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este aviso.
Sociologia do risco: uma breve introdução e algumas lições
Autor(es): Mendes, José Manuel
Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/38055
DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1066-5
Accessed : 19-May-2017 18:19:41
digitalis.uc.ptpombalina.uc.pt
Propõe-se nesta obra uma abordagem problematizadora das teorias do risco, integrando os debates
mais recentes sobre a vulnerabilidade social e a teoria dos desastres. Especial relevância é dada aos
regimes de regulação do risco e à sua relação com as políticas públicas na área da proteção civil e da
segurança estrutural das populações, bem como à construção de epistemologias cívicas e ao tema
da participação das populações na elaboração das políticas públicas sobre mitigação dos riscos.
São também abordados os diferentes paradigmas sobre os desastres, vendo estes como pontos de
entrada e de aproximação à governação e à regulação do risco e, também, como reveladores das
estruturas sociais em presença. Especial atenção é dada aos impactos diferenciados dos aconte-
cimentos extremos nas comunidades afetadas. Procede-se à desconstrução, com base em vários
estudos sociológicos, do mito muito comum e mediatizado da ocorrência de pânico social em
situações de desastre.
9789892
610658
José Manuel Mendes é doutorado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra, onde exerce as funções de Professor Auxiliar com Agregação. Investigador do
Centro de Estudos Sociais, tem trabalhado nas áreas das desigualdades, mobilidade social,
movimentos sociais e ação colectiva e, mais recentemente, nas questões relacionadas com o
risco e a vulnerabilidade social.
É coordenador do Observatório do Risco - OSIRIS, sediado no Centro de Estudos Sociais.
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(Página deixada propositadamente em branco)
R I S C O SE C A T Á S T R O F E S
Estruturas EditoriaisSérie Riscos E Catástrofes
Estudos Cindínicos
Diretor Principal | Main EditorLuciano Lourenço
Universidade de Coimbra
Diretores Adjuntos | Assistant EditorsAdélia Nunes, António Bento Gonçalves
Universidade de Coimbra, Universidade do Minho
Assistente Editorial |Editoral AssistantFernando Félix
Universidade de Coimbra
Ana Meira Castro Instituto Superior de Engenharia do Porto
António Betâmio de Almeida Instituto Superior Técnico, Lisboa
António Duarte Amaro Escola Superior de Saúde do Alcoitão
António Manuel Saraiva Lopes Universidade de Lisboa
António Vieira Universidade do Minho
Cármen Ferreira Universidade do Porto
Helena FernandezUniversidade do Algarve
Humberto Varum Universidade de Aveiro
José Simão Antunes do Carmo Universidade de Coimbra
Margarida Horta Antunes Instituto Politécnico de Castelo Branco
Margarida Queirós Universidade de Lisboa
Maria José Roxo Universidade Nova de Lisboa
Romero Bandeira Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Porto
Tomás de Figueiredo Instituto Politécnico de Bragança
Antenora Maria da Mata Siqueira Univ. Federal Fluminense, Brasil
Carla Juscélia Oliveira Souza Univ. de São João del Rei, Brasil
Esteban Castro Univ. de Newcastle, Reino Unido
José António Vega Centro de Investigación Forestal de Lourizán, Espanha
José Arnaez Vadillo Univ.de La Rioja, Espanha
Lidia Esther Romero Martín Univ. Las Palmas de Gran Canaria, Espanha
Miguel Castillo Soto Universidade do Chile
Monserrat Díaz-Raviña Inst. Inv. Agrobiológicas de Galicia, Espanha
Norma Valencio Univ. Federal de São Carlos, Brasil
Ricardo Alvarez Univ. Atlântica, Florida, Estados Unidos da América
Victor Quintanilla Univ. de Santiago de Chile, Chile
Virginia Araceli García Acosta Univ. Nacional Autónoma de México
Xavier Ubeda Cartañà Univ. de Barcelona, Espanha
Yvette Veyret Univ. de Paris X, França
Comissão Científica | Editorial Board
edição
Imprensa da Univers idade de CoimbraEmail: [email protected]
URL: http//www.uc.pt/imprensa_ucVendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt
coordenação editorial
Imprensa da Univers idade de Coimbra
conceção gráfica
António Barros
Pré ‑imPressão
Mickael Silva
execução gráfica
Simões e Linhares, Lda
isBn
978-989-26-1065-8
isBn digital
978-989-26-1066-5
doi
http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1066-5
dePósito legal
400968/15
aPoios
Este livro foi elaborado no âmbito do projeto de investigação “ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas: Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo", coordenado por Boaventura de Sousa Santos (alice.ces.uc.pt) no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra - Portugal. O projeto é financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação, 7º Programa Quadro da União Europeia (FP/2007-2013) /ERC Grant Agreement n. [269807]”.
© novemBro 2015, imPrensa da universidade de coimBra
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Universidade de Coimbra – Alta e Sofiainscrita na Lista do Património Mundial em 2013
Organizaçãodas Nações Unidas
para a Educação,a Ciência e a Cultura
À Ana, ao Zé Rui, ao João Nuno e ao Jaime Miguel
(Página deixada propositadamente em branco)
S u m á r i o
Agradecimentos ......................................................................................................9
Introdução ........................................................................................................... 11
1. Análise histórica da noção de risco .................................................................... 15
2. Do risco à sociedade do risco ............................................................................ 19
2.1 As teorias sociológicas do risco .................................................................. 19
2.2 A teoria de Ulrich Beck e a sua crítica ....................................................... 23
2.3 A teoria de Niklas Luhmann ..................................................................... 27
2.4 A perceção do risco e a construção subjetiva do risco ................................. 28
3. Do risco à precaução ........................................................................................ 35
3.1 A importância do conceito de precaução.................................................... 35
3.2 O princípio da precaução e a democracia dialógica:
os fóruns híbridos e a participação ............................................................ 38
4. Conceitos e classificação na análise dos riscos .................................................... 43
4.1 Os riscos naturais ..................................................................................... 43
4.2 Os riscos antrópicos: os riscos tecnológicos ................................................ 45
4.3 Os riscos antrópicos: os riscos sociais ........................................................ 47
5. A sociologia dos desastres e a governação do risco ............................................. 51
5.1 Risco e incerteza: conhecimento, controvérsia e governação ....................... 51
5.2 Os paradigmas sobre os desastres ............................................................... 54
5.3 A dinâmica das comunidades afetadas ....................................................... 62
5.4 O mito do pânico social ............................................................................ 65
6. Instrumentos metodológicos de análise social do risco ....................................... 67
6.1. O inquérito por questionário ................................................................... 67
6.2 O inquérito por questionário e a sua aplicação nos estudos do risco ........... 71
7. A vulnerabilidade social e a resiliência social ..................................................... 73
7.1 Definição de conceitos .............................................................................. 73
7.2 A operacionalização dos conceitos ............................................................. 76
7.3 A vulnerabilidade social e as estratégias de planeamento ............................. 83
7.4 A mudança de paradigma:
a análise estrutural da segurança das populações ......................................... 85
Referências bibliográficas ...................................................................................... 89
A g r A d e c i m e n to S
Sendo esta obra o resultado de uma prova académica, cabe, antes de mais,
agradecer às e aos colegas do Núcleo de Sociologia da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, que me propiciaram as condições institucionais para
usufruir de uma licença sabática e de me dedicar por inteiro a esta etapa da minha
vida pessoal e profissional. Ao longo dos meus mais de vinte anos em Coimbra
como docente, foram responsáveis pela minha formação como sociólogo e pela
perspetiva crítica e comprometida que implica pertencer à Escola de Coimbra.
Ao Prof. Boaventura de Sousa Santos pelos diálogos e conversas sempre
indagadores, sempre inconformados e instigadores, em busca de uma ciência
social que interessa, que transforma e que emancipa.
Aos e às colegas e funcionários e funcionárias do CES, a minha casa como
investigador e onde a solidariedade ainda não é uma palavra vã.
Uma palavra para o Alexandre Tavares, que comigo partilha desde 2004 um
percurso institucional e uma dedicação às questões do risco, da vulnerabilidade
social e das políticas públicas.
Ao Pedro Araújo pelas longas conversas sobre o Estado, o protesto e a pos-
sibilidade de ser cidadã ou cidadão quando eventos extremos nos afetam.
Por último, um obrigado, onde as palavras não são suficientes, para a Ana e para
os meus filhos Zé Rui, João Nuno e Jaime Miguel, os primeiros a incentivarem-
-me nesta caminhada e, no fim, a minha razão de ser e de existir.
(Página deixada propositadamente em branco)
i n t ro d u ç ã o
O presente livro é uma versão revista do relatório da unidade curricular
Sociologia do Risco apresentado no âmbito das minhas provas de agregação
em Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que
decorreram no início do ano de 2015.
Propõe -se nesta obra uma abordagem problematizadora das teorias do
risco, integrando os debates mais recentes sobre a vulnerabilidade social e
a teoria dos desastres.1 Especial relevância é dada aos regimes de regulação
do risco e à sua relação com as políticas públicas na área da proteção civil
e da segurança das populações, bem como à construção de epistemologias
cívicas e ao tema da participação das populações na elaboração das políticas
públicas sobre mitigação dos riscos.
Começa -se por analisar a história controversa do conceito de risco, salientando-
-se, contudo, que a origem etimológica deve ser situada e discutida, mas
atendendo sempre às mudanças no tempo da aceção do conceito e da sua
integração no campo das ciências sociais e das ciências exatas, e na esfera das
instituições internacionais e nacionais de regulação do risco.
