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As vidas das crianças que sobreviveram escondidas ao Holocausto R. D. ROSEN Autor bestseller Vencedor do prémio Edgar

R. D. ROSEN - static.fnac-static.com · Escondidas do mundo As escolhas de Sophie O meu nome pode ter sido Miriam A hierarquia do sofrimento PARTE III: O GUETO INTERIOR O campo minado

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Através dos testemunhos reais de três meninas judias — Sophie, Florae Carla —, Richard D. Rosen transporta-nos para a dura e tocante

realidade daquela que é, para muitos, a página mais negrada história da Humanidade.

Sophie, que sobreviveu ao extermínio nazi graças a uma identidade falsa, durante anos acreditou que era católica e antissemita. Esta mentira, alimentada pela mãe para sua proteção, tornou-se o seu passaporte para

a vida. Tornou-se oncologista nos EUA.

Flora, órfã vítima do genocídio, foi entregue aos cuidados de freiras católicas e andou de família em família, sem nunca conhecer ao certoas suas origens. Depois de ter sido adotada, chegou aos EUA em 1959,

onde se tornou psicóloga.

Carla, que passou a sua infância escondida em sótãos e divisõesdissimuladas, carrega a culpa de ter sobrevivido, sabendo que

um terço das crianças judias desse tempo não tiveram a mesma sorte.Já nos EUA, tornou-se terapeuta.

Este livro é mais do que um relato histórico dos horrores do Holocausto. É um tributo a milhares de crianças assassinadas e uma homenagem

a todas as que escaparam, conseguindo reconstruir as suas vidase recuperar das suas infâncias traumáticas…

mesmo sem nunca as esquecerem.

«— Não gosto deste jogo.— Não interessa, Zofia.— Quero ser a Selma.— Temos de estar sempre a jogar este jogo ou vai acontecer-nos algo muito mau.— Porquê? Porque é que toda a gente nos quer fazer mal?— Explicar-te-ei quando fores mais crescida, Zofia. Mas agora querem fazer mal às pessoas que se chamam Schwarzwald e Litwak e por isso nunca mais dizes esses nomes. Como é que te chamas, menina?— Chamo-me Zofia Tymejko, nasci a 27 de julho e tenho cinco anos.— E que idade vais ter no próximo dia 27 de julho?— Não sei.— Claro que sabes, Zosia. Se tens cinco anos agora, quando fizeres anos outra vez, a 27 de julho, que idade vais ter?— Seis anos.Laura beijou de novo a testa da filha.— És tão espertinha, Zosia. E não fales com ninguém. Percebes?— Sim, Bronislawa Tymejko.Laura sorriu.— Mas para ti sou sempre “mamã”.— Sim, Mamã.Pobre Zula, pensou Laura. A filha era uma bênçãoe uma maldição. Não havia outro motivo para ela viver senão a sua única filha mas, para estasobreviver, teria de apagar-lhe a identidade e

destruir sabe-se lá maiso quê.»

«Memórias do Silêncio recorda-nos a dimensão intemporal do Holocaustoe a importância de homenagearmos o triunfo da humanidade sobre

a desumanidade, em qualquer lugar e em qualquer tempo.»

Jewish Book Council

Filho de pai polaco e de mãe lituana, RichardD. Rosen nasceu e cresceu na zona de Chicago, e frequentou a Universidade de Harvard.Trabalhou como editor de livros na Workman e na ESPN, e produziu programas de televisão e de rádio na PSB, na HBO e na NPR. É atualmente professor de Escrita em Harvard. Escreveu várias obras de não-ficção e também romances policiais,o primeiro dos quais lhe valeu o Prémio Edgar para melhor novo autor de romances de mistério.

Para mais informações sobre o autor, visitewww.rdrosen.com

«R. D. Rosen mostra-nos como as crianças ocultasdo Holocausto conseguiram sobreviver, não apenas

uma vez, porque de facto sobreviveram, mas por duas vezes, porque conseguiram reconstruir as suas vidas

e torná-las ressonantes.»

The Wall Street Journal

«Memórias do Silêncio é um relato emotivo sobreo impacto do silêncio e da vitimização, apresentado

através de detalhes íntimos e de um riquíssimocontexto histórico.»

Kirkus Reviewswww.vogais.pt

Veja o vídeo de apresentação deste livro.

