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Estilos da Clínica, 2006, Vol. XI, n o 21, 82-107 82 Psicanalista; Doutor em Educação – USP; Professor Adjunto de Psicologia – FaE/UFMG; Integrante do LEPSI/USP. Dossiê “DEUSES DE PRÓTESE”: SOBRE OS MESTRES DE NOSSOS TEMPOS M arcelo R icardo P ereira O discurso docente atual é permeado de produções imagísticas e amplamente alardeadas – principalmente em tempos de nossa modernida- de tardia – de como os professores e as professo- ras sentem-se “desvalorizados”, “desmoralizados”, “desrespeitados” e, sobretudo, “desautorizados”. Esse discurso, com efeito, é igualmente ressonante junto aos teóricos da profissão docente que en- tendem que a função de professor em nossa his- tória próxima sofreu considerável desgaste inte- lectual, social, cultural e econômico. No imaginá- rio social, ao que parece, o “mestre” nostalgica- mente idealizado de outrora cedeu lugar a um profissional sucumbido à atual massificação in- dustrial, comunicacional e tecnológica, bem como à inabilidade em lidar com as manifestadas identidades RESUMO O texto pretende entender o declínio dos mestres na modernidade ou o quanto eles próprios se dizem “desvalorizados”, “desmoralizados” e “desautorizados”. O mestre nostalgicamente idealizado e abnegado de outrora cedeu lugar a um profissional sucumbido à atual massificação educacional e à crise política da autoridade. “Deus está morto”, diria Nietzsche, ou o “Pai está morto”, diria Freud. Seria, então, o mestre uma contínua tentativa do humano de revivificar pai e Deus? Isso não é senão condená-lo indefinidamente à impostura? Será este, pois, o tempo para admitirmos o mestre em sua real condição contingente e provisória? Descritores: declínio do mestre; psicanálise do vínculo social; ética do provisório Elôï, Elôï, lema sabachthani? (Deus, ó Deus, por que me abandonastes?) Jesus Cristo Marcelo Pereira.pmd 14/03/07, 14:19 82

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Estilos da Clínica, 2006, Vol. XI, no 21, 82-10782

Psicanalista; Doutor em Educação – USP; Professor Adjuntode Psicologia – FaE/UFMG; Integrante do LEPSI/USP.

Dossiê

“DEUSES DEPRÓTESE”: SOBREOS MESTRES DE

NOSSOS TEMPOS

Marce lo R ica rdo Pere i r a

O discurso docente atual é permeado deproduções imagísticas e amplamente alardeadas –principalmente em tempos de nossa modernida-de tardia – de como os professores e as professo-ras sentem-se “desvalorizados”, “desmoralizados”,“desrespeitados” e, sobretudo, “desautorizados”.Esse discurso, com efeito, é igualmente ressonantejunto aos teóricos da profissão docente que en-tendem que a função de professor em nossa his-tória próxima sofreu considerável desgaste inte-lectual, social, cultural e econômico. No imaginá-rio social, ao que parece, o “mestre” nostalgica-mente idealizado de outrora cedeu lugar a umprofissional sucumbido à atual massificação in-dustrial, comunicacional e tecnológica, bem como àinabilidade em lidar com as manifestadas identidades

RESUMOO texto pretende entender odeclínio dos mestres namodernidade ou o quanto elespróprios se dizem“desvalorizados”,“desmoralizados” e“desautorizados”. O mestrenostalgicamente idealizado eabnegado de outrora cedeulugar a um profissionalsucumbido à atualmassificação educacional e àcrise política da autoridade.“Deus está morto”, diriaNietzsche, ou o “Pai estámorto”, diria Freud. Seria,então, o mestre uma contínuatentativa do humano derevivificar pai e Deus? Issonão é senão condená-loindefinidamente à impostura?Será este, pois, o tempo paraadmitirmos o mestre em suareal condição contingente eprovisória?Descritores: declínio domestre; psicanálise do vínculosocial; ética do provisório

Elôï, Elôï, lema sabachthani?(Deus, ó Deus, por que

me abandonastes?)Jesus Cristo

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e diversidades culturais emergentes e que fazem parte das institui-ções educativas.

A desautorização docente é tema recorrente. Professores sevêem às voltas com o ostensivo desgaste de seu ofício, além deterem de lidar com o indisfarçável desinteresse pelos estudos porboa parte do alunado. Os estudantes são reputados como agen-tes de desautorização e desrespeito à figura do professor, que sevê impossibilitado de dar cumprimento ao seu exercício de mes-tria ou de domínio. Há sempre um escárnio, uma zombaria, umboicote, uma afronta ou uma omissão discente, que induz ao quese vem denominando “sintoma social” que atinge a maior partedos processos educacionais, qual seja, um dissenso na relação pro-fessor-aluno.

A contingência pedagógica forja um docente que tende a de-saparecer, não tanto por sua permanência a priori fugaz, por seruma consciência dividida que substitui o que realmente sabe poruma prática negadora de seu saber efetivo, mas em virtude de umapagamento de si como índice de autoridade ou de governo. Umprofessor precisa fazer um esforço cotidiano para que seu lugarpermaneça inteiro, antes de vazio. Há diariamente um exercíciosevero de restituir um lugar discursivo apagado pelo escárnio, pelodesinteresse ou pela indiferença de uma parcela de alunos, bemcomo de boa parte das políticas institucionais que os orientam. Otrabalho docente – antes mesmo de se fazer falta para tornar pos-sível o preenchimento desse lugar por todos aqueles que estão deleexcluídos e que por ele aspiram, a saber, os estudantes – é investidode inúmeros estratagemas a fim de recobrar algum ponto estávelque se imagina nostalgicamente ter havido em um passado evoca-do como crepuscular.

Nesse sentido, muitos desses professores desdobram-se paraestudar novas prescrições formativas; instituir outras modalidadesde planejamento; desenhar metodologias e estratégias de ensinomenos tradicionais, capazes de satisfatoriamente garantir aprendi-zagens sob condições as mais adversas possíveis; buscar aquecer asaulas com novas tecnologias educacionais e novas “criações” dostentáculos psicopedagógicos; bem como estabelecer práticas avali-ativas menos ortodoxas, de acordo com alguma teoria efêmera,que contagia de tempos em tempos o discurso pedagógico. Mas arealidade é precária. O fato é que nenhum docente domina com-pletamente o que ensina e nem tem tempo e estímulo para se apro-fundar em questões acerca do conteúdo que ministra. No decorrerdo tempo letivo, muitos não conseguem cumprir todo o progra-ma previsto nos planos de curso, ministrando aulas sem muitosrecursos ou inovações. Em grande parte, avaliam mal o que foi

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ensinado, improvisando provas, repetindo exercícios ao longodos vários anos e corrigindo superficialmente os inúmeros traba-lhos e avaliações acumuladas no decorrer dos períodos. Algunsrevelam dificuldades de manter a disciplina e uma rotina de tra-balho que envolva seus alunos e alunas. São profissionais que ten-dem a transformar suas tarefas em meras rotinas, e boa partedeles considera sua profissão um complemento de subsistência,por possuírem outros empregos em áreas diversas e revelaremoutros interesses.

Disso resulta uma aporia que convém ressaltar. De um lado,instaura-se um laborioso exercício de vivificação da mestria, indu-zida por novas mentalidades pedagógicas referentes à concepçãode planejamentos, de didáticas, de avaliações, de recursos tecnoló-gicos, entre outras. Do outro, um desvalor histórico e uma realida-de precária impõem-se. Os tempos exíguos, os repetidos estrata-gemas, o domínio de conhecimento cada vez menos ostensivo emfavor de pedagogias muito genéricas forjam certo declínio docen-te cuja vivificação não parece ser suficiente para revertê-lo.

De modo análogo ao dito sobre o declínio docente, o pre-núncio nietzschiano “Deus está morto” vem sendo também repe-tido em grande parte da literatura acadêmica dos campos da filo-sofia, da sociologia, da antropologia, da história, como tambémda psicanálise, quando se debruçam sobre temas afins. Teorias so-bre a falência de instituições sociais, o aumento da violência urbanae da criminalidade, a perplexidade de projetos educacionais ante adiversidade cultural, entre outras, em regra, vêm associadas a umacrise de autoridade, a um declínio de um deus-pai ou a uma depo-sição da sociedade eminentemente patriarcal. Somos marcados hojepor evidentes indícios de uma Vatersehnsucht (nostalgia do pai) –termo de Freud (1913/1980a, p. 176; 1923/1980b, p. 52). Somam-se a isso as idéias sobre fratria, concernentes ao vínculo social dapólis, que entendem a civilização humana instaurada sob princípiosde uma ética fraterna. Tal ética é revivificada na modernidade pe-los ideais burgueses e liberais estabelecidos em suas revoluções.Fundamentalmente, são três: a “Gloriosa”, de 1688, em solo in-glês, que garantiu que o poder da Coroa seria definitivamente re-partido com o Parlamento, e que doravante nunca mais seria abso-luto; a da “Independência”, proclamada em 1776 pelos norte-americanos, que resultou na mais liberal (e talvez plagiada) consti-tuição suprema de um Estado moderno; e, sobretudo, a “Revolu-ção Francesa”, de 1789, maior inspiradora política, cultural e inte-lectual da mística da modernidade, em cujo brasão cintila a tríadeimortalizada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cida-dão, a saber, “liberdade, igualdade e fraternidade”.

