Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil.

E-mail: [email protected]. 2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná/ Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil.

E-mail: [email protected]. 3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná/ Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil.

E-mail: [email protected].

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disponibilização de recursos de diversos formatos que possam eventualmente embasar

discussões, críticas e práticas mais inclusivas e pedagógicas, tanto para a compreensão, para a

avaliação, como o desenvolvimento de tais jogos e de suas comunidades.

O atual cenário nos jogos digitais mostra-se um terreno complexo de disputa social por

representatividade, respeito e inclusão. Nos jogos ainda é comum que a identidade branca seja

a privilegiada em termos de reconhecimento e representação, sendo naturalizada através das

escolhas que ilustram produtos de merchandising, as próprias personagens presentes nos jogos

e nos/nas profissionais presentes nas divulgações, eventos e demais atividades públicas. Por

exclusão, ocasionam assim a invisibilidade de outras identidades que não a branca, esta,

frequentemente associada à nacionalidade norte-americana ou europeia. Identidades africanas,

indígenas e asiáticas, por exemplo, acabam por ser invisibilizadas na indústria de

desenvolvimento de jogos digitais, de modo semelhantemente a outros foros da sociedade.

Dentro de uma lógica heteronormativa (LOURO, 2004), da mesma forma, a heterossexualidade

é frequentemente compulsória nas narrativas e representações presentes e nas relações sociais

isso se reflete sob uma constante homofóbica, bifóbica e transfóbica de violência simbólica para

com identidades Lésbicas, Gays, Bis, Transsexuais, Transgêneras, Queer e Intersex

(LGBTTQI) e a internalização de aceitação de atitudes violentas para com pessoas sob estas

identidades.

Da mesma maneira a identidade das mulheres é constantemente questionada quanto ao

seu direito de ocupar espaço no meio dos jogos digitais. Reflexo de culturas machistas e

misóginas, o ambiente dos jogos mostra-se na maior parte do tempo um espaço hostil para

meninas e mulheres (CONSALVO, 2012), resultando em casos de ameaça de morte, ameaça de

estupro ou outras formas de violência psicológica destinadas às pessoas que passam a ocupar

esses espaços declarando-se abertamente como mulheres (FOX, TANG, 2016). O documentário

estadounidense “GTFO:Get the F&#% Out” (2015) dirigido e escrito por Shannon Sun-

Higginson ilustra parte desse cenário de violência vivenciado por muitas mulheres na indústria

e na comunidade de jogos.

Tendo em vista panoramas como estes a coleção objetiva, por meio da compilação de

recursos educacionais diversos visibilizar a presença de sujeitos marginalizados no meio dos

jogos digitais de maneira a provocar reflexão, apontar regimes hierárquicos e fomentar os

discursos de diversidade.

REFERENCIAL TEÓRICO

3

A escolha pelos recursos educacionais abertos (REA) dá-se pelos discursos presentes

em seu uso, como mostra Tel Amiel (2012), referente a práticas flexíveis de ensino e ambientes

colaborativos que se interseccionam com as ideias presentes nos embates sobre diversidade e

representação nos jogos digitais contemporâneos, ao incentivar espaços em que ocorra a livre

troca de ideias de forma a otimizar a interação entre pessoas e a produção de conhecimento de

maneira mais democrática e acessível. Amiel caracteriza que: “recursos educacionais abertos

[...] são verdadeiramente propulsores de novas configurações de ensino e aprendizagem”

(AMIEL, 2012, p.24) e que a circulação de “bens comuns” é capaz de “expandir radicalmente

o acesso à cultura e a educação de um povo” (AMIEL, 2012, p.34).

O sítio de internet Recursos Educacionais Abertos4 define em seu FAQ5 que por

“recursos” é possível entendermos qualquer conteúdo que possa ser aplicado com intuitos

educacionais. Como exemplo, o site apresenta itens que podem ser considerados REA, como:

“livros, planos de aula, softwares, jogos, resenhas, trabalhos escolares, vídeos, áudios, imagens

e outros recursos compreendidos como bens educacionais essenciais ao usufruto do direito de

acesso à educação e à cultura” (REA Site).

