111
A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. Sociologia do risco: uma breve introdução e algumas lições Autor(es): Mendes, José Manuel Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/38055 DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1066-5 Accessed : 19-May-2017 18:19:41 digitalis.uc.pt pombalina.uc.pt

R I S C O SEF%BB%BFSocio...Este livro foi elaborado no âmbito do projeto de investigação “ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas: Definindo para a Europa um novo modo

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    este aviso.

    Sociologia do risco: uma breve introdução e algumas lições

    Autor(es): Mendes, José Manuel

    Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra

    URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/38055

    DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1066-5

    Accessed : 19-May-2017 18:19:41

    digitalis.uc.ptpombalina.uc.pt

  • Propõe-se nesta obra uma abordagem problematizadora das teorias do risco, integrando os debates

    mais recentes sobre a vulnerabilidade social e a teoria dos desastres. Especial relevância é dada aos

    regimes de regulação do risco e à sua relação com as políticas públicas na área da proteção civil e da

    segurança estrutural das populações, bem como à construção de epistemologias cívicas e ao tema

    da participação das populações na elaboração das políticas públicas sobre mitigação dos riscos.

    São também abordados os diferentes paradigmas sobre os desastres, vendo estes como pontos de

    entrada e de aproximação à governação e à regulação do risco e, também, como reveladores das

    estruturas sociais em presença. Especial atenção é dada aos impactos diferenciados dos aconte-

    cimentos extremos nas comunidades afetadas. Procede-se à desconstrução, com base em vários

    estudos sociológicos, do mito muito comum e mediatizado da ocorrência de pânico social em

    situações de desastre.

    9789892

    610658

    José Manuel Mendes é doutorado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade

    de Coimbra, onde exerce as funções de Professor Auxiliar com Agregação. Investigador do

    Centro de Estudos Sociais, tem trabalhado nas áreas das desigualdades, mobilidade social,

    movimentos sociais e ação colectiva e, mais recentemente, nas questões relacionadas com o

    risco e a vulnerabilidade social.

    É coordenador do Observatório do Risco - OSIRIS, sediado no Centro de Estudos Sociais.

    JOSÉ M

    ANUEL M

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  • (Página deixada propositadamente em branco)

  • R I S C O SE C A T Á S T R O F E S

  • Estruturas EditoriaisSérie Riscos E Catástrofes

    Estudos Cindínicos

    Diretor Principal | Main EditorLuciano Lourenço

    Universidade de Coimbra

    Diretores Adjuntos | Assistant EditorsAdélia Nunes, António Bento Gonçalves

    Universidade de Coimbra, Universidade do Minho

    Assistente Editorial |Editoral AssistantFernando Félix

    Universidade de Coimbra

    Ana Meira Castro Instituto Superior de Engenharia do Porto

    António Betâmio de Almeida Instituto Superior Técnico, Lisboa

    António Duarte Amaro Escola Superior de Saúde do Alcoitão

    António Manuel Saraiva Lopes Universidade de Lisboa

    António Vieira Universidade do Minho

    Cármen Ferreira Universidade do Porto

    Helena FernandezUniversidade do Algarve

    Humberto Varum Universidade de Aveiro

    José Simão Antunes do Carmo Universidade de Coimbra

    Margarida Horta Antunes Instituto Politécnico de Castelo Branco

    Margarida Queirós Universidade de Lisboa

    Maria José Roxo Universidade Nova de Lisboa

    Romero Bandeira Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Porto

    Tomás de Figueiredo Instituto Politécnico de Bragança

    Antenora Maria da Mata Siqueira Univ. Federal Fluminense, Brasil

    Carla Juscélia Oliveira Souza Univ. de São João del Rei, Brasil

    Esteban Castro Univ. de Newcastle, Reino Unido

    José António Vega Centro de Investigación Forestal de Lourizán, Espanha

    José Arnaez Vadillo Univ.de La Rioja, Espanha

    Lidia Esther Romero Martín Univ. Las Palmas de Gran Canaria, Espanha

    Miguel Castillo Soto Universidade do Chile

    Monserrat Díaz-Raviña Inst. Inv. Agrobiológicas de Galicia, Espanha

    Norma Valencio Univ. Federal de São Carlos, Brasil

    Ricardo Alvarez Univ. Atlântica, Florida, Estados Unidos da América

    Victor Quintanilla Univ. de Santiago de Chile, Chile

    Virginia Araceli García Acosta Univ. Nacional Autónoma de México

    Xavier Ubeda Cartañà Univ. de Barcelona, Espanha

    Yvette Veyret Univ. de Paris X, França

    Comissão Científica | Editorial Board

  • edição

    Imprensa da Univers idade de CoimbraEmail: [email protected]

    URL: http//www.uc.pt/imprensa_ucVendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt

    coordenação editorial

    Imprensa da Univers idade de Coimbra

    conceção gráfica

    António Barros

    Pré ‑imPressão

    Mickael Silva

    execução gráfica

    Simões e Linhares, Lda

    isBn

    978-989-26-1065-8

    isBn digital

    978-989-26-1066-5

    doi

    http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1066-5

    dePósito legal

    400968/15

    aPoios

    Este livro foi elaborado no âmbito do projeto de investigação “ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas: Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo", coordenado por Boaventura de Sousa Santos (alice.ces.uc.pt) no Centro de Estudos Sociais da

    Universidade de Coimbra - Portugal. O projeto é financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação, 7º Programa Quadro da União Europeia (FP/2007-2013) /ERC Grant Agreement n. [269807]”.

    © novemBro 2015, imPrensa da universidade de coimBra

    �P�A�T�R

    �I�M��N�I�O��M�U�N�D�I�A�L

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    �N�E��M�O�N�D�I�A�L�

    Universidade de Coimbra – Alta e Sofiainscrita na Lista do Património Mundial em 2013

    Organizaçãodas Nações Unidas

    para a Educação,a Ciência e a Cultura

  • À Ana, ao Zé Rui, ao João Nuno e ao Jaime Miguel

  • (Página deixada propositadamente em branco)

  • S u m á r i o

    Agradecimentos ......................................................................................................9

    Introdução ........................................................................................................... 11

    1. Análise histórica da noção de risco .................................................................... 15

    2. Do risco à sociedade do risco ............................................................................ 19

    2.1 As teorias sociológicas do risco .................................................................. 19

    2.2 A teoria de Ulrich Beck e a sua crítica ....................................................... 23

    2.3 A teoria de Niklas Luhmann ..................................................................... 27

    2.4 A perceção do risco e a construção subjetiva do risco ................................. 28

    3. Do risco à precaução ........................................................................................ 35

    3.1 A importância do conceito de precaução.................................................... 35

    3.2 O princípio da precaução e a democracia dialógica:

    os fóruns híbridos e a participação ............................................................ 38

    4. Conceitos e classificação na análise dos riscos .................................................... 43

    4.1 Os riscos naturais ..................................................................................... 43

    4.2 Os riscos antrópicos: os riscos tecnológicos ................................................ 45

    4.3 Os riscos antrópicos: os riscos sociais ........................................................ 47

    5. A sociologia dos desastres e a governação do risco ............................................. 51

    5.1 Risco e incerteza: conhecimento, controvérsia e governação ....................... 51

  • 5.2 Os paradigmas sobre os desastres ............................................................... 54