Um segundo capítulo é dedicado à análise do conceito de risco nas ciências
sociais e, mais especificamente, na Sociologia. Após uma breve contextualização
sobre a utilização do conceito de risco no vocabulário científico, procede -se a
1 Embora o conceito de desastre possa ser redutor na língua portuguesa, optando alguns autores por propor em alternativa o conceito de catástrofe, mantivemos no presente texto a designação de sociologia dos desastres, em linha com a literatura já publicada em Portugal sobre o tema e em consonância também com a designação das Nações Unidas do Quadro para a Redução do Risco de Desastre 2015 -2030.
12
uma apresentação e discussão aprofundada da proposta de sociedade do risco
de Ulrich Beck, e da novidade da sua abordagem por acentuar a importância
dos fatores sociais. À teoria de Ulrich Beck contrapõe -se a proposta sistémica de
Niklas Luhmann e, atendendo à importância que este autor atribui à confiança
nas instituições, trabalha -se em sequência os estudos sobre perceção do risco e
as práticas sociais de mitigação do risco.
De seguida, no terceiro capítulo, aborda -se a emergência, devido à crise
teórica e epistemológica das abordagens convencionais do risco, do tema da
precaução, da sua incorporação nas políticas públicas e das diferentes aceções
propostas em torno deste tema pelas ciências sociais. É analisado o papel crescente
da participação dos cidadãos na definição das políticas públicas relacionadas
com o risco, e o papel específico dos fóruns híbridos como metodologia de
participação. Também se discute o conceito de democracia dialógica e o con-
tributo para a mesma das epistemologias cívicas propostas por Sheila Jasanoff.
No capítulo quatro são apresentadas e discutidas tipologias existentes sobre
os riscos. Optou -se por utilizar tipologias que têm uma base de construção mais
próxima dos critérios das ciências sociais. Também se manteve a divisão clássica
entre riscos naturais, tecnológicos e sociais, não incorporando na discussão os
riscos mistos, natecno e os riscos ligados à saúde. O argumento subjacente é que
todos estes riscos têm causas sociais e estruturam e são estruturados, ao contrário
do que afirma Ulrich Bech, pelas condições sociais e pelas desigualdades de classe,
e pelo feixe de desigualdades com base no sexo, na idade e no grupo étnico.
A importância dos debates em torno do conceito de incerteza, que permite
uma aproximação sociológica mais abrangente à governação do risco, orienta
os conteúdos do capítulo seguinte do livro. Após uma breve discussão sobre
os desafios que se colocam com o conceito de incerteza, aborda -se os diferen-
tes paradigmas sobre os desastres, vendo estes como pontos de entrada e de
aproximação à governação e à regulação do risco e, também, como reveladores
das estruturas sociais em presença. Especial atenção é dada aos impactos dife-
renciados dos acontecimentos nas comunidades afetadas. Também se procede
à desconstrução, com base em vários estudos sociológicos, do mito muito
comum e mediatizado da ocorrência de pânico social em situações de desastre.
13
O sexto capítulo do livro é exclusivamente dedicado à análise aprofundada da
história, dos pressupostos e das regras de construção rigorosa de um questionário.
Assume especial relevância o cuidado a ter na construção de um questionário
que atenda às conceções dos inquiridos e não aos conceitos abstratos e acadé-
micos, como o conceito de risco, de difícil interpretação porque associado à
atribuição e cálculo de probabilidades, ou o conceito de vulnerabilidade, que
pode estigmatizar e induzir reações de desconfiança nos inquiridos.
O estudo e a discussão crítica dos conceitos de vulnerabilidade social e de
resiliência social informam o último capítulo da presente obra. Discute -se a
importância destes conceitos para a definição de políticas de planeamento e de
ordenamento do território que integrem as condições sociais das populações
mais desfavorecidas, pois o risco e os acontecimentos extremos são altamente
segregadores a nível social. De especial relevância é fundamentar uma reflexão
mais global que, para além da simples discussão sobre os modelos de preparação,
de emergência e de socorro, permita pensar a possibilidade da implementação
de uma análise estrutural de segurança das populações, assente no conceito de
epistemologia cívica e na participação cidadã.
(Página deixada propositadamente em branco)
1 . A n á l i S e h i S t ó r i c A d A n o ç ã o d e r i S c o
A criação do conceito de risco, na sua aceção moderna e do ponto de vista
social, é reportada convencionalmente à análise dos acidentes de trabalho no
século XIX e à necessidade de atender a esse problema social (Peretti -Wattel,
2000). Ao estudo deste fenómeno social, e do cálculo dos seus custos para o
sistema capitalista emergente, associa -se também o cálculo dos seguros e dos
riscos profissionais. A generalização dos seguros, para além do mundo indus-
trial, estaria na base do Estado -providência e da transformação lenta do risco
profissional em risco social (Ewald, 1986).
O conceito de risco associado a uma probabilidade de ocorrência de um deter-
minado acontecimento e dos danos que o mesmo pode causar, e a sua incorporação
nos estudos formais sobre prevenção e mitigação do riscos, só será integralmente
assumido nos anos 70 do século XX. A consagração do risco como fenómeno
característico de uma mudança societal de grande impacto, como definidor de
um novo tipo de modernidade, só advirá com a proposta de Ulrich Beck (1992)
da emergência de uma sociedade de risco em 1986, como veremos na secção 2.2.
Devemos a Pierre -Charles Pradier (2004) a melhor e mais sólida história
do conceito de risco. Pradier, após a análise da literatura especializada e de
cariz científico, conclui que existem duas grandes correntes quanto à história
do conceito de risco: a tese modernista, e o que Pradier chama de romance
náutico. A tese modernista, proposta por Luhmann (1993) e Giddens (1992),
entre outros, afirma que a difusão da palavra risco deriva diretamente do
desenvolvimento do capitalismo, com a expansão do comércio, dos seguros
sobre as mercadorias do comércio transatlântico, da maturação das técnicas
contabilísticas e financeiras e da reforma religiosa.
16
A tese da origem náutica estaria associada à palavra latina resecare (ressecar),
que teria evoluído para resecum (que corta) no latim popular e, daí, para "recife",
associando -se a "risco que corre uma mercadoria no mar". Esta evolução ortográfica
e semântica não está comprovada e é, para Pradier, uma entre muitas hipóteses.
Para o autor, estas duas correntes mais não são do que efabulações, até
porque foi assinalada com precisão o uso da palavra risco ainda antes do
final da Idade Média, o que contradiz a tese modernista. Pradier, em al-
ternativa às teses modernista e náutica, contrapõe duas linhas genealógicas
distintas da palavra risco: uma italiana e outra, por efeito de difusão, no
resto da Europa.
A Itália é o lugar na Europa onde aparece documentada pela primeira vez
a palavra risco. O seu uso verifica -se já em 1193 (Pradier, 2004: 174), com
difusão posterior em Marselha, Catalunha e Provença, seguindo as rotas co-
merciais com base no poder militar e económico de Génova. No século XV a
palavra risco está presente na Croácia. Só a partir desta última data a palavra
risco será usada pelos germanos, pelos castelhanos e pelos franceses.
A palavra risco na sua origem estaria ligada à atividade militar, e ao ato
voluntário de correr perigo por parte dos cavaleiros e, na literatura, por parte
dos heróis. O que é interessante na análise de Pradier é que a difusão da palavra
risco na Europa na época moderna acontece de forma muito rápida, enquanto na
época contemporânea, após uma relativa estagnação no século XIX, vai assumir
claramente uma significação muito mais abstrata e polissémica (2004: 178).
No século XVII a palavra risco estava associada, agora sim, às atividades
náuticas e, especificamente, aos seguros marítimos. Ficavam de fora da abran-
gência deste termo os seguros de vida e os seguros contra os incêndios. Após
um pico de utilização no século XVIII, o uso da palavra e do conceito de risco
vai cair de forma acentuada no século XIX.
Pradier pergunta -se se o século XIX, visto como o século da ciência, não
admitiria a dúvida (2004: 180). Mas, o mais plausível, na minha perspetiva,
é que a ideia de progresso e o positivismo ascendente, visível na obra, por
exemplo, de Auguste Comte, afastaram o uso de um conceito como o de ris-
co, associado ao indeterminado e ao desconhecido. O otimismo reinante e a
17
confiança no futuro não davam lugar ao uso da palavra risco e às conotações
associadas à mesma.
O século XX, logo a partir de 1900, verá o crescimento exponencial do uso
linguístico do substantivo risco, mas também do adjetivo "arriscado" e do verbo
"arriscar". A palavra risco vai assumir uma grande polissemia, que se expande
num jogo enorme, quase infindável, de metonímias (Pradier, 2004: 181). Este
fenómeno estará na origem da diversidade de usos e de aplicações que ocorrerão
com o desenvolvimento do conhecimento científico e técnico no século XX, e
da utilização do conceito de risco nas ciências naturais, nas ciências biológicas,
nas ciências sociais e nas humanidades, bem como na administração pública e
na definição de políticas públicas.
A polissemia da palavra risco marcará de forma indelével o seu percurso
epistémico, metodológico e operacional desde os inícios do século XX.
