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1 Quinze anos de desenvolvimento territorial rural – a experiência dos programas e planos do Estado da Bahia/Brasil Arilson Favareto Carolina Galvanese Suzana Kleeb Paulo Seifer Rafael Moralez Relatório de Pesquisa produzido para a iniciativa “Quince años de desarrollo territorial rural – como vamos?”, nos marcos do Projeto Cohesión Territorial Rimisp Centro Latinoamericano para o Desenvolvimento Rural São Paulo/Santiago do Chile – Dezembro/2015 Introdução Na virada do século a abordagem territorial do desenvolvimento rural emergiu abrindo um período de transição de paradigmas (Favareto, 2007). Mudanças econômicas e demográficas não permitiam mais que as dinâmicas dos espaços rurais fossem explicadas exclusivamente pelo que se passa no seu setor primário. Ao contrário, em muitas localidades a agricultura passa a ter cada vez menos importância relativamente a outros setores da economia, seja na formação das rendas, seja na ocupação de seus habitantes (Veiga, 1998; Abramovay, 2003). Novas formas de uso social dos recursos naturais, novos encadeamentos nos arranjos produtivos locais, novos fluxos demográficos e inéditas configurações envolvendo as relações entre campos e cidades (Wanderley, 2006; Veiga, 2003) são aspectos que tornaram insuficiente o paradigma agrário que marcou os estudos rurais no decorrer do século XX e estão na base do enfoque territorial que passa a ser cada vez mais utilizado por pesquisadores e gestores de políticas públicas, inicialmente na Europa e depois também na América Latina. No caso europeu o Programa Leader tornou-se referência com um desenho no qual a mobilização de forças sociais locais em torno de um projeto de diversificação e reestruturação de economias locais é o foco (Saraceno, 1997). Na América Latina o trabalho de Schejtman & Berdegué (2003) traduz para o contexto desta parte do globo os principais aspectos do novo enfoque, porém com as necessárias adaptações a uma realidade estruturalmente diferente daquela onde a nova abordagem teve origem. No Brasil os textos de Veiga (1998; 2002), Veiga et al. (2001) e Abramovay (2003) introduzem este debate e passam a inspirar uma nova geração de políticas públicas que viria a se consolidar no decorrer dos anos 2000.

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Quinze anos de desenvolvimento territorial rural – a experiência

dos programas e planos do Estado da Bahia/Brasil

Arilson Favareto Carolina Galvanese

Suzana Kleeb Paulo Seifer

Rafael Moralez Relatório de Pesquisa produzido para a iniciativa “Quince años de desarrollo territorial rural – como vamos?”, nos marcos do Projeto Cohesión Territorial

Rimisp Centro Latinoamericano para o Desenvolvimento Rural

São Paulo/Santiago do Chile – Dezembro/2015

Introdução Na virada do século a abordagem territorial do desenvolvimento rural emergiu abrindo um período de transição de paradigmas (Favareto, 2007). Mudanças econômicas e demográficas não permitiam mais que as dinâmicas dos espaços rurais fossem explicadas exclusivamente pelo que se passa no seu setor primário. Ao contrário, em muitas localidades a agricultura passa a ter cada vez menos importância relativamente a outros setores da economia, seja na formação das rendas, seja na ocupação de seus habitantes (Veiga, 1998; Abramovay, 2003). Novas formas de uso social dos recursos naturais, novos encadeamentos nos arranjos produtivos locais, novos fluxos demográficos e inéditas configurações envolvendo as relações entre campos e cidades (Wanderley, 2006; Veiga, 2003) são aspectos que tornaram insuficiente o paradigma agrário que marcou os estudos rurais no decorrer do século XX e estão na base do enfoque territorial que passa a ser cada vez mais utilizado por pesquisadores e gestores de políticas públicas, inicialmente na Europa e depois também na América Latina. No caso europeu o Programa Leader tornou-se referência com um desenho no qual a mobilização de forças sociais locais em torno de um projeto de diversificação e reestruturação de economias locais é o foco (Saraceno, 1997). Na América Latina o trabalho de Schejtman & Berdegué (2003) traduz para o contexto desta parte do globo os principais aspectos do novo enfoque, porém com as necessárias adaptações a uma realidade estruturalmente diferente daquela onde a nova abordagem teve origem. No Brasil os textos de Veiga (1998; 2002), Veiga et al. (2001) e Abramovay (2003) introduzem este debate e passam a inspirar uma nova geração de políticas públicas que viria a se consolidar no decorrer dos anos 2000.

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Desde então a abordagem territorial vem crescentemente inspirando o desenho de programas e iniciativas em um número cada vez maior de países. Após aproximadamente quinze anos é tempo de se perguntar quais são os resultados obtidos e quais são as principais dificuldades para que a instrumentalização desta nova visão alcance os objetivos esperados. As próximas páginas apresentam um estudo de caso realizado com o intuito de levantar evidências em diálogo com esta pergunta1. O caso escolhido é o Programa Territórios de Identidade e sua interface com o Plano Plurianual do Estado da Bahia, no Nordeste do Brasil. Em especial, pretende-se analisar aspectos da implementação destes programas e planos em um território selecionado: o Sertão do São Francisco. A escolha deste caso se deve a três razões. O Estado da Bahia tem sido pioneiro na introdução de inovações relacionadas ao enfoque territorial. Foi o primeiro no Brasil a adotar esta visão como base para o conjunto de suas políticas, incorporando elementos desta abordagem em marcos legais cruciais como o Plano Plurianual e a Lei Orçamentária. Além das inovações institucionais, trata-se do mais importante estado daquela região que concentra a pobreza rural no país. E, finalmente, a política de desenvolvimento territorial da Bahia é o corolário de uma trajetória que se iniciou doze anos atrás, com certo grau de consolidação, portanto. É uma experiência relativamente madura para ser analisada como representativa da tentativa de introdução do enfoque territorial. O argumento central a ser demonstrado é que os resultados deste período de implementação do enfoque territorial, mesmo ali onde ele foi mais longe, não são unívocos: os avanços são inegáveis, mas eles coexistem com toda uma ordem de bloqueios, caracterizando uma situação de transição de paradigmas – com a permanência de aspectos relacionados ao paradigma agrário que orientou a geração anterior de políticas de desenvolvimento rural, associados a um conjunto de inovações institucionais representativas de um paradigma emergente. As evidências recolhidas permitem afirmar que entre os avanços representativos da nova visão estão: a) a ampla disseminação de uma retórica territorial que muda as referências cognitivas sobre como pensar e promover o desenvolvimento rural, comparativamente à etapa anterior, com destaque para a importância da mobilização de atores e para uma ampliação da escala espacial das iniciativas; b) a criação de novas estruturas de governança que, se ainda não logram todos os resultados esperados, ao menos abrem possibilidades de um novo escopo de tratamento dos problemas, especialmente entendendo o desenvolvimento como um processo multidimensional e a decorrente necessidade de integração de políticas e esforços. 1 O estudo é parte da iniciativa Quinze anos de desenvolvimento territorial rural, promovido pelo Rimisp

nos marcos do Projeto Cohesión Territorial para el Desarrollo. As informações que dão base a este texto foram resultado de três visitas a campo. Uma ao Território do Sertão do São Francisco, na qual foram visitados cinco municípios e entrevistados atores representativos dos distintos segmentos da sociedade local – organizações de agricultores, outras organizações da sociedade civil local, prefeitos e vereadores, membros do Colegiado de Desenvolvimento Territorial. Duas a Salvador, quando foram realizadas reuniões ou entrevistas envolvendo lideranças de movimentos sociais rurais e gestores estaduais de políticas públicas. Entrevistas complementares foram feitas à distância. Além disso, o estudo se apoiou em dados e informações secundárias disponíveis.