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O Pater Pantôcrato (pai onipresen-te) de Platão, ou o Zeus, pai de todasas coisas, ordenador grego do cos-mos, que se tornou o Deus do desti-no na revelação judaico-cristã, pare-ce ter perdido seu fôlego em tem-pos modernos. Será mesmo? Será queesse Deus – mestre e pai – foi mortopelos revolucionários ao reinventa-rem o homem na liberdade, igualda-de e fraternidade?

Talvez não seja tão simples as-sim. Mas o fato é que o declínio dopai é impudentemente anunciado pelamística modernizadora. Há de se re-conhecer que sua autoridade, comosímbolo de domínio, desgastou-seem nossos tempos. Podemos suspei-tar que a crise do mundo atual, denatureza essencialmente política, con-siste também, e de modo fundamen-tal, numa crise da autoridade. Eis umespectro da derrocada de uma soci-edade regida pelo pater, que assisteao solapamento das fundações polí-ticas e das instituições sociais. Então,as revoluções da época moderna pa-recem gigantescas tentativas de repa-ração. Visam, se assim for, renovar ofio rompido da tradição e restauraressas instituições mediante a funda-ção de novos organismos políticos.Ora, mas em que consiste uma repa-ração senão no íntimo desejo de res-tituir a Coisa, lá onde ela é mitica-mente fundante?

Em nossa sociedade contempo-rânea, o pai parece mesmo ter sidodeposto do poder. A imagem pater-na torna-se cada vez mais esgarçada,vaga, desnaturalizada e desacredita-da. Do ponto de vista da experiên-cia, quanto mais os denominadospelos historiadores de “pais sociais”

forjam-se tirânicos, mais se vêem in-timidados e desautorizados. E quemsão esses pais sociais destituídos se-não as autoridades educativas, religi-osas e de governo? O problema éque tanto prática como teoricamentenão estamos mais sequer em posiçãode saber o que a autoridade realmenteé, como nos alerta Hannah Arendt(2002). A autora chega a asseverar,categoricamente, que a autoridadedesapareceu do mundo moderno. Eela não está só. Suas idéias conver-gem também para um ponto nodal,a saber, a tese do declínio da imagopaterna, já apontada por outros au-tores, inclusive por Lacan (2003), noinício de seus trabalhos.

É Freud, contudo, quem salva opai, ao manter, ao longo de seus es-tudos, um enigma tão impenetrávelquanto impreciso: o que é um pai?

O autor de Moisés e o monoteísmo(1939/1980c) reconhece que os his-toriadores de então falam do enve-lhecimento da antiga civilização tan-to paterna quanto deífica. Disso de-riva-se uma suspeita de que esses mes-mos historiadores aprenderam ape-nas causas acidentais e contribuintesdesse humor deprimido dos povos.Talvez Freud estivesse mesmo preo-cupado com o crescente aspecto dedesilusão deixado no rastro das ins-tituições contemporâneas. Em vez defazer coro com pensadores da épo-ca que anunciam um pai decaídocomo a grande razão para tal desilu-são, Freud parece ter revivificado opai ao instituí-lo como morto. Aquitemos, pois, uma aporia categórica,ressonante do desejo de reparação datradição, encontrado no seio dos in-tentos das revoluções modernas.

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“No princípio foi o ato”. Freud,ao final de seu Totem e tabu (1913/1980a), aposta na fórmula de Goe-the para afirmar que o assassínio dotirano inventa o gênero humano aoinstituir o pai como morto – funda-mento da imagem providencial deDeus. Não existe pai a não ser mor-to, somente revivificado em nível sim-bólico. Isso institui a cultura, bemcomo uma antropologia da origemdo humano.

Seguindo numerosas pistas deanálise antropológica de sua época,Freud recoloca a problemática dual,de caráter hobbesiano, do “estado denatureza” e do “estado de cultura”,no centro dos debates sobre o nasci-mento do homem e da mulher comotais – notadamente, recoloca tambémo ponto de origem do sujeito psica-nalítico.

Sob a forma de mito, o autorapóia-se na concepção darwiniana deum tirano sexual, violento e enciuma-do, que guarda as fêmeas e expulsaos machos, suas crias, à medida quecrescem. Daí, para além de Darwin,narra-se toda uma cena dramática emque os filhos, revoltados, matam otirano, canibalizam-no irmamente epassam a gozar de todas as suas fê-meas de modo incestuoso. O rito deantropofagia gera poder e culpa.Agora, não se trata apenas de se des-fazer de um estorvo, mas de incor-porá-lo. A prole revolta renega seuato ao edificar um totem proibitivoe simbólico como substituto de ummorto, que não é qualquer um, masum pai inventado. Ninguém podesubstituí-lo, sob o risco se ser igual-mente morto. Para isso, o bando fra-terno precisa de um esforço cotidia-

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no para que seu lugar permaneça vazio, pois sua instituição é tornarpossível o preenchimento desse lugar por todos aqueles que estãoexcluídos dele, que aspiram por ele e pelo qual não poderiam aspi-rar se já estivesse preenchido por um pai, mestre ou Deus. Porqueexiste o lugar do pai, sob a condição de exceção, inventado pelaordem fraterna como lugar vazio, todos podem desejá-lo e nin-guém pode preenchê-lo senão sob o risco de destruí-lo, bem comode se autodestruir. A sociedade fraterna passa, pois, a impedir-se,em virtude de uma “obediência adiada”. O pai morto, como pole-miza Freud, torna-se mais poderoso do que jamais fora em vida.

Esse pai morto, todavia, parece ser tomado com visível emba-raço pelos valores modernos, que o vêem muitas vezes apenas comoo tirano encarnado, vivo e atuante, subordinando todos à sua leiopressora. De Moisés a Cristo, de Genghis Khan aos imperadoresromanos, de Napoleão a Hitler, de Tiradentes a Vargas ou mesmode Piaget a Freud, cada um a seu modo, todos impuseram suas leis,suportaram por alguns instantes ser idênticos ao pai morto, e sofre-ram eles mesmos constrangimentos sociais sob a pena de uma im-postura: revolta, renegação, ostracismo, perseguição ou morte. Daíser curioso perceber como quase toda essa literatura, da filosofia àhistória, da antropologia à psicanálise, induz à idéia de que o declí-nio paterno e, conseqüentemente, do mestre – como aquele que seapresenta e encarna a sua lei – é sucedido por uma fraternidaderevelada. A isso, porém, procedeu outra questão: será que o pai ouo mestre foi mesmo morto pelos modernos? Ou será que, desdesempre morto, assim como instituiu Freud, ele atualmente apenasvestiu-se de novas modalidades traduzidas e pós-modernas, e per-manece sendo o mesmo grande estofo da vinculação social?

Na esfera educacional, o dilema do declínio docente parece ali-nhar-se ao dilema do declínio do pai ou, mais precisamente, da suaimago, o que recoloca o debate sobre o enigma paterno no epicentrodesta investigação. Coloca também, imbricado a esse enigma, o con-ceito tradicional de mestre como autoridade que faz garantir a sua lei.Porém, é necessário que façamos a disjunção entre pai e mestre, etambém entre ambos e Deus; disjunção que revolve as concepçõesmais tradicionais, que inevitavelmente tendem a fundi-los.

Ao que parece, a idéia de mestria vem sendo tomada pela tra-dição do pensamento contemporâneo, talvez desde Santo Agosti-nho, como aquele elo comum que conjugaria o Deus-pai à sublimeabnegação do homem e da mulher ordinários. De um lado, temosDeus, pai e mestre, guardado e glorificado como tal, através de seuvaticínio flamejado pela sarça ardente – “Eu sou o que sou” –como também através do seu nome próprio impronunciável,“YHVH”. É um mestre per si, livre de suspeita ou dúvida. Deus,

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dizendo essa frase bíblica e esse nomea Moisés, ao mesmo tempo prenun-cia e recusa, mas, nem por isso, deixade induzir uma certeza. Do outrolado, temos o homem-mestre, comoaquele que, mesmo terreno, abnegasua banalidade e eleva-se à condiçãode semelhante Àquele que é. À dife-rença do primeiro, esse mestre só oé à custa de esforço e de demonstra-ção. Torna-se, em regra, governantede pessoas, exemplo a ser seguido, omesmo exemplo que se reclama àdocência de nossos tempos e a todoaquele que exerce, desde os romanos,o governo do outro. Ainda que amodernidade seja marcada pelo sig-no do “pensamento raciocinante” –diria Hegel em seu Fenomenologia doespírito (1999) –, é possível afirmar queos valores românticos estendem-seaté nossos dias e emprestam aos pro-fessores, comuns e terrenos, as maisaltas exigências de sublimação abne-gada para que galguem o elevado lu-gar de mestre como sublime imageme semelhança de Deus.