É necessário ter em mente que nem todo recurso gratuito essencialmente configura-se

em REA. O diferencial do REA encontra-se na distribuição compartilhada dos direitos acerca

do conteúdo disponibilizado, para que este possa ser “estudado”, “redistribuído”, “remixado”,

“reconfigurado”. Estas são consideradas as quatro liberdades do REA, os 4Rs do inglês: review,

reuse, remix e redistribute6. Em suma, a pessoa responsável deixa o conteúdo “aberto” para que

quem dele se utilizar tenha liberdade para criar novas possibilidades a partir do que já está

disponível, mas exige a atribuição a sua autoria, e em alguns casos a redistribuição em licença

igual. Assim se evidencia a ideia do termo “aberto” presente na designação dos REAs. É

necessário também ter em mente que o não pagamento pelos REA dependerá da licença

escolhida (REA Site).

Mackenzie e Wajcman (1999) descrevem a tecnologia como algo que perpassa

diversos aspectos da vida cotidiana. “Para o bem ou para o mal” (MACKENZIE, WAJCMAN,

4 Recursos Educionais Abertos. Disponível em: <http://www.rea.net.br>. Acesso em 9 de junho de 2016.

5 Frequently Asked Questions, ou seção que responde perguntas recorrentes.

6 I.4. Quais são as quatro liberdades dos REA?. Disponível em: <http://www.rea.net.br/site/faq/#a4>. Acesso em

9 de junho de 2016.

4

1999, p.1) ela envolve a própria existência da vida humana, seja nos artefatos produzidos seja

na configuração dos sistemas técnicos. Para o senso comum, entretanto, nas palavras do autor

e da autora, a visão empregada é a do determinismo tecnológico (MACKENZIE, WAJCMAN,

1999, p.1). Feenberg aponta esse mesmo aspecto ao dizer que a visão comum, muitas vezes

ingênua, mas interessada, que se tem de tecnologia é aquela “puramente instrumental”, “isenta

de valores” e “irrefletidamente assumida” (FEENBERG, 2003).

Os jogos digitais, dados seus suportes material e lógico e suas origens facilmente

identificadas na computação, são costumeira e ligeiramente considerados “tecnológicos”, sem

uma maior problematização ou refinamento. A visão que assumimos ao tratar de jogos,

entretanto, visa pensar sua relação com a tecnologia de outras maneiras menos deterministas e

cristalizadas. Mary Flanagan (2009) distingue-se ao pensar os jogos a partir de uma perspectiva

histórica, baseada na arte, e não somente em função exclusiva de seus suportes em

computadores e consoles, indo além dos artefatos ditos técnicos e suas transformações.

Flanagan aponta que visões tradicionais não consideravam as práticas de jogo fora do contexto

de computadores e não se aprofundavam em pensar as origens dos jogos contemporâneos em

aportes estéticos e criativos, assim como raramente elaboravam diálogos entre os jogos e a arte

(FLANAGAN, 2009).

A perspectiva de Flanagan nos é interessante ao pensar jogos digitais, pois realça um

contexto político no qual manifestam-se as práticas artísticas. A autora apropria-se do termo

“artista” para definir pessoas que estejam criando para além de objetivos comerciais e

frequentemente “criando pelo bem de criar” (FLANAGAN, 2009, p.4). Flanagan. ao propor o

conceito de “jogar criticamente” (critical play), aponta que “crítico” vai além de apenas uma

abordagem minuciosa ou acadêmica, mas nos é conveniente dada a influência cultural e social

que as práticas de “brincar” e “jogar” tem em nossas sociedades (2010). Outro ponto

interessante é que Flanagan considera jogos como tecnologias não dado seu suporte eletrônico,

pois jogos que não envolvem gadgets e aparelhos eletrônicos também são tecnologias em sua

perspectiva. Para ela jogos e brincadeiras, graças aos seus arranjos e convenções são tecnologias

capazes de produzir maneiras de se relacionar, sujeitas a regras e contextos temporais e

executadas através de padrões de comportamentos (FLANAGAN, 2009, p.8). Essa definição

de Flanagan é interessante, pois pode nos ajudar a pensar os jogos enquanto tecnologias

produtivas também como “tecnologias de gênero”, cuja definição exploramos mais adiante.