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Quanto aos bloqueios que se colocam à plena implementação do novo enfoque, cabe destacar: a) a persistência da fragmentação e do imediatismo, em oposição à esperada orientação estratégica e integrada de investimentos em torno de um projeto de futuro, capaz de levar à reestruturação produtiva dos territórios; e b) a persistência de um viés setorial no que diz respeito aos atores mobilizados, em oposição à esperada diversificação de interesses e forças sociais representativos da dinâmica do território, e não somente de seu setor primário. Além das evidências em torno das afirmações acima, pretende-se demonstrar que as restrições verificadas não se devem a fatores estruturais dos territórios, que tornariam a adoção da nova abordagem uma impossibilidade no contexto latino-americano, como a incipiência dos mercados ou de sua infraestrutura e sim, predominantemente, a aspectos relacionados às instituições e aos atores envolvidos no desenho e implementação da iniciativa analisada. Para detalhar este argumento as próximas páginas estão organizadas em três seções, seguidas de breve conclusão. Na seção 1 é apresentada a emergência e as principais etapas percorridas pela política de desenvolvimento territorial da Bahia. Ela nasce como desdobramento da política que vinha sendo gestada pelo governo federal, num primeiro momento. E em seguida adquire nuances próprias, até culminar na sua articulação com as ações de planejamento do governo estadual. A seção 2 analisa a concretização desta trajetória tendo por objeto o Território Sertão do São Francisco, o que permitirá visualizar com maior clareza atores envolvidos, natureza dos investimentos e o enraizamento destes processos na estrutura econômica e social da região. A seção 3 tem caráter de balanço geral do tema. Aqui se mostram resultados obtidos, tanto em termos de introdução do novo conceito subjacente ao enfoque territorial como no que diz respeito aos efeitos concretos da política, em termos institucionais, produtivos e ambientais. Ao final, algumas notas a título de conclusão retomam a ideia central à luz das evidências apresentadas nas três seções anteriores. 1. Da emergência do enfoque territorial no Brasil à Política de

Desenvolvimento Territorial do Estado da Bahia

O Programa Territórios de Identidade (PTI-BA) concretiza a estratégia de desenvolvimento rural com enfoque territorial no Estado da Bahia. Sua existência foi oficializada através do Decreto 12.354 do Governo da Bahia, em 25/08/2010, e encontra-se em execução no momento de elaboração deste texto. Em Dezembro de 2014 a Assembléia Legislativa da Bahia aprovou o Projeto de Lei 20.974/2014, dando ao programa caráter permanente, como Política de Desenvolvimento Territorial do Estado da Bahia. Seus antecedentes, no entanto, remontam a 2003, quando as ações locais começam a ser desenhadas e articuladas nos desdobramentos da política de desenvolvimento territorial do governo federal brasileiro. As ações de desenvolvimento territorial no Brasil começaram um pouco antes, entre 2001 e 2002, últimos anos do Governo Fernando Henrique Cardoso. Naquele momento, os primeiros estudos de avaliação do Pronaf - o Programa Nacional de

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Fortalecimento da Agricultura Familiar, apontavam a fragilidade da tentativa de complementar os investimentos em crédito para agricultores com outros capazes de modificar seu entorno socioeconômico garantindo melhores condições de inserção em mercados. Simultaneamente, os trabalhos de Veiga (1998; 1999) e Abramovay (2000), já mencionados, começavam a disseminar, no debate público e acadêmico brasileiro, a literatura europeia sobre desenvolvimento territorial. Entre 2000 e 2001 o Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento, órgão de assessoria do Ministério do Desenvolvimento Agrário, encomenda a Veiga estudo que lançou as bases e a justificativa para a adoção do novo enfoque nas políticas de desenvolvimento rural no Brasil (Veiga et al., 2001). Neste estudo Veiga apontava que uma política de desenvolvimento rural coerente com os requisitos das novas dinâmicas verificadas nestes espaços teria que mobilizar recursos para além do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Tentava-se, com isso, fazer com que uma política inspirada pelo enfoque territorial nascesse já de uma articulação interministerial, o que, todavia, não ocorreu naquele momento. Pouco depois, ainda em 2001, o autor do estudo assume a direção do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, órgão encarregado de formular diretrizes para esta área de governo, levando então para dentro da esfera do poder público o debate em torno do enfoque territorial. Naquele momento, a secretaria responsável pelas políticas para a agricultura familiar no âmbito do MDA era chefiada por quadros que mantinham estreita relação com o mundo acadêmico2. Esta secretaria cria então um programa piloto que serviria como embrião de enfoque territorial: uma das linhas do Pronaf dedicada a investimentos em infraestrutura agora se destinaria a apoiar projetos de caráter intermunicipal. A experimentação do enfoque territorial surge, assim, com uma tripla característica: a) nasce sob forte influência do ambiente acadêmico, mas b) é criada como apêndice de um programa para a agricultura familiar e, assim, com um viés setorial, c) por decorrência, a principal inovação passa a ser a escala da iniciativa, agora de âmbito intermunicipal, já que todos os outros componentes (a existência de um conselho responsável pela condução da política em âmbito local ou a elaboração de planos de desenvolvimento para orientar os investimentos) já existiam no âmbito do Pronaf. Com o início do Governo Lula, em 2003, duas mudanças importantes acontecem: as ações de desenvolvimento territorial são autonomizadas, separando-se do Pronaf Infraestrutura e passando a compor um fundo específico, que se chamaria posteriormente de Proinf (Apoio a Infraestrutura e Serviços nos Territórios Rurais); e, além disso, para sua gestão, cria-se uma articulação que viria a ser batizada mais tarde como Pronat – Programa Nacional de Desenvolvimento

2 A secretaria era chefiada por quadro técnico egresso de um dos principais centros de elaboração de

estudos rurais aplicados no Brasil à época, o Deser. Este centro, apesar de ligado ao sindicalismo rural, tinha permanente interlocução com pesquisadores como J.E.Veiga e R. Abramovay. Entre os principais quadros da secretaria estava também um jovem economista, filho de um professor da Universidade Federal da Bahia e que havia trabalhado com José Graziano da Silva, hoje dirigente máximo da FAO, na Universidade de Campinas. Este economista desempenhou papel destacado, anos mais tarde, na estruturação da política de desenvolvimento rural com enfoque territorial na Bahia.