    5.3 A dinâmica das comunidades afetadas ....................................................... 62

    5.4 O mito do pânico social ............................................................................ 65

    6. Instrumentos metodológicos de análise social do risco ....................................... 67

    6.1. O inquérito por questionário ................................................................... 67

    6.2 O inquérito por questionário e a sua aplicação nos estudos do risco ........... 71

    7. A vulnerabilidade social e a resiliência social ..................................................... 73

    7.1 Definição de conceitos .............................................................................. 73

    7.2 A operacionalização dos conceitos ............................................................. 76

    7.3 A vulnerabilidade social e as estratégias de planeamento ............................. 83

    7.4 A mudança de paradigma:

    a análise estrutural da segurança das populações ......................................... 85

    Referências bibliográficas ...................................................................................... 89

  • A g r A d e c i m e n to S

    Sendo esta obra o resultado de uma prova académica, cabe, antes de mais,

    agradecer às e aos colegas do Núcleo de Sociologia da Faculdade de Economia da

    Universidade de Coimbra, que me propiciaram as condições institucionais para

    usufruir de uma licença sabática e de me dedicar por inteiro a esta etapa da minha

    vida pessoal e profissional. Ao longo dos meus mais de vinte anos em Coimbra

    como docente, foram responsáveis pela minha formação como sociólogo e pela

    perspetiva crítica e comprometida que implica pertencer à Escola de Coimbra.

    Ao Prof. Boaventura de Sousa Santos pelos diálogos e conversas sempre

    indagadores, sempre inconformados e instigadores, em busca de uma ciência

    social que interessa, que transforma e que emancipa.

    Aos e às colegas e funcionários e funcionárias do CES, a minha casa como

    investigador e onde a solidariedade ainda não é uma palavra vã.

    Uma palavra para o Alexandre Tavares, que comigo partilha desde 2004 um

    percurso institucional e uma dedicação às questões do risco, da vulnerabilidade

    social e das políticas públicas.

    Ao Pedro Araújo pelas longas conversas sobre o Estado, o protesto e a pos-

    sibilidade de ser cidadã ou cidadão quando eventos extremos nos afetam.

    Por último, um obrigado, onde as palavras não são suficientes, para a Ana e para

    os meus filhos Zé Rui, João Nuno e Jaime Miguel, os primeiros a incentivarem-

    -me nesta caminhada e, no fim, a minha razão de ser e de existir.

  • (Página deixada propositadamente em branco)

  • i n t ro d u ç ã o

    O presente livro é uma versão revista do relatório da unidade curricular

    Sociologia do Risco apresentado no âmbito das minhas provas de agregação

    em Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que

    decorreram no início do ano de 2015.

    Propõe -se nesta obra uma abordagem problematizadora das teorias do

    risco, integrando os debates mais recentes sobre a vulnerabilidade social e

    a teoria dos desastres.1 Especial relevância é dada aos regimes de regulação

    do risco e à sua relação com as políticas públicas na área da proteção civil

    e da segurança das populações, bem como à construção de epistemologias

    cívicas e ao tema da participação das populações na elaboração das políticas

    públicas sobre mitigação dos riscos.

    Começa -se por analisar a história controversa do conceito de risco, salientando-

    -se, contudo, que a origem etimológica deve ser situada e discutida, mas

    atendendo sempre às mudanças no tempo da aceção do conceito e da sua

    integração no campo das ciências sociais e das ciências exatas, e na esfera das

    instituições internacionais e nacionais de regulação do risco.

    Um segundo capítulo é dedicado à análise do conceito de risco nas ciências

    sociais e, mais especificamente, na Sociologia. Após uma breve contextualização

    sobre a utilização do conceito de risco no vocabulário científico, procede -se a

    1 Embora o conceito de desastre possa ser redutor na língua portuguesa, optando alguns autores por propor em alternativa o conceito de catástrofe, mantivemos no presente texto a designação de sociologia dos desastres, em linha com a literatura já publicada em Portugal sobre o tema e em consonância também com a designação das Nações Unidas do Quadro para a Redução do Risco de Desastre 2015 -2030.

  • 12

    uma apresentação e discussão aprofundada da proposta de sociedade do risco

    de Ulrich Beck, e da novidade da sua abordagem por acentuar a importância

    dos fatores sociais. À teoria de Ulrich Beck contrapõe -se a proposta sistémica de

    Niklas Luhmann e, atendendo à importância que este autor atribui à confiança

    nas instituições, trabalha -se em sequência os estudos sobre perceção do risco e

    as práticas sociais de mitigação do risco.

    De seguida, no terceiro capítulo, aborda -se a emergência, devido à crise

    teórica e epistemológica das abordagens convencionais do risco, do tema da

    precaução, da sua incorporação nas políticas públicas e das diferentes aceções

    propostas em torno deste tema pelas ciências sociais. É analisado o papel crescente

    da participação dos cidadãos na definição das políticas públicas relacionadas

    com o risco, e o papel específico dos fóruns híbridos como metodologia de

    participação. Também se discute o conceito de democracia dialógica e o con-

    tributo para a mesma das epistemologias cívicas propostas por Sheila Jasanoff.

    No capítulo quatro são apresentadas e discutidas tipologias existentes sobre

    os riscos. Optou -se por utilizar tipologias que têm uma base de construção mais

    próxima dos critérios das ciências sociais. Também se manteve a divisão clássica

    entre riscos naturais, tecnológicos e sociais, não incorporando na discussão os

    riscos mistos, natecno e os riscos ligados à saúde. O argumento subjacente é que

    todos estes riscos têm causas sociais e estruturam e são estruturados, ao contrário

    do que afirma Ulrich Bech, pelas condições sociais e pelas desigualdades de classe,

    e pelo feixe de desigualdades com base no sexo, na idade e no grupo étnico.

    A importância dos debates em torno do conceito de incerteza, que permite

    uma aproximação sociológica mais abrangente à governação do risco, orienta

    os conteúdos do capítulo seguinte do livro. Após uma breve discussão sobre

    os desafios que se colocam com o conceito de incerteza, aborda -se os diferen-

    tes paradigmas sobre os desastres, vendo estes como pontos de entrada e de

    aproximação à governação e à regulação do risco e, também, como reveladores

    das estruturas sociais em presença. Especial atenção é dada aos impactos dife-

    renciados dos acontecimentos nas comunidades afetadas. Também se procede

    à desconstrução, com base em vários estudos sociológicos, do mito muito

    comum e mediatizado da ocorrência de pânico social em situações de desastre.

  • 13

    O sexto capítulo do livro é exclusivamente dedicado à análise aprofundada da

    história, dos pressupostos e das regras de construção rigorosa de um questionário.

    Assume especial relevância o cuidado a ter na construção de um questionário

    que atenda às conceções dos inquiridos e não aos conceitos abstratos e acadé-

    micos, como o conceito de risco, de difícil interpretação porque associado à

    atribuição e cálculo de probabilidades, ou o conceito de vulnerabilidade, que

    pode estigmatizar e induzir reações de desconfiança nos inquiridos.

    O estudo e a discussão crítica dos conceitos de vulnerabilidade social e de

    resiliência social informam o último capítulo da presente obra. Discute -se a

    importância destes conceitos para a definição de políticas de planeamento e de

    ordenamento do território que integrem as condições sociais das populações

    mais desfavorecidas, pois o risco e os acontecimentos extremos são altamente

    segregadores a nível social. De especial relevância é fundamentar uma reflexão

    mais global que, para além da simples discussão sobre os modelos de preparação,

    de emergência e de socorro, permita pensar a possibilidade da implementação

    de uma análise estrutural de segurança das populações, assente no conceito de

    epistemologia cívica e na participação cidadã.