É possível compreender as diferenças entre jogos e brincadeiras/ jogar e brincar a partir

de algumas referências acadêmicas nos estudos dos jogos. Seguindo a abordagem de Bo

Kampmann Walther (2003) a princípio faz-se necessário distinguir “jogo” (game) de

5

“brincadeira” (play). Walther localiza os jogos (games) no terreno de um espaço mais amplo da

brincadeira (play), a diferença mais evidente se dá pelos esquemas de regras e progressão

presentes nos jogos que os diferenciam do ato de brincar (play). Para Huizinga (1938),

conforme Walther, o ato de brincar é intrínseco a instituição cultural, em seu meio são

construídos significados e códigos no âmbito da semiótica social (WALTHER, 2003). Em

termos sintéticos, jogos poderiam ser diferenciados de brincadeiras por sua estrutura,

complexidade e formas de organização (HACKMAN, GOUGLAS, 2014).

Flanagan comenta sobre a grande variedade de definições que podemos encontrar para

pensar o que são jogos através da pesquisa acadêmica que se debruça sobre eles. Uma das

citações da autora que pode nos ajudar, define os jogos como “inerentemente não-lineares e

dependentes de decisões a serem feitas” (COSTIKYAN APUD FLANAGAN, 2009, p.7) e tais

decisões devem ser significativas ou não se caracterizam como decisões “reais”. Essa

característica a autora destaca relaciona-se ao conceito de “agência da jogadora ou do jogador”

(FLANAGAN, 2009, p.7).

Pensamos esses aspectos dos jogos até aqui, pois nos são úteis ao considerar a

capacidade dos jogos em construir espaços políticos de agência e reflexão e de que maneiras

seus processos de desenvolvimento, seus conteúdos, regras e temáticas podem nos auxiliar para

explorar questões sociais, como as relações de gênero abordadas pela coleção. Andrea Gunraj,

Susana Ruiz e Ashley York (2011) trabalham nesse conceito ao elaborar “diretrizes” que visam

pensar os jogos digitais como instrumentos de mobilização social efetiva a partir do que elas

chamam de “framework anti-opressão”. Tal conceito envolve dentre diversos fatores, uma

inclusão significativa e realmente participativa de vozes subalternizadas que podem ser

valorizadas através das organizações e jogabilidade proporcionadas pelos jogos de cunho

ativista.

Flanagan define Jogos Ativistas (Activist Games) por sua maior preocupação de cunho

pedagógico e social, deixando a princípio o caráter de entretenimento em segundo plano para

que determinada mensagem seja comunicada através da obra. O ativismo no espaço midiático

torna-se relevante devido às desigualdades transversais à sua existência, a autora aponta que:

“questões de gênero, raça, etnia, linguagem e desigualdade de classes são também manifestas

na apropriação e produção tecnológica” (FLANAGAN, 2009, p13). Fica evidente por meio de

análise dos espaços ocupados por mulheres no campo dos jogos digitais que “videogames são

espaços gendrados” (FLANAGAN, 2009, p.13).

Compreendemos “gênero” na perspectiva de Judith Butler que o articula da seguinte

forma:

6

Gênero não é exatamente o que alguém “é” nem é precisamente o que alguém “tem”.

Gênero é o aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e do feminino

se manifestam junto com as formas intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e

performativas que o gênero assume (BUTLER, 2014, p.253).

Butler aponta ainda para a questão de que não se deve supor a noção de gênero somente

em uma articulação binária que é extrapolada por permutações que nela não se encaixam e dessa

maneira, em suas palavras: “Gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e

feminino são produzidas e naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do

qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2014, p.253). A

autora evidencia assim os espaços de contestação das prescrições de gênero.

Justine Cassel e Henry Jenkins (1998) apontam para o uso do termo gênero como um

manifesto de “rejeição do determinismo biológico” (CASSEL, JENKINS, 1998, p.5) e

comentam sobre o caráter culturalmente construído das oposições binárias entre atributos

considerados masculinos e femininos. Noções de masculinidades e feminilidades são

“concebidas diferentemente em diferentes culturas, períodos históricos, e contextos”

(CASTELL, JENKINS, 1998, p.6).