História/Memórias

ISBN 978-989-668-309-2

9 789896 683092

19,5 mm

A história verídica e impactante das criançasque sobreviveram, em silêncio, ao Holocausto.A história verídica e impactante das crianças

As vidasdas crianças

que sobreviveramescondidas ao

Holocausto

R. D. ROSENAutor bestseller

Vencedor do prémio Edgar

R. D. ROSEN

Índice

Nota do autor sobre a ausência de ficção

Os nomes

O que leva este seder a ser diferente de todos os outros?

PARTE I: ESCONDIDAS DOS NAZIS

Sophie

Flora

Carla

PARTE II: A REUNIÃO

Escondidas do mundo

As escolhas de Sophie

O meu nome pode ter sido Miriam

A hierarquia do sofrimento

PARTE III: O GUETO INTERIOR

O campo minado das recordações

Cristãos ou Judeus?

O outro círculo do inferno

Os guardiões da chama

O meu nome é Refugiado

Agradecimentos

Bibliografia

Lista de documentários e longas-metragens

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293

296

301

- 9 -

Nota do autor sobre

a ausência de ficção

As histórias pessoais que integram esta obra são baseadas

por inteiro nas palavras dos próprios, independentemen-

te de terem sido conservadas em cartas, documentos

de família, outras memórias ou recolhidas pelo autor em entrevis-

tas recentes. Não há, naturalmente, nada que se pareça com uma

recordação perfeita. A simples passagem do tempo é suficiente

para provocar o caos em memórias benignas, quanto mais em me-

mórias tão extraordinariamente traumáticas e que, ainda hoje, se

encontram para lá da nossa compreensão. As pessoas que viveram

diretamente estas situações e que, de algum modo, conseguiram

sobreviver-lhes para depois as contar — as três mulheres des-

te livro, por exemplo —, fraquejam por vezes nas suas narrativas.

Nesses momentos recorri ao registo histórico (ou seja, a fontes

secundárias) para obter pormenores adicionais ou qualquer tipo

de clarificação. E houve, em vários momentos, elementos de diá-

logo que eu criei, naturalmente com base nas recordações das

três pessoas que entrevistei e de acordo com elas. Fora isso, os

acontecimentos, as emoções e os pormenores que nestas páginas

se relatam não foram inventados nem tão pouco embelezados.

- 10 -

Os nomes

Esta obra refere-se a várias pessoas que foram obrigadas a ado-

tar novos nomes para conseguirem sobreviver ao Holocausto.

Procurei, onde era possível, identificar as pessoas pelos seus

nomes originais mas, como essa possibilidade nem sempre existiu

e também não permitia conservar a integridade das histórias pes-

soais, optei por apresentar aqui uma explicação breve relativa aos

nomes das principais personagens desta narrativa.

Sophie nasceu com o nome de Selma Schwarzwald em 1937 em

Lvov, na Polónia, filha única de Laura e de Daniel Schwarzwald.

Selma fugiu em 1942 do gueto de Lvov acompanhada pela mãe,

Laura, com documentos que as identificavam como Zofia Tymejko

e sua mãe Bronislawa Tymejko, sendo Zofia católica e sem pai e sendo

a sua mãe viúva. Nas páginas que se seguem, continuei a chamar

à mãe Laura (apesar de ela ser agora publicamente conhecida como

Bronislawa), embora me refira à sua filha Selma pelo seu nome novo,

Zofia. Laura e Zofia ficaram primeiro em Cracóvia e depois em Busko

Zdroj, ainda na Polónia. A irmã mais nova de Laura juntou-se-lhes

em 1944. Era conhecida por Putzi, embora tivesse vivido com o nome

de Ksenia Osoba (com o diminutivo Nusia).

Laura e Zofia obtiveram a nacionalidade inglesa em 1953 quan-

do viviam em Londres com nomes católicos falsos. Laura escolheu

Turner como novo apelido de família e Zofia anglicizou o seu nome

próprio para Sophie, ficando a chamar-se Sophie Turner até se ter casa-

do com David Zaretsky, alterando nessa altura o seu apelido e passando

a chamar-se Sophie Turner-Zaretzky, nome que conservou até hoje.