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Sustentável dos Territórios Rurais, sob coordenação de uma Secretaria de Desenvolvimento Territorial, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT/MDA). Esta nova secretaria passa a ser comandada por quadro técnico egresso de organização de assessoria ligada à Contag – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, principal organismo de representação da agricultura familiar no Brasil3. Nos marcos da coalizão de apoio ao novo governo federal, a influência dos movimentos sociais aumenta significativamente e a política de desenvolvimento territorial que começava a ser desenhada, agora não mais como uma experiência pontual, mas como um programa de âmbito nacional, vai sendo crescentemente vinculada aos interesses deste segmento. Os primeiros documentos de orientação da política territorial (SDT/MDA, 2003) mostram uma tentativa de buscar legitimação no debate acadêmico, com definições conceituais relativamente coerentes e referenciadas nos textos mais influentes do período anterior. Território, por exemplo, é definido como “um espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, compreendendo cidades e campos, caracterizado por critérios multidimensionais, tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições, e uma população com grupos sociais relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial” (SDT/MDA, 2003: 36). Territórios rurais são definidos como aqueles onde os elementos que “facilitam a coesão apresentam características rurais” (SDT/MDA, 2003: 37). Mas logo em seguida, no mesmo texto se afirma que a prioridade na operacionalização da política seria dada aos territórios com maior peso da população que constitui o público alvo daquele Ministério: isto é, agricultores familiares e populações tradicionais. Pouco mais adiante, se adverte que todos estes critérios estão subordinados às negociações políticas com os estados e organizações da sociedade civil local. A partir desta definição conceitual e desta orientação política houve a seleção inicial dos territórios a serem apoiados pela política de desenvolvimento territorial. Apesar de toda justificativa conceitual, a seleção obedeceu, sobretudo, a critérios de afinidade política com as organizações da agricultura familiar, com forte predominância dos Estados do Nordeste. Não houve um trabalho prévio de levantamento de potencialidades territoriais ou a identificação e seleção de projetos locais, como preconizava a literatura. Em boa parte dos casos a constituição de fóruns territoriais (posteriormente chamados de Colegiados de Desenvolvimento Territorial – Codeter´s) e de Planos de Desenvolvimento Territorial Sustentável (PTDRS) fez-se no espaço de poucos meses, de forma a cumprir a exigência para o recebimento de um montante de recursos previamente definido e padronizado para todos os territórios apoiados, independente de

3 Este quadro técnico ligado à Contag por vários anos chefiou uma importante organização de

assessoria. Entre seus principais colaboradores figuraram pessoas com menor vinculação com o mundo acadêmico. Papel de destaque foi desempenhado por técnicos com passado ligado a movimentos comunitários, à educação popular e a organizações de base, o que explica o forte acento participacionista adotado na política a partir de então.

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diagnóstico, qualidade de projetos ou maturação da articulação social. Via de regra os Planos eram formados por um compêndio de reivindicações das organizações locais de representação de agricultores, desprovidos de diagnóstico consistente ou da pactuação de ações estratégicas capazes de reorganizar a estrutura produtiva dos territórios (Dias&Favareto, 2007). Criaram-se aqui problemas de origem na política de desenvolvimento territorial: a) os territórios foram constituídos não como expressão de projetos de intervenção na realidade, mas como unidade de aplicação e recursos; b) os planos de desenvolvimento, nesse contexto, tornaram-se peças formais e não conseguiram se impor como orientadores de negociações acerca do futuro dos territórios; c) os espaços de participação e gestão da política foram capturados por um segmento e, por decorrência, não se impuseram como espaços de mobilização das forças vivas dos territórios. Apesar dos problemas verificados, a atuação da SDT/MDA foi responsável por uma rápida e impressionante disseminação da retórica territorial. Num espaço de pouco mais de meia década conceitos e ideias relacionadas a este enfoque territorial passaram a frequentar o vocabulário de gestores públicos e movimentos sociais e a dar origem a programas, projetos e iniciativas fora do âmbito do governo federal. Um dos estados que mais inovaram nesta tentativa de incorporar o novo enfoque foi a Bahia, que inicialmente teve seis territórios selecionados para apoio pelo MDA. A partir de 2007 o governo estadual também passa a ser comandado pelo Partido dos Trabalhadores, com a eleição de Jaques Wagner e inicia-se, com sua gestão, uma tentativa ambiciosa de retomar o papel do planejamento governamental. A Secretaria de Planejamento do Estado foi fortalecida e passa a ser comandada por nomes de alta relevância, porém também com alta rotatividade, num indicativo das tensões que esta tentativa gerava4. Duas iniciativas marcam o período. Primeiro, a adoção de uma metodologia inovadora para a elaboração do Plano Plurianual (PPA), peça importante no planejamento orçamentário dos governos. A participação e a estruturação do PPA se daria, segundo a nova orientação, obedecendo ao recorte dos territórios que estavam sendo definidos no âmbito da política de desenvolvimento rural. Simultaneamente, as ações da iniciativa nacional de desenvolvimento territorial foram sendo adotadas até que, em 2010, a Bahia criou seu próprio programa territorial. Em cada um dos 27 territórios, reunindo os 417 municípios do estado, estimulou-se a criação de um Colegiado de Desenvolvimento Territorial, com participação paritária de agricultores (50%) e outros agentes (50%). No âmbito estadual criou-se um Conselho Estadual de Desenvolvimento Territorial, também

4 Entre outros, ocupam a Secretaria de Planejamento Ronald Lobato, economista renomado. Depois

dele assume Walter Pinheiro, Senador da República e influente quadro político estadual. O posto foi ocupado também por Zezéu Ribeiro, deputado e prestigiado intelectual no campo do planejamento territorial. E, ainda, por José Sergio Gabrielli, ex-presidente da Petrobras. Em oito anos, no entanto, a chefia da secretaria mudou seis vezes, pois todas as tentativas de centralização e condução de uma política de planejamento que rompesse com a fragmentação enfrentava fortíssima resistência nas secretarias de governo.

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com representação da sociedade civil, mas envolvendo um importante conjunto de secretarias de governo, tentando dar ao programa um caráter intersetorial. A definição e as regras estabelecidas reproduzem os documentos já existentes no plano federal. O objetivo do Programa Territórios de Identidade na Bahia fica assim estabelecido: “identificar prioridades temáticas definidas a partir da realidade local, possibilitando o desenvolvimento equilibrado e sustentável entre as regiões, o Governo da Bahia”. A inovação mais importante se dá na articulação deste programa com a outra iniciativa estadual: o Plano Plurianual (PPA). Com a constituição dos territórios, o Comitê de Acompanhamento do PPA determinou a realização de consultas locais, com conferências organizadas pelos 27 fóruns territoriais, onde seriam indicadas prioridades para o investimento e o gasto público no período 2011/2015. Como quase todos os Territórios de Identidade haviam elaborado Planos de Desenvolvimento, esperava-se que as estratégias neles esboçadas servissem à definição das prioridades do governo estadual. Neste processo, coube à Secretaria de Planejamento da Bahia formular diagnóstico identificando drivers, macrotendências e apontando vocações para a inserção dos territórios nos cenários futuros, dando origem ao Plano Bahia 2023. O Plano foi submetido à apreciação dos territórios que, confrontando esta leitura com suas proposições já organizadas nos Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural Sustentável, indicaram ações a serem contempladas pelo PPA 2012/2015. Posteriormente, a Secretaria de Planejamento organizou estas prioridades, apontando aquelas que poderiam ser absorvidas no PPA e classificando-as nos três eixos estabelecidos: Inclusão social e afirmação de direitos; Desenvolvimento sustentável e infraestrutura para o desenvolvimento; Gestão democrática do Estado. Estas prioridades e ações para 2012/2015 são desdobradas anualmente sob a forma da Lei Orçamentária Anual, aprovada pelo parlamento estadual. Há consenso entre analistas e estudiosos do desenvolvimento rural em afirmar que a experiência da Bahia é a que mais avançou na adoção do enfoque territorial no Brasil, por dois fatores: a) abranger a totalidade do estado, e não apenas alguns territórios selecionados; e b) pela inovação institucional introduzida com a articulação com o PPA. Ainda assim, um conjunto de perguntas permanece em aberto e merece investigação: a) As prioridades apontadas pelos territórios para o PPA resultam de visão estratégica sobre o futuro do território ou obedeceram a interesses imediatos dos atores locais?; b) Os atores que participaram das consultas são os mais representativos das forças sociais presentes no território, ou há interesses e agentes que ficaram de fora desta concertação?; c) Na classificação e seleção das propostas dos territórios a burocracia governamental é sensível ao projeto local, ou a seleção é feita a partir da preocupação com a eficiência do gasto sob a ótica do gestor estadual? Na base destas perguntas estão questionamentos mais amplos sobre os quinze anos de enfoque territorial no Brasil e na América Latina e que dizem respeito à capacidade dos territórios em mobilizar forças vivas nele presentes e em formular projetos estratégicos com visões de futuro consistentes.