  • (Página deixada propositadamente em branco)

  • 1 . A n á l i S e h i S t ó r i c A d A n o ç ã o d e r i S c o

    A criação do conceito de risco, na sua aceção moderna e do ponto de vista

    social, é reportada convencionalmente à análise dos acidentes de trabalho no

    século XIX e à necessidade de atender a esse problema social (Peretti -Wattel,

    2000). Ao estudo deste fenómeno social, e do cálculo dos seus custos para o

    sistema capitalista emergente, associa -se também o cálculo dos seguros e dos

    riscos profissionais. A generalização dos seguros, para além do mundo indus-

    trial, estaria na base do Estado -providência e da transformação lenta do risco

    profissional em risco social (Ewald, 1986).

    O conceito de risco associado a uma probabilidade de ocorrência de um deter-

    minado acontecimento e dos danos que o mesmo pode causar, e a sua incorporação

    nos estudos formais sobre prevenção e mitigação do riscos, só será integralmente

    assumido nos anos 70 do século XX. A consagração do risco como fenómeno

    característico de uma mudança societal de grande impacto, como definidor de

    um novo tipo de modernidade, só advirá com a proposta de Ulrich Beck (1992)

    da emergência de uma sociedade de risco em 1986, como veremos na secção 2.2.

    Devemos a Pierre -Charles Pradier (2004) a melhor e mais sólida história

    do conceito de risco. Pradier, após a análise da literatura especializada e de

    cariz científico, conclui que existem duas grandes correntes quanto à história

    do conceito de risco: a tese modernista, e o que Pradier chama de romance

    náutico. A tese modernista, proposta por Luhmann (1993) e Giddens (1992),

    entre outros, afirma que a difusão da palavra risco deriva diretamente do

    desenvolvimento do capitalismo, com a expansão do comércio, dos seguros

    sobre as mercadorias do comércio transatlântico, da maturação das técnicas

    contabilísticas e financeiras e da reforma religiosa.

  • 16

    A tese da origem náutica estaria associada à palavra latina resecare (ressecar),

    que teria evoluído para resecum (que corta) no latim popular e, daí, para "recife",

    associando -se a "risco que corre uma mercadoria no mar". Esta evolução ortográfica

    e semântica não está comprovada e é, para Pradier, uma entre muitas hipóteses.

    Para o autor, estas duas correntes mais não são do que efabulações, até

    porque foi assinalada com precisão o uso da palavra risco ainda antes do

    final da Idade Média, o que contradiz a tese modernista. Pradier, em al-

    ternativa às teses modernista e náutica, contrapõe duas linhas genealógicas

    distintas da palavra risco: uma italiana e outra, por efeito de difusão, no

    resto da Europa.

    A Itália é o lugar na Europa onde aparece documentada pela primeira vez

    a palavra risco. O seu uso verifica -se já em 1193 (Pradier, 2004: 174), com

    difusão posterior em Marselha, Catalunha e Provença, seguindo as rotas co-

    merciais com base no poder militar e económico de Génova. No século XV a

    palavra risco está presente na Croácia. Só a partir desta última data a palavra

    risco será usada pelos germanos, pelos castelhanos e pelos franceses.

    A palavra risco na sua origem estaria ligada à atividade militar, e ao ato

    voluntário de correr perigo por parte dos cavaleiros e, na literatura, por parte

    dos heróis. O que é interessante na análise de Pradier é que a difusão da palavra

    risco na Europa na época moderna acontece de forma muito rápida, enquanto na

    época contemporânea, após uma relativa estagnação no século XIX, vai assumir

    claramente uma significação muito mais abstrata e polissémica (2004: 178).

    No século XVII a palavra risco estava associada, agora sim, às atividades

    náuticas e, especificamente, aos seguros marítimos. Ficavam de fora da abran-

    gência deste termo os seguros de vida e os seguros contra os incêndios. Após

    um pico de utilização no século XVIII, o uso da palavra e do conceito de risco

    vai cair de forma acentuada no século XIX.

    Pradier pergunta -se se o século XIX, visto como o século da ciência, não

    admitiria a dúvida (2004: 180). Mas, o mais plausível, na minha perspetiva,

    é que a ideia de progresso e o positivismo ascendente, visível na obra, por

    exemplo, de Auguste Comte, afastaram o uso de um conceito como o de ris-

    co, associado ao indeterminado e ao desconhecido. O otimismo reinante e a

  • 17

    confiança no futuro não davam lugar ao uso da palavra risco e às conotações

    associadas à mesma.

    O século XX, logo a partir de 1900, verá o crescimento exponencial do uso

    linguístico do substantivo risco, mas também do adjetivo "arriscado" e do verbo

    "arriscar". A palavra risco vai assumir uma grande polissemia, que se expande

    num jogo enorme, quase infindável, de metonímias (Pradier, 2004: 181). Este

    fenómeno estará na origem da diversidade de usos e de aplicações que ocorrerão

    com o desenvolvimento do conhecimento científico e técnico no século XX, e

    da utilização do conceito de risco nas ciências naturais, nas ciências biológicas,

    nas ciências sociais e nas humanidades, bem como na administração pública e

    na definição de políticas públicas.

    A polissemia da palavra risco marcará de forma indelével o seu percurso

    epistémico, metodológico e operacional desde os inícios do século XX.

  • (Página deixada propositadamente em branco)

  • 2 . d o r i S c o à S o c i e d A d e d o r i S c o

    2.1 As teorias sociológicas do risco

    Após este breve percurso pela história controversa do conceito de risco,

    cabe agora explicitar a especificidade do quadro analítico da sociologia para

    as questões do risco e, a diferença e o impacto que advieram da proposta

    de Ulrich Beck sobre o aparecimento da sociedade do risco. Isto porque a

    radicalidade da modernidade assenta na irrupção da imanência do social nos

    discursos, nas práticas e nas políticas, configurando a novidade do próprio

    conceito de sociedade (Karsenti, 2013). O olhar sociológico sobre o risco situa

    sempre os riscos nos contextos sociais, atendendo às atividades das pessoas,

    dos grupos sociais e das comunidades (Lidskog e Sundqvist, 2013). Obriga

    a estudar e a atender às desigualdades associadas ao risco, e à forma como as

    sociedades contemporâneas estruturam a diferença social a partir da definição

    de populações em risco e de populações vulneráveis.

    Embora o tema do risco seja recente na sociologia, a produção nesta área

    tem sido vasta nas últimas três décadas. Por conseguinte, deparamo -nos com

    várias propostas de categorização ou de tipologias das teorias sociológicas do

    risco. Começarei primeiro com a abordagem mais abrangente da temática

    do risco nas ciências sociais proposta por Deborah Lupton (1999) e, depois,

    apresentarei as categorizações das teorias sociológicas do risco avançadas por

    Ortwin Renn (2008).

    No seu pequeno mas importante livro de sistematização das teorias em torno

    do risco, Deborah Lupton (1999) distingue três grandes linhas de investigação: as

    perspetivas das ciências cognitivas, as abordagens socioculturais e as perspetivas

  • 20

    socioconstrutivistas. A discussão do risco nas ciências cognitivas apoia -se numa

    análise técnico -científica do risco, que privilegia as formas adequadas de identificar

    e medir os riscos e os seus efeitos (Lupton, 1999: 18 -19).