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Flora nasceu com o nome Flora Hillel em San Remo, em Itá-

lia, em 1936, filha única de pais checoslovacos. O pai morreu com

tuberculose em 1942 e Flora mudou-se com a mãe para Nice, em

França. Antes de a mãe ser deportada pelos nazis, Flora foi entregue

a freiras de um convento que lhe deram o nome cristão de Marie

Hamon, que conservou até voltar a usar o nome de Flora, com o apeli-

do Hogman, que mantém e que pertencia ao casal que a escondeu no

Sul de França em 1943 e com quem viveu até 1958. Até hoje manteve

o nome Flora Hogman.

carla nasceu com o nome Carla Heijmans em 1929, que man-

teve até ao seu casamento com Ed Lessing em 1949. Nessa altura

passou a chamar-se Carla Lessing, nome que conserva.

- 12 -

O que leva este seder a ser

diferente de todos os outros?

Uma amiga convidou-me, no final de março de 2010, para

passar com ela o seder da Páscoa em Greenwich Village, em

Nova Iorque. Foi um desses seders comuns ao tipo de pes-

soas de Manhattan que, ao longo dos anos, reduziram o seu judaísmo

a um núcleo central de caráter cultural de que se sentem orgulhosas.

Nós éramos judeus que nos havíamos distanciado dos jantares regu-

lares do sabat, das sinagogas e das cerimónias do bar mitzvah e do bat

mitzvah, embora nos mantivéssemos fiéis ao seder da Páscoa, o único

ritual inabalável da nossa educação. O seder tornava-se assim o mo-

mento de reviver os outros seders ruidosos da nossa infância, celebran-

do a emancipação dos judeus da servidão egípcia, além das liberdades

que para nós eram mais do que garantidas na maior cidade judaica do

país mais livre do mundo.

Víamos as árvores já em flor no exterior das janelas de batente

do apartamento da West 12th Street, quando nos sentámos à volta das

duas mesas postas lado a lado para receber o nosso grupo de dez

pessoas. Eu não as conhecia a todas mas sabia que formávamos um

grupo familiar de pessoas esclarecidas, laicas e informalmente vesti-

das: um executivo de um canal de televisão por cabo, um romancista,

um editor, um vendedor imobiliário, um médico. As nossas idades

iam dos 30 aos 70 anos.

Mas havia uma única pessoa à mesa que não se integrava no gru-

po: uma mulher amável, na casa dos 70 anos, com rosto de querubim

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e cabelo louro curto. Viera sozinha, ficando sentada mesmo à mi-

nha frente, com uma écharpe colorida enrolada à volta do pescoço.

O aspeto, atraente, era o de alguém que parece estar sempre prestes

a soltar uma gargalhada. Não parecia judaica, em comparação com

outros convivas que tinham todos cabelo preto, mas revelou-se mui-

to conhecedora dos rituais da festa, acompanhando os nossos risos

quando nos lamentávamos pela interminável espera entre cada prato

da refeição, deitando a mão a pedaços de matzo, o pão não levedado,

bebendo pequenos goles de vinho e interrompendo a nossa leitura

da Haggadah para reclamar das inexatidões e das improbabilidades

históricas do texto.

À mesa, distinguia-se de nós, judeus reformistas, não apenas pelo

seu bonito semblante mas também por um vago sotaque europeu di-

fícil de identificar. No primeiro intervalo genuíno dos procedimentos

do ritual — mais ou menos entre o gefilte fish e a canja de galinha —

fiz-lhe algumas perguntas. Tanto quanto percebia, este era o primei-

ro seder em que participava e eu não queria que se sentisse descon-

fortável. A nossa conviva disse chamar-se Sophie Turner-Zaretsky,

tendo sido oncologista especializada em tratamentos por radiações,

agora reformada, e acrescentou que mantinha uma relação de paren-

tesco com a anfitriã.

— Não consigo identificar o seu sotaque. Onde é que nasceu? —

perguntei.

— Na Polónia.

— Oh, mas eu também sou meio polaco — afirmei, satisfeito por

termos alguma coisa em comum. — Pelo lado do meu pai. De Varsó-

via. Esteve na Polónia durante a guerra, então?

— Sim — respondeu.

— E o que fazia?

— Estava escondida — declarou, calmamente, com a mesma

emoção com que poderia ter-me dito qual o filme que vira na véspera.

E com esta minha última pergunta desmoronou-se tudo o que eu

pensava dela. A mulher à minha frente era mesmo uma judia, cuja

M e M ó r i a s d o s i l ê n c i o

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infância contrastava duramente com as nossas. Fiz rapidamente as

contas e calculei que, estando ela na casa dos 70, deveria ter sido uma

rapariga muito nova durante a guerra.