(Página deixada propositadamente em branco)
2 . d o r i S c o à S o c i e d A d e d o r i S c o
2.1 As teorias sociológicas do risco
Após este breve percurso pela história controversa do conceito de risco,
cabe agora explicitar a especificidade do quadro analítico da sociologia para
as questões do risco e, a diferença e o impacto que advieram da proposta
de Ulrich Beck sobre o aparecimento da sociedade do risco. Isto porque a
radicalidade da modernidade assenta na irrupção da imanência do social nos
discursos, nas práticas e nas políticas, configurando a novidade do próprio
conceito de sociedade (Karsenti, 2013). O olhar sociológico sobre o risco situa
sempre os riscos nos contextos sociais, atendendo às atividades das pessoas,
dos grupos sociais e das comunidades (Lidskog e Sundqvist, 2013). Obriga
a estudar e a atender às desigualdades associadas ao risco, e à forma como as
sociedades contemporâneas estruturam a diferença social a partir da definição
de populações em risco e de populações vulneráveis.
Embora o tema do risco seja recente na sociologia, a produção nesta área
tem sido vasta nas últimas três décadas. Por conseguinte, deparamo -nos com
várias propostas de categorização ou de tipologias das teorias sociológicas do
risco. Começarei primeiro com a abordagem mais abrangente da temática
do risco nas ciências sociais proposta por Deborah Lupton (1999) e, depois,
apresentarei as categorizações das teorias sociológicas do risco avançadas por
Ortwin Renn (2008).
No seu pequeno mas importante livro de sistematização das teorias em torno
do risco, Deborah Lupton (1999) distingue três grandes linhas de investigação: as
perspetivas das ciências cognitivas, as abordagens socioculturais e as perspetivas
20
socioconstrutivistas. A discussão do risco nas ciências cognitivas apoia -se numa
análise técnico -científica do risco, que privilegia as formas adequadas de identificar
e medir os riscos e os seus efeitos (Lupton, 1999: 18 -19).
As perspetivas socioculturais enfatizam a importância dos contextos sociais
e culturais na produção e na negociação dos riscos. Aqui, Lupton inclui a teoria
cultural/simbólica de Mary Douglas (1992; 1991; 1985), as teorias da sociedade do
risco de Ulrich Beck (1999; 1992) e de Anthony Giddens (1992), e as teorias em
torno da governamentalidade, na linha inaugurada por Michel Foucault, e represen-
tada por autores, entre outros, como Nikolas Rose (1999) e Pat O' Malley (2008).
Como refere Lupton (1999: 26), a teoria cultural/simbólica salienta a forma
como as noções de risco são mobilizadas para estabelecer e manter as fronteiras
entre o eu e o outro, com especial atenção ao papel como o corpo humano
é usado, simbólica e metaforicamente, nos discursos e nas práticas sobre o risco.
No âmbito deste livro a abordagem antropológica do risco não será analisada de
forma aprofundada.
Os sociólogos que trabalham na linha da sociedade do risco dão relevância aos
processos macrossociais, do que denominam de modernização tardia ou reflexiva, e
da sua relação com o conceito de risco. Na secção seguinte daremos especial atenção
às propostas de Ulrich Bech e, em contraponto, às de Niklas Luhmann (1993; 1990).
A escola da governamentalidade parte dos conceitos fundadores de Michel
Foucault (2004; 1997), analisando como se relacionam as formas de conhe-
cimento e de produção da verdade, os dispositivos e as tecnologias, com as
definições institucionais do risco. Esta perspetiva enquadra -se no que Lupton
chama de perspetivas construtivistas, em que o risco é o produto contingente
de formas históricas, sociais, culturais e políticas. As teorias enquadradas na
governamentalidade serão trabalhadas por mim na secção seguinte, como uma
possível alternativa às teorias da sociedade do risco.
O mais interessante da síntese de Deborah Lupton é o quadro onde ela
apresenta o contínuo de abordagens epistemológicas sobre o risco nas ciências
sociais (Lupton, 1999: 36). O mesmo devolve -nos a posição epistemológica, as
respetivas teorias e as questões relevantes para cada grupo de teorias. O quadro
está estruturado a partir das seguintes divisões:
21
a) Posição epistemológica realista. Aqui o risco é visto como um perigo
ou uma ameaça reais, que pode ser medido independentemente dos
processos sociais e culturais, mas que pode ser enviesado devido aos
quadros sociais e culturais de interpretação. Neste grupo enquadram -se
as várias teorias técnico -científicas e cognitivas do risco. As perguntas
centrais que são colocadas nestas correntes de pensamento são: que tipo
de riscos existem? Como devemos gerir os riscos? Como respondem as
pessoas cognitivamente aos riscos?
b) Posição epistemológica de um construtivismo fraco. O risco para estas
correntes de análise também é um perigo ou uma ameaça reais, mas é
mediado pelos processos sociais e culturais. Nesta vertente situam -se
as teorias da sociedade do risco, do estruturalismo crítico e algumas
teorias psicológicas do risco. As perguntas avançadas por este grupo
de autores relacionam as estruturas e os processos da modernidade
com o risco, e procuram também saber como o risco é apreendido em
diferentes contextos socioculturais.
Com outro tipo de questões relevantes, mas também dentro do construtivismo
leve, temos a teoria cultural/simbólica, o estruturalismo funcional e as correntes
psicanalíticas e fenomenológicas. Para este grupo de autores as questões a responder
são as seguintes: porque são alguns perigos selecionados como riscos e não outros?
Como é que o risco se constitui como uma barreira simbólica? Qual a psicodi-
nâmica das respostas aos riscos? E, por último, qual o contexto situado do risco?
c) Posição epistemológica de um construtivismo forte. Nesta categoria
Deborah Lupton coloca os estudos da governamentalidade do risco e
os pós -estruturalistas. A pergunta principal é: como é que os discursos
e as práticas sobre o risco operam na construção da subjetividade e
da vida social?
A taxonomia proposta por Ortwin Renn (2008) apresenta algumas seme-
lhanças com a de Deborah Lupton. Renn centra -se especificamente nas teorias
22
sociológicas do risco, e propõe dois eixos de classificação das mesmas (2008:
23). Um primeiro eixo distingue as teorias individualistas das estruturais, com
base na unidade de análise privilegiada por essas teorias. Para as teorias indivi-
dualistas a ênfase é colocada na ação dos atores, enquanto que as estruturalistas,
como o nome indica, optam por privilegiar as dimensões coletivas. O segundo
eixo opõe as teorias construtivistas às teorias realistas do risco.
Nesta proposta podemos verificar que constam muitas das teorias descritas
por Deborah Lupton, mas aparecerem outras que têm interesse para uma análise
crítica das teorias sociológicas do risco. Aquelas que não figuram em Lupton
são a teoria da escolha racional, onde se situa o próprio Ortwin Renn e a sua
equipa, a teoria crítica de Jürgen Habermas, a teoria dos sistemas de Luhmann,
que analisaremos na secção seguinte, e a teoria da amplificação social do risco.
Vejamos, de forma sintética, alguns dos argumentos destas teorias. A teoria
da escolha racional parte do paradigma do ator racional, importado da economia
(Jaeger et al., 2001). Todas as ações são reduzidas a uma lógica de otimização,
e mesmo as organizações e os coletivos são analisados como agentes individuais
e racionais. As decisões são tomadas seguindo três passos essenciais (Renn, 2008:
26): a geração de opções; a avaliação das consequências; e, a seleção da opção
ótima. Esta teoria está associada a uma análise quantitativa e agregadora do risco.
A teoria crítica, cujo expoente máximo é Habermas (1987; 1984), parte
do quadro analítico deste autor, isto é, da teoria da ação comunicativa e
das competências comunicativas, para propor uma abordagem normativa
e crítica do capitalismo avançado. Os elementos emergentes de uma nova
racionalidade devem fornecer orientações coletivas que não conflituem com
as ações e aspirações pessoais. Os riscos emergiram como um fenómeno do-
minante e que exige uma gestão e uma intervenção que são eminentemente
políticas. Mas, as decisões do sistema político, que condicionam e colonizam
o mundo da vida das pessoas, que estão baseadas no exercício do poder e
não na equidade social, reproduzem as desigualdades quanto aos riscos.
Só os movimentos sociais, para Habermas, contra o privatismo civil podem, a
partir de iniciativas espetaculares e disruptoras, veicular exigências ao sistema
político, uma vez que os meios de comunicação social não cumprem o seu
23
papel de mediadores e de formadores dos cidadãos a partir da convocação
das opiniões dos peritos (Mendes, 2004: 149).
A teoria da amplificação social do risco baseia -se num pressuposto de base:
os impactos sociais e económicos de um acontecimento adverso são determina-
dos pela combinação das consequências físicas desse evento com os processos
psicológicos, sociais, institucionais e culturais (Kasperson e Kasperson, 1996;
Pidgeon et al., 2003; Renn, 2008: 8).
Passo a analisar, de seguida, de forma detalhada as teorias de Ulrich Beck
e de Niklas Luhmann.
2.2 A teoria de Ulrich Beck e a sua crítica
A publicação do livro de Ulrich Beck, Risikogesellschaft, em 1986, uns
meses antes do acidente nuclear de Chernobyl, iria traçar o destino de uma
das teorias sociológicas mais debatidas, e que originou toda uma linha teórica
baseada na modernização reflexiva. O quase efeito premonitório do livro, que
se confirmou pela realidade da explosão nuclear, dava força a uma visão emi-
nentemente sociológica, baseada em fatores de mudança estrutural assente no
próprio conceito de sociedade e na força e na imanência dos fenómenos sociais.