    As perspetivas socioculturais enfatizam a importância dos contextos sociais

    e culturais na produção e na negociação dos riscos. Aqui, Lupton inclui a teoria

    cultural/simbólica de Mary Douglas (1992; 1991; 1985), as teorias da sociedade do

    risco de Ulrich Beck (1999; 1992) e de Anthony Giddens (1992), e as teorias em

    torno da governamentalidade, na linha inaugurada por Michel Foucault, e represen-

    tada por autores, entre outros, como Nikolas Rose (1999) e Pat O' Malley (2008).

    Como refere Lupton (1999: 26), a teoria cultural/simbólica salienta a forma

    como as noções de risco são mobilizadas para estabelecer e manter as fronteiras

    entre o eu e o outro, com especial atenção ao papel como o corpo humano

    é usado, simbólica e metaforicamente, nos discursos e nas práticas sobre o risco.

    No âmbito deste livro a abordagem antropológica do risco não será analisada de

    forma aprofundada.

    Os sociólogos que trabalham na linha da sociedade do risco dão relevância aos

    processos macrossociais, do que denominam de modernização tardia ou reflexiva, e

    da sua relação com o conceito de risco. Na secção seguinte daremos especial atenção

    às propostas de Ulrich Bech e, em contraponto, às de Niklas Luhmann (1993; 1990).

    A escola da governamentalidade parte dos conceitos fundadores de Michel

    Foucault (2004; 1997), analisando como se relacionam as formas de conhe-

    cimento e de produção da verdade, os dispositivos e as tecnologias, com as

    definições institucionais do risco. Esta perspetiva enquadra -se no que Lupton

    chama de perspetivas construtivistas, em que o risco é o produto contingente

    de formas históricas, sociais, culturais e políticas. As teorias enquadradas na

    governamentalidade serão trabalhadas por mim na secção seguinte, como uma

    possível alternativa às teorias da sociedade do risco.

    O mais interessante da síntese de Deborah Lupton é o quadro onde ela

    apresenta o contínuo de abordagens epistemológicas sobre o risco nas ciências

    sociais (Lupton, 1999: 36). O mesmo devolve -nos a posição epistemológica, as

    respetivas teorias e as questões relevantes para cada grupo de teorias. O quadro

    está estruturado a partir das seguintes divisões:

  • 21

    a) Posição epistemológica realista. Aqui o risco é visto como um perigo

    ou uma ameaça reais, que pode ser medido independentemente dos

    processos sociais e culturais, mas que pode ser enviesado devido aos

    quadros sociais e culturais de interpretação. Neste grupo enquadram -se

    as várias teorias técnico -científicas e cognitivas do risco. As perguntas

    centrais que são colocadas nestas correntes de pensamento são: que tipo

    de riscos existem? Como devemos gerir os riscos? Como respondem as

    pessoas cognitivamente aos riscos?

    b) Posição epistemológica de um construtivismo fraco. O risco para estas

    correntes de análise também é um perigo ou uma ameaça reais, mas é

    mediado pelos processos sociais e culturais. Nesta vertente situam -se

    as teorias da sociedade do risco, do estruturalismo crítico e algumas

    teorias psicológicas do risco. As perguntas avançadas por este grupo

    de autores relacionam as estruturas e os processos da modernidade

    com o risco, e procuram também saber como o risco é apreendido em

    diferentes contextos socioculturais.

    Com outro tipo de questões relevantes, mas também dentro do construtivismo

    leve, temos a teoria cultural/simbólica, o estruturalismo funcional e as correntes

    psicanalíticas e fenomenológicas. Para este grupo de autores as questões a responder

    são as seguintes: porque são alguns perigos selecionados como riscos e não outros?

    Como é que o risco se constitui como uma barreira simbólica? Qual a psicodi-

    nâmica das respostas aos riscos? E, por último, qual o contexto situado do risco?

    c) Posição epistemológica de um construtivismo forte. Nesta categoria

    Deborah Lupton coloca os estudos da governamentalidade do risco e

    os pós -estruturalistas. A pergunta principal é: como é que os discursos

    e as práticas sobre o risco operam na construção da subjetividade e

    da vida social?

    A taxonomia proposta por Ortwin Renn (2008) apresenta algumas seme-

    lhanças com a de Deborah Lupton. Renn centra -se especificamente nas teorias

  • 22

    sociológicas do risco, e propõe dois eixos de classificação das mesmas (2008:

    23). Um primeiro eixo distingue as teorias individualistas das estruturais, com

    base na unidade de análise privilegiada por essas teorias. Para as teorias indivi-

    dualistas a ênfase é colocada na ação dos atores, enquanto que as estruturalistas,

    como o nome indica, optam por privilegiar as dimensões coletivas. O segundo

    eixo opõe as teorias construtivistas às teorias realistas do risco.

    Nesta proposta podemos verificar que constam muitas das teorias descritas

    por Deborah Lupton, mas aparecerem outras que têm interesse para uma análise

    crítica das teorias sociológicas do risco. Aquelas que não figuram em Lupton

    são a teoria da escolha racional, onde se situa o próprio Ortwin Renn e a sua

    equipa, a teoria crítica de Jürgen Habermas, a teoria dos sistemas de Luhmann,

    que analisaremos na secção seguinte, e a teoria da amplificação social do risco.

    Vejamos, de forma sintética, alguns dos argumentos destas teorias. A teoria

    da escolha racional parte do paradigma do ator racional, importado da economia

    (Jaeger et al., 2001). Todas as ações são reduzidas a uma lógica de otimização,

    e mesmo as organizações e os coletivos são analisados como agentes individuais

    e racionais. As decisões são tomadas seguindo três passos essenciais (Renn, 2008:

    26): a geração de opções; a avaliação das consequências; e, a seleção da opção

    ótima. Esta teoria está associada a uma análise quantitativa e agregadora do risco.

    A teoria crítica, cujo expoente máximo é Habermas (1987; 1984), parte

    do quadro analítico deste autor, isto é, da teoria da ação comunicativa e

    das competências comunicativas, para propor uma abordagem normativa

    e crítica do capitalismo avançado. Os elementos emergentes de uma nova

    racionalidade devem fornecer orientações coletivas que não conflituem com

    as ações e aspirações pessoais. Os riscos emergiram como um fenómeno do-

    minante e que exige uma gestão e uma intervenção que são eminentemente

    políticas. Mas, as decisões do sistema político, que condicionam e colonizam

    o mundo da vida das pessoas, que estão baseadas no exercício do poder e

    não na equidade social, reproduzem as desigualdades quanto aos riscos.

    Só os movimentos sociais, para Habermas, contra o privatismo civil podem, a

    partir de iniciativas espetaculares e disruptoras, veicular exigências ao sistema

    político, uma vez que os meios de comunicação social não cumprem o seu

  • 23

    papel de mediadores e de formadores dos cidadãos a partir da convocação

    das opiniões dos peritos (Mendes, 2004: 149).

    A teoria da amplificação social do risco baseia -se num pressuposto de base:

    os impactos sociais e económicos de um acontecimento adverso são determina-

    dos pela combinação das consequências físicas desse evento com os processos

    psicológicos, sociais, institucionais e culturais (Kasperson e Kasperson, 1996;

    Pidgeon et al., 2003; Renn, 2008: 8).

    Passo a analisar, de seguida, de forma detalhada as teorias de Ulrich Beck

    e de Niklas Luhmann.