Senti o remorso incómodo da minha existência privilegiada, como

tantas vezes sucedia quando me deparava com outras pessoas menos

afortunadas e que, num caso como este, haviam acordado no lado

errado da cama da História. Fiquei sem saber o que dizer perante

a realidade da vida dela. Os pais teriam sido mortos? E quantas crian-

ças europeias haviam sobrevivido ao Holocausto? Não fazia a menor

ideia. A única coisa que sabia é que Sophie crescera num dos piores

locais da História para se ser judeu.

Eu, por outro lado, crescera num dos mais seguros locais de sem-

pre: uma área suburbana de Chicago, virada para um lago, que fora

sempre hospitaleira para os judeus desde, pelo menos, os anos 1920.

Os meus quatro avós haviam chegado no início do século xx, um

quarto de século antes de os nazis invadirem a Polónia, oriundos de

locais como Shkud, na Letónia, de Chvanik, na Bielorrússia, e de Var-

sóvia. Os meus pais, nascidos na América, cresceram nos shtetls das

zonas ocidental e oriental de Chicago, rodeados pelas respetivas famí-

lias, até se juntarem, nos anos 1950, à nova diáspora dos subúrbios.

Highland Park, a pouco mais de 30 quilómetros a norte da cidade,

tornara-se aliás famosa pelas suas crianças superprotegidas e privi-

legiadas. Em 1960, quando eu andava no sexto ano, a comunidade

mereceu uma reportagem do Saturday Evening Post — que, mais tar-

de, deu origem a um livro — com o título de «Os meninos mimados

dos subúrbios». O texto referia-se a alguns dos meus colegas mais

ricos do sexto ano como absurdamente protegidos, incluindo, entre

eles, um rapaz — que muitos anos depois foi testemunha de acusa-

ção num enorme processo de fraude movido pela entidade regulado-

ra dos valores mobiliários — de quem se dizia ter tentado pagar os

35 cêntimos do almoço da escola com uma nota de 50 dólares.

Desde sempre que me lembro de ter ficado perturbado pelo

excerto mais castigador do serviço do seder, quando a Haggadah

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se refere à «criança malévola», um dos quatro tipos de crianças

a quem deve ser explicada a história do Êxodo. A criança malévola per-

gunta: «Que significa isto tudo para vós?» E, dessa maneira, exclui-se

da comunidade. Diz-se-lhe que Deus libertou os judeus da escrava-

tura mas não a ela, porque a criança malévola não podia redimir-se.

Enquanto todas as quatro crianças — a sábia, a simples, a incapaz de

fazer perguntas sobre o assunto e a malévola — podem representar

aspetos de uma única personalidade, a criança malévola correspon-

dia de certo modo à minha ansiedade, no que se referia à minha boa

sorte e ao medo de que, tendo crescido no interior da minha bolha

suburbana, acabasse por ficar insuficientemente ligado à história

do meu próprio povo.

Dezasseis, ou mais, dos familiares polacos do lado do meu pai

haviam morrido no Holocausto, mas esses fantasmas da nossa

família — ao mesmo tempo muito distantes e demasiado nume-

rosos — raramente eram mencionados pelos nomes. Além disso,

tanto quanto sabia, a única ligação pessoal da família ao Holocausto,

e mesmo assim bastante longínqua, era uma carta que a minha avó

enviara de Varsóvia ao meu pai, quando ela lá voltou para visitar

a própria mãe depois de ter passado 22 anos na América. O meu

pai deve ter-nos mostrado a carta, pela primeira vez, quando eu te-

ria cerca de 20 anos. «Fiquei quatro dias em Berlim com a minha

tia», escreveu a minha avó, acrescentando: «Vi Hitler num desfile

no domingo passado. Berlim não está propriamente em ebulição,

mas ainda bem que vi tudo.» A carta da minha avó tem a data de 18

de julho de 1934, cerca de duas semanas depois da «Noite das Facas

Longas», a purga implacável e homicida com que Hitler se libertara

dos seus adversários políticos, da ala esquerda, dos antinazis e de

outros indesejáveis, consolidando desse modo o seu poder pessoal.

Enquanto crescia, não conheci, que eu soubesse, nenhum sobre-

vivente do Holocausto. A Solução Final nazi era como uma nuvem

negra que havia passado há muito por cima das nossas cabeças —

embora não há tão poucos anos como isso —, mas ainda podia ser

M e M ó r i a s d o s i l ê n c i o

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vista à distância por quem quisesse olhar para esse lado. A América

não parecia conseguir distanciar-se suficientemente do Holocausto.