Essas questões conduzem, porsua vez, a outras indagações: um pro-fessor, uma professora, ao se con-servarem na condição de mestres, sóo fazem ao se forjarem Deus-pai?Seus esforços não se voltam sempreao intento de assemelhar-se a Ele?Em outras palavras, o ato de educar,como uma exigência desmedida deuma sociedade de irmãos, restabele-ce em si a ordem paterna?

Dessas inferências, pode-se abs-trair uma primeira hipótese: mestressempre serão pequenos tiranos es-carnecidos. Ao tentarem cegamenteencarnar o “ao menos um”, lugarde exceção, outrora supostamente

ocupado por um pré-homem terrí-vel e gozador, assim como tantosoutros pequenos tiranos testemunha-dos pela história, é possível que es-ses mestres ordinários e terrenoscondicionem-se efetivamente a serdesmoralizados, desvalorizados oudesautorizados, uma vez sendo elesmeros impostores daquele que ja-mais pode ser encarnado por exce-der-se como morto.

Se constatamos um declínio domestre em nossa época, é possível vê-lo como resultante de uma desauto-rização política de sua autoridade. Aimanência liberal e racionalista damística moderna emparelhou todosnós, essa confraria de republicanos,como propriamente iguais. Mas lon-ge de sermos idealizados como tal, adescoberta freudiana já nos revelaraque somos iguais tão-somente na pre-cariedade e na insuficiência. O mes-tre deixa de ser o exemplo de mag-nificência, próprio da conjunção depai e Deus, e passa a ser também umprecário, tanto quanto são seus co-mandados, nessa massa de irmãos.Algo de sua autoridade é erodida,escarnecida e cinicamente debocha-da por parte dos não-mestres. Oimperativo republicano legifera emfavor do apagamento de nossas di-ferenças. Já não mais se pode notartanto o degrau entre mestres e co-mandados. Além disso, a moderni-dade, que separa Estado e Igreja,solapa igualmente a fusão entre mes-tre e Deus. Mas, se o passo históricofoi inevitável e fundamental, ele nãoparece ter munido o mestre de estra-tagemas ou de um novo conceito queo fizesse não ser mais um nostálgicode uma tradição ou de uma ances-

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tralidade perdida. Sobre isso, a pere-grinação meticulosa de Dom Quixo-te, talvez o primeiro mestre entre osmodernos, parece ser representativa.Ele é o herói do mesmo, o herói damundanalidade de todos nós, de nos-so quixotismo.

Os muitos nomes daimpostura

Poderíamos apelar aos ideais desublimidade quando falamos dosmestres. Muitos dirão que seu ato éefeito da dessexualização de intenções,voltado para dizer o bem, desprovi-do romanticamente de narcisismo eentregue aos artifícios da idealizaçãomoral. Freud mesmo ousou empre-gar o termo “sublimação” ao longode seu ensino. Mas não o fez desavi-sadamente. A sublimação que inven-ta é tida como uma das vicissitudesda pulsão – uma contingência, aomesmo tempo que um destino. Issoa faz ser não apenas uma mudançade objeto, como também uma mu-dança de alvo. Não se pode dizerentão que tal condição se dá às ex-pensas da dessexualização desse alvoe da idealização daquele objeto. Co-locar um objeto no lugar do outro éa arte da sublimação. Embora elapossa ser comumente concebida, àmaneira diacrônica, como uma trocade um objeto sexual por um não-se-xual, talvez seja possível pensar, apartir de Freud, que a sublimação,antes desse fim último, possa ser con-cebida como passagem: a passagemde um objeto a outro, de uma con-dição a outra. A sublimação é o ato

mesmo do Verschiebung (deslocamen-to), da mudança, da passagem, quede alguma forma faz encobrir o hor-ror ante o vácuo, ante a incompletu-de deixada, em última instância, narelação que se dá com o outro. Sefor assim, a sublimação pode mes-mo ser elevada à condição ética debem-dizer, em vez de ser colada aoefeito moralizador de um dizer dobem, desprovido de erótica e empan-turrado de código.

A ordem pedagógica cuida paraque a sublimação seja equacionada aonível do inexcedível, da transcendên-cia dos valores morais, intelectuais eestéticos. Trata-se de uma ordem querespeita a mística moderna e o retor-no aos ideais romanos de ter a mag-nificência sublime como fim. O mes-tre estabelecido e revivificado pelasvalências pedagógicas, segundo as leisclássicas que até agora as consubstan-ciam, é aquele fixado ao seu discur-so, a saber, ao discurso do mestre queo emparelha ao pai e a Deus. A ab-negação exigida dos mestres torna-os dóceis e devotados a uma causasacrificial. Pode-se até mesmo fazervista grossa a algum tolerável ímpetocolérico, próprio do exercício, desdeque seja assegurada “a sagrada mis-são pedagógica” (Lopes, 2003).

Obviamente, as teorias didáticas,por sua própria natureza, desabonamqualquer prática de incivilidade vindados mestres que formam. Mas é pos-sível tacitamente tolerar algum infor-túnio desarrazoado desde que os va-lores régios da ordem pedagógicasejam mantidos e até reforçados pelacólera de uns poucos. É extraordi-nário perceber como as valências pe-dagógicas levam seus mestres a tenta-

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rem a todo custo abnegar sua banalidade e elevar-se à semelhançado que é sagrado. À maneira romana, tornam-se exemplos a seguir,ao discursarem a partir do lugar de garante da lei ou do lugar dacerteza. Trata-se, porém, mais de uma tentativa do que de uma con-quista. Por mais que o discurso pedagógico incuta valores românti-cos à formação e ao exercício docente, conferindo aos seus profissi-onais as mais altas exigências de sublimação e de apoteose, todo esseesforço não conhece êxito razoável, quem dera absoluto. A impos-tura não tarda. Dessa herança, o mestre não se furta.

Entretanto, se for possível extrair da sublimação esse sentidodeífico e, de mesmo golpe, emprestar-lhe uma causa ética, talvezseja exeqüível entender, tão-somente assim, o ato do mestre queteorizo como um ato sublime. Para tanto, guardar as noções decontingência, de deslocamento e de passagem torna-se essencial.Tais noções podem melhor admitir nossa mortal, finita e precáriaexistência. O nada – o ex-nihilo – pelo qual somos estuporados porconta da ordem real dos acontecimentos, das insurreições cotidia-nas, da opacidade subjetiva, pode, quem sabe, ser melhor assenti-do quando colocamos sobre ele uma “peça destacada” (Miller,2004-05), uma peça suplente ou contingente, que jamais terá valoramalgamador de uma verdade capital. A modernidade tardia, comoa que vivemos, não reconhece mais uma só e única moral possívelem seu pensamento, tampouco reduz as leis que nos regem a umúnico código moralizante a que devemos todos irmamente obede-cer. A imanência parece ter libertado o real. Não que ele não esti-vesse lá desde sempre, mas a nossa mundanalidade faz-nos vê-loem nossa própria carne. É necessário que isso sofra nominação,que o sentido ou a verdade ceda ao nome: o nome como furo.

Para que tal feito se cumpra, o mestre precisa provavelmentese nivelar não à condição de Deus, mas à condição de causa dedesejo. Não creio que seja possível que se exceda nessa posição porum tempo maior que um instante. Essa causa impinge ao mestreseu caráter provisório e igualmente destacável. Temos aqui a “ex-sistência” antes da existência. Isso não é senão um átimo fora dosentido que não se inscreve nos códigos e nas verdades imanentes.A abnegação, a disciplina e a polidez podem perpetuar a existênciade um mestre, entretanto, não são capazes de subtrair-lhe a impos-tura. Nem alguma outra forma é capaz de fazê-lo. Assentir como“ex-sistente” é, quem sabe, abandonar não a impostura, mas odrama que ela causa.

Evidentemente, a modernidade fez do mestre, à semelhançade todo mortal, um “Deus de prótese” (Freud, 1930/1980d, p.111) que nega a si essa condição. A época moderna impeliu neleum gozo da imortalidade, senão física, pelo menos a da palavra.