    2.2 A teoria de Ulrich Beck e a sua crítica

    A publicação do livro de Ulrich Beck, Risikogesellschaft, em 1986, uns

    meses antes do acidente nuclear de Chernobyl, iria traçar o destino de uma

    das teorias sociológicas mais debatidas, e que originou toda uma linha teórica

    baseada na modernização reflexiva. O quase efeito premonitório do livro, que

    se confirmou pela realidade da explosão nuclear, dava força a uma visão emi-

    nentemente sociológica, baseada em fatores de mudança estrutural assente no

    próprio conceito de sociedade e na força e na imanência dos fenómenos sociais.

    O ponto de partida na teoria de Ulrich Beck (1992) é o da modernização

    reflexiva. Contrariamente a um evolucionismo utópico característico das di-

    ferentes teorias da modernização, Beck propõe um visão mais sombria, aquilo

    a que chamou de "vulcão da civilização". Para este autor, as consequências do

    desenvolvimento científico e industrial são um conjunto de riscos que não

    pode ser contido espacial ou temporalmente. Ninguém pode ser diretamente

    responsabilizado pelos danos causados por esses riscos, e aqueles afetados não

    podem ser compensados, devido à dificuldade de cálculo desses danos. Além

    dos riscos ecológicos, assiste -se a uma precarização crescente e massiva das

    condições de existência, com uma individualização da desigualdade social

    e de incerteza quanto às condições de emprego, tornando -se a exposição aos

    riscos generalizada.

  • 24

    O risco é, para Beck, um estádio intermédio entre a segurança e a destrui-

    ção, e a perceção dos riscos ameaçadores determina o pensamento e a ação.

    No risco o passado perde o seu poder de determinar o presente. É o futuro,

    algo que é construído, não existente, que constrói o presente, e os riscos são

    sempre locais e globais, assumindo uma dimensão transescalar.

    Para Beck, os riscos, tal como a riqueza, são objeto de distribuições. Ambos

    estão na origem de posições sociais específicas, definidas como posições de

    risco e como posições de classe. A diferença é que nos riscos estamos perante

    a distribuição de "males", não de bens materiais, de educação ou de propriedade.

    E, aqui reside uma das teses mais controversas de Ulrich Beck. Beck argumenta,

    a partir da própria noção de que os riscos são transescalares, que a distribuição

    desses males, dos riscos, é transversal a todas as classes sociais.

    Contudo, Ulrich Beck não sucumbe ao pessimismo, e propõe -nos uma radi-

    calização da racionalização, uma radicalização baseada no papel do conhecimento

    científico. A modernização tem que ser reflexiva. E as sociedades só evoluem

    tornando -se reflexivas. Beck (1992: 57 -58) recusa a separação entre peritos e

    cientistas e as visões comuns, afirmando que a consciência dos riscos tem que ser

    analisada como uma luta entre afirmações concorrentes ou sobrepostas de raciona-

    lidade (ecologia política). As perceções dos cidadãos comuns quanto aos riscos não

    são irracionais ou puros problemas de informação, mas sim produtos de processos

    complexos que definem o que é aceitável, o que é digno, o que está de acordo com

    as suas maneiras de ser, pensar e agir, ou seja, com as suas identidades.

    Os riscos estão dependentes do conhecimento científico, e as posições de

    risco são muito vezes invisíveis (por exemplo, quanto aos efeitos da radioati-

    vidade). Mas isto não é suficiente para definir os riscos concetualmente, dado

    que as afirmações sobre os perigos nunca são redutíveis à simples afirmação

    e descrição de factos. Nos riscos há sempre uma componente teórica e uma

    componente normativa (Beck, 1992: 26).

    Posteriormente, Ulrich Beck (1999) irá argumentar pelo aparecimento de

    uma segunda modernidade. A primeira modernidade baseava -se nas sociedades

    confinadas ao Estado -nação, onde as relações sociais, as redes e as comunidades

    assumiam um caráter eminentemente territorial.

  • 25

    Os padrões coletivos de vida, a ideia de progresso e de controlo, o pleno

    emprego e a relação com a natureza foram radicalmente afetados por cinco

    processos que caracterizam esta segunda modernidade, segundo Beck: a globali-

    zação; a individualização; a revolução assente na diferença sexual; o desemprego;

    e, os riscos globais (1999: 1 -2).

    Esta globalização dos riscos levará Beck a propor um cosmopolitismo

    metodológico, que vá para além dos limites dos dados, das análises e das

    concetualizações de âmbito estritamente nacional (Beck, 2008). Nesta última

    obra, Beck apresenta uma reflexão teórica sustentada sobre os riscos globais,

    e sobre como as desigualdades globais assentam em vulnerabilidades locais.

    Os riscos globais trabalhados pelo autor são os riscos ambientais, os riscos

    ligados ao terrorismo e os riscos financeiros (Beck, 2008: 13).

    É essencial reter dois dos argumentos de Beck: a presença cada vez maior

    de estados de exceção relacionados com os riscos; e os limites dos seguros e da

    controlabilidade dos riscos. Quanto ao estado de exceção, conceito trabalhado

    por Giorgio Agamben, Beck afirma que, devido ao impacto dos riscos globais, os

    Estados, mesmo no Ocidente, estão mais autoritários mas são ineficientes quando

    se trata de lidar com as diferentes ameaças e perigos globais, constituindo -se

    como "Estados falhados fortes" (2008: 79).

    Este mesmo facto articula -se também com a questão dos seguros e o grau de

    controlo dos riscos. Quanto aos seguros, Beck apresenta uma tese: quanto maior

    o risco menor a probabilidade de o mesmo ser segurado. Mas, mais importante, é

    o argumento, bem fundamentado por Beck, de que assistimos ao fim dos seguros

    privados e que, em última instância, é sempre o Estado o garante final do valor

    dos bens e das vidas das pessoas (Beck, 2008: 137). O Estado assume, assim, um

    papel central num tempo em que os riscos são na sua maioria de cariz global.

    Em dois textos recentes, as teses de Ulrich Beck ficam mais claras, assim como

    os seus pressupostos (Beck et al., 2013; Beck e Levy, 2013). Uma sociologia

    cosmopolita resulta de uma reimaginação do conceito de nação, em confronto

    com fenómenos como as normas globais, como, por exemplo, os direitos huma-

    nos, os mercados globalizados, as migrações transnacionais e o peso crescente

    das organizações internacionais (Beck e Levy, 2013: 6). Assiste -se, para Beck, a

  • 26

    uma reafirmação das sociedades de risco, dada a preocupação crescente destas

    com o debate, a prevenção e a gestão dos riscos, a que nenhum Estado pode

    escapar. Não podendo os riscos globais serem previstos ou calculados, esse facto

    reforça, quase paradoxalmente, o peso do conhecimento e da inventariação

    do futuro nas sociedades contemporâneas. É esta opção temporal pelo futuro

    que torna a sociologia uma ciência cosmopolita, com capacidade para pensar

    e discutir as coletividades do risco cosmopolitas (Beck e Levy, 2013: 15 -16).

    No outro texto, é proposta uma agenda de investigação para a questão dos

    riscos climáticos e para a criação do que Beck e os seus coautores chamam

    de comunidades cosmopolitas associadas ao risco climático (Beck et al. 2013).

    A pergunta central aqui é de saber onde estas comunidades cosmopolitas do

    risco climático estão a ser imaginadas e concretizadas (Beck et al. 2013: 3).

    Estas comunidades de risco devem ser trabalhadas, sugere Ulrich Beck, como

    comunidades imaginadas, no sentido proposto originalmente por Benedict

    Anderson (2006). A ilustração dessa agenda de investigação é feita a partir de

    estudos empíricos do urbanismo verde, das inovações sobre as baixas emissões

    de carbono e do ambientalismo de base.