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As duas próximas seções buscam responder estas perguntas a partir de uma analise focalizada em um território específico: o Sertão do São Francisco. 2. A implementação da Política de Desenvolvimento Territorial da Bahia no

Território Sertão do São Francisco

Para este estudo pretende-se avaliar a execução da política de desenvolvimento territorial da Bahia em um de seus territórios: o Sertão do São Francisco, com área de 61.7 mil km² e formado por 10 municípiosA população total do território é de 494 mil habitantes. 36% vivem nas áreas definidas oficialmente como rurais (fora dos núcleos urbanos). O município principal é Juazeiro, com 216 mil habitantes. O segundo maior, Casa Nova, tem 64 mil habitantes. Todos os demais têm menos de 40 mil habitantes. A densidade populacional é 8 habitantes/km2, com grande dispersão por vilas e distritos menores. Trata-se de um território típico do Nordeste, de clima Semiárido, com fortes restrições ambientais e claras características rurais, apesar da presença de uma importante cidade média (Juazeiro). Desde o final do século XX a região foi objeto de fortes investimentos governamentais em infraestrutura - como a Barragem de Sobradinho. O Vale do Rio São Francisco, mais amplamente, é objeto de repetidas tentativas de planejamento, com longo histórico de planos e projetos e significativa organização da sociedade civil. Como decorrência, a região abriga um dos principais “polos dinâmicos” da economia nordestina, impulsionado durante o governo militar, com expressiva produção e exportação – o polo de fruticultura irrigada de Petrolina/Juazeiro. Há ali destacada produção industrial (agroindústria de sucos, vinho e processamento de frutas). Em parte devido à expansão das políticas sociais, há também importante participação do setor de comércio e serviços (60% do PIB). Apesar dos investimentos governamentais e privados, os efeitos positivos não se irradiaram para o conjunto do território. Ao contrário, podem ser considerados enclaves de modernização num território marcado pela precariedade: o PIB per capita em Juazeiro é US$ 4 mil, e um quarto disso, em torno de US$ 1 mil, nos municípios menores como Canudos. Os municípios situam-se predominantemente no penúltimo quintil do IDH (8 municípios, com baixo IDH). Nenhum município, nem mesmo Sobradinho ou Juazeiro, que receberam fortes investimentos, estão nas faixas de alto IDH. 20% da população vivia na extrema pobreza em 2010. Para efeito de comparação, no estado da Bahia este percentual é 15%, e no Brasil inferior a 5%. O marco operacional da implementação da abordagem de desenvolvimento territorial rural na Bahia data do ano de 2003, quando a SDT/MDA deu início a sua política de desenvolvimento territorial, que envolveu e continua envolvendo, além de outros organismos do próprio MDA, os governos estaduais, os Conselhos Estaduais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CEDRS) e organizações da sociedade civil com atuação nos espaços rurais. Tal programa contempla ações centradas no apoio a uma articulação territorial, impulsionada por uma fase inicial

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de mobilização, organização e capacitação dos agentes locais, e uma fase seguinte baseada na tentativa de acessar e integrar políticas públicas. Entre julho de 2003 e abril de 2004, a SDT realizou na Bahia três eventos intitulados “Oficina Estadual de Construção da Estratégia para o Desenvolvimento Territorial”. O objetivo da primeira oficina consistiu em desencadear um processo de divisão territorial da Bahia. Em 2004 se cria formalmente um Fórum de Desenvolvimento Territorial no Sertão do São Francisco. Naquele momento o Governo da Bahia, em articulação com o MDA e por meio da sua Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais, produziu um estudo que propôs uma divisão territorial de todo o Estado da Bahia em 23 territórios potenciais, levando em conta informações estatísticas, elementos de identidade cultural, a existência de projetos e outras formas de articulação de atores sociais (SEI, 2004). Este processo foi algo inédito e constituía um conjunto de esforços simultâneos que aconteciam naquele momento. Paralelamente a este trabalho, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) firmou três Projetos de Cooperação Técnica com o Governo Federal, visando apoiar a implementação do Programa Fome Zero.. Da mesma forma, outras instituições, governamentais e não-governamentais, vinham trabalhando com metodologias semelhantes para o desenvolvimento territorial. Essas metodologias foram discutidas no âmbito da Coordenação Estadual dos Territórios da Bahia com o objetivo de se montar uma metodologia de referência que deveria ser usada pelos outros parceiros dos territórios. Isto porque, além dos territórios que vinham sendo apoiados pela SDT, a ideia era que outros pudessem se constituir mobilizando o apoio de outros parceiros e instituições. Esse foi o caso do projeto FAO/MDA que buscou implementar metodologia de referência no Sertão do São Francisco a partir de 2004. A política de desenvolvimento territorial na Bahia começava, assim, de maneira mais vigorosa e com elementos mais inovadores do que no restante do Brasil. Há ao menos duas explicações possíveis para este caráter diferenciado que a política de desenvolvimento territorial assume na Bahia, comparativamente a outros estados brasileiros. Uma delas tem a ver com a tradição do governo local em atuar no planejamento. Desde o meio do século XX existem estruturas criadas para planejar o desenvolvimento agrícola. O governo conta com um órgão de produção de estudos e estatísticas de importância reconhecida. E várias agências públicas, com destaque para a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco possuem largo histórico de projetos e iniciativas de planejamento e projetos. Por ter sediado a primeira capital do país, em Salvador, as elites locais têm alguma tradição na formação de quadros e na criação de instituições públicas de relevo. A segunda explicação tem a ver com personagens específicos. Um deles havia sido um dos principais quadros técnicos do MDA à época das primeiras tratativas para formular uma política de desenvolvimento territorial. Após o início do governo Lula este ex-diretor da Secretaria da Agricultura Familiar volta para a Bahia, seu estado de origem, e mobiliza uma rede de contatos que envolve a Secretaria de Desenvolvimento Territorial, o Governo do Estado da Bahia, em especial a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais e a FAO. Este jovem economista que, no governo Cardoso, havia tido proximidade com um dos primeiros formuladores do enfoque territorial no Brasil, José Eli da Veiga, havia trabalhado