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Incitou-lhe o trunfo de ter o domínio da natureza e de ter o signoda inversão do nosso destino antropológico prematuro.(Im)pulsionou-lhe igualmente o gozo de identificar-se com o signi-ficante primeiro (s1), o Einsieger zug, levando-o a proferir o discursodo comando, nem que, para isso, tivesse de afundar com seu pró-prio barco e morrer por ele. E mais: a modernidade fez o ho-mem-mestre espelhar-se no mestre per si, causa maior conferida aodiscurso pedagógico de nossa época. Desde as reformas religiosase de seus motivos protestantes e jesuíticos, o “mestre interior” deSanto Agostinho, qual seja, o filho de Deus, tornou-se não apenasum objeto de referência, mas um alvo. Como afirmei em Amor erigor (2005), quem mais poderia ser senão aquele que, mesmo sen-do filho, como cada um de nós, permanece sendo mestre? Quemmais poderia ser tão inesquecível ou tão imortal ao mesmo tempoem que é carne e caminha entre os seus como igual? Quem maismereceria o maior e mais inculcado espelhamento?

O mestre moderno, o mestre forjado e idealizado pelo dis-curso pedagógico, encarcerado no corpo de um professor urbano,de um governante burocrata, de um religioso mais crente do quefiel pode bem descer dessa cátedra – “desser”, conforme o neolo-gismo lacaniano. Ele pode bem deixar de ser: de ser o que tudosabe, o que tudo domina, o magnificente, para assentir com o lugarde “prótese” que lhe dá termo. Mais uma vez, tomo Freud ao péda letra. O termo não poderia ser mais pertinente. Uma prótese éprovisória, ao mesmo tempo em que é suplente, contingente e des-tacável. Essa foi a idéia principal a partir da qual desejei comporum mestre e imputar-lhe uma substância ética.

Orbitamos em torno de um tempo no qual não vejo maiscomo o mestre pode alongar-se interminavelmente no seu exercí-cio de governo do outro sem se dar à derrisão. É fato que ele aindaocupa quase fixo os mais diversos postos de comando; que igual-mente cria estratagemas para se manter nesses postos; que forjauma onda quase acéfala de discípulos para que seu lugar não sejacolocado a prêmio; no entanto, é fato também que a chamadapós-modernidade, por sua própria natureza desiludida e cínica, vemcriando novos mestres menos “institucionalizados”, crônicos e pere-nes, ao mesmo tempo mais pontuais, imediatos e provisórios. Cadavez com mais freqüência, nota-se o surgimento de mestres à frentede projetos sociais específicos e sem detença, na condução de tra-balhos de organizações não-governamentais, na gestão de progra-mas acadêmicos de extensão e de interface comunitária, na direçãode querelas culturais, identitárias e de movimentos políticos, enfim,cada vez mais se nota a presença de mestres cujo provisório passaa ser o imperativo ético de seu exercício. Os diretores eternos, os

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chefes de seção imutáveis, os acadê-micos conservadores e fixos em con-dutas e saberes que não se alteramcom o passar dos anos, como tam-bém todos aqueles que crêem noamestramento, seguramente sofremcedo ou tarde os efeitos do desmen-tido e do saldo cínico.

Tais efeitos ocorrem das maisdiversas formas. Se considerarmosapenas o espaço acadêmico, para efei-to de ilustração, perceberemos que osdramas cotidianos individuais; o de-pauperamento das condições de tra-balho; o pouco reconhecimento pro-fissional por parte das instâncias con-tratantes; a sobrecarga de tarefas e oexíguo tempo livre para se dedica-rem aos planejamentos; os ínfimosrecursos destinados à pesquisa e àextensão; a necessidade de multipli-car empregos para manutenção dedespesas; a proletarização da profis-são, bem como a ausência de políti-cas públicas mais sólidas que legis-lem e regulamentem as estruturas eos sistemas de ensino não deixam deser formas de um desmentido, de umcinismo social e de uma desautoriza-ção política dos mestres.

E ainda: “Os alunos não queremsaber de nada”. Esse é outro assom-bro por parte dos desautorizados. Oescárnio, a zombaria, o boicote, odesinteresse ou a omissão discentetambém é mais um nome disso quefundamenta uma impostura.

Evidentemente, não sou nem umpouco solidário com esse depaupe-ramento dramático que vem acome-tendo o labor docente. Denuncioigualmente as formas cínicas de des-mentido e de desautorização pelaqual passa cada professor no exercí-

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cio de sua profissão, e entendo asforças que as provocam. Entendotambém a “fabricação” de um dis-curso pela época moderna que ace-lera essa dramática e lança cada mes-tre que forja à solidão de seus pró-prios recursos. A ordem pedagógicaperece corroborar o esvaziamentodo debate político do trabalho do-cente. Sou, desse esvaziamento, umincessante combatente. Trata-se deuma peleja diária e não há como abrirmão dela. Entretanto, reconheço quetoda essa empiricidade não é outracoisa senão mais um efeito de nossafinitude e inacabamento antropoló-gico. Isso não é o mesmo que natu-ralizar uma estrutura. Não precisorecorrer a esse mote e a esse “sono”como forma determinista de argu-mentar o real. Consentir com a im-postura como fundamentalmenteprópria do ato de governo do outroé, quem sabe, consentir igualmentecom nosso inacabamento humano.Tal fato não pode ser índice de aba-timento nem de prostração. Se a hu-manidade inventa para si mestres eguias que possam nos amar, nos edu-car e nos governar, dando-nos algu-ma ilusão de antecipação jubilatória,é porque talvez tenhamos que fazerregurgitar, a cada momento possível,um “nome” provisório, em vez denos vendermos exclusivamente aosideais megalômanos que “fabricam”os mais iludidos impostores.

Mas, afinal, voltando à idéia,como podemos definir e caracteri-zar essa impostura do mestre? As aná-lises, as especulações e as teorizaçõesrealizadas no meu trabalho de dou-torado remontam a uma perspectivaantropológica específica, movem-se

por conceitos de difícil entendimen-to, criam uma nova possibilidade deestabelecer um mestre que não sejamais os abnegados de outrora e cul-minam num exame dos efeitos damodernidade na ordem pedagógicae no ato de mestria. Devo reconhe-cer que, na realidade, teorizei sobre aimpostura do mestre de diversasmaneiras. É impossível amestrar semse deixar ser um impostor. Esse im-possível não é mais do que o de umofício desmentido, incapaz de darcabo de um alvo, como se pode per-ceber no ato de educar e de gover-nar. Enumero as causas que motiva-ram minha investigação:

1. De início, constato a impostu-ra atribuída à ordem da Vatersehnsucht(nostalgia do pai), empunhada porFreud (1913/1980a). O sucessor podechamar a si o preenchimento do vá-cuo deixado pelo Urvater (pai primei-ro) e, com isso, tentar eliminar todo equalquer tipo de nostalgia. No entan-to, esse é o menor de seus problemas.Garantir-se nesse lugar torna-se seumartírio. O drama do sucessor não épropriamente matar o pai, mas certa-mente reinventá-lo. Esse pai primevo,esse “ao menos um”, não é mais doque um cálculo de contagem impos-sível. Ele é o número zero (0), queentra na cadeia dos números absolu-tos, mas que não se conta, mantendo-se como enigma ou exceção. Ele nãose reduz efetivamente ao número três(3) do ternário edipiano racionalista.Não é um pai do corte, um pai que seiguala à lei. Antes, é um pai suplente,aquele que está lá como destacável,assim como o é a própria linguagem.

Eis o pai que embaraça Freud,dito que é enigma. O autor se depa-

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ra com uma inversão lógica. Se ha-veríamos de dizer “o pai está morto,então tudo é permitido”, no revés,constatamos uma impossibilidade:“o pai está morto, então nada mais épermitido”. Percebemos que ao ir-mos ad patrem (à morada do pai),passamos a nos ver como finitos,mortais e contáveis um a um, paraalém do zero que nos excede. Dessemodo, não nos é mais possível admi-tir inteiramente o pai como o repre-sentante simbólico da lei, à maneirade Freud, quando desenvolveu suateorização sobre Moisés. Se assimfosse, não restaria outra coisa senãofazer confluir o pai e o mestre. Aoinstituir esse pai como morto em ní-vel real, Freud realmente tenta res-ponder ao vácuo deixado pelo atoassassínio através, sobretudo, da or-dem simbólica. Mas, assim proceden-do, ele depara uma opacidade real nãoredutível a nenhum sentido. O “ro-chedo da castração”, a “pulsão demorte”, o “id” (isso) são alguns dosnomes dessa opacidade que reconhe-ce, teoriza e, às vezes, deixa-se sur-preender. O real não precisa necessa-riamente ser lido ou interpretado pelosimbólico, então é possível operaruma disjunção entre pai e mestre, demodo a reservar ao primeiro o lugarlógico, não-contável, de exceção. Eleestá lá, porém fora da consistênciahistórica e também fora do sentidoque o encapsule. Ele está lá, e só sa-bemos disso pelos seus efeitos.