Nas palavras de Guacira Lopes Louro (1997) o uso do termo “gênero” nos permite

"rejeitar um determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual"

(LOURO, 1997, p.21), evidencia-se assim o processo da constituição da diferença projetada

sobre a biologia dos corpos. Teresa de Lauretis (1994) aponta as limitações que o conceito da

diferença sexual traz para o pensamento crítico feminista ao universalizar as mulheres sem

considerar “a diferença entre e nas mulheres”.

Para De Lauretis o gênero constrói-se através de “discursos institucionais” e de diversas

“tecnologias de gênero”, das quais ela traz como exemplo suas áreas de estudo o cinema, a

narrativa e a teoria. Em The Violence of Rethoric, a autora define por tecnologia de gênero:

“técnicas e estratégias discursivas por meio das quais o gênero é construído” (DE LAURETIS,

1987, p.38).

Visamos argumentar, a partir da proposta de De Lauretis que os jogos digitais são

tecnologias de gênero, através dos quais são reproduzidos discursos que reforçam a ideia de

binarismo homem/mulher e determinismos biológicos, assim como a naturalização de conceitos

de masculino e feminino como os apontados por Butler. A maneira como esses discursos de

gênero são empregados nos jogos serve para segregar e legitimizar a violência e opressão de

determinados sujeitos, assim como manter e reforçar hierarquias sociais vigentes. Contudo,

procura-se ilustrar que jogos podem servir também como aparatos para a desconstrução destes

mesmos aspectos quando trabalhados de maneira diferenciada. Como aponta Louro, por meio

7

de Butler, a regulação e materialização do sexo dos sujeitos em sociedade ocorre através de

normatizações, estas “precisam ser constantemente repetidas e reiteradas” para que a

materialização seja concretizada (LOURO, 2004, p.43-44), no entanto, os corpos jamais estarão

completamente conformados a estas normas. Assim sendo, mesmo que os discursos presentes

na maioria dos jogos apresentem reforços normativos, haverá sempre o espaço para contestação

e os contra-discursos dos mesmos.

Outro aspecto que podemos analisar é o uso de estereótipos, frequentes em diversas

mídias, com os jogos isso não é diferente. Estereótipos podem configurar-se em uma estratégia,

no sentido apontado por Patricia Collins (2000), de projetar “imagens de controle” que

naturalizem práticas sexistas e racistas, dentre outras formas de segregação social, de maneira

a formular uma ideia de “inevitabilidade” e aceitação coletivas (COLLINS, 2000). Esse

discurso naturalizado apresenta-se nas discussões e embates por mudanças tanto no conteúdo

dos jogos, como nas atitudes assumidas pelas pessoas frente às contestações que visam a

inclusão de sujeitos marginalizados e o exercício do reconhecimento de sua dignidade humana

na comunidade de jogos digitais.

Nos jogos, como em outras mídias, a objetificação da figura feminina é constante assim

como o assédio e a violência sexual. Mulheres que publicamente contestem o tratamento

recebido na comunidade são alvo de perseguição e estratégias de silenciamento (GTFO: ...,

2015). Da mesma maneira, jogadoras que se apresentem como mulheres publicamente em

comunidades, ou jogos online, estão sujeitas a misoginia, ameaças de violências sexual, entre

outras formas de violência (FOX, TANG, 2016). Esse tipo de tratamento, longe de estar

presente apenas em ambientes online estendem-se a eventos de jogos, ou “cultura nerd” onde

assédios também ocorrem (CONSALVO, 2012). Problemas de representação racial e de

sexualidade mostram-se igualmente frequentes. A heterossexualidade é retratada como norma

no conteúdo de grande parte dos jogos, personagens homossexuais e transgêneros/as podem ser

objetificados/as ou ridicularizados/as por meio de estereótipos e a comunidade mostra-se

amplamente homofóbica e transfóbica em suas falas recorrentes, seja na publicidade, entre

jogadores/as ou em fóruns de discussão, dentre outros espaços.