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também em seus estudos de pós-graduação com José Graziano da Silva, que agora chefiava um dos principais programas do governo federal, o Programa Fome Zero. Esta rede de relações sociais contribuiu para a mobilização de capacidades técnicas na estruturação da política de desenvolvimento territorial baiana. Além de ser um ponto de convergência destas distintas organizações, este personagem atuou na elaboração do estudo que levou à territorialização do Estado da Bahia e era consultor do projeto piloto que dava suporte à organização do território Sertão do São Francisco quando morreu tragicamente no ano de 2007. O segundo personagem fez o movimento inverso: após atuar junto às principais organizações comunitárias de agricultores no estado da Bahia e por aí, constituir-se como referência de confiança do movimento sindical da agricultura familiar, com o início do governo Lula muda-se para Brasília e passa a ser um dos principais assessores do Secretário de Desenvolvimento Territorial. Entre suas habilidades principais estava a grande capacidade de diálogo, mobilização e negociação política. Num certo sentido isto completava os recursos necessários à inovação e à ampliação da escala da política da iniciativa. Na sua primeira composição, o Fórum de Desenvolvimento Territorial do Sertão do São Francisco era composto por 29 organizações locais, 20 delas organizações da sociedade civil, todas ligadas à agricultura ou ao trabalho com populações rurais, e as outras 9 eram organizações públicas, também predominantemente ligadas à agricultura, mais a associação de prefeitos local. Dentro deste Fórum criou-se um Núcleo Dirigente formado por duas organizações – a Articulação Sindical do Lago de Sobradinho (ASS) e o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada, organização não-governamental voltada à produção e disseminação de tecnologias de produção em pequena escala compatíveis com as condições ecológicas do Semiárido. Por esta composição, vê-se claramente a predominância de organizações de agricultores e a relativamente baixa diversidade intersetorial presente na mobilização em torno da constituição do território. Este viés setorial e seus desdobramentos para o planejamento do desenvolvimento territorial podem ser percebidos também no primeiro esboço de plano de desenvolvimento territorial (SDT/MDA, 2008) ou na versão revisada deste plano (SDT/MDA, 2011), cujos elementos centrais são reproduzidos a seguir. Dois terços do documento intitulado Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável são dedicados a uma descrição da realidade local. Ao final a Visão de Futuro que emerge desta longa exposição é assim formulada: “Em 2031 o território da Cidadania do Sertão do São Francisco consolidado, sendo referência da política territorial e a população consciente da força que ela possui e integrada ao mesmo, com desenvolvimento sustentável e solidário, em que as pessoas têm acesso a saúde, moradia digna, esporte, cultural, lazer e educação de qualidade, que respeita as especificidades de cada povo, garantindo a melhoria das condições de vida, com vistas à obtenção de uma sociedade justa e igualitária” (SDT/MDA, 2011). Esta Visão de Futuro, relativamente vaga, orienta a formulação de sete Objetivos Estratégicos: 1. Integrar campo, cidade e municípios no Território do São Francisco; 2. Promover ações que efetivem as políticas públicas, tendo em vista a

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melhoria da qualidade de vida da população; 3. Articular e mobilizar parcerias, que disponibilizem aos agricultores/as familiares, comunidades tradicionais nas áreas rurais e urbanas, tecnologias de convivência com o Semi-árido de forma sustentável para o desenvolvimento do território; 4. Articular, discutir e propor programas, projetos e propostas estruturadoras, envolvendo tecnologias sociais para o território; 5. Difundir tecnologias estruturadoras que abrangem a Zona Rural e Urbana; 6. Estimular a participação de instituições governamentais e não governamentais, para a construção e implementação coletiva das políticas públicas integradas; 7. Estimular o fortalecimento das organizações sociais. Este conjunto de Objetivos se desdobra em 5 Eixos Estratégicos. E, finalmente, a cada um dos Eixos são listados vários Programas e mais de 100 Projetos. Neles, a ênfase recai totalmente sobre projetos agropecuários ou de investimentos sociais. Não parece exagero avaliar que o Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável, que deveria ser a peça que materializa a visão de território e sua estratégia de desenvolvimento, revela-se assim algo demasiadamente vago e pulverizado. Diante da dificuldade em ter no PTDRS a referência a partir do qual os agentes públicos e privados orientam seus esforços e investimentos, é preciso ver no processo mesmo de negociação quais as reais prioridades negociadas e geridas no âmbito do território. Os investimentos realizados no território ao longo dos últimos dez anos, desde que se iniciou a articulação local, se deram por três vias. A primeira é formada pelos recursos do Proinf – programa de investimento em infraestruturas rurais, sob coordenação da SDT/MDA e que apoia com US$ 150 mil projetos indicados pelos territórios. Em geral são recursos investidos em pequenas obras viárias, hídricas ou construções civis para armazenamento, beneficiamento ou comercialização de produtos agropecuários. Os projetos são propostos por organizações do território e selecionadas no âmbito do fórum territorial Estes projetos devem estar coerentes com o PTDRS, num típico processo de planejamento ascendente. A segunda via de financiamento são os recursos de demais secretarias e ministérios do governo federal brasileiro. A partir de 2008 até 2013 houve uma tentativa de ampliação da política de desenvolvimento territorial, da esfera exclusiva do Ministério do Desenvolvimento Agrário para um conjunto mais amplo de 18 ministérios, ação que foi batizada como Programa Territórios da Cidadania, posto inicialmente sob coordenação do Ministério da Casa Civil. Avaliava-se que isto poderia significar um enorme salto qualitativo, pois havia finalmente a chance de se mobilizar um conjunto de recursos e competências para além do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Mas aqui, entretanto, a lógica ascendente foi pervertida. A coordenação no âmbito federal foi praticamente inexistente e não houve integração de políticas. Diferente disso, cada ministério era instado a submeter aos territórios uma lista dos seus programas disponíveis, e caberia aos agentes locais meramente indicar prioridades. A alta expectativa criada com o início do programa foi duplamente frustrada. Os ministérios viam no seu envolvimento um custo de transação adicional, ao ter que submeter seus programas à indicação de prioridades por uma centena de territórios. E os agentes

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locais viam-se frustrados em não poder propor ações, e sim escolher prioridades em um cardápio já estabelecido de investimentos governamentais. As informações disponíveis (PTC, 2015) mostram a implementação de 29 projetos de caráter social e de apoio à produção agropecuária no Sertão do São Francisco em 2013. A partir de 2014 o programa deixa de funcionar, embora não tenha sido formalmente extinto. A terceira via de investimentos, finalmente, envolve os recursos do governo do Estado da Bahia, planejados no âmbito do Plano Plurianual. Esta foi uma inovação importante, pois o PPA é peça fundamental e organizadora do conjunto do orçamento governamental. Por esta razão, vale a pena descrever sua implementação em maiores detalhes. Desde 2007 o governo da Bahia vem tentando retomar o papel do planejamento na organização e gestão de políticas públicas. Àquele momento, a partir do impulso dado pela estruturação da política de desenvolvimento territorial do governo federal, vários fóruns estavam sendo criados no estado da Bahia. A Secretaria de Planejamento viu nisso uma oportunidade de enraizar localmente o processo de planejamento estratégico governamental e, mais ainda, de aproveitar a energia mobilizada com os processos participativos desencadeados com a política territorial. No ano de 2007, na preparação do PPA 2008/2011, o governo estadual se apoia na divisão territorial do estado e divulga amplamente a realização de plenárias onde a população local poderia participar da deliberação de investimentos em suas regiões. No Território Sertão do São Francisco centenas de pessoas participaram da plenária e indicaram as prioridades nas várias áreas de governo. Estas indicações eram, posteriormente, processadas pela equipe estadual da Secretaria de Planejamento por meio do Comitê de Acompanhamento do PPA (Cappa). Uma devolução com a sistematização e a eventual seleção de prioridades era submetida novamente ao território. Na rodada de elaboração do PPA 2012/2015 foram introduzidas modificações. Em vez de plenárias convocadas massivamente, estas passaram a ser organizadas pelos fóruns territoriais. No Sertão do São Francisco foram realizadas três plenárias envolvendo grupos de municípios e uma grande plenária regional com participação de aproximadamente 200 pessoas. Embora seja aberta a qualquer cidadão, a participação nestas plenárias, com a nova metodologia, passou a ter a presença preponderante de pessoas vinculadas às organizações que já compõem o fórum, e menos presença de cidadãos comuns. Na atual rodada de negociações para a elaboração do PPA 2016/2018, novas mudanças estão sendo introduzidas. É o caso da tentativa de combinar a lógica territorial com uma lógica setorial, aproveitando as formulações das conferências setoriais que se realizam periodicamente (de Saúde, de Educação etc). Além disso, o processo atual de definição parte das indicações feitas pela população e pelas organizações locais nas rodadas anteriores; isto é, prioriza-se o atendimento de demandas não resolvidas, em vez do levantamento de novas prioridades.