O ponto de partida na teoria de Ulrich Beck (1992) é o da modernização
reflexiva. Contrariamente a um evolucionismo utópico característico das di-
ferentes teorias da modernização, Beck propõe um visão mais sombria, aquilo
a que chamou de "vulcão da civilização". Para este autor, as consequências do
desenvolvimento científico e industrial são um conjunto de riscos que não
pode ser contido espacial ou temporalmente. Ninguém pode ser diretamente
responsabilizado pelos danos causados por esses riscos, e aqueles afetados não
podem ser compensados, devido à dificuldade de cálculo desses danos. Além
dos riscos ecológicos, assiste -se a uma precarização crescente e massiva das
condições de existência, com uma individualização da desigualdade social
e de incerteza quanto às condições de emprego, tornando -se a exposição aos
riscos generalizada.
24
O risco é, para Beck, um estádio intermédio entre a segurança e a destrui-
ção, e a perceção dos riscos ameaçadores determina o pensamento e a ação.
No risco o passado perde o seu poder de determinar o presente. É o futuro,
algo que é construído, não existente, que constrói o presente, e os riscos são
sempre locais e globais, assumindo uma dimensão transescalar.
Para Beck, os riscos, tal como a riqueza, são objeto de distribuições. Ambos
estão na origem de posições sociais específicas, definidas como posições de
risco e como posições de classe. A diferença é que nos riscos estamos perante
a distribuição de "males", não de bens materiais, de educação ou de propriedade.
E, aqui reside uma das teses mais controversas de Ulrich Beck. Beck argumenta,
a partir da própria noção de que os riscos são transescalares, que a distribuição
desses males, dos riscos, é transversal a todas as classes sociais.
Contudo, Ulrich Beck não sucumbe ao pessimismo, e propõe -nos uma radi-
calização da racionalização, uma radicalização baseada no papel do conhecimento
científico. A modernização tem que ser reflexiva. E as sociedades só evoluem
tornando -se reflexivas. Beck (1992: 57 -58) recusa a separação entre peritos e
cientistas e as visões comuns, afirmando que a consciência dos riscos tem que ser
analisada como uma luta entre afirmações concorrentes ou sobrepostas de raciona-
lidade (ecologia política). As perceções dos cidadãos comuns quanto aos riscos não
são irracionais ou puros problemas de informação, mas sim produtos de processos
complexos que definem o que é aceitável, o que é digno, o que está de acordo com
as suas maneiras de ser, pensar e agir, ou seja, com as suas identidades.
Os riscos estão dependentes do conhecimento científico, e as posições de
risco são muito vezes invisíveis (por exemplo, quanto aos efeitos da radioati-
vidade). Mas isto não é suficiente para definir os riscos concetualmente, dado
que as afirmações sobre os perigos nunca são redutíveis à simples afirmação
e descrição de factos. Nos riscos há sempre uma componente teórica e uma
componente normativa (Beck, 1992: 26).
Posteriormente, Ulrich Beck (1999) irá argumentar pelo aparecimento de
uma segunda modernidade. A primeira modernidade baseava -se nas sociedades
confinadas ao Estado -nação, onde as relações sociais, as redes e as comunidades
assumiam um caráter eminentemente territorial.
25
Os padrões coletivos de vida, a ideia de progresso e de controlo, o pleno
emprego e a relação com a natureza foram radicalmente afetados por cinco
processos que caracterizam esta segunda modernidade, segundo Beck: a globali-
zação; a individualização; a revolução assente na diferença sexual; o desemprego;
e, os riscos globais (1999: 1 -2).
Esta globalização dos riscos levará Beck a propor um cosmopolitismo
metodológico, que vá para além dos limites dos dados, das análises e das
concetualizações de âmbito estritamente nacional (Beck, 2008). Nesta última
obra, Beck apresenta uma reflexão teórica sustentada sobre os riscos globais,
e sobre como as desigualdades globais assentam em vulnerabilidades locais.
Os riscos globais trabalhados pelo autor são os riscos ambientais, os riscos
ligados ao terrorismo e os riscos financeiros (Beck, 2008: 13).
É essencial reter dois dos argumentos de Beck: a presença cada vez maior
de estados de exceção relacionados com os riscos; e os limites dos seguros e da
controlabilidade dos riscos. Quanto ao estado de exceção, conceito trabalhado
por Giorgio Agamben, Beck afirma que, devido ao impacto dos riscos globais, os
Estados, mesmo no Ocidente, estão mais autoritários mas são ineficientes quando
se trata de lidar com as diferentes ameaças e perigos globais, constituindo -se
como "Estados falhados fortes" (2008: 79).
Este mesmo facto articula -se também com a questão dos seguros e o grau de
controlo dos riscos. Quanto aos seguros, Beck apresenta uma tese: quanto maior
o risco menor a probabilidade de o mesmo ser segurado. Mas, mais importante, é
o argumento, bem fundamentado por Beck, de que assistimos ao fim dos seguros
privados e que, em última instância, é sempre o Estado o garante final do valor
dos bens e das vidas das pessoas (Beck, 2008: 137). O Estado assume, assim, um
papel central num tempo em que os riscos são na sua maioria de cariz global.
Em dois textos recentes, as teses de Ulrich Beck ficam mais claras, assim como
os seus pressupostos (Beck et al., 2013; Beck e Levy, 2013). Uma sociologia
cosmopolita resulta de uma reimaginação do conceito de nação, em confronto
com fenómenos como as normas globais, como, por exemplo, os direitos huma-
nos, os mercados globalizados, as migrações transnacionais e o peso crescente
das organizações internacionais (Beck e Levy, 2013: 6). Assiste -se, para Beck, a
26
uma reafirmação das sociedades de risco, dada a preocupação crescente destas
com o debate, a prevenção e a gestão dos riscos, a que nenhum Estado pode
escapar. Não podendo os riscos globais serem previstos ou calculados, esse facto
reforça, quase paradoxalmente, o peso do conhecimento e da inventariação
do futuro nas sociedades contemporâneas. É esta opção temporal pelo futuro
que torna a sociologia uma ciência cosmopolita, com capacidade para pensar
e discutir as coletividades do risco cosmopolitas (Beck e Levy, 2013: 15 -16).
No outro texto, é proposta uma agenda de investigação para a questão dos
riscos climáticos e para a criação do que Beck e os seus coautores chamam
de comunidades cosmopolitas associadas ao risco climático (Beck et al. 2013).
A pergunta central aqui é de saber onde estas comunidades cosmopolitas do
risco climático estão a ser imaginadas e concretizadas (Beck et al. 2013: 3).
Estas comunidades de risco devem ser trabalhadas, sugere Ulrich Beck, como
comunidades imaginadas, no sentido proposto originalmente por Benedict
Anderson (2006). A ilustração dessa agenda de investigação é feita a partir de
estudos empíricos do urbanismo verde, das inovações sobre as baixas emissões
de carbono e do ambientalismo de base.
Muitas críticas foram avançadas à teoria da sociedade do risco (para uma
crítica numa perspetiva institucional, ver Rothstein, 2006. Para uma crítica,
mas com uma reapreciação dos argumentos de Beck, ver Aven, 2012). Atemo-
-nos aqui às críticas que foram avançadas pela corrente ligada aos estudos da
governamentalidade. Nesta corrente de pensamento, os melhores escritos sobre
o risco, a incerteza e os limites da teoria da sociedade do risco foram propostos
por Pat O' Malley (2009; 2008).
Esta teoria baseia -se no conceito de governamentalidade de Michel Foucault
(2004; 1997. Para uma excelente síntese, com uma agenda clara de investigação
ver Rose, O' Malley e Valverde, 2006). Embora a sequência não seja cronológica,
e os vários tipos de poder possam coexistir, de um poder soberano dominante
passou -se a um poder disciplinar e, de seguida, a um biopoder. O biopoder
constrói -se a partir de uma biopolítica, em que as categorias de gestão são
agora, não corpos que é preciso disciplinar, mas sim a população e a economia
como categorias estatísticas.
27
As mentalidades governamentais são práticas ligadas a tecnologias específicas
(O' Malley, 2008: 56), onde o risco passa a ser visto como uma tecnologia
específica de governo (O' Malley, 2008: 57). Os estudos da governamentalidade
focam a sua atenção na forma como a adoção do risco como quadro de referên-
cia para a governação cria novas subjetividades e novas relações interpessoais,
sociais e políticas (O' Malley, 2008: 63).
O que estes autores rejeitam é a adoção por Ulrich Beck de uma grande nar-
rativa, quase evolutiva, de uma primeira modernidade para a sociedade do risco
e para a modernização reflexiva. Por outro lado, para O' Malley (2009: 26), Beck
não tem em conta como os governos neoliberais da atualidade têm sido ambivalen-
tes quanto ao risco na esfera económica, tornando a incerteza uma nova categoria
de governação. Este imaginário neoliberal de incerteza implica a mobilização de
técnicas específicas de flexibilidade e de adaptabilidade (O' Malley, 2009: 26).
2.3 A teoria de Niklas Luhmann
A abordagem de Niklas Luhmann (1993; 1990) quanto ao tema dos riscos
é distinta da de Ulrich Beck, e assenta na sua teoria dos sistemas. Luhmann
apresenta -nos o mundo social como um sistema complexo e não gerível, em
que a noção de perigo, atribuível a um fator externo e não controlável, tende
a ser substituída pelo conceito de risco, em que os danos são consequências de
decisões tomadas voluntariamente pelos atores sociais.