O mestre, diferentemente, não seencontra lá, mas se apresenta. Ele rei-vindica para si alguma consistência oualguma função de representação, queinevitavelmente sofre desmentido.Todo mestre é mais um que se con-

ta. Ainda que ele se apresente comoum genuíno substituto do pai prime-vo, e que suscite, graças a isso, con-fiança em sua palavra e em sua pes-soa, além de adesão amorosa a ummito do qual ele é porta-voz, cedo outarde ele será escarnado. Ele pode sero melhor condutor de homens e mu-lheres, o mais seguro representante dalei, o mais democrático legislador ouo mais abnegado educador. Mesmoassim, a interrogação não lhe tarda eo eclipse será seu destino. Não há ne-nhuma posição de magister que o chan-cele a emparelhar-se ao pai. O mestrepode querer dar-lhe um invólucrocorporal, mas não se livra, nem a ele,nem às suas leis circunstanciais, do en-velhecimento e do desaparecimentocontínuo. A história é testemunha.

2. A tomada do falo imagináriocomo um emblema de si pode serconsiderada outro nome da impos-tura do mestre. O falo não se reduzao pênis, mas à sua ausência. Comodebati longamente no terceiro capítu-lo, a noção de falo é crucial para Freud,que o trata como “primazia”, e rece-be de Lacan uma verticalidade e umdesdobramento necessariamente fun-damentais. O falo alberga em si umcaráter simbólico, como significante;um caráter real, como “peça destaca-da”; e um caráter imaginário, comoemblema de poder. Evoco esse últi-mo caráter para mostrar seu efeito dedesmentido. O falo como figuraçãode poder e suas correlações, como osaber, a virilidade, a masculinidade, asuperioridade, entre outras, encontraconsiderável expressividade e consis-tência junto a várias formas de rela-ções sociais, inclusive as concernentesà relação pedagógica e à de governo.

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Um mestre reclama para si uma inflação fálica, uma identifica-ção imaginária com essa condição, e por causa disso não recua deseus expressivos emblemas de potência. É comum, no que concer-ne à empiricidade, o mestre querer abusar de seus recursos de do-mínio e de governo do outro, ao reclamar para si uma identifica-ção dessa natureza. Se considerarmos a esfera pedagógica, os co-nhecimentos reproduzidos, as metodologias aplicadas, as sanções,as coerções, as checagens de aprendizagens, as avaliações não dei-xam de ser modos de como um mestre não cessa de lembrar aosdiscípulos o quanto uma tecnologia de si se presta à presunçãofálica. Entretanto, a pouca serenidade desse exercício mostra o quan-to a ameaça de esvaziamento e declínio de sua pretensão imagéticalhe é muito iminente.

Alem do mais, como é bastante difícil reconhecer nesse falicis-mo algum caráter especificamente lógico, destacável, de exceção, omestre vê-se sempre suscetível de “colar-se” numa imagem virili-zada ante a freqüente ameaça de destituição. Ele passa, sim, a acre-ditar textualmente que o falo possui consistência ôntica, que seusemblemas têm valor de verdade e que aquilo que ele representadeve tudo submeter. Essa crença na materialidade fálica, em suaconsistência explícita, é o seu ponto cego, que o deixa abraçadocom a impostura. No entanto, não será a reversão dessa crença oua tomada de uma posição lógica – que jamais se reduz a algumametodologia ou a alguma obediência pedagógica – que levará omestre a furtar-se profilaticamente a seu destino. Não existe profi-laxia para isso, pois o juízo racional não alcança essa posição. Ade-mais, o mestre parece sempre gostar das imagens que forjam paraele, seja a de um tirano virulento, a de um condutor doce, a de umdemocrata flexível ou mesmo a de um laissez-faire. Ao governar ooutro, ele tenderá a portar o emblema de um objeto que vagueiapela ordem humana sem que este jamais encarne em qualquer umque se apresente como seu portador.

3. Examinemos a impostura também de outro modo. Trata-se da análise do vínculo social, especialmente aquele que se refere àentrada do homem e da mulher na modernidade, e a prevalênciade seus ideais em nossos dias. A “igualdade”, entre os tantos valo-res republicanos e revolucionários, guarda um importante princí-pio que, em certa conta, contribui para uma desautorização políticado mestre. O igualamento das diferenças tende a nivelar mestres ediscípulos, de maneira tal que sobre os primeiros recai uma exigên-cia de rebaixamento de autoridade necessário para que a “fraterni-dade” se consuma. Os mestres não compõem mais a sublime ima-gem e semelhança divina. Livraram-se disso. O preço dessa “liber-dade” não é outro senão o de um aviltamento político de sua auto-

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ridade. Um emparelhamento dessa natureza somente pode efeti-var-se às expensas desse rebaixamento.

O rebaixamento golpeia o mestre, sobretudo em seus valoresmais tradicionais, ao mesmo tempo em que o lança de saída, semmediações, ao domínio da inventividade. Se for verdade que omestre parece situar-se hoje entre o apagamento da diferença e anecessidade de uma reparação, há de se considerar em seu exercí-cio diário o objetivo de recuperar algo dessa autoridade políticagolpeada. Criam-se incessantemente diversos estratagemas para quese possa levar tal objetivo a cabo: formas de governo mais ágeis,novas linguagens tecnológicas e de exposição, pedagogias maisreflexivas sobre a experiência, bem como modos mais provisóri-os de manutenção de poder. É óbvio que muitos desses e outrosestratagemas mostram-se inócuos e reclamam constantes revisões,dados seus efeitos movediços. Entretanto, pode-se considerar queessa invenção diária talvez espelhe uma grande intenção das pró-prias revoluções modernas, que se traduz como reparação da tra-dição. Em outras palavras, assim como tais revoluções acionamsuas forças para restaurar alguma forma de autoridade políticaque nos funda desde os romanos, os estratagemas que os mestresefetivam em suas “revoluções diárias” podem bem representaressa mesma intenção, qual seja, a de restaurar para si alguma formade autoridade perdida.

Se considerarmos especificamente a cena pedagógica, enten-deremos o quanto o mestre moderno, reduzido à docência e aosgestores educacionais, tem não só sua autoridade interrogada, comotambém seu conhecimento e sua experiência. Creio que o discursopedagógico e a própria “ciência” que leva esse nome contribuemdesastrosamente para que sua impostura se faça ainda mais rápida.Forjar um domínio geral do ensino e da aprendizagem, subtrairou exigir do mestre cada vez menos densidade de conhecimentos,de saberes e de experiências só o faz estar um passo adiante dequem comanda. Somando-se ao fato de que mestres e discípulossão vistos cada vez mais como semelhantes, irmanados quase quena mesma condição, não há como negar que o apressamento desua impostura não lhe tarda. A queixa de desvalorização, desmo-ralização, desrespeito demonstra ser tão-somente a superfície maisaparente que desemboca num saldo cínico e num aligeirado des-mentido, reforçados pela ordem e pelas fundações pedagógicas.

4. O caráter institucional também merece algum juízo que atu-alize a idéia da impostura. Sabemos que a época moderna, pelaprópria ideologia liberal-republicana, “fabricou” e multiplicou as ins-tituições de maneira que pudessem garantir a prevalência dos novosmodos de sagrado, a saber, o Estado e a razão. O sagrado, que

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alberga em si o duplo sentido de invi-olável e execrável, remonta também ànoção de pai, de pátria, como funda-mentalmente necessária para fazer-seprevalecente. Se o sagrado remontaao pai e a instituição remonta ao sa-grado, então deduzo que a instituiçãorecupera para si a noção de pai, a fimde levar a termo o propósito de per-petuar o princípio liberal que a rege e,de mesmo golpe, perpetuar-se nele.Parece haver, então, um dispositivo ouuma tecnologia bastante sutil e igual-mente eficaz, sobre a qual as institui-ções modernas não deixam de lançarmão. Eis o que denominei “linha defrente” ou “exército de defesa”. Paratal, vale recuperar, em parte, a noçãode Vatersehnsucht freudiana.

As instituições, no interior desuas organizações, induzem personi-ficações mestras e as legitimam comoreais substitutos do pai primevo, paratransferirem a elas, com efeito, o pesoda sua destituição. Desse modo, pro-telam ao máximo um destino. É no-tável o quanto essas organizaçõessempre elegem este ou aquele indiví-duo como mestre, como figura cen-tral, para quem o interesse da maio-ria de seus organizados se volta commais freqüência. A individualização decondutas demonstra ser um preceitoda instituição. Trata-se de uma tec-nologia sofisticada, própria da alian-ça fraterna, segundo a qual sujeitossão transformados em mestres, elei-tos de acordo com os seus dispositi-vos peculiares e individualizadoscomo substitutos do Urvater.