Se nesta perspectiva o cenário atual dos jogos digitais parece fatalista, entretanto,

tensionamentos propostos por militâncias sociais e pelo entrave entre os grupos sociais

relevantes para a concepção dos jogos mostra-se um terreno fértil para questionamentos. É

justamente nessa arena de disputas que essa pesquisa se inscreve. Por meio do enfoque desejado

para a coleção REA, em construção, buscamos reconhecer e contemplar as vozes destas

militâncias e dos sujeitos marginalizados ou omitidos nos discursos hegemônicos que revolvem

8

no meio dos jogos digitais. A coleção mostra-se também uma maneira de constituir uma

compilação capaz de organizar estes recursos em um espaço de fácil acesso, democrático e

pedagógico para aproximar potenciais comunidades às reflexões sobre gênero/sexualidade e

raça/etnia nos jogos digitais. Não obstante, através da coleção procuramos incrementar estes

tópicos, que frequentemente não são observados nas formações acadêmicas tradicionais sobre

jogos digitais presentes no ensino nacional.

METODOLOGIA

A elaboração da coleção caracteriza-se por uma pesquisa documental e bibliográfica

que viabilize o embasamento teórico para a análise crítica dos jogos, considerando as clivagens

de gênero e suas transversalidades. Coletamos, indexamos e disponibilizamos materiais de

diversos formatos (multimídia, artigos, testemunhos). Por meio dos conteúdos almejamos

alcançar um campo de análise ainda pouco formalizado em relação à visibilidade de alguns

sujeitos marginalizados no meio dos jogos digitais, tais como: mulheres e pessoas LGBTTQI,

de diferentes etnias e faixas-etárias.

Ao buscar a visibilidade dessas pessoas, este trabalho procura assumir um caráter

ativista e somar-se às produções de coletivos feministas, LGBTTQI e de combate ao racismo.

A pesquisa documental visa dar suporte teórico à coleção de maneira a sistematizar um recurso

bibliográfico que conceitue e ajude na divulgação dos estudos realizados nestes tópicos no que

concerne o desenvolvimento de jogos digitais. Os recursos compilados podem se apresentar em

diversos suportes, sendo eles: texto, vídeo, documentário ou mesmo, e com ênfase, jogos. Eles

podem ou não ser armazenados na própria coleção, conforme seu licenciamento legal.

Com isto em mente, a abordagem para o desenvolvimento da pesquisa pode ser

considerada a partir das seguintes etapas, não necessariamente estanques:

a. Contextualização do panorama dos jogos digitais e seus conflitos em relação às

categorias de gênero/sexualidade e questões étnico-raciais.

b. Contextualização do cenário dos REAs, seleção e produção de material que realce as

dimensões de gênero/sexualidade e raça/etnia na coleção.

c. Por fim, disponibilização da coleção inicial finalizada e sua divulgação em diversos

espaços, como em grupos de pesquisa sobre jogos e em cursos de especialização e graduação

de jogos digitais, apenas para citar alguns exemplos. Embora tenhamos um enfoque nas áreas

tangenciais aos jogos, nada impede que a coleção seja apropriada por outras áreas que não

9

tenham inicialmente alguma relação com jogos, ou jogos digitais, valorizando assim o potencial

dos jogos para conceber formas diferentes de pensar processos educacionais.

RESULTADOS

A construção da coleção, como já dito, está em progresso, assim como a dissertação de

mestrado. Até a presente data foram compilados artigos, documentários, livros, notícias e

exemplos de jogos através dos quais podemos realizar reflexões acerca das questões de gênero

no universo dos jogos digitais. Estes materiais têm sido organizados inicialmente através da

plataforma online Zotero7 no grupo denominado “Gênero e Jogos”. Ressaltamos que ao optar

pelo uso do termo “jogos” e não “jogos digitais” buscamos a abertura para adição de todos os

tipos de jogos e não apenas os considerados digitais ou eletrônicos (videogames), pensamos na

posterior adição de conteúdo sobre jogos de tabuleiro, jogos de interpretação (“RPG de mesa”),

jogos de cartas, etc. Para a presente dissertação e pesquisa, entretanto, nosso foco são os jogos

digitais, mas cabe citar os outros tipos dada sua importância e contribuições na comunidade

como um todo.