O risco não se caracteriza pela falta de segurança, mas sim pelos danos
que podem resultar das decisões e das ações dos atores sociais. E, mesmo que
os cálculos quanto aos riscos sejam muito precisos e fiáveis, será difícil reduzir
os perigos que podem afetar determinadas populações, porque os mesmos têm
origem sempre em causas exteriores. Daí os limites da ação do poder político,
onde a sociedade não tem um regulador central, sendo o Estado apenas um
sistema autorreferencial entre outros (Lantz, 2004: 356 -357).
Num mundo mais contingente e complexo, exige -se, segundo Luhmann,
uma racionalidade mais propensa ao risco, que seja capaz de prevenir com base
28
em cálculos específicos e na noção de responsabilidade. Esta propensão ao risco
só é possível num regime onde impere a confiança, não a confiança pessoal,
pouco pertinente nas sociedades complexas atuais marcadas por processos
transnacionais de globalização económica e cultural, mas sim um tipo de con-
fiança de sistema e na capacidade dos sistemas para estabilizarem condições ou
performances que são, dentro de certos limites, idênticas. Só com um sistema
de confiança, onde as decisões têm responsáveis, é possível a cooperação social.
Luhmann constata que o hiato, a nível comunicacional, e na esteira da lógica
de análise de sistemas da sociedade moderna (constituída pelos sistemas de política,
da lei, da economia e da ciência), entre os que participam nas decisões e os que
sendo excluídos do processo de decisão sofrem, no entanto, as consequências das
decisões tomadas, tem vindo a aumentar. Este hiato comunicacional crescente
pode conduzir a um menor nível de confiança nas relações entre os membros
de uma dada sociedade.
Também em Luhmann a separação clara e assimétrica entre peritos e leigos
não é questionada. O que se pretende, no caso de Luhmann, é melhorar os
canais de comunicação que esclareçam os que são afetados pelas decisões e pelas
intervenções oriundas dos poderes estabelecidos. Mantêm -se, assim, as relações
assimétricas entre peritos e cidadãos comuns, reproduzindo -se as relações desi-
guais de poder. Só os decisores e os técnicos têm o poder de definir quais são
os problemas e os riscos, quais as melhores estratégias de prevenção, quais as
melhores técnicas de intervenção, e, mais importante, detêm o exclusivo para
definir quem está em risco, quem pode e deve ser intervencionado.
Neste processo assimétrico de definição dos riscos e das intervenções
reforça -se o biopoder dos peritos, e não se atende às identidades emergentes
e às possibilidades alternativas sempre existentes em qualquer mundo social.
2.4 A perceção do risco e a construção subjetiva do risco
As diferentes perspetivas sociológicas e culturais do risco, suportadas por
diferenciadas formas e contextos do conhecimento (Lidskog, 1996), acentuam
29
a construção social do risco, baseando -se em relações dialéticas e complexas
entre o perigo, o público e o conhecimento baseado em peritos (Vandermoere,
2008). De acordo com Williams (2008), a visão sociocultural do risco implica,
para além do conhecimento baseado e fundamentado em estudos técnico-
-científicos, uma observação subjetiva, pessoal e estrutural dos diferentes
domínios do risco, onde o ambiente constitui o modelador da perceção e
permite explicar a valoração do risco (Willis et al., 2011). Ou, como sugerem
Dwyer et al. (2004), quando o risco real é desconhecido, a sua visão reduz -se
à forma do risco percecionado.
A perceção do risco enquanto produto da organização social é acentuada por
Douglas e Wildavsky (1983). As decisões quanto ao risco são justificadas pelo
ambiente e pelo tipo de organização social, assumindo as instituições um papel
determinante em oposição à racionalização privada. A perceção do risco pode,
assim, ser condicionada por mecanismos de visibilidade ou de invisibilidade
determinados pelos poderes políticos e económicos (Porto, 2007). A construção
social do risco, numa perspetiva mais alargada, pode ainda resultar de processos
mentais seletivos, por parte de indivíduos ou grupos, de acordo com esquemas
mentais que desencadeiam mecanismos e respostas comportamentais de ampli-
ficação ou de atenuação do risco (Heijmans, 2004; Kasperson, 2005).
A consideração de que existe um cumulativo de fatores psicológicos, sociais
e culturais que influenciam a perceção do risco (Rohrmann, 1994), a que se
associa uma representação cognitiva do perigo (Siegrist et al., 2005b), decorre,
segundo Paul Slovic (2000 e 1987), de um conjunto de atitudes e julgamentos
principalmente intuitivos, ou como sugerem Kellens et al. (2011), de processos
psicológicos não mediados pela experiência do perigo.
A perceção do risco pode, assim, constituir -se como preditor consistente das
respostas dos indivíduos e das comunidades, em caso de acidente ou de desastre,
e deriva de um número alargado de fontes, distribuído de variadas formas na
população (Stoffle et al., 1991), influenciando a decisão e o comportamento
individual (Siegrist et al., 2005a). A avaliação dos benefícios associados a uma
determinada atividade ou atitude, perante uma ameaça potencial, constitui uma
perspetiva subjetiva por parte dos não -especialistas (Lima, 2005), representando
30
a forma como determinado evento e as suas consequências são imaginados ou
recordados em inter -relação com o conhecimento dos processos envolvidos e
o grau de positividade/negatividade com que um objeto é encarado (Gaspar
de Carvalho et al., 2005).
Diferentes autores salientam que a relação entre a perceção de risco, a to-
mada de decisão e a adoção de estratégias de mitigação não é direta (Lindell
et al., 1997; Lin et al., 2008), existindo um efeito máximo que é controlado
por fatores como a negatividade, uma crença fatalista diante de situações de
risco ou de catástrofe, ou baseado em fatores cognitivos, pessoais e de contexto
(Sjöberg, 2000; Kunz -Plapp e Werner, 2006), ou suportado por uma atitude
de predisposição e capacidade de viver e lidar com o risco, motivada pela fa-
miliaridade com a fonte de risco (Figueiredo et al., 2007).
Como salientam Gunter e Kroll -Smith (2007), o grau de perceção dos
riscos varia de acordo com o tipo de comunidade e as experiências e histórias
pessoais, sendo influenciado pelo campo de aplicação da amostragem (Tavares
et al., 2009) e pelo nível de conhecimento ou de acesso à informação.
A perceção do risco enquanto fator de resiliência da sociedade às catástrofes
influencia o comportamento, adequado ou inadequado, em caso de emergên-
cia (Glatron e Beck, 2008), sendo considerada determinante nos processos de
decisão relacionados com a gestão do risco (Williams e Noyes, 2007).
Diferentes autores têm analisado a relação entre a perceção do risco e os
níveis de confiança nas instituições demonstrados pelas populações (Kasperson
et al., 1999; Viklund, 2003), salientando que esta relação é influenciada pelo
contexto geográfico e pela tipologia dos riscos associados (Hung e Wang,
2010). Conforme salienta Vandermoere (2008), embora a perceção do risco
e a confiança nas instituições apareçam associadas, a relação entre a perceção
e o nível de conhecimento sobre o risco não é direta.
Como referido por Michael Siegrist et al. (2005a e 2005b), a perceção de
um conjunto heterogéneo de riscos, e a diferentes escalas, constitui um exercí-
cio difícil, ou, como sugere Bosher (2011), há evidentes incongruências entre
as perceções do risco por parte dos diferentes atores (munícipes, autoridades
governamentais e ONGs), o que condiciona visivelmente as estratégias de
31
mitigação do risco. A construção social do risco é apresentada frequentemente
como uma consequência das formas de comunicação, nomeadamente condi-
cionando os riscos que percecionamos e a importância que lhes atribuímos
(Lima, 1998; Rodríguez et al., 2007), mas igualmente dependente das redes
sociais em que os indivíduos se movem.
De acordo com Delicado e Gonçalves (2007), o acesso à informação e
a capacidade para a descodificar constituem elementos fundamentais para
a construção social do risco, ou ainda, à semelhança de Kasperson (2005),
os processos de amplificação dos riscos estão intimamente relacionados com a
perceção do risco e com a sua comunicação, e dependentes da competência e da
credibilidade de quem faz a comunicação e da capacidade que as comunidades
têm para a compreender.
Contudo, a confluência na perceção do risco entre especialistas e outros
interessados (baseada em fatores como a familiaridade, a atitude e a confiança/
desconfiança), decorre das formas de comunicação e de envolvimento (Poortinga
e Pidgeon, 2004), as quais são influenciadas pela comunicação e pela educação
sobre os riscos (Renn, 2008), ou são promovidas através de um pré -requisito
que é a comunicação eficaz dos riscos (Kellens et al., 2011).
Mais recentemente, Paul Slovic (2010) publicou uma obra que recolhe os
artigos publicados pela sua equipa nos últimos anos. E, embora o paradigma
psicométrico seja dominante, há uma mudança muito importante nas propos-
tas de Paul Slovic. Os novos estudos propostos pela sua equipa baseiam -se na
heurística do afeto. Esta é definida como um processo cognitivo em que as
pessoas tomam em conta os seus sentimentos negativos e positivos como um
guia para avaliarem os riscos e os benefícios de uma dada atividade. A informa-
ção fornecida, nesta nova perspetiva proposta por Paul Slovic, tem que veicular
emoção ou sentimento para ter significado (2010: XIX).