    Muitas críticas foram avançadas à teoria da sociedade do risco (para uma

    crítica numa perspetiva institucional, ver Rothstein, 2006. Para uma crítica,

    mas com uma reapreciação dos argumentos de Beck, ver Aven, 2012). Atemo-

    -nos aqui às críticas que foram avançadas pela corrente ligada aos estudos da

    governamentalidade. Nesta corrente de pensamento, os melhores escritos sobre

    o risco, a incerteza e os limites da teoria da sociedade do risco foram propostos

    por Pat O' Malley (2009; 2008).

    Esta teoria baseia -se no conceito de governamentalidade de Michel Foucault

    (2004; 1997. Para uma excelente síntese, com uma agenda clara de investigação

    ver Rose, O' Malley e Valverde, 2006). Embora a sequência não seja cronológica,

    e os vários tipos de poder possam coexistir, de um poder soberano dominante

    passou -se a um poder disciplinar e, de seguida, a um biopoder. O biopoder

    constrói -se a partir de uma biopolítica, em que as categorias de gestão são

    agora, não corpos que é preciso disciplinar, mas sim a população e a economia

    como categorias estatísticas.

  • 27

    As mentalidades governamentais são práticas ligadas a tecnologias específicas

    (O' Malley, 2008: 56), onde o risco passa a ser visto como uma tecnologia

    específica de governo (O' Malley, 2008: 57). Os estudos da governamentalidade

    focam a sua atenção na forma como a adoção do risco como quadro de referên-

    cia para a governação cria novas subjetividades e novas relações interpessoais,

    sociais e políticas (O' Malley, 2008: 63).

    O que estes autores rejeitam é a adoção por Ulrich Beck de uma grande nar-

    rativa, quase evolutiva, de uma primeira modernidade para a sociedade do risco

    e para a modernização reflexiva. Por outro lado, para O' Malley (2009: 26), Beck

    não tem em conta como os governos neoliberais da atualidade têm sido ambivalen-

    tes quanto ao risco na esfera económica, tornando a incerteza uma nova categoria

    de governação. Este imaginário neoliberal de incerteza implica a mobilização de

    técnicas específicas de flexibilidade e de adaptabilidade (O' Malley, 2009: 26).

    2.3 A teoria de Niklas Luhmann

    A abordagem de Niklas Luhmann (1993; 1990) quanto ao tema dos riscos

    é distinta da de Ulrich Beck, e assenta na sua teoria dos sistemas. Luhmann

    apresenta -nos o mundo social como um sistema complexo e não gerível, em

    que a noção de perigo, atribuível a um fator externo e não controlável, tende

    a ser substituída pelo conceito de risco, em que os danos são consequências de

    decisões tomadas voluntariamente pelos atores sociais.

    O risco não se caracteriza pela falta de segurança, mas sim pelos danos

    que podem resultar das decisões e das ações dos atores sociais. E, mesmo que

    os cálculos quanto aos riscos sejam muito precisos e fiáveis, será difícil reduzir

    os perigos que podem afetar determinadas populações, porque os mesmos têm

    origem sempre em causas exteriores. Daí os limites da ação do poder político,

    onde a sociedade não tem um regulador central, sendo o Estado apenas um

    sistema autorreferencial entre outros (Lantz, 2004: 356 -357).

    Num mundo mais contingente e complexo, exige -se, segundo Luhmann,

    uma racionalidade mais propensa ao risco, que seja capaz de prevenir com base

  • 28

    em cálculos específicos e na noção de responsabilidade. Esta propensão ao risco

    só é possível num regime onde impere a confiança, não a confiança pessoal,

    pouco pertinente nas sociedades complexas atuais marcadas por processos

    transnacionais de globalização económica e cultural, mas sim um tipo de con-

    fiança de sistema e na capacidade dos sistemas para estabilizarem condições ou

    performances que são, dentro de certos limites, idênticas. Só com um sistema

    de confiança, onde as decisões têm responsáveis, é possível a cooperação social.

    Luhmann constata que o hiato, a nível comunicacional, e na esteira da lógica

    de análise de sistemas da sociedade moderna (constituída pelos sistemas de política,

    da lei, da economia e da ciência), entre os que participam nas decisões e os que

    sendo excluídos do processo de decisão sofrem, no entanto, as consequências das

    decisões tomadas, tem vindo a aumentar. Este hiato comunicacional crescente

    pode conduzir a um menor nível de confiança nas relações entre os membros

    de uma dada sociedade.

    Também em Luhmann a separação clara e assimétrica entre peritos e leigos

    não é questionada. O que se pretende, no caso de Luhmann, é melhorar os

    canais de comunicação que esclareçam os que são afetados pelas decisões e pelas

    intervenções oriundas dos poderes estabelecidos. Mantêm -se, assim, as relações

    assimétricas entre peritos e cidadãos comuns, reproduzindo -se as relações desi-

    guais de poder. Só os decisores e os técnicos têm o poder de definir quais são

    os problemas e os riscos, quais as melhores estratégias de prevenção, quais as

    melhores técnicas de intervenção, e, mais importante, detêm o exclusivo para

    definir quem está em risco, quem pode e deve ser intervencionado.

    Neste processo assimétrico de definição dos riscos e das intervenções

    reforça -se o biopoder dos peritos, e não se atende às identidades emergentes

    e às possibilidades alternativas sempre existentes em qualquer mundo social.

    2.4 A perceção do risco e a construção subjetiva do risco

    As diferentes perspetivas sociológicas e culturais do risco, suportadas por

    diferenciadas formas e contextos do conhecimento (Lidskog, 1996), acentuam

  • 29

    a construção social do risco, baseando -se em relações dialéticas e complexas

    entre o perigo, o público e o conhecimento baseado em peritos (Vandermoere,

    2008). De acordo com Williams (2008), a visão sociocultural do risco implica,

    para além do conhecimento baseado e fundamentado em estudos técnico-

    -científicos, uma observação subjetiva, pessoal e estrutural dos diferentes

    domínios do risco, onde o ambiente constitui o modelador da perceção e

    permite explicar a valoração do risco (Willis et al., 2011). Ou, como sugerem

    Dwyer et al. (2004), quando o risco real é desconhecido, a sua visão reduz -se

    à forma do risco percecionado.

    A perceção do risco enquanto produto da organização social é acentuada por

    Douglas e Wildavsky (1983). As decisões quanto ao risco são justificadas pelo

    ambiente e pelo tipo de organização social, assumindo as instituições um papel

    determinante em oposição à racionalização privada. A perceção do risco pode,

    assim, ser condicionada por mecanismos de visibilidade ou de invisibilidade

    determinados pelos poderes políticos e económicos (Porto, 2007). A construção

    social do risco, numa perspetiva mais alargada, pode ainda resultar de processos

    mentais seletivos, por parte de indivíduos ou grupos, de acordo com esquemas

    mentais que desencadeiam mecanismos e respostas comportamentais de ampli-

    ficação ou de atenuação do risco (Heijmans, 2004; Kasperson, 2005).

    A consideração de que existe um cumulativo de fatores psicológicos, sociais

    e culturais que influenciam a perceção do risco (Rohrmann, 1994), a que se

    associa uma representação cognitiva do perigo (Siegrist et al., 2005b), decorre,

    segundo Paul Slovic (2000 e 1987), de um conjunto de atitudes e julgamentos

    principalmente intuitivos, ou como sugerem Kellens et al. (2011), de processos

    psicológicos não mediados pela experiência do perigo.