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Em todo este processo, há a expectativa de que os atores locais, tendo passado pela elaboração de um plano de desenvolvimento territorial, poderiam ser os portadores de uma visão estratégica, dando assim orientação e direção aos investimentos governamentais compartimentados nas suas distintas secretarias e áreas de execução. Porém, como se viu, o Plano de desenvolvimento do território é bastante frágil, avaliação que é partilhada por muitas organizações locais e, consequentemente, seu caráter genérico e a pulverização de diretrizes nele existente deixa um espaço muito grande para que as definições de investimentos se deem predominantemente ao sabor do imediatismo, da fragmentação e da capacidade de influência das forças sociais mais presentes nos fóruns de deliberação. Em uma palavra, a expectativa de que as políticas seriam “integradas no território”, e não em todo o seu ciclo de elaboração, não se cumpre. Na avaliação dos movimentos sociais e organizações de agricultores a política de desenvolvimento territorial vem dando certo porque criou espaços estáveis de discussão e negociação de políticas públicas. O novo desenho adotado é considerado um avanço em relação ao período anterior no qual, apesar da existência de conselhos municipais de desenvolvimento rural, estes eram controlados pelos prefeitos, que indicavam a maioria dos membros. Com as novas regras, aumentou o protagonismo das organizações sociais e, por aí, houve também maior acesso a informação e maior acesso a recursos. Algumas organizações de caráter estadual começam inclusive a discutir sua organização interna buscando adotar a mesma regionalização da política de desenvolvimento territorial. A avaliação dos membros do poder público local é um pouco diferente. Prefeitos e vereadores, em sua maioria, são reticentes e não mencionam com destaque as iniciativas de territorialização das políticas na Bahia e raramente se referem ao território como uma unidade de planejamento ou de articulação. Por trás desse posicionamento está a perda de espaço dos poderes públicos municipais com a nova lógica de planejamento participativo em escala territorial. Mas há exceções. Um dos efeitos, diretos ou não, da lógica de territorialização das políticas tem sido a forte expansão da criação de Consórcios de prefeituras municiais. No Sertão do São Francisco constituiu-se uma dessas articulações, vistas por muitos como uma alternativa para superar os problemas de ausência de capacidades nas pequenas prefeituras. Com efeito, o presidente do consórcio apresenta uma narrativa na qual os problemas são tratados em escala regional e entende-se que os municípios apresentam problemas semelhantes que exigem tratamento comum. Além disso, o território apresentaria uma maior representatividade perante o governo do estado, com maior poder de mobilização. E, finalmente, as políticas territorializadas são vistas também como a possibilidade de se alcançar maior equilíbrio entre municípios maiores, que antes concentravam os investimentos, e aqueles menores, através da unidade e de uma nova visão de diálogo e cooperação. Embora prevaleça certo ceticismo, já que a tendência das prefeituras é sempre buscar os interesses próprios de sua jurisdição, em geral há concordância de que o processo desencadeado com a territorialização das políticas ajuda a criar um sentimento regional.

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Já a visão dos quadros técnicos, tanto locais como no plano estadual, é um meio termo entre a visão cética do poder público municipal e o maior entusiasmo das organizações sociais. De um lado apontam os avanços em termos de democratização e transparência tornados possíveis com a ampliação da participação social. Realçam também que a passagem para a escala territorial desencadeia um processo de aprendizagem longo, que estaria apenas no seu começo. Um importante gestor público destaca como a gestão do PPA vem se aperfeiçoando: em 2007 o plano era composto por 150 programas, enquanto na versão de 2011 este número diminuiu para 50. A criação dos consórcios e das mesas para gestão dos programas intersecretarias aumentou a capacidade de coordenação. Houve um esforço para quebrar a fragmentação excessiva por secretarias em direção a projetos articulando diferentes áreas. A organização do Sicof – sistema que unifica planejamento e orçamento – também facilitou a identificação da destinação de recursos por territórios, diminuindo a discricionariedade dos gestores estaduais. Trata-se, portanto de um processo gradual de acumulação de capacidades e de inovações institucionais coerentes com a busca por maior efetividade na coordenação de objetivos, investimentos e instrumentos de gestão como o orçamento governamental. Mas o mesmo gestor destaca que a resistência das secretarias estaduais sempre foi muito grande e que a lógica imediatista e fragmentada ainda persiste. A Secretaria de Planejamento apenas se compromete com um número pequeno de prioridades definidas nos territórios e as principais políticas estratégicas de governo não passam pelo crivo dos fóruns locais – por exemplo, no Sertão do São Francisco o forte investimento em energia eólica é mencionado como um caso polêmico, com fortes efeitos sobre a paisagem e a economia, e que é implantado verticalmente, desconsiderando a articulação territorial. Em síntese, boa parte dos atores, independente de sua esfera de atuação, posição política e origem institucional, parece concordar com a a ideia de que a política de desenvolvimento territorial trouxe maior participação e transparência, vem gerando um processo de inovação incremental e formação de capacidades, mas ainda está relativamente distante da formulação de projetos territoriais. Os avanços constatados na criação de espaços e na constituição de uma narrativa na qual a região é a escala de organização dos problemas e investimentos, junto com a inovação nos métodos de consulta e controle e com a criação de novas formas de governança e coordenação, são aspectos que deixam a sensação de uma curva de aprendizado em estágio inicial. 3. Êxitos e dificuldades na experiência da Bahia em adotar a abordagem

territorial do desenvolvimento

À luz das evidencias expostas nas duas seções anteriores, a seguir se faz um balanço crítico da política de desenvolvimento territorial da Bahia, organizada em torno de algumas perguntas chave sobre o conceito de território, sobre o processo de desenho da política, sobre seus resultados. O conceito de território, as inspirações da política e sua operacionalização