Agora, a abordagem passa por analisar "os riscos como sentimentos". Esta
perspetiva baseia -se na separação entre o pensamento analítico e a componente
experiencial do risco. As reações emocionais ao risco estão associadas com a
vivacidade das imagens, a proximidade no tempo e com outras variáveis que
não têm qualquer relevância nas avaliações de cariz analítico.
32
Um dos capítulos mais importantes neste trabalho, é aquele onde Slovic
e a sua equipa (Slovic et al., 2010: 183 -213) criticam as propostas e a visão
catastrofista de Cass Sunstein (2005) sobre o impacto do que este chamou
de "pânico associado ao risco", e dos riscos do pânico para a democracia.
A argumentação de Slovic e da sua equipa assenta na noção de cognição
cultural. Assim, para eles, a cultura precede sempre as lutas na sociedade em
torno das questões do risco. Contrariamente ao indivíduo irracional que não
sabe avaliar os riscos na perspetiva de Sunstein, o que emerge é que a perceção
do risco está intimamente associada aos modelos normativos que as pessoas
e os grupos ativam sobre como a sociedade deve estar e deve ser organizada.
O modelo do avaliador de risco marcado pela cultura implica, necessariamente,
que a regulação do risco vai ser sempre uma fonte de conflitos profundos e
intensos na sociedade (Slovic et al., 2010: 209 -210).
A importância dos contextos sociais e culturais na avaliação do risco foi
trabalhada de forma exemplar por Hélène Joffe (1999). A autora fornece -nos
dados muito importantes para compreendermos como, num dado contexto
social e cultural, os indivíduos dão sentido a crises iminentes ou a decorrerem.
Paradoxalmente, ou não, a conclusão central é que a maioria dos atores possui
um sentimento alargado e difuso de invulnerabilidade, aquilo a que Joffe chama
o fator do “eu -não”. Esse sentimento de invulnerabilidade é conseguido pela
exteriorização das ameaças.
O facto de viverem em sociedades de risco não significa que as pessoas
estejam em estado de ansiedade permanente. As representações sobre os riscos
permitem -lhes construir uma sensação relativa de segurança, atribuindo a vul-
nerabilidade ao outro, o que se poderia chamar de alteridades tranquilizadoras.
Este processo complexo permite despersonalizar o outro e responsabilizá -lo por
catástrofes, epidemias e comportamentos desviantes ou de risco. Esta lógica
de degradação do outro e de afastamento simbólico contrapõe -se à segurança
ontológica sentida com os que são próximos, semelhantes ou imaginados como
iguais. Acrescenta -se a esta lógica dinâmicas emocionais complexas, ancoradas
em espaços de vivência concretos e cristalizadas em trajetórias de vida social,
cultural e politicamente marcadas.
33
A segurança ontológica e a sensação de invulnerabilidade são relacionais,
construídas em contextos sociais e culturais concretos. Caberá indagar quais os
fatores que estão na origem da construção diferenciada entre grupos e comu-
nidades das perceções dos riscos, e da capacidade desse grupos e comunidades
para lidarem com acontecimentos extremos e qual o seu potencial para se
reconstituírem posteriormente.
(Página deixada propositadamente em branco)
3 . d o r i S c o à p r e c Au ç ã o
3.1 A importância do conceito de precaução
As perspetivas teóricas até agora apresentadas mostram -nos que as sociedades
de risco contemporâneas são sociedades onde impera a desconfiança generalizada,
e onde os cidadãos dependem por completo dos peritos e dos especialistas para
o diagnóstico, para a prevenção, para a ação e para as intervenções quanto aos
riscos. O poder permanece nas mãos dos peritos, conduzindo à reprodução das
condições de vida e das desigualdades sociais.
Como refere Charles Lemert (2002:131 -132), o problema está em que nas
sociedades contemporâneas os comportamentos de risco são individualizados,
a responsabilidade é imputada a cada indivíduo, mesmo que se apele a fatores
familiares, sociais, culturais, etc., e, no emaranhado burocrático e oficial de
agentes especializados em intervenção, os atores não se apercebem dos fatores
sociais e estruturais que delimitam as suas ações, as suas opções (ou melhor,
não opções) de vida, os seus desejos e as suas realizações.
Caberá então pensar uma forma de, apelando à imaginação sociológica,
como propunha C. Wright Mills (1985), as pessoas imaginarem que os seus
problemas pessoais são problemas estruturais da sociedade como um todo.
A reflexão sobre a importância do princípio da precaução emerge após a
crise dos sistemas do Estado -providência em meados do século passado. François
Ewald (2002: 282 -283; 1986), após afirmar que as sociedades se tinham ba-
seado no paradigma da responsabilidade no século XIX e no paradigma da
solidariedade no século XX, anuncia uma nova mudança de paradigma e uma
crise que se avizinha. Este novo paradigma assenta no princípio da precaução.
36
O princípio de precaução associa -se diretamente à ideia de que os riscos são
produzidos, agora, pela ação humana (2002: 283).
O princípio da precaução tem início na Alemanha com o estudo de Konrad
von Moltke sobre as políticas de ambiente do governo alemão. Não se deve
confundir com o princípio da responsabilidade de Hans Jonas (1994), que
assenta numa heurística do medo e é, em parte, contra o potencial tecnológico
desenvolvido pelo ser humano. A máxima de Hans Jonas era: “Age de forma a
que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida
autenticamente humana na Terra”.
Para Callon, Lascousmes e Barthe (2001), o princípio da precaução orienta
para uma “ação comedida”, que seja ativa e aberta, contingente e revisável,
e que permita o aprofundamento do conhecimento. O princípio da precaução
assenta na proporcionalidade das ações, na aceitabilidade social e na avaliação
dos custos económicos das ações a empreender. Para os autores, a precaução
é, então, "uma iniciativa positiva de apreciação e de gestão de situações de
forte incerteza". O princípio da precaução, para os autores, caracteriza -se
por três aspetos:
• constitui um incentivo para a ação em três planos distintos, nomeada-
mente, nos sistemas de vigilância e de alerta, no aprofundamento dos
conhecimentos e na tomada temporária de medidas;
• cada um destes planos tem os seus agentes próprios, os seus modos de
ação e tipos precisos de responsabilidade;
• a ação baseia -se em pequenas decisões em série.
O princípio da precaução está totalmente assumido por instâncias in-
ternacionais como a Comissão Europeia (European Commission, 2000),
embora com flutuações na sua aplicação, decorrentes da linha ideológica dos
dirigentes europeus e das exigências dos setores económicos e dos grupos
de pressão constituídos.
Contudo, como bem referem Marjolein van Asselt e Leendert van Bree
(2011: 407), o princípio de precaução é cada vez mais abordado como um
37
simples princípio legal. Estas autoras propõem, em alternativa, uma visão
processual e normativa, que não deixe o princípio de precaução acantonado
nos tribunais. A precaução não deve ser uma instância de último recurso, mas
deve sim afetar todas as fases ligadas ao risco, do enquadramento da análise dos
riscos à avaliação, comunicação, gestão e regulação dos mesmos.
Como princípio legal, referem as autoras, o princípio da precaução tem
pouco para oferecer. Da perspetiva da governação do risco, a precaução deve
ser lida como a obrigação para tomar a incerteza como algo a ser levado a sério
(para uma abordagem abrangente do princípio de precaução, ver Randall, 2011;
para um conjunto de estudos sobre as dificuldades de aplicação do princípio
de precaução nas questões ambientais, ver Fisher et al., 2006).
A melhor sistematização de estudos e de lições sobre o princípio de pre-
caução, tanto a nível teórico como epistemológico, e com relevância para
o delinear de política públicas, pode ser encontrada em Poul Harremoës
et al. (2002). Os resultados conseguidos ficam bem espelhados nas doze
lições que, segundo os autores, podem ser tiradas sobre a importância do
princípio da precaução na avaliação das políticas públicas (Harremoës et
al., 2002: 185 -205):
• responder tanto à ignorância como à incerteza;
• investigar e estar atento aos "avisos precoces";
• procurar e lidar com os pontos cegos e com as lacunas no conhecimento
científico;
• identificar e reduzir os obstáculos interdisciplinares à aprendizagem;
• assegurar que as condições do mundo real são tidas em conta;
• escrutinar e justificar de forma sistemática os prós e os contras reivin-
dicados pelas diferentes partes em presença;
• avaliar as alternativas existentes e propor soluções robustas, adaptáveis
e diversas;
• utilizar o conhecimento comum e local, assim como o conhecimento
dos especialistas que seja relevante;
• ter em conta os interesses sociais e os valores mais vastos;
38
• manter a independência em relação aos interesses políticos e económicos
estabelecidos;
• identificar e reduzir os obstáculos institucionais à aprendizagem e à ação;
• e, por último, evitar a paralisia devido ao excesso de análise.
Como se pode constatar, estamos perante um conjunto de recomendações de
como os cientistas sociais devem lidar com os desafios colocados pela sua partici-
pação na avaliação e na definição de políticas derivadas do princípio da precaução.
Uma análise sociológica brilhante sobre as implicações do princípio
da precaução foi proposta por Frank Furedi (2009). Para este autor, a mudança
da gestão probabilística do risco para uma gestão possibilista apoia -se na crença
de que os riscos futuros não só são desconhecidos como não são conhecíveis.
Isto leva, na bela formulação do autor, a uma dramatização da incerteza.