    A perceção do risco pode, assim, constituir -se como preditor consistente das

    respostas dos indivíduos e das comunidades, em caso de acidente ou de desastre,

    e deriva de um número alargado de fontes, distribuído de variadas formas na

    população (Stoffle et al., 1991), influenciando a decisão e o comportamento

    individual (Siegrist et al., 2005a). A avaliação dos benefícios associados a uma

    determinada atividade ou atitude, perante uma ameaça potencial, constitui uma

    perspetiva subjetiva por parte dos não -especialistas (Lima, 2005), representando

  • 30

    a forma como determinado evento e as suas consequências são imaginados ou

    recordados em inter -relação com o conhecimento dos processos envolvidos e

    o grau de positividade/negatividade com que um objeto é encarado (Gaspar

    de Carvalho et al., 2005).

    Diferentes autores salientam que a relação entre a perceção de risco, a to-

    mada de decisão e a adoção de estratégias de mitigação não é direta (Lindell

    et al., 1997; Lin et al., 2008), existindo um efeito máximo que é controlado

    por fatores como a negatividade, uma crença fatalista diante de situações de

    risco ou de catástrofe, ou baseado em fatores cognitivos, pessoais e de contexto

    (Sjöberg, 2000; Kunz -Plapp e Werner, 2006), ou suportado por uma atitude

    de predisposição e capacidade de viver e lidar com o risco, motivada pela fa-

    miliaridade com a fonte de risco (Figueiredo et al., 2007).

    Como salientam Gunter e Kroll -Smith (2007), o grau de perceção dos

    riscos varia de acordo com o tipo de comunidade e as experiências e histórias

    pessoais, sendo influenciado pelo campo de aplicação da amostragem (Tavares

    et al., 2009) e pelo nível de conhecimento ou de acesso à informação.

    A perceção do risco enquanto fator de resiliência da sociedade às catástrofes

    influencia o comportamento, adequado ou inadequado, em caso de emergên-

    cia (Glatron e Beck, 2008), sendo considerada determinante nos processos de

    decisão relacionados com a gestão do risco (Williams e Noyes, 2007).

    Diferentes autores têm analisado a relação entre a perceção do risco e os

    níveis de confiança nas instituições demonstrados pelas populações (Kasperson

    et al., 1999; Viklund, 2003), salientando que esta relação é influenciada pelo

    contexto geográfico e pela tipologia dos riscos associados (Hung e Wang,

    2010). Conforme salienta Vandermoere (2008), embora a perceção do risco

    e a confiança nas instituições apareçam associadas, a relação entre a perceção

    e o nível de conhecimento sobre o risco não é direta.

    Como referido por Michael Siegrist et al. (2005a e 2005b), a perceção de

    um conjunto heterogéneo de riscos, e a diferentes escalas, constitui um exercí-

    cio difícil, ou, como sugere Bosher (2011), há evidentes incongruências entre

    as perceções do risco por parte dos diferentes atores (munícipes, autoridades

    governamentais e ONGs), o que condiciona visivelmente as estratégias de

  • 31

    mitigação do risco. A construção social do risco é apresentada frequentemente

    como uma consequência das formas de comunicação, nomeadamente condi-

    cionando os riscos que percecionamos e a importância que lhes atribuímos

    (Lima, 1998; Rodríguez et al., 2007), mas igualmente dependente das redes

    sociais em que os indivíduos se movem.

    De acordo com Delicado e Gonçalves (2007), o acesso à informação e

    a capacidade para a descodificar constituem elementos fundamentais para

    a construção social do risco, ou ainda, à semelhança de Kasperson (2005),

    os processos de amplificação dos riscos estão intimamente relacionados com a

    perceção do risco e com a sua comunicação, e dependentes da competência e da

    credibilidade de quem faz a comunicação e da capacidade que as comunidades

    têm para a compreender.

    Contudo, a confluência na perceção do risco entre especialistas e outros

    interessados (baseada em fatores como a familiaridade, a atitude e a confiança/

    desconfiança), decorre das formas de comunicação e de envolvimento (Poortinga

    e Pidgeon, 2004), as quais são influenciadas pela comunicação e pela educação

    sobre os riscos (Renn, 2008), ou são promovidas através de um pré -requisito

    que é a comunicação eficaz dos riscos (Kellens et al., 2011).

    Mais recentemente, Paul Slovic (2010) publicou uma obra que recolhe os

    artigos publicados pela sua equipa nos últimos anos. E, embora o paradigma

    psicométrico seja dominante, há uma mudança muito importante nas propos-

    tas de Paul Slovic. Os novos estudos propostos pela sua equipa baseiam -se na

    heurística do afeto. Esta é definida como um processo cognitivo em que as

    pessoas tomam em conta os seus sentimentos negativos e positivos como um

    guia para avaliarem os riscos e os benefícios de uma dada atividade. A informa-

    ção fornecida, nesta nova perspetiva proposta por Paul Slovic, tem que veicular

    emoção ou sentimento para ter significado (2010: XIX).

    Agora, a abordagem passa por analisar "os riscos como sentimentos". Esta

    perspetiva baseia -se na separação entre o pensamento analítico e a componente

    experiencial do risco. As reações emocionais ao risco estão associadas com a

    vivacidade das imagens, a proximidade no tempo e com outras variáveis que

    não têm qualquer relevância nas avaliações de cariz analítico.

  • 32

    Um dos capítulos mais importantes neste trabalho, é aquele onde Slovic

    e a sua equipa (Slovic et al., 2010: 183 -213) criticam as propostas e a visão

    catastrofista de Cass Sunstein (2005) sobre o impacto do que este chamou

    de "pânico associado ao risco", e dos riscos do pânico para a democracia.

    A argumentação de Slovic e da sua equipa assenta na noção de cognição

    cultural. Assim, para eles, a cultura precede sempre as lutas na sociedade em

    torno das questões do risco. Contrariamente ao indivíduo irracional que não

    sabe avaliar os riscos na perspetiva de Sunstein, o que emerge é que a perceção

    do risco está intimamente associada aos modelos normativos que as pessoas

    e os grupos ativam sobre como a sociedade deve estar e deve ser organizada.

    O modelo do avaliador de risco marcado pela cultura implica, necessariamente,

    que a regulação do risco vai ser sempre uma fonte de conflitos profundos e

    intensos na sociedade (Slovic et al., 2010: 209 -210).

    A importância dos contextos sociais e culturais na avaliação do risco foi

    trabalhada de forma exemplar por Hélène Joffe (1999). A autora fornece -nos

    dados muito importantes para compreendermos como, num dado contexto

    social e cultural, os indivíduos dão sentido a crises iminentes ou a decorrerem.

    Paradoxalmente, ou não, a conclusão central é que a maioria dos atores possui

    um sentimento alargado e difuso de invulnerabilidade, aquilo a que Joffe chama

    o fator do “eu -não”. Esse sentimento de invulnerabilidade é conseguido pela

    exteriorização das ameaças.

    O facto de viverem em sociedades de risco não significa que as pessoas

    estejam em estado de ansiedade permanente. As representações sobre os riscos

    permitem -lhes construir uma sensação relativa de segurança, atribuindo a vul-

    nerabilidade ao outro, o que se poderia chamar de alteridades tranquilizadoras.