Em conversas ocasionais, essa realidade era mais um assunto para

piadas nervosas («Vê se comes, que pareces ter saído de Auschwitz»)

e para cantorias, como a que era cantada com a música da Marcha

do Coronel Bogey e cujas variantes se ouviram em inúmeros parques

infantis da América nos anos 1950:

Hitler tinha só um grande tomate

Göring tinha dois mas eram pequenos

Himmler tinha uma coisa parecida

E o pobre Goebbels nenhum.

A tentativa de ridicularizar estes monstros depois do que acon-

tecera era uma expressão bizarra da nossa impotência perante os

feitos malévolos dos nazis. Fazer do nazismo uma comédia nos anos

1960 — da série televisiva Hogan’s Heroes ao filme The Producers

(O Falhado Amoroso) — ajudou a esconder a inação do nosso gover-

no durante a guerra e a rapidez sinistra com que depois a resolveu.

Sem informar o público, o OSS1 recrutou o chefe dos serviços de

espionagem dos nazis na frente oriental, Reinhard Gehlen, e milha-

res de espiões nazis — alguns dos quais eram criminosos de guerra

— devido aos seus conhecimentos, muitas vezes falíveis e inventa-

dos, sobre a União Soviética. Os cientistas nazis Werner von Braun

e Arthur Rudolph foram transformados em cientistas inofensivos

e apolíticos em prol do programa espacial americano, apesar de

a construção dos seus foguetões V-2 em Nordhausen, durante a guer-

ra, ter custado a vida de mais de 10 mil trabalhadores escravizados.

O general Dwight D. Eisenhower divulgou imagens das atrocida-

des dos campos de concentração recolhidas imediatamente a seguir

1 O Office of Strategic Services (Agência de Serviços Estratégicos) foi o serviço de informa-ções dos EUA criado durante a Segunda Guerra Mundial, que veio a dar origem à CIA em 1947. [N. do T.]

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à libertação. As cenas passaram brevemente nos noticiários nos ci-

nemas americanos em 1945 mas, na década seguinte, a maioria dos

americanos foi protegida das piores imagens da Solução Final. The

Strangers (O Estrangeiro), o filme de Orson Welles de 1946 que na

altura teve más críticas, apresentou algumas imagens muito breves

das atrocidades e o notável documentário de arte e ensaio de Alain

Resnais, Nuit et brouillard (Noite e Nevoeiro), de 1955, só foi exibido

na América nos anos 1960. O Holocausto não seria um aconte-

cimento verdadeiro para muitos de nós, quando éramos crianças,

senão em 1961, quando vimos, finalmente, as imagens dos corpos

amontoados de judeus no filme Judgement at Nuremberg (Julgamen-

to em Nuremberga), que mostrou à grande parte do mundo a prova

irrefutável do que haviam feito os nazis. (A versão do Julgamento de

1959, recriada ao vivo para o programa televisivo Playhouse 90, não

incluiu imagens documentais e foi limpa de quaisquer referências

a câmaras de gás por deferência para com a entidade patrocinadora,

a Associação Americana de Gás.)

Para minha vergonha, nunca falara com um sobrevivente e agora

encontrava-me sentado a menos de um metro de Sophie, mensagei-

ra de uma catástrofe com a qual eu nunca me vira emocionalmente

confrontado na vida. Era a minha oportunidade, mas as perguntas

não nos saem com facilidade face à tragédia de outra pessoa. Em

qualquer dos casos, nunca saberei o que poderia ter perguntado

a Sophie porque a nossa anfitriã, Alice Herb, a interpelou de re-

pente:

— Sophie, fale-lhe no urso. Fale-lhe no urso.

— Está bem — disse-lhe Sophie, voltando-se depois para mim. —

A Alice adora a história do urso. Muito bem. Houve uma noite em

que eu estava escondida numa pequena cidade da Polónia com

a minha mãe e, claro, não tinha muitos brinquedos. Aliás, eram

só dois: uma boneca e um ursinho a que depois chamei Refugiado.

Era um desses ursos de peluche da Steiff, que ficou comigo depois

da guerra e durante a minha vida adulta e que está agora no Museu

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Memorial do Holocausto, em Washington. A réplica que fizeram

dele, para vender na loja de presentes, é um dos produtos mais

populares.