A aplicação do princípio da precaução para lidar com essa incerteza radical con-
duz a uma intensificação da insegurança existencial (2009: 197). O princípio da
precaução não conduz necessariamente a um comportamento mais cauteloso, mas
incrementa constantemente as exigências, obrigando a uma ação constante e ao
ativar em permanência de um imperativo intervencionista (Furedi, 2009: 210).
Frank Furedi conclui o seu artigo desta forma lapidar: "Concern about risk
and safety express the difficulties that Western culture has in making sense of
change in an uncertain world. The response of precaution is an attempt to deal
with this predicament." (Furedi, 2009: 220)
3.2 O princípio da precaução e a democracia dialógica: os fóruns híbridos
e a participação
Cada vez mais a legitimação da atividade científica e o delinear de po-
líticas públicas nas área do risco exigem a participação ativa dos cidadãos.
O crescente desfasamento entre a capacidade para agir e a capacidade para
prever aumenta os riscos de forma dramática, tanto na sua escala como na
sua frequência. Tal facto coloca novos desafios à regulação do risco pelos
39
Estados, devido sobretudo às dinâmicas transnacionais e à exigência crescente
dos cidadãos quanto à sua segurança e pela existência de planos de prevenção
e de mitigação bem delineados e com objetivos claramente definidos.
No sistema atual das ciências sociais e humanas tal implica um trabalho crí-
tico e político de empoderamento dos cidadãos em todo o processo de produção
científica, e uma reorganização das instituições de investigação, de planeamento
e de intervenção, permitindo a participação efetiva das pessoas que diretamente
estão ligadas aos temas em questão. Não é um processo fácil, e implica uma
aprendizagem, dos especialistas e dos cidadãos, de uma prática democrática
(para uma tipologia dos mecanismos de participação dos cidadãos, ver Rowe e
Frewer, 2005; para uma análise geral sobre as aprendizagens cívicas e a cidadania,
ver Biesta et al., 2014; para a participação numa lógica de uma sociologia da
intervenção, ver Guerra, 2006).
Trata -se de conciliar as teorias e os laboratórios das ciências com o que Michel
Callon, Pierre Lascoumes e Yannick Barthe (2001) chamaram de laboratórios ao
ar livre, os mesmos que foram descritos para as ciências e as tecnologias (Fischer,
2000). E uma pergunta torna -se legítima: uma democracia participativa e dia-
lógica é possível na produção de conhecimento nas ciências sociais e humanas
e na sua aplicação às questões do risco?
De relevo para este debate é a noção de epistemologia cívica de Sheila
Jasanoff (2005: 247 -271; 2003). A autora parte da noção de que a forma
como os públicos avaliam as afirmações feitas pelos cientistas ou em nome da
ciência constituem um elemento fundamental da cultura política das socieda-
des de conhecimento contemporâneas. O termo epistemologia cívica refere -se
às formas de conhecimento público, culturalmente específicas, e histórica e
politicamente ancoradas (2005: 249). Com esta proposta, a autora quer ir
para além dos pressupostos simplistas sobre a ciência e a sua perceção pelos
cidadãos, patente nos estudos sobre a compreensão pública da ciência (public
understanding of science).
Sheila Jasanoff define, assim, epistemologias cívicas como, "as práticas
institucionalizadas pelas quais os membros de uma dada sociedade testam e
aplicam as afirmações baseadas no conhecimento utilizadas para fazer escolhas
40
públicas" (2005: 255). A epistemologia cívica refere -se à variedade de maneiras
como o conhecimento é apresentado, testado, verificado e utilizado nas arenas
públicas (2005: 258).
Como a epistemologia cívica está diretamente relacionada com a cultura
política de um país e as práticas institucionais associadas, numa análise com-
parativa corre -se o risco de dispersão e de se apresentar uma simples descrição
dos mecanismos envolvidos e dos atores em presença nas discussões sobre
a ciência e a sua aplicação nas políticas públicas. Para evitar essa dispersão, a
autora aponta cinco critérios que devem ser analisados para operacionalizar
a epistemologia cívica: os estilos de produção do conhecimento público exis-
tentes; o sistema de responsabilidade pública (que é a base para a confiança);
as práticas de demonstração do conhecimento; a objetividade (relacionada
com os registos do conhecimento); e, por último, o sistema de peritagem e o
papel dos especialistas.
Várias experiências com a participação dos cidadãos em temas relaciona-
dos com a ciência e as políticas públicas levaram à criação de fóruns híbridos,
que permitem um trabalho constante de adaptação e de reinvenção com base
nas identidades pessoais e coletivas emergentes (Callon, Lascoumes e Barthe,
2001). Estes procedimentos dialógicos fazem com que o risco seja o que fica
por discutir, o que se pensa por último, depois de um trabalho de exploração
comum das incertezas técnicas e políticas. Este trabalho de verdadeira democracia
técnica, permite que se concebam cenários alternativos possíveis, e não a sim-
ples aceitação de cenários delineados e determinados por outros, normalmente
exteriores, portadores de autoridade e prestígio, mas, como referia Hélène Joffe
(1999), sendo simples representantes de alteridades distantes.
Aqui já não se fala de prevenção, onde os cálculos dos riscos são exatos e
bem delimitados, mas sim de precaução, num contexto de atenção extrema aos
interesses particulares, mas tendo sempre como referência a construção de um
mundo comum e da universalização de uma vida decente. Este princípio de
igualdade assenta numa democracia de processos, numa justiça processual, que
conduz da democracia delegativa (com conhecimentos e identidades estabilizadas)
à democracia dialógica assente em conhecimentos e identidades a construir.
41
A aplicação desta metodologia às questões económicas foi também realçada
por Michel Callon, Cécile Méadel e Vololona Rabeharisoa (2002). Para os
autores, os fóruns são espaços públicos que são híbridos por duas ordens de
razões: porque há uma grande variedade e heterogeneidade de atores envolvidos;
e porque as questões abordadas são múltiplas, e vão da economia, à política,
à ética, à ciência, etc. O resultado mais relevante destes fóruns é a redistribuição
processual e subsequente das competências dos vários atores que participam
nos mesmos (Callon, Méadel e Rabeharisoa, 2002: 195).
A construção deste espaço público, onde se cruzam múltiplas identidades
e diversos conhecimentos (práticos e científicos), é uma de várias formas de
criação de pessoas e coletivos compatíveis com o desafio de imaginar a hu-
manidade comum.
Embora esteja assegurada a representatividade dos diferentes grupos de
interessados nos processos de participação e nos fóruns híbridos, fica sempre
a questão de se saber que opções, nas temáticas em discussão, não foram to-
madas. Será Brian Wynne quem, para atender às estruturas de poder em que
a ciência também é parte ativa, apelará a uma reimaginação e a um repensar
da participação pública e dos seus objetos (Wynne, 2007).
Ou seja, o conjunto de prioridades e de compromissos assumidos antes de
ocorrerem os processos de participação não são em nada democráticos ou passíveis
de prestação de contas (Wynne, 2007: 106). E este interesse sociológico pelas
fases a montante da participação, responsáveis pelos compromissos assumidos
de investigação e de inovação, visa influenciar o "social" que está totalmente
incorporado nas culturas técnico -científicas, atendendo também ao questio-
namento sobre o que deve ser relevante investigar. Como refere Brian Wynne,
"Uninvited forms of public engagement are usually about challenging just these
unacknowledged normativities" (2007: 107) (para outros textos acutilantes
sobre os processos de participação ver Welsh e Wynne, 2013; Wynne, 2011).
(Página deixada propositadamente em branco)
4 . c o n c e i to S e c l A S S i f i c A ç ã o
n A A n á l i S e d o S r i S c o S
Qualquer taxonomia é sempre redutora e depende dos critérios a utilizar
na classificação dos riscos (Proske, 2008). Optei por utilizar as tipologias que
têm uma base de construção mais próxima dos critérios das ciências sociais,
e que atendem aos efeitos nas populações afetadas e na recuperação depois
da ocorrência de acontecimentos extremos ou catástrofes. Por outro lado,
como na definição de risco está sempre presente a noção de que há pessoas e
comunidades que são afetadas pelos perigos existentes na verdadeira aceção
do termo, todos os riscos são sociais. As estruturas e as condições sociais,
as dinâmicas de poder e as desigualdades existentes, baseadas nas diferenças
sexuais, étnicas ou de classe social marcam a forma como as pessoas, os grupos
e as comunidades são afetadas pelos riscos e pelas catástrofes (para o caso do
furacão Katrina nos EUA, ver Chester e Squires, 2006).
Nas secções seguintes mantenho a divisão clássica, por questões de expo-
sição pedagógica, dos riscos naturais, dos riscos antrópicos (que incluem os
riscos tecnológicos e os riscos sociais) e dos riscos mistos. Não procederemos à
discussão dos riscos mistos, dos riscos natecno (naturais/tecnológicos) ou dos
riscos ligados à saúde.
4.1 Os riscos naturais
Há uma vasta literatura quanto aos riscos naturais, à sua forma de avaliação e
ao seu impacto nas populações (Rougier, Sparks e Hill, 2013). Uma abordagem
44
excelente dos riscos naturais, e de cariz mais pedagógico, é apresentada por
David Alexander (1995). Após rever algumas das definições convencionais de
perigos naturais, Alexander opta por definir risco natural como um evento físico
que tem impacto nos seres humanos e no seu ambiente (Alexander, 1995: 4).