    Este processo complexo permite despersonalizar o outro e responsabilizá -lo por

    catástrofes, epidemias e comportamentos desviantes ou de risco. Esta lógica

    de degradação do outro e de afastamento simbólico contrapõe -se à segurança

    ontológica sentida com os que são próximos, semelhantes ou imaginados como

    iguais. Acrescenta -se a esta lógica dinâmicas emocionais complexas, ancoradas

    em espaços de vivência concretos e cristalizadas em trajetórias de vida social,

    cultural e politicamente marcadas.

  • 33

    A segurança ontológica e a sensação de invulnerabilidade são relacionais,

    construídas em contextos sociais e culturais concretos. Caberá indagar quais os

    fatores que estão na origem da construção diferenciada entre grupos e comu-

    nidades das perceções dos riscos, e da capacidade desse grupos e comunidades

    para lidarem com acontecimentos extremos e qual o seu potencial para se

    reconstituírem posteriormente.

  • (Página deixada propositadamente em branco)

  • 3 . d o r i S c o à p r e c Au ç ã o

    3.1 A importância do conceito de precaução

    As perspetivas teóricas até agora apresentadas mostram -nos que as sociedades

    de risco contemporâneas são sociedades onde impera a desconfiança generalizada,

    e onde os cidadãos dependem por completo dos peritos e dos especialistas para

    o diagnóstico, para a prevenção, para a ação e para as intervenções quanto aos

    riscos. O poder permanece nas mãos dos peritos, conduzindo à reprodução das

    condições de vida e das desigualdades sociais.

    Como refere Charles Lemert (2002:131 -132), o problema está em que nas

    sociedades contemporâneas os comportamentos de risco são individualizados,

    a responsabilidade é imputada a cada indivíduo, mesmo que se apele a fatores

    familiares, sociais, culturais, etc., e, no emaranhado burocrático e oficial de

    agentes especializados em intervenção, os atores não se apercebem dos fatores

    sociais e estruturais que delimitam as suas ações, as suas opções (ou melhor,

    não opções) de vida, os seus desejos e as suas realizações.

    Caberá então pensar uma forma de, apelando à imaginação sociológica,

    como propunha C. Wright Mills (1985), as pessoas imaginarem que os seus

    problemas pessoais são problemas estruturais da sociedade como um todo.

    A reflexão sobre a importância do princípio da precaução emerge após a

    crise dos sistemas do Estado -providência em meados do século passado. François

    Ewald (2002: 282 -283; 1986), após afirmar que as sociedades se tinham ba-

    seado no paradigma da responsabilidade no século XIX e no paradigma da

    solidariedade no século XX, anuncia uma nova mudança de paradigma e uma

    crise que se avizinha. Este novo paradigma assenta no princípio da precaução.

  • 36

    O princípio de precaução associa -se diretamente à ideia de que os riscos são

    produzidos, agora, pela ação humana (2002: 283).

    O princípio da precaução tem início na Alemanha com o estudo de Konrad

    von Moltke sobre as políticas de ambiente do governo alemão. Não se deve

    confundir com o princípio da responsabilidade de Hans Jonas (1994), que

    assenta numa heurística do medo e é, em parte, contra o potencial tecnológico

    desenvolvido pelo ser humano. A máxima de Hans Jonas era: “Age de forma a

    que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida

    autenticamente humana na Terra”.

    Para Callon, Lascousmes e Barthe (2001), o princípio da precaução orienta

    para uma “ação comedida”, que seja ativa e aberta, contingente e revisável,

    e que permita o aprofundamento do conhecimento. O princípio da precaução

    assenta na proporcionalidade das ações, na aceitabilidade social e na avaliação

    dos custos económicos das ações a empreender. Para os autores, a precaução

    é, então, "uma iniciativa positiva de apreciação e de gestão de situações de

    forte incerteza". O princípio da precaução, para os autores, caracteriza -se

    por três aspetos:

    • constitui um incentivo para a ação em três planos distintos, nomeada-

    mente, nos sistemas de vigilância e de alerta, no aprofundamento dos

    conhecimentos e na tomada temporária de medidas;

    • cada um destes planos tem os seus agentes próprios, os seus modos de

    ação e tipos precisos de responsabilidade;

    • a ação baseia -se em pequenas decisões em série.

    O princípio da precaução está totalmente assumido por instâncias in-

    ternacionais como a Comissão Europeia (European Commission, 2000),

    embora com flutuações na sua aplicação, decorrentes da linha ideológica dos

    dirigentes europeus e das exigências dos setores económicos e dos grupos

    de pressão constituídos.

    Contudo, como bem referem Marjolein van Asselt e Leendert van Bree

    (2011: 407), o princípio de precaução é cada vez mais abordado como um

  • 37

    simples princípio legal. Estas autoras propõem, em alternativa, uma visão

    processual e normativa, que não deixe o princípio de precaução acantonado

    nos tribunais. A precaução não deve ser uma instância de último recurso, mas

    deve sim afetar todas as fases ligadas ao risco, do enquadramento da análise dos

    riscos à avaliação, comunicação, gestão e regulação dos mesmos.

    Como princípio legal, referem as autoras, o princípio da precaução tem

    pouco para oferecer. Da perspetiva da governação do risco, a precaução deve

    ser lida como a obrigação para tomar a incerteza como algo a ser levado a sério

    (para uma abordagem abrangente do princípio de precaução, ver Randall, 2011;

    para um conjunto de estudos sobre as dificuldades de aplicação do princípio

    de precaução nas questões ambientais, ver Fisher et al., 2006).

    A melhor sistematização de estudos e de lições sobre o princípio de pre-

    caução, tanto a nível teórico como epistemológico, e com relevância para

    o delinear de política públicas, pode ser encontrada em Poul Harremoës

    et al. (2002). Os resultados conseguidos ficam bem espelhados nas doze

    lições que, segundo os autores, podem ser tiradas sobre a importância do

    princípio da precaução na avaliação das políticas públicas (Harremoës et

    al., 2002: 185 -205):

    • responder tanto à ignorância como à incerteza;

    • investigar e estar atento aos "avisos precoces";

    • procurar e lidar com os pontos cegos e com as lacunas no conhecimento

    científico;

    • identificar e reduzir os obstáculos interdisciplinares à aprendizagem;

    • assegurar que as condições do mundo real são tidas em conta;

    • escrutinar e justificar de forma sistemática os prós e os contras reivin-

    dicados pelas diferentes partes em presença;

    • avaliar as alternativas existentes e propor soluções robustas, adaptáveis

    e diversas;

    • utilizar o conhecimento comum e local, assim como o conhecimento

    dos especialistas que seja relevante;

    • ter em conta os interesses sociais e os valores mais vastos;

  • 38

    • manter a independência em relação aos interesses políticos e económicos

    estabelecidos;

    • identificar e reduzir os obstáculos institucionais à aprendizagem e à ação;

    • e, por último, evitar a paralisia devido ao excesso de análise.

    Como se pode constatar, estamos perante um conjunto de recomendações de

    como os cientistas sociais devem lidar com os desafios colocados pela sua partici-

    pação na avaliação e na definição de políticas derivadas do princípio da precaução.

    Uma análise sociológica brilhante sobre as implicações do princípio

    da precaução foi proposta por Frank Furedi (2009). Para este autor, a mudança

    da gestão probabilística do risco para uma gestão possibilista apoia -se na crença

    de que os riscos futuros não só são desconhecidos como não são conhecíveis.

    Isto leva, na bela formulação do autor, a uma dramatização da incerteza.

    A aplicação do princípio da precaução para lidar com essa incerteza radical con-

    duz a uma intensificação da insegurança existencial (2009: 197). O princípio da

    precaução não conduz necessariamente a