— É espantoso — declarei.

— Fale-lhe do vaivém espacial — sugeriu Alice.

— Está bem, está bem — replicou Sophie, com uma irritação

fingida, levantando a mão como se quisesse impedir a prima de lhe

fazer mais pedidos.

Sophie explicou-me que todos os astronautas americanos que

viajam no vaivém espacial podem levar alguns objetos pessoais com

eles e que, em 2006, o comandante do Discovery, Mark Polansky, que

é meio-judeu, levou uma fotografia de uma criança num campo

de refugiados do Darfur e uma réplica do Refugiado na missão de

12 dias à Estação Espacial Internacional.

— Ena — exclamei, estremecendo ao aperceber-me de como

devo ter parecido idiota ao dizê-lo. — É uma história espantosa.

Disse que o Refugiado era um urso de peluche da Steiff?

— Um dos pequeninos. — Sophie abriu o polegar e o indicador

cerca de oito centímetros.

— Que engraçado, tive um desses — revelei, talvez num tom

mais excitado do que seria de esperar. — Aliás, ainda o tenho

no meu armário com uma série de outros animais da Steiff que

os meus pais me deram quando eu era pequeno. — Que estava

eu a fazer, a meter os meus próprios brinquedos na narrativa de

Sophie?! — Infelizmente — insisti, ainda —, ele perdeu um braço.

E penso que a cabeça se separou do corpo. É evidente que tomou

melhor conta do seu.

E era verdade que o ursinho, a que chamei Beauregard, fora um

dos meus brinquedos preferidos numa infância que, ao contrário

da de Sophie, estava cheia deles. O facto de a Sophie que tinha dian-

te de mim e eu estarmos ligados não pelo nosso judaísmo e pelas

nossas origens polacas mas pela mesma marca alemã de ursos

de peluche parecia estranhamente providencial.

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Saí do seder nessa noite com o e-mail de Sophie e, alguns meses

depois, já estava sentado à mesa de tampo de vidro da sala de jantar

do seu apartamento num arranha-céus de Upper West Side, a beber

chá e a fazer-lhe perguntas sobre a infância em que, com a mãe

e o urso, passara a vida a esconder-se dos nazis. Senti que Sophie

tinha dúvidas sobre a reconstrução de um passado que já pusera

de parte. Quando ela trouxe documentos e fotografias do armário

e da caixa onde os guardara, senti-me a forçar algo. O facto de os

pedidos que eu lhe fazia se destinarem ao que eu esperava vir a ser

um livro infantil encantador e inspirador, parecia tornar o calvário

mais aceitável, mas, apesar disso, as reticências de Sophie — «Foi

há tanto tempo», «Na realidade já não me lembro», «Interessa mes-

mo saber quando é que a minha mãe me deu o urso?» — fizeram-

-me sentir como se estivesse a querer arrancar uma crosta forma-

da sobre uma ferida antiga e dolorosa. Sophie podia ter posto fim

à minha iniciativa literária com uma simples palavra, mas não o fez

e o que nela senti, enterrado bem fundo por baixo da repressão

do seu próprio passado, foi o desejo incipiente de o confrontar.

Escrevi um primeiro rascunho de uma história para crianças,

a que chamei Refugiado: a Verdadeira História de uma Menina, de um

Urso e do Holocausto, e continuei a encontrar-me regularmente com

Sophie, para clarificar acontecimentos e datas. Quando nos encon-

trávamos, por vezes num café perto do apartamento dela, tentava

não prolongar de mais a minha presença já que continuava a sentir

que, mesmo subtilmente, a pressionara a partilhar os pormenores

de uma história que, de outro modo, ela se satisfaria por contar

apenas muito de vez em quando e sempre por alto.

Mas, à medida que o tempo passava, a aventura do urso de

Sophie tornou-se inseparável de uma história infinitamente mais

complexa e trágica que seria difícil encerrar em algumas centenas

de palavras dirigidas a crianças de seis anos. Ano e meio depois

de ter deixado o seder da minha amiga com uma ideia para um

livro infantil, percebia que afinal embarcara ao sabor do acaso numa

M e M ó r i a s d o s i l ê n c i o

- 20 -

viagem que desembocaria num livro para adultos que acabaria por

abranger as histórias das três outras crianças escondidas que haviam

sobrevivido. Sophie revelava-se a minha porta de entrada no mundo

das crianças judaicas, poucas mas muito afortunadas, que haviam

emergido da Segunda Guerra Mundial e que eram as nossas últimas

testemunhas vivas do Holocausto. Das mais de um milhão a milhão

e meio de crianças judaicas que viviam na Europa antes da guerra

só sobreviveram cerca de seis a onze por cento delas, enquanto um

terço dos judeus adultos conseguira sobreviver. Destas crianças, cer-

ca de 60 mil a 165 mil, algumas haviam sobrevivido aos campos de

extermínio e de trabalhos forçados e o resto sobrevivera por se ter

escondido por iniciativa própria ou por influência de terceiros.

Só bastante mais tarde, quando já estava a escrever este livro,

é que percebi aquilo que efetivamente mais me cativara em Sophie

e na sua história. Na altura do seder, o meu pai e a minha mãe, já na

casa dos 90 anos depois de vidas produtivas e cheias de saúde, vi-

viam no sofrimento dos seus meses finais. Não foram assassinados

ou vitimados pela fome mas morreram em casa, com o intervalo

de um mês, rodeados pelo que havia de mais moderno em matéria

de cuidados paliativos.

Não obstante, eu andava nessa altura a tentar lidar com a perda

dos meus pais, os elos mais importantes com o meu passado e com

a minha herança judaica. A situação — as intervenções clínicas caras

e esperançosas, as viagens de ida e volta entre a Florida e Chicago,

as dificuldades de coordenar decisões com os meus irmãos — origi-

nava uma série de novos medos. Eu tentava agarrar-me ao passado,

com mais força do que nunca, lamentando não apenas assuntos

por resolver mas as perguntas que ficavam por fazer, enquanto ten-

tava compreender melhor a enorme paisagem inexplorada da mi-

nha família e a incapacidade de conhecer na totalidade as pessoas

que eu amava. No centro deste período de perda e de luto, quem

é que o destino havia de pôr à minha frente senão uma combinação

de pai ou mãe substitutos e de um professor de História, alguém

R . D . R o s e n

- 21 -

que me permitiria ligar-me ao cataclismo que nunca existira na vida

dos meus pais e a que eu estivera sempre manifestamente alheio?

Sophie contou-me aquilo de que conseguia lembrar-se da sua

infância — com a ajuda de algumas fotografias antigas, de docu-

mentos e de uma conversa mantida há mais tempo com a sua prima,

Alice Herb — e a partir desses elementos pude escrever uma versão

sólida da sua história entre 1942 e 1948, com base no seu ponto

de vista de criança. Mas como é que conseguiria contar a história

a partir do ponto de vista da mãe, já falecida, com quem Sophie

passara esses anos e depois mais algum tempo? Dado o caráter pe-

culiar da relação entre ambas durante esses anos, queria captar bem

a discrepância entre as suas respetivas realidades.

A resposta obtive-a num dia em que me encontrava com Sophie

no seu apartamento. Como habitualmente, ela ia corrigindo com

paciência os meus erros enquanto preenchia as partes em branco

no rascunho mais recente da sua história, dando-me mais infor-

mações que, desde o nosso último encontro, se haviam libertado

da grande massa que era a sua coleção de memórias reprimidas.

Tirando, de repente, de uma caixa um conjunto de páginas datilo-

grafadas, Sophie disse-me: «Não sei se isto ajudará, mas foi uma

coisa que a minha mãe escreveu para um curso que frequentou

numa idade já avançada.»

Folheei o original de 17 páginas com um assomo de alegria.

Sophie acabara de me entregar o equivalente à Pedra de Roseta —

era o meio pelo qual eu conseguiria finalmente traduzir as especu-

lações de Sophie sobre o estado de espírito da sua mãe durante e de-

pois da guerra para a linguagem das suas próprias recordações. Com

o que a mãe escrevera, eu podia finalmente começar a reproduzir

os universos paralelos de desespero em que as duas haviam vivido.

M e M ó r i a s d o s i l ê n c i o

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A história do urso de Sophie, da sua geração e do importante

acontecimento que, em 1991, quebrou por fim o silêncio de adultos

das crianças escondidas que haviam sobrevivido, começa em 1942

na cidade de Lvov, na Polónia, onde uma menina chamada Selma

Schwarzwald e a sua mãe Laura estavam prestes a começar a viver

em paralelo duas existências assentes em mentiras completamente

diferentes.