Na Zotero a coleção atualmente encontra-se dividida nas seguintes subcategorias:

Acervos, sites e blogues/ Cursos / Depoimentos / Desenvolvedoras, estúdios

e empresas / Grupos de pesquisa e mobilização social / Introdução aos

Estudos de Gênero/ Introdução aos Estudos de Gênero em Jogos Digitais/

Jogos/ Notícias, posts de blogs e artigos online/ Pesquisa Acadêmica/

Podcasts/ Vídeos, séries e documentários

Essas subcategorias são parâmetros iniciais e informais, ainda fluídos e passíveis de

alterações, que se formaram a partir do material encontrado e selecionado até então. A partir

dessas categorizações procuramos proporcionar um espaço de acesso facilitado e didático para

que a ferramenta possa ser utilizada de maneira abrangente, a eficiência das estratégias de

apresentação entretanto só poderá ser verificada a partir de testes com a comunidade.

Nesta compilação observamos algumas barreiras como a questão do idioma, pois

grande parte destes recursos não está em português. Outro aspecto que pudemos notar é

7 Zotero Groups: Gênero e Jogos. Disponível em:

<https://www.zotero.org/groups/gnero_e_jogos/items/collectionKey/FBUNV6MR>. Acesso em 9 de

junho de 2016.

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quantidade ainda tímida e dispersa de itens de origem brasileira ou latinoamericana, em

particular as que trabalham as questões de gênero e inclusão no ensino e desenvolvimento de

jogos, e almejam uma comunidade mais inclusiva.

Para a versão final planejamos que a plataforma de apresentação seja o Arcaz, um

repositório de recursos educacionais abertos que é iniciativa do Departamento Acadêmico de

Informática – DAINF e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade – PPGTE

da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR8.

CONCLUSÕES/CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma das possibilidades levantadas com este trabalho é de que por meio de práticas

e recursos pedagógicos que problematizem as questões de gênero sejamos capazes de

democratizar o espaço do desenvolvimento de jogos digitais, de maneira a viabilizar uma

indústria mais diversificada, com projetos e jogos com discursos mais inclusivos e

transformadores. Outra é de que, uma vez consolidadas uma educação e uma indústria abertas

a reflexão, ou mais abertas em um primeiro momento, desenvolvedoras/es ou jogadoras/es que

transitam esse meio também possam ter viabilizados e garantidos seus direitos de participação

e reconhecidas suas contribuições em igualdade de condições.

Procuramos também incentivar a análise crítica da dimensão cultural dos jogos digitais

e suas repercussões nas sociedades nas quais as tecnologias digitais se mostram mais difundidas

e acessíveis. Nas denominadas culturas digitais, os jogos são bastante disseminados. Suas

implicações, e desdobramentos devem ser considerados para que possam ser apropriados como

ferramentas auxiliares nos processos de democratização e utilizados também como alternativas

pedagógicas na educação.

Investigações na área podem ampliar o horizonte dos jogos digitais, quiça consolidando

seu estudo como área de conhecimento. Considerar as desigualdades sociais que permeiam

nosso cotidiano é o primeiro passo para exercer seu questionamento. Eduardo Aibar (1996)

aponta que o futuro da pesquisa em Ciência Tecnologia e Sociedade precisa considerar os

aspectos políticos das tecnologias e as relações de poder que as permeiam. Denunciar as

pedagogias de socialização de sujeitos seguindo normas - compulsórias de gênero ou

sexualidade, de segregação étnico-racial é uma das maneiras de considerar as relações entre

8 Arcaz: Recursos Educacionais Abertos. Disponível em: <http://arcaz.dainf.ct.utfpr.edu.br/rea/about>.

Acesso em 9 de junho de 2016.

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tecnologia e sociedade enquanto um campo direcionado e gerido por hierarquizações e

assimetrias que dificultam sua democratização.

Por fim, almejamos que possa ser realizada a implementação da coleção, a partir da

proposta iniciada na Zotero e posteriormente no Arcaz, nos espaços relacionados aos jogos,

assim como a disseminação e apropriação da mesma através da sua livre circulação pela rede

mundial de computadores, de maneira a proporcionar às pessoas uma ferramenta de

mobilização que possa viabilizar pontos de partida ou de reforço para o tensionamento da

conturbada relação entre gênero e jogos digitais, com ênfase numa abordagem múltipla, fluída

e em constante transformação que se enquadra no cenário contemporâneo dos jogos e em suas

apropriações.

REFERÊNCIAS

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AMIEL, Tel. Educação aberta: configurando ambientes, práticas e recursos educacionais.

Recursos Educacionais Abertos: Práticas colaborativas e políticas públicas. São

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Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica,

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12

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