Assim, o perigo envolve uma população humana que se coloca em risco perante
acontecimentos geofísicos. Alexander (1995: 5 -6) definiu também quatro níveis
de adaptação aos riscos naturais:
• ocupação persistente da zona de perigo, apesar das ameaças existentes.
Podem existir nos locais habitados medidas de mitigação do risco. Se estas
medidas não existirem, podem estar presentes somente medidas de aviso
e de evacuação das populações. Se não existir qualquer tipo de proteção
ou de aviso, a vulnerabilidade das populações será máxima.
• o segundo nível de adaptação envolve a cohabitação com os danos cau-
sados por desastres anteriores, num estado de inércia geográfica máxima.
• o terceiro nível de adaptação implica o abandono das zonas destruídas
ou afetadas por parte das populações, sendo estas realojadas na zona
de risco, criando uma inércia geográfica de segundo nível.
• o quarto nível de adaptação implica a deslocação planeada ou não das
populações para outras zonas fora da zona de perigo.
David Alexander (1995: 7) também apresenta uma lista de processos poten-
cialmente perigosos mais estudados, e que incluem: avalanches, erosão costeira,
seca, terramotos, cheias, geada, granizo, furacões, deslizamentos, queda de
raios, tempestades de neve em espaços urbanos, tornados, tsunamis, erupções
vulcânicas e tempestades.
Já a classificação de Ortwin Renn (2008: 6), que se baseia nos agentes
desencadeadores dos processos potencialmente perigosos, indica os seguintes
riscos naturais como mais relevantes: tempestades, terramotos, vulcões, seca,
cheias, tsunamis, incêndios florestais e avalanches.
Para Portugal, uma proposta de tipologia de riscos naturais pode ser encontrada
em Julião et al. (2006: 24 -26), onde os autores distinguem entre riscos ligados a
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condições meteorológicas potencialmente adversas (nevoeiros, nevões, ondas de
calor, ondas de frio e secas), riscos relacionados com a hidrologia (cheias, inundações
urbanas, inundações progressivas, inundações e galgamentos costeiros e inundação
por tsunami), riscos ligados à geodinâmica interna (sismos, atividade vulcânica e
radioatividade natural) e riscos associados com a geodinâmica externa (movimentos
de massa em vertente, erosão costeira e colapso de cavidades subterrâneas naturais).
A nível da sociologia, durante muito tempo houve a noção de que as conse-
quências psicossociais e os impactos nas comunidades dos desastres tecnológicos
eram maiores do que os associados aos desastres naturais (Tierney, 2012: 61).
Entre os autores que mudaram a sua posição essencialista inicial temos Steve
Kroll -Smith e Stephen Couch (1991: 361), que passaram a propor um quadro
analítico "ecológico -simbólico", em que a verdadeira questão não é a quali-
dade do agente do desastre, mas sim se o mesmo altera de forma significativa
a relação entre a comunidade e os seus ambientes biofísico e construído, e a
forma como as pessoas interpretam as mudanças ocorridas nesses ambientes.
Esta reconcetualização está de acordo com a abordagem sociológica dos riscos
e dos desastres, em que se deve atender às dimensões sociais e não às caracterís-
ticas dos agentes dos riscos. Os riscos naturais podem, de facto, afetar e mudar
radicalmente a relação das pessoas e das comunidades com os seus ambientes
envolventes (Tierney, 2012: 61). Por outro lado, há também nos riscos e nos
desastres naturais, como nos riscos e desastres tecnológicos, a constituição de
movimentos sociais de protesto e níveis de litigação altos (Blocker, Rochford e
Sherkat, 1991; Picou et al., 2004).
4.2 Os riscos antrópicos: os riscos tecnológicos
A sociologia desde cedo se debruçou sobre o impacto dos riscos tecnológicos,
e, como vimos, anteriormente, muito do sucesso do conceito de sociedade do
risco de Ulrich Beck ficou -se a dever aos acontecimentos posteriores a Chernobyl.
Esse impulso para o estudo dos riscos tecnológicos prende -se com as grandes
catástrofes de Bhopal (Jasanoff, 1994), Three Mile Island (Perrow, 1981) e Seveso.
46
O efeito destrutivo dos acidentes tecnológicos foi uma das linhas de investi-
gação privilegiadas nos estudos sociológicos, como se pode constatar na síntese
de Kathleen Tierney (2012: 59 -60). Muitos desses estudos concentraram -se nos
impactos destruidores que ocorriam quando os recursos naturais e de subsistência
das comunidades eram afetados pelos desastres tecnológicos, induzindo uma
desestruturação do sentimento de identidade e da coesão dessas comunidades.
O estudo clássico de sociologia dos riscos tecnológicos é o de Kai Erikson
(1976), que desenvolveu a sua análise numa publicação posterior (Erikson,
1994). Para alguns autores, os riscos tecnológicos passam a ser vistos e geridos
como propiciadores de "desastres normais", na assunção de Charles Perrow
(1984), dado que as organizações falham de forma permanente e constante.
No mundo francófono muitos estudos têm abordado, a partir de diferentes
paradigmas analíticos da sociologia, desde a teoria do ator -rede até às perspe-
tivas mais institucionalistas, os riscos tecnológicos (Borraz, 2008), sobretudo
devido às controvérsias públicas que advieram, por exemplo, da questão da
gestão dos detritos nucleares (Barthe, 2006) ou do sangue contaminado
(Fillion, 2006). Estes eventos originaram toda uma reflexão sociológica sobre
os riscos tecnológicos e o papel dos lançadores de alertas (Chateaureynaud
e Didier, 1999).
Uma das tipologias mais interessantes sobre riscos tecnológicos é -nos proposta
por Stuart Anderson e Massimo Felici (2009), recorrendo a uma matriz que dá
especial relevo à questão das escalas. A tipologia distingue os riscos sociotécnicos
emergentes em três categorias: os riscos de fronteira, os riscos evolutivos e os
riscos de performatividade (Anderson e Felici, 2009: 210). Esta tipologia parte
da noção de que as organizações são compostas por diferentes culturas, e que
há que entender como as tecnologias e os riscos inerentes atravessam as fron-
teiras das organizações (necessidade de identificação dos objetos de fronteira).
Quanto ao facto dos riscos serem evolutivos, a história das organizações
influencia a inovação tecnológica e os riscos associados (trajetórias das tecnolo-
gias). O terceiro aspeto prende -se com a maneira como os feedbacks negativos
sobre os produtos tecnológicos afetam a performatividade das organizações
(falhanços sociotécnicos).
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Esta análise permite orientar a análise empírica dos riscos tecnológicos emer-
gentes, para além das tipologias mais convencionais sobre os riscos industriais
e tecnológicos. Numa perspetiva mais clássica, Ortwin Renn (2008: 6) iden-
tifica como riscos tecnológicos os oriundos de substâncias tóxicas, substâncias
genotóxicas ou cancerígenas e poluentes ambientais.
Para Portugal, a tipologia de riscos tecnológicos de Julião et al. (2006:
26 -27) enumera os riscos ligados aos transportes, às vias de comunicação e
infraestruturas e à atividade industrial e comercial.
4.3 Os riscos antrópicos: os riscos sociais
Os riscos sociais assumiram alguma visibilidade pela atenção dada por
instâncias internacionais como a OCDE (OECD, 2003), que no seu relatório
sobre os riscos emergentes listava o terrorismo, a sabotagem, o comportamento
das multidões, a depressão, o suicídio e outras causas possíveis de causar
danos a nível social. Como se pode verificar, esta lista de riscos sociais não
veicula qualquer quadro analítico sociológico, mas é sim a projeção insti-
tucional de possíveis ameaças às lógicas de regulação e de controlo social
dos Estados e das instâncias internacionais. Ortwin Renn (2008: 63), numa
perspetiva mais sociológica, apela a uma análise que enquadre os riscos sociais
nas dinâmicas e nas configurações relacionadas com a identidade, a justiça
e a legitimidade sociais.
Renn (2008: 6) lista como riscos sociocomunicativos os riscos de terrorismo
e sabotagem, a violência humana e os crimes, a humilhação, os comportamen-
tos das multidões e de estigmatização, as experiências com seres humanos, a
histeria de massa e os sintomas psicossomáticos. Aqui também se verifica que
estamos perante uma lista desconexa e quase arbitrária de riscos, o que também
demonstra, quase paradoxalmente, a menor capacidade de reflexão sociológica
sobre os riscos sociais, quando comparados com os riscos naturais e tecnológicos.
Esta fraqueza da análise sociológica está associada à importância destes riscos
para as políticas de regulação das populações e para as políticas securitárias,
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imperando um forte viés ideológico que afeta a capacidade de afastamento e
de interpretação analítica.
Uma análise brilhante sobre os riscos sociais e uma crítica à democratiza-
ção dos riscos foi proposta recentemente por Dean Curran (2013). Curran
argumenta, basicamente, que na crescente produção e distribuição de "males"
(bads), as desigualdades de recursos económicos ganharam uma importância
acrescida, pois são as diferenças em recursos económicos que permitem aos que
estão em vantagem minimizarem a sua exposição aos riscos. Essas diferenças
impõem aos desfavorecidos a necessidade de se confrontarem com os riscos
criados pela sociedade do risco (Curran, 2013: 44).
Para além desta problemática, temos toda uma literatura que aborda os
novos riscos que derivam da crise no Ocidente dos Estados -providência e da
hegemonia do