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A trajetória da política de desenvolvimento territorial da Bahia, aqui descrita, mostra um deslizamento cognitivo. Desde os momentos iniciais de sua formulação até a operacionalização ela se estabelece como um floating signifier (Laclau&Mouffe, 1986), cujo conteúdo vai se modificando com o passar do tempo e em acordo com as características das comunidades epistêmicas que se formam em cada etapa, decorrência dos atores mobilizados e do lugar institucional destas iniciativas. Como uma extensão no plano estadual de uma política gestada no âmbito nacional, a iniciativa de desenvolvimento territorial reproduziu uma concepção e um desenho que, inicialmente, tinha mais aderência com o debate acadêmico e que, gradativamente, vai se distanciando deste campo original de formulação. Em seu lugar, vai tomando forma uma narrativa na qual o empoderamento das organizações de agricultores para acessar políticas passa a ocupar lugar central. Se num primeiro momento (virada dos anos 90 para os anos 2000), a proposição de uma política de desenvolvimento territorial se aproximava muito à justificativa e ao desenho da iniciativa europeia - com ênfase na diversificação das economias locais a partir de uma visão de futuro pactuada entre atores e materializada em planos estratégicos -, nos anos do governo Lula, mantida a retórica territorial, a ênfase operacional se desloca para o fortalecimento do público alvo do Ministério do Desenvolvimento Agrário e, com isso, para um fortalecimento da lógica setorial agora em escala regional e não mais municipal. No que diz respeito à comunidade epistêmica mobilizada (Haas, 1992), ela muda em cada etapa da trajetória e, com ela, muda a narrativa e a rationale da política territorial. Na fase de massificação da política de desenvolvimento territorial, perdem peso quadros técnicos e intelectuais ligados às universidades e ganham importância quadros técnicos ligados a organizações políticas e sociais. Isso ocorre porque muda a coalizão à frente do Estado brasileiro, agora com um maior peso de segmentos populares e suas organizações. E ocorre também porque, por uma questão de oportunidades políticas: a política de desenvolvimento territorial, apesar de intersetorial em sua essência, passa a ser desenhada no âmbito de um ministério setorial e periférico, o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Criava-se aí uma trajetória de path dependency (Pierson, 2003) que marcaria a política territorial como uma política social ou de infraestrutura para populações rurais pobres, algo muito mais restrito do que aquilo que preconiza a retórica territorial. Este quadro é coerente com os achados de Pires & Gomide (2012) que, analisando um conjunto de políticas públicas, constatam que aquelas iniciativas que alcançam alto grau de inovação e de disseminação dependem de que sejam mobilizadas fortes capacidades técnicas e políticas. Nos casos em que somente o primeiro tipo de capacidades é mobilizado, as capacidades técnicas, as iniciativas analisadas alcançavam alto grau de inovação, mas permaneciam muito restritas em sua escala de aplicação, porque os agentes da inovação têm os meios para identificar as ações que precisam ser modificadas, mas não têm o poder político para forçar sua adoção por um conjunto mais amplo de pessoas e organizações. Com efeito, foi isso o que aconteceu nos primórdios da adoção da abordagem territorial. Por sua vez, a mobilização exclusiva ou predominante de capacidades políticas, segundo os mesmos autores, levava a uma massificação de determinadas

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políticas ou programas, mas com limitado grau de inovação. Não por acaso foi isso o que aconteceu nos anos de consolidação da política de desenvolvimento territorial no Brasil, com seus reflexos para o caso da Bahia. Boa parte das inovações sugeridas nos documentos iniciais são sacrificadas para permitir uma implantação rápida e em escala crescente, de forma a tornar o novo enfoque algo consolidado e, pois irreversível. O plano de desenvolvimento territorial do Sertão do São Francisco, em suas páginas iniciais, onde os elementos conceituais são apresentados, exemplifica claramente este deslizamento. Ao citar a definição de território o texto reproduz a definição dos textos de referência do Ministério do Desenvolvimento Agrário à época da criação da política federal (SDT/MDA, 2003), segundo a qual o território é uma construção multidimensional, para além do agro, em consonância com a literatura sobre o tema. Mas em seguida cita outro documento bem mais recente (SDT/MDA, 2010), em que se afirma que o objetivo da iniciativa territorial é “promover cada vez mais o protagonismo dos atores sociais (...) estimulando iniciativas que reorientam as dinâmicas socioeconômicas a partir da coesão e articulação das políticas federais, estaduais e municipais”. Quando a iniciativa territorial, até então restrita ao Programa Territórios de Identidade passa a se compor com a iniciativa do Plano Plurianual passa a existir a coexistência de duas concepções. O Plano Plurianual participativo foi desenhado a partir dos quadros técnicos da Secretaria de Planejamento. Alguns deles quadros com sólida formação acadêmica, conhecimento da realidade internacional e imbuídos de reconstruir capacidades estatais de planificação. Aqui a ênfase vai se dar na moldagem de novas formas de governança, na tentativa de integração de políticas e instrumentos, e na consolidação de dispositivos institucionais como o PPA e a Lei Orçamentária, enquanto na lógica de funcionamento dos Territórios de Identidade a ênfase está na mobilização e empoderamento de atores locais. Aqui tem-se uma tentativa de junção de capacidades técnicas e de capacidades políticas. Uma junção, como se viu, todavia, em processo de aprimoramento, com avanços e bloqueios. Que balanço se pode fazer da incorporação do enfoque territorial nesta iniciativa? Consideramos aqui que cinco são os elementos chave da nova abordagem: 1) investimentos em ativos do território e não somente em pessoas; 2) enfoque multisetorial e não somente agropecuário; 3) vínculos urbano-rurais; 4) participação efetiva de atores e construção de institucionalidades territoriais; 5) visão coletiva de futuro voltada a mudanças territoriais concertadas, de curto, médio e longo prazo. Destas cinco características a visão coletiva de futuro é o ponto mais frágil. Não se constituíram os meios para a elaboração de um plano consistente, seja na sua dimensão técnica, seja na sua dimensão política. A organização contratada para assessorar a versão mais recente do plano é de reconhecida competência em processos de assessoria e de formação, mas não possui expertise ou histórico anterior de atuação na elaboração de projetos que envolvem reestruturação produtiva, planejamento de políticas públicas ou de iniciativas econômicas em escala territorial. Da mesma maneira, o privilégio e controle dos fóruns territoriais

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por organizações de agricultores restringiu o incentivo à atração de outras forças sociais relevantes para a pactuação de projetos territoriais. Como corolário, o plano de desenvolvimento revelou-se uma peça pouco capaz de orientar acordos intersetoriais e a concertação de interesses para além dos atores tradicionais do agro, em especial os mais pobres. Quanto à participação ativa de atores e a construção de novas institucionalidades territoriais os resultados são ambíguos. Um dos aspectos mais positivos é justamente a instituição de novas formas de governança: no âmbito local, a constituição de um fórum territorial permanente, o Colegiado de Desenvolvimento Territorial; ainda no âmbito local, como efeito indireto da adoção de um enfoque territorial, a constituição do Consórcio de prefeituras; e no plano estadual, a adoção de mecanismos de coordenação intersetorial como o Comitê de Acompanhamento do PPA. Apesar disso, há tensões entre o Consórcio e o Codeter, entre o Cappa e as secretarias de governo; e uma disjunção entre a composição do Codeter, majoritariamente formada por organizações ligadas à agricultura, e a pluralidade de forças sociais que atuam no território, bastante dinâmico sob o ângulo econômico, com forte presença de investimentos empresariais, com razoável grau de diversificação. Um terceiro elemento é o enfoque multisetorial, praticamente inexistente na experiência do Sertão do São Francisco e, pelo que se pode verificar em outros estudos, na experiência da política de desenvolvimento territorial brasileira como um todo. As tentativas de ampliar o escopo dos investimentos para além do setor primário com a criação do Territórios da Cidadania fracassou. E mesmo a experiência do PPA é demasiado restrita, porque os investimentos não são projetados pelos atores locais. Ocorre uma logica ascendente, quando se trata de definir recursos para projetos de infraestrutura agropecuária, financiados pelo Proinf, e uma lógica descendente quando se trata de apontar as prioridades do PPA. Exemplo disto é a atuação dos Consórcios, que não se submetem às decisões do Codeter, apenas participam de seu núcleo diretivo para facilitar a troca e fluidez de informações e, por aí, alcançar alguma articulação. E este também é o caso dos investimentos privados ou dos investimentos governamentais prioritários, caso da constituição local de um parque de energia eólica. Documento da Secretaria de Planejamento (Seplan, 2011) mostrava que dos vinte principais projetos de intenção de investimento privado no território, mais da metade deles não estavam relacionados ao setor primário.Apesar disso, todo o enfoque do plano de desenvolvimento se dá na valorização das atividades primárias, com frágeis vínculos com as demais potencialidades do território, destacadamente a presença de uma importante cidade de porte médio e de seu setor industrial e de serviços. Os resultados da política de desenvolvimento territorial