Mestres, uma vez individualiza-dos, passam a ser alvos de um des-mentido. Ao mesmo tempo, a insti-tuição solapa quase a olho nu sua fun-

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idéia antropológica do inacabamen-to e incompletude humana. A natu-reza achou-se incapaz de nos munirde uma tecnologia física e genéticasuficientemente necessária para ultra-passar os próprios obstáculos que lheestão na origem. Essa debilidadeimputou-nos dependência. Somos,graças a isso, carentes de um outroque nos eduque, nos guie, nos ame enos governe. Trata-se de uma exigên-cia cultural que forja os “mestres dedisciplina”, cujos atos de cuidado deum adulto em relação à criança nãose reduzem àqueles que um mamífe-ro qualquer empresta ao seu rebento.Nossos atos de cuidado requeremtransmissão. São atos revestidos depalavras que nos inculcam um gover-no de si, uma apreensão significantedo corpo ou uma apreensão “jubila-tória” da existência. O mestre, muitomais do que um zeloso mamífero ouuma perspicaz e instintiva nutriz, tor-na-se aquele que permite transformara necessidade do animal humano emdemanda de sujeito.

Se for assim, o mestre precisa sero garantidor da palavra, seu guardião,uma vez que a recebeu dos mestresque cuidaram de si, que igualmentereceberam dos mestres que cuidaramde seus mestres, nessa infinita ances-tralidade em que reside a alma e aodisséia humanas. Temos, portanto,uma dívida jamais saldada, por ter-se perdido na origem. Pode-se atéelevar a palavra à categoria de lei aser transmitida, mas, uma vez postana cadeia significante, algo se perdeno ato. A repetição nunca se dá a ter-mo. Ela sempre está em estado deerosão, uma vez que a insurgência reale a singularidade do acontecimento

ção de autoridade política em favordos ideais de igualdade e de fraterni-dade. Sua bancarrota é certa. No inte-rior das organizações, os mestres pas-sam da condição de objeto à condi-ção de dejeto, pois, como tais, expi-am uma outra impostura, além dassuas próprias. A instituição e as orga-nizações que forja são igualmente im-postoras, posto que clamam a si o lu-gar sagrado à altura do pai morto. Maselas precisam de tempo para que osideais modernos se perpetuem. Nãopodem se dar tão rapidamente à im-postura. Para isso, elas precisam de uma“linha de frente”. Quem, senão ospequenos “deuses de prótese”, os nar-cisistas das pequenas diferenças, enfim,quem, senão os mestres, poderiam ali-nhar-se em sua defesa!

Eis uma obra da cultura. Osmestres pagam por sua impostura epagam igualmente pela impostura dainstituição, já que nem ela, nem algunsdeles, são as permutas de algo quenão se conta, que não entra na cadeiade substituição. Os mestres talvez se-jam esse “exército de defesa”, paraque a instituição viva tempo suficien-te de modo que a ordem fraterna sejaassegurada e a sociedade não pereçana entropia. Enquanto a instituiçãoforja seus mestres encarnados e essessão desmascarados antes dela, suaforça permanece vigente e a civiliza-ção procrastina. As instituições, des-se modo, prolongam a sua vida, re-vigoram-se intermitentemente, aoadiarem a sua impostura, repassan-do-a então aos seus eleitos.

5. Afastando-nos um pouco des-se debate sobre o vínculo social e ins-titucional, poderíamos entender aimpostura do mestre com base na

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não reconhecem palavra, nem lei,nem ancestralidade suficientes pararecobri-la. A impostura do mestretalvez resulte dessa antinomia que sedá entre a lei ancestral que ele trans-mite – e à qual deve tudo submeter– e a impossibilidade de essa mesmalei acondicionar o real.

Inscrevemo-nos como sujeitosculturais ao libertamo-nos da natu-reza. Em função disso, pagamos umônus referente a essa subtração denosso estado natural. Porém temosaí uma dívida impossível de quitar,pois jamais se salda aquilo que a leicultural nos subtrai. Para tal, forjamoso requinte da transmissão. Transmi-te-se uma dívida: a própria lei é amaterialização dessa dívida. Logo,mais uma vez, o mestre é um impos-tor, na medida em que paga o ônusde uma dívida impossível de saldarcom a palavra.

6. Uma outra maneira de teori-zar sobre a impostura achou-se, porexemplo, na “produção dos quatrodiscursos”, estabelecida por Lacan(1992). Defendo que, ao pretenderfixar-se no discurso que leva o seunome, o mestre, à maneira perversa,tenta nivelar-se ao pai e a Deus. Pas-sa a ser a todo custo o dono da lei,seu guardião e transmissor, deman-dando que o outro para quem exer-ce governo submeta-se a ela incon-dicionalmente. O destino de ambosé o gozo; o gozo que se traduz comoobjeto produzido fora da lei. O mes-tre será mesmo um impostor aoanunciar o impossível: tudo, inclusi-ve o gozo, deve se regular por essalei que representa.

Algo da mesma natureza pareceocorrer quando o mestre pretende

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fixar-se no “discurso da universida-de” ou no “discurso da histérica”.Ambos, assim como o anterior, tam-bém o conduzem a um desmentidoe, por isso mesmo, a uma imposturaconstitutiva. A pedagogização é in-trínseca ao discurso universitário. Demodo paranóico, o mestre recorre àsgrandes obras e aos autores clássicospara apresentá-los àqueles que elesupõe nada saberem, aos não-mes-tres, aos que “não fazem nada quepreste”. Mas o que produz é um su-jeito, ali onde deveria ser apenas umobjeto. É esse sujeito que o contesta,zomba dele, afronta-o e, enfim, des-mente-o. Fixado por sua vez na po-sição histérica, o mestre passa a serum queixoso, um lamuriento. Na re-alidade, trata-se de uma posição neu-rótica, cuja fantasia sempre incide emnunca achar-se suficiente para o ou-tro e, igualmente, nunca achar o ou-tro suficiente para dar-lhe aquilo deque tanto se queixa. A falta e a divi-são são a rubrica de seu discurso, quejamais pode deixar que o outro go-verne, já que não tem o saber da ver-dade de sua forma de gozo. Repete-se nesse jogo indefinidamente: em vezde operar, queixa-se – isso revela suaimpostura.

De modo anacrônico, temos o“discurso do analista”. É o discursode passagem ou o próprio lugar dapassagem, do provisório, do contin-gente. Ele não é o discurso final, tam-pouco o melhor entre eles e, também,não segue uma linha sucessória, nemprogressiva. Ele surge no intervalode um discurso a outro, uma vez queé impossível fixar-se longamente emcada um dos discursos, dado seu ca-ráter de impostura. O que surge é a

causa de desejo: um instante em quetalvez o mestre possa fazer valer oseu nome. Através desse discurso, quenão se reduz aos psicanalistas, o mes-tre pode nomear sem excesso de sen-tido, sem prevalência simbólica sobreo imaginário e o real. Isso tem omesmo estatuto lógico do anúncio dasarça ardente a Moisés – “Eu sou oque sou” –, quando Deus se nomeiasob forma de recusa; ou do episódioda mulher adúltera – “Atire a primei-ra pedra” –, quando Cristo legislasem julgar. É uma forma de tudo enada saber ao mesmo tempo. É umlugar de passagem, ou seja, um lugarde impossível captura pelas metodo-logias pedagógicas e pelas ciências doensino.

O mestre provisório

Nisso reside o coração mesmodeste trabalho – quem sabe, sua mai-or ousadia. Há um mestre que não sereduz a nenhum mestre xamã de nos-sas sociedades ancestrais; nem a ne-nhum mestre simbólico que restaureuma ordem e uma sociedade eminen-temente paterna; tampouco a ummestre abnegado, como quer a des-medida moralidade pedagógica. Nãohá como requerer mais um mestre doexcesso de sentido ou do abuso docódigo e das prescrições. O mestreque invento é um “mestre provisó-rio”, cujo trato etimológico remontaao termo provisu, no sentido em latimde uma provisão passageira, comocreio ser o próprio efeito do ato denominação.

O mestre comum apresenta-sevisando repetir o que já foi nomeado

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por outros mestres que o antecede-ram. Mas são todos mestres terrenos,precários em sua condição humana,insuficientes ao serem nivelados àimagem do que é per si. A repetiçãoque o mestre empreende é sempremal feita, mal-acabada, tanto quantoo é a sua humanidade. Isso faz deleum impostor ao nunca conseguir ele-var sua transmissão – a transmissãoda palavra – à altura do que deva sertransmitido. Não há sequer algumainstituição que conceda plenamente talinvestidura, nem alguma formaçãopedagógica ou política que fixe atransmissão como um ato preciso,sem arestas, sem resíduo. O mestrerepete mal. Talvez seja isso que o sal-ve, ou seja, que o faça vestir-se comoum “deus de prótese”.