Através dos testemunhos reais de três meninas judias — Sophie, Florae Carla —, Richard D. Rosen transporta-nos para a dura e tocante

realidade daquela que é, para muitos, a página mais negrada história da Humanidade.

Sophie, que sobreviveu ao extermínio nazi graças a uma identidade falsa, durante anos acreditou que era católica e antissemita. Esta mentira, alimentada pela mãe para sua proteção, tornou-se o seu passaporte para

a vida. Tornou-se oncologista nos EUA.

Flora, órfã vítima do genocídio, foi entregue aos cuidados de freiras católicas e andou de família em família, sem nunca conhecer ao certoas suas origens. Depois de ter sido adotada, chegou aos EUA em 1959,

onde se tornou psicóloga.

Carla, que passou a sua infância escondida em sótãos e divisõesdissimuladas, carrega a culpa de ter sobrevivido, sabendo que

um terço das crianças judias desse tempo não tiveram a mesma sorte.Já nos EUA, tornou-se terapeuta.

Este livro é mais do que um relato histórico dos horrores do Holocausto. É um tributo a milhares de crianças assassinadas e uma homenagem

a todas as que escaparam, conseguindo reconstruir as suas vidase recuperar das suas infâncias traumáticas…

mesmo sem nunca as esquecerem.

«— Não gosto deste jogo.— Não interessa, Zofia.— Quero ser a Selma.— Temos de estar sempre a jogar este jogo ou vai acontecer-nos algo muito mau.— Porquê? Porque é que toda a gente nos quer fazer mal?— Explicar-te-ei quando fores mais crescida, Zofia. Mas agora querem fazer mal às pessoas que se chamam Schwarzwald e Litwak e por isso nunca mais dizes esses nomes. Como é que te chamas, menina?— Chamo-me Zofia Tymejko, nasci a 27 de julho e tenho cinco anos.— E que idade vais ter no próximo dia 27 de julho?— Não sei.— Claro que sabes, Zosia. Se tens cinco anos agora, quando fizeres anos outra vez, a 27 de julho, que idade vais ter?— Seis anos.Laura beijou de novo a testa da filha.— És tão espertinha, Zosia. E não fales com ninguém. Percebes?— Sim, Bronislawa Tymejko.Laura sorriu.— Mas para ti sou sempre “mamã”.— Sim, Mamã.Pobre Zula, pensou Laura. A filha era uma bênçãoe uma maldição. Não havia outro motivo para ela viver senão a sua única filha mas, para estasobreviver, teria de apagar-lhe a identidade e

destruir sabe-se lá maiso quê.»

«Memórias do Silêncio recorda-nos a dimensão intemporal do Holocaustoe a importância de homenagearmos o triunfo da humanidade sobre

a desumanidade, em qualquer lugar e em qualquer tempo.»

Jewish Book Council

Filho de pai polaco e de mãe lituana, RichardD. Rosen nasceu e cresceu na zona de Chicago, e frequentou a Universidade de Harvard.Trabalhou como editor de livros na Workman e na ESPN, e produziu programas de televisão e de rádio na PSB, na HBO e na NPR. É atualmente professor de Escrita em Harvard. Escreveu várias obras de não-ficção e também romances policiais,o primeiro dos quais lhe valeu o Prémio Edgar para melhor novo autor de romances de mistério.

Para mais informações sobre o autor, visitewww.rdrosen.com

«R. D. Rosen mostra-nos como as crianças ocultasdo Holocausto conseguiram sobreviver, não apenas

uma vez, porque de facto sobreviveram, mas por duas vezes, porque conseguiram reconstruir as suas vidas

e torná-las ressonantes.»

The Wall Street Journal

«Memórias do Silêncio é um relato emotivo sobreo impacto do silêncio e da vitimização, apresentado

através de detalhes íntimos e de um riquíssimocontexto histórico.»

Kirkus Reviewswww.vogais.pt

Veja o vídeo de apresentação deste livro.

História/Memórias

ISBN 978-989-668-309-2

9 789896 683092

19,5 mm

A história verídica e impactante das criançasque sobreviveram, em silêncio, ao Holocausto.A história verídica e impactante das crianças

As vidasdas crianças

que sobreviveramescondidas ao

Holocausto

R. D. ROSENAutor bestseller

Vencedor do prémio Edgar

R. D. ROSEN