Os resultados observados são de difícil mensuração. Não há uma sistemática de monitoramento das ações, o que em grande medida se deve ao caráter fragmentado dos investimentos. Por certo a realidade do território melhorou significativamente desde a adoção do enfoque territorial, mas é impossível aquilatar o quanto disto se deve às iniciativas postas em prática com esta política. Uma das queixas partilhada por gestores locais e estaduais diz respeito justamente

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à fragilidade dos mecanismos de monitoramento. Apesar dos avanços em transparência obtidos com a lógica do PPA participativo e territorializado, por exemplo com a indicação da localização espacial dos investimentos nos instrumentos de planificação e orçamentação, a circulação das informações no território através dos Diálogos Territoriais (espaços periódicos de prestação de contas do governo estadual nas regiões) não apresentam as informações de maneira desagregada, dificultando o acompanhamento. Há um consenso de que os principais resultados se concretizam nas transformações institucionais. A principal delas é, sem dúvida, a adoção da escala regional como unidade de planejamento e execução e a constituição de uma narrativa na qual a ideia de território e sua importância para a planificação de políticas públicas. Isto tem impactado a organização do orçamento público, o planejamento de secretarias de governo, a articulação de prefeituras municipais e até mesmo o formato organizativo de movimentos sociais. Isto se alcançou num curto espaço de tempo e é um dos resultados mais visíveis e consistentes. Ainda no campo das transformações institucionais, de forma um tanto conflitiva, vem se formando, no estado da Bahia, uma nova comunidade epistêmica atuando no tema do desenvolvimento territorial. Na parte deste texto dedicada ao histórico viu-se que, no momento inicial, houve um impulso marcado por uma abordagem mais acadêmica ou técnica do enfoque territorial, depois oscilando para o extremo oposto com uma politização acentuada, até que, com a junção da iniciativa Territórios de Identidade com a iniciativa Plano Plurianual, tem-se a justaposição de atores - movimentos sociais e organizações de base, de um lado, técnicos e gestores governamentais, de outro - e de lógicas - ascendente, de um lado, descendente, de outro, mas ambas buscando apoiar-se em mecanismos de participação ou ao menos de consulta. Finalmente, também no campo das transformações institucionais, a principal contribuição da experiência da Bahia é a busca por galvanizar nos instrumentos principais de gestão do orçamento público uma lógica territorial. Submeter o Plano Plurianual e a Lei Orçamentária a uma organização territorial permite consolidar em mecanismos institucionais a adoção do novo enfoque, para além de sua experimentação em programas cuja execução resta demasiadamente dependente da vontade política do governante de plantão. É verdade, todavia, que todo este processo de territorialização é fragilizado por conta do caráter incipiente da visão de futuro e da capacidade de projetar estrategicamente as prioridades em acordo com os principais elementos do enfoque territorial (multisetorialidade, mudanças estruturais de médio e longo prazo), e também por conta do viés setorial dos atores mobilizados e dos investimentos feitos. Mesmo com essa ressalva, são muito significativos os avanços institucionais desta ultima década. Em parte como resultado das insuficiências verificadas nas transformações institucionais advindas da adoção do novo enfoque, em parte porque a realidade do Semiárido nordestino apresenta fortes restrições à agricultura familiar, o fato é que as transformações produtivas decorrentes do novo enfoque ainda são frágeis ou incipientes. Análises impressionistas, mas coerentes com estudos que envolvem outras áreas do Semiárido, apontam que houve uma significativa dinamização da economia local, influenciada por três aspectos marcantes do

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ultimo período: a) a política governamental de valorização do salário mínimo, com impactos diretos na previdência social, que atinge parcela significativa da população; b) a expansão das políticas de proteção social, destacadamente as transferências condicionadas de renda que permitiram diminuir acentuadamente os indicadores de pobreza rural; c) a expansão do crédito, que junto com os outros dois aspectos anteriores impulsionou o setor de comércio e serviços do município. No setor primário, os recursos disponíveis para crédito via Pronaf foram multiplicados por dez no período. Além disso, houve a adoção de medidas voltadas especificamente ao Semiárido como o programa Garantia Safra, de garantia de renda em situações de frustração da produção devido à seca. Programas de compras públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar também contribuíram impulsionar a produção e a renda de agricultores mais pobres, mas em menor escala. No setor industrial a região beneficiou-se da expansão das exportações verificadas no período. E nos marcos da expansão do crédito e do consumo vários novos empreendimentos foram anunciados, sobretudo nos setores da construção civil, transformação de alimentos e em novas formas de produção de energia. Mas trata-se, entretanto, de um conjunto de mudanças ou de vetores de dinamização que guardam pouca relação direta com a política de desenvolvimento territorial. A relação existente é indireta, à medida que a política contribui para habilitar agricultores familiares e segmentos da população pobre a participar destes vetores. Finalmente, no que diz respeito às transformações na relação com o meio-ambiente, pode-se dizer que há resultados importantes, à medida que boa parte das organizações proponentes de projetos apoiados pela política de desenvolvimento territorial trabalham nos marcos das chamadas tecnologias de convivência com o Semiárido. Isso passa pela adoção de tecnologias de baixo custo de armazenamento de água, de recuperação de espécies nativas mais tolerantes a períodos de escassez hídrica, de adoção de técnicas de cultivo e de criação coerentes com as condições do ecossistema. Todos os projetos apoiados no âmbito do Proinf atuam dentro deste paradigma, diminuindo a vulnerabilidade das populações rurais mais pobres e a pressão sobre os recursos naturais. A título de conclusão O relato feito nas páginas anteriores evidencia uma clara situação de transição de paradigmas nas políticas de desenvolvimento rural, do agrário ao territorial. Aspectos decisivos nesta transição são o caráter mutável dos significados atribuídos ao enfoque territorial, o papel dos contextos históricos e sociais e das características das comunidades epistêmicas na determinação destes significados, os tipos de capacidades mobilizadas por estas comunidades no desenho e implementação da política, e a dependência de caminho criada com a configuração inicial de espaços e atores. O resultado final é uma adoção parcial do novo enfoque, com a incorporação de uma nova retórica e a criação de novas formas de governança do desenvolvimento territorial, mas com a permanência de um viés setorial e a persistência da fragmentação e do imediatismo em oposição à esperada integração de esforços numa perspectiva intersetorial e voltada a transformações de longo prazo. As transformações ocorridas, ainda que parciais, situam-se assim

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mais na esfera institucional do que propriamente na esfera produtiva. Mas resta razoavelmente evidente a decolagem de uma curva de aprendizagem por atores e instituições que se descolam do paradigma anterior e a crescente aderência ao novo. Se a curva de aprendizagem na adoção do enfoque territorial está estabelecida, restam dois comportamentos diante delas: ver a mudança incremental como inexorável e como tendência natural, ou tentar acelerar a transição. Esta segunda deve ser a posição daqueles comprometidos com a nova abordagem, pelo que ela representa em termos de potencial eficácia no enfrentamento dos problemas das regiões rurais. Uma lição que surge da experiência da política de desenvolvimento territorial da Bahia é que a adoção do novo enfoque ganhou contornos mais consistentes quando, diante de oportunidades abertas no ambiente institucional, os arranjos favoreceram a mobilização de capacidades técnicas e políticas por meio de arranjos inovadores. Identificar estas oportunidades, estas capacidades e promover sua convergência não é tarefa trivial, mas dela depende a superação dos bloqueios na transição do paradigma agrário para o paradigma territorial no desenvolvimento rural.

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