Se assentirmos que a expressão“Eu sou o que sou”, atribuída a Deus,funciona como um ato de nomina-ção, à semelhança do “atire a primeirapedra”, dito por Cristo, ou à seme-lhança da invenção de Édipo, estabe-lecida por Freud, é possível conceber-mos que o mestre, qualquer que sejaele, pode igualmente fazer “furo”; furoreal no nível do simbólico, tão ao sa-bor do que se acha nas últimas teori-zações lacanianas sobre o Nome-do-Pai(Lacan, 1974-75, 2005). O tempo nãopode lhe ser maior do que o de umaimpostura. Seu ato não excede ao queé provisório, destacável ou suplente.Se for assim, o mestre não pode seapresentar como aquele que tudo sabe;nem o contrário, como aquele quenada sabe. Sua posição é a de passa-gem, de provisão passageira, movidapor sua causa de desejo que o induz àmestria, sem necessariamente fixar-senela. Dizer, por exemplo, “Eu sou o

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que sou” em absoluto é apresentar-secomo todo-saber, tampouco é apre-sentar-se como o que nada sabe. Eisum lugar estranho, de anúncio e derecusa ao mesmo tempo, que contra-ria qualquer um que queira fazer seulugar de mestria durar o tempo mai-or do que aquele que a própria mes-tria exige: o tempo do gozo do poderou do mais-gozar que isso engendra.

O ato de nominação, que fazLacan retornar ao pai freudiano e re-fundá-lo como nomeante, não se re-duz estritamente ao ato de dar senti-do às coisas. Não é por isso uma no-meação da monotonia do código,nem de um excesso de simbólico,como o conhecemos no apressamen-to psicologizante ou sociologizantede nossas condutas. O ato de nomi-nação é o ato do redemoinho, que,através de seu “furo”, suga o nomedo sentido e cospe um nome do real.Através desse redemoinho, os atos eas palavras dos mestres são tragadospelo furo, no que concerne ao turbi-lhão simbólico, e regurgitado de vol-ta como um resto, um resíduo, umsuplemento provisório. Só aí, repito,o mestre pode emparelhar-se ao paida invenção freudiana; esse pai quefora subtraído de seu patronímico desentido ao ser-lhe dada uma funçãode “ex-sistência”.

Freud forjou um mito, empres-tou-lhe uma arquitetura antropológi-ca, do mesmo modo que “comen-tou” Sófocles e desenvolveu umcomplexo justamente sobre o pontoopaco de sua teoria. Nela, a verdadeé meio-dita, já que necessariamentenão descreve nem explica algo racio-nal e tecnicamente estabelecido. An-tes, ela é potência de criação tanto

quanto modificadora da realidade.Com Édipo, por exemplo, é prová-vel que Freud inscreva e dê nome àsua própria neurose, ao mesmo tem-po em que a remete à singularidadeprópria do sintoma ou do sinthome,como diria Lacan. Talvez o comple-xo edipiano, como também o mitodo Urvater, sejam alguns dos nomes dopai. Eles funcionam justo no ponto emque falta à teoria um nome estável egenérico que explique o real, caben-do-lhe, então, um nome passageiro,inusitado, quando regurgitado do furoprovocado pelo ato de nominação.

Se tomarmos o pai da horda,assim como o complexo de Édipo,somente no nível do significante-mestre, com base no discurso queleva esse nome, não afastaremos apsicanálise de um sentido doutrinal,unívoco e religioso. Freud embara-çou-se nessa causa, pelejou para de-senovelar-se dela, conseguiu magis-tralmente teorizar o real por meio dapulsão de morte, mas, ainda assim,foi obscura a disjunção que fez entrepai e Deus e entre pai e mestre. Opai está morto e, em vez de nos en-lutarmos com sua morte, como ahumanidade fraterna que o sucedeu,substituímo-nos a ele, perpetuandoperante o outro sua vontade de cas-tração. Para tal, damos-lhe a imagemdo destino como Deus e, igualmen-te, a sublimação abnegada comomestre. É provável que assim possa-mos mascarar melhor nosso próprioe íntimo gozo maligno. O silêncio deum Deus-pai na origem ou de umhomem-mestre sempre impossibili-tado de exercer seu governo, endos-sa, de alguma maneira, a face letíferade cada um de nós. Que pai é esse

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que não comparece diante da mortedo filho na cruz? Que não interditaAuschwitz? Que, no nosso caso, nãoparalisa os navios negreiros, nem asmortes nos morros e favelas? Quepai é esse que deixa o céu vazio dian-te dos inócuos projetos escolares eda ausência de políticas públicas quevisem a eqüidade social?

Esse pessimismo sociológicopode ser encontrado em Moisés e omonoteísmo, de Freud (1939/1980c). Jásabemos. O livro ilustra bem seu em-baraço quanto às vicissitudes do pai.Não há como negar que a força ora-cular do significante impôs ao autor,muitas vezes, uma mestria no seu sen-tido mais clássico. Poderíamos respon-der a esse silêncio do pai morto comum excesso de sentido. Mas talvez nãoseja mais preciso. Lacan dispôs de boaschaves para desatar esse nó. Ele con-vocou a estrutura no lugar do mito,indo além do complexo de Édipo,desmontando-o; subtraiu de ambosuma composição excessivamente sim-bólica, de igual apelo imaginário emítico, para dar-lhes uma estruturaçãológica. Isso provavelmente recupera edescortina uma noção posta na ori-gem: a de “complexo-pai”, comobem quis a letra freudiana.

Tudo isso, na verdade, “cospe”o mestre que invento. Se for possívelassentir a um mestre como um “deusde prótese”, que se demite do suces-so pedagógico e de toda política ca-paz de universalizar a sua função, logoele não será outro senão um mestreprovisório. Não falo aqui de algo deli-berado, voluntário ou planejado, ca-paz de ser garantido nos cursos deformação e nas instâncias de exercí-cio continuado. Trata-se muito mais

de algo admitido como efeito que, porisso mesmo, não conhece nenhumaprescrição. O provisório não se en-cerra num plano, nem é um ato pro-gramável, passível de compor as agen-das dos cursos de formação e os in-findáveis seminários de aprimoramen-to e “reciclagem” metodológica –esse termo assombroso. É impossí-vel poder capturar o que enuncio pormeio de aulas para saber como serprovisório, nem é possível capturaresse caráter interino da mestria, dan-do-lhe a devida “vazão”, como é co-mumente dito no foro pedagógico.Dar vazão à contingência, ao avessoou à sombra: soa patético!

O “princípio da razão desinte-ressada” pode ser aquele que conduzo mestre provisório. A expressão éde Rancière (2002, p. 121), mas evo-co-a mais no sentido da consistênciaética proposta por Badiou, segundosua idéia que diz do “interesse desin-teressado” (1995, p. 60). Evidente-mente, o ato do mestre depende deum interesse, como também de umarazão para se efetivar. No entanto, éno sentido radical do desinteresse quese há de induzir uma verdade ima-nente como efeito. O mestre apre-senta-se aos seus e à instituição que oacolhe como “inteiro”, num excessode si sobre si mesmo. Mas igualmen-te ele se encontra lá, sempre um pou-co suspenso, não muito vigilante desi, um tanto destituído e, quem sabe,por demais desinteressado. Nisso, acultura de sua razão pode se opor àexatidão das analogias, das metáfo-ras, das referências mestras, que apolítica de seu exercício exige comopositividade. Não é “dizer do bem”,como requer o cientificismo da ra-

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zão, mas “bem-dizer”, como talvezqueira a sublimação de uma razão de-sinteressada.

Abrem-se, então, muitas outrasperspectivas de análise endereçadas àcausa do ato do mestre. Todas fusti-gam o cogito, mas nem por isso dei-xam de ser igualmente parciais. Mes-mo aquelas que apelam às intençõespoéticas não escapam de tal destino.Há, porém, uma vantagem em elevaressa razão, estranhamente desinteres-sada, não mais à condição do que seespera da grande e reta razão, mas doque se espera da licença artística. A arteparece estar intimamente ligada ao atotal como ele se dá. Ela parece ser umlugar de passagem sobre o qual sabe-res – sempre provisórios – são so-brepostos ao inusitado daquele que aconcebeu. Como diz René Char, evo-cado por Barbié (1998): “O poeta vi-vifica e depois desaparece no momen-to do desfecho...”.

Pouco sei se há um sentido artís-tico no ato do mestre. Quem sabehaja um sentido dessa natureza maispropriamente num foro específico erecortado como o pedagógico! Lá,o mestre encarcerado por esse dis-curso talvez possa fundar-se segun-do uma epistemologia da prática oudas circunstâncias que clamam, aoinduzir singularidades, por algum tinoou intuição poética. Lá, quem sabe,o mestre possa ser o poeta de si edas coisas, como quis Rancière.

Um poeta não se delonga notempo. Sua obra, talvez. Isso pareceser o avesso da tirania, que busca rei-nar absoluta e dilatadamente, mesmoque a deposição lhe seja o fim. Se omestre pode se apresentar no avessoda tirania ou se o mestre pode se

apresentar no estado da arte que seuexercício invoca, talvez seja possívelconcebê-lo como realmente provisó-rio. De mesma forma, deverá sertambém o coletivo sobre o qual exer-ce domínio. Não creio que grandesorganizações, grupos e movimentosmais complexos, de vida mais alon-gada, corroborem o mestre, no sen-tido de fazê-lo exercer sua arte me-nos tiranicamente e de modo maisprovisório. É difícil imaginar o quantoa “causa de desejo” do mestre podeser escrita quando o mais-gozar davontade de poder sacia-se, sobeja-mente, através da democracia pro-gramada, da burocracia política, daverticalidade institucional ou das hie-rarquias pedagógicas.

Infiro que pequenas fundações,organizações mais artesanais e coope-rativas, movimentos culturais, identi-tários e sociais, menos complexos emais pontuais, com causa e conceitomais bem delimitados e divulgados nocoletivo, talvez sejam mais favoráveisà face interina da mestria. Isso nãoextrai o caráter impostor do mestre,mas pode quiçá arrancá-lo do dramaque tal impostura lhe imprime. O go-verno do outro, em tese, parece sermais palatável quando exercido sobreum coletivo mais reduzido, estabele-cido em organizações menores, nasquais os integrantes são suficientementepróximos e identificados por um pro-jeto específico ou por categorias comoas profissionais, raciais, sexuais, de gê-nero, de formação etc.

Torna-se pouco provável que ummestre desça de seu lugar, como igual-mente torna-se improvável que eledeixe de apresentar-se como mais-go-zar, estando sustentado por organis-

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mos burocráticos e verticais, forjadospela própria modernidade que o des-mente. A distância de seus pares, deseus comandados e do chão da reali-dade presta-se muito mais à tirania doque ao declínio do drama de perce-ber-se finito e precário em seu domí-nio. Ao contrário disso, cada vez maiso vínculo social característico das so-ciedades ocidentais contemporâneastem-se configurado como o que RitaKehl chamou de “circulação horizon-tal” (2000, p. 44). Há de se notar atransmissão de saberes e de experiên-cias, a criação de fatos sociais, a pro-dução discursiva e as instâncias inter-mediárias de poder que se dão, so-bretudo, no campo dos encontros edos embates entre os iguais e próxi-mos. A submissão voluntária aos dis-cursos de autoridade, revela a autora,é relativizada pela própria multiplici-dade de enunciados de saber.

Então, o vigor desses organis-mos dependeria de sua vida curta, desua interinidade. Uma vez cumpridoseu destino, tais organismos, funda-ções, movimentos coletivos, deveri-am se prestar à dissolução espontâ-nea ou, no mínimo, como diz a au-tora, ao seu “esgarçamento”. Os vín-culos fraternos fazem-se e desfazem-se ao longo de uma vida, proporci-onando aos seus integrantes identi-dade, cumplicidade, proteção e cam-po de reflexão. A cristalização dessesvínculos tende a transformar a expe-rimentação em certeza, ao criar o cir-cuito fechado do amparo imaginá-rio, além de produzir, graças a isso,segregação, intolerância e endogamia.

O mesmo juízo podemos teceracerca da mestria. Até que ponto ne-cessitamos de mestres perpétuos, si-

tuados verticalmente no topo da hi-erarquia e senhores do tudo saber eda verdade? Até que ponto essesmesmos mestres terão de ser desau-torizados política e radicalmente aoserem emparelhados ao nada saber?

A civilização tem produzido,cada vez mais, novos sintomas e no-vas angústias, espelhadas em sua de-voção aos excessos. Há um transbor-damento de gozo na ordem cínicado mercado; na obsessão pela eficá-cia técnica, contra o esvaziamento dasrelações; no fundamentalismo religi-oso; e no paradigma apolítico do in-dividualismo. Trata-se de um trans-bordamento que não mascara a de-bilidade do saber, e resulta numa es-pécie de hibridismo da figura domestre. O mestre não consegue mais,nem mesmo ao nível das ilusões, pro-duzir um significante suficientemen-te consistente para objetar a essa de-bilidade. Pode-se recorrer ao esme-ro técnico, à pedagogização de seuexercício, à virtualidade de sua fun-ção, mas, nem assim, mostra-se dife-rente do lugar que seu saber débilassume. O mestre, esse fundado des-de Moisés, não é o representante do“ao menos um”, muito menos umacontinuação do pai da horda. Elepadece de um saber impossível: decomo gozar de desejo e poder, queo iguale ao suposto saber do pai pri-meiro, perdido na origem.

O máximo que esse mestre for-ja para si é o lugar de paródia. Ve-mos, em nossos tempos, proliferaresse efeito parodista em relação à fi-guração dos mestres, sobretudo,aqueles que insistem no prolonga-mento injustificado de sua função. Amultiplicação de saberes tornou-se

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um dos decalques de sua impostura e deu-lhe, por isso, a categoriade quixotesco. Mas o personagem de Cervantes guarda uma pri-mazia acima dos mestres comuns. Ele peregrina. Ele não se fixa.Ele se sabe precário e interino na longa jornada que atravessa, sobo peso do nome dessa função.

Situar-se como provisório talvez seja assentir com um lugarintermediário de poder, de passagem, segundo o qual não se exigenem o não-saber, cúmplice de uma debilidade, nem o saber tudo,expressão de uma arrogância. Isso em nada se traduz como pontode equilíbrio ou de harmonia, como se a mestria pudesse um diachegar à condição paradisíaca e não-castrada de um céu idealizado.Apresentar-se como um “deus de prótese” é, quem sabe, presu-mir-se um tanto contingente, quixotesco e, no que concerne ao ato,fora da voluntariedade do código ou do amálgama do sentido.Isso não é outra coisa senão andar sobre a corda roída: espera-setenso pelo seu rompimento, ao mesmo tempo em que se esmeraem se manter de pé.

Mesmo assim, ainda que parodista, insistimos em manter nos-so dedo indicador de mestre, e não abrimos mão de sua toga.Pagamos o preço dessa impostura. Não sabemos, porém, que nãohá necessidade de haver alguém ali, pois a ordem humana, suaodisséia, já tratou de estabelecer seu mandamento, seu imperativocategórico, de sempre continuar a saber. Um mestre nunca é oderradeiro, ele é apenas uma passagem, uma dobradiça, através daqual se abre a janela a incitar os tantos conduzidos à travessia.

Virão outros horríveis trabalhadores,eles começarão onde o outro fraquejou.

RimbaudABSTRACT

“PROSTHETIC GODS”: ABOUT THE MASTERS AT THIS TIMEThe text attemps to identify the reasons for the master’s decay in the modern time or theintensity of “depreciation”, “demoralization” and “desauthorization” that the masters findthemselves into. The master, nostalgically idealized at the present times, turned into aprofessional succumbed in the current massification of education and in the politicalauthority crisis. “God’s dead”, would say Nietzsche, or “Father’s dead”, would say Freud.In that case, would be the master a non stoping human experience to revivify father andGod? Isn’t that do condemn indefentely the master as an impostor? Is this the moment toadmit the master’s real condition contingent and temporary?Index terms: decay of the master; psychoanalysis of the social entail; temporary’s ethics

RESUMEN

“DIOSES DE PRÓTESIS”: SOBRE LOS MAESTROS DE NUESTROS TIEMPOSEl texto pretende entender la decadencia del maestro en los tiempos modernos y/o cuantoellos mismos se dicen “desvalorizados, “desmoralizados” y “desautorizados”. El maestronostálgicamente idealizado, abnegado de otrora, cede lugar a un profesional que sucumbe a

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la actual masificación de la educación y a la crisispolítica de la autoridad. “Dios esta muerto”, diríaNietzsche, o “el Padre esta muerto”, diría Freud.¿Seria entonces el maestro una continua tentativahumana de revivificar al padre o a Dios? ¿No esesto sino condenarlo indefinidamente a laimpostura? ¿Será este pues, el momento paraadmitir al maestro en su real condición contingentey provisoria?Palabras clave: decadencia del maestro;psicoanálisis del vínculo social; ética de lo provisorio

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Recebido em abril/2006.Aceito em outubro/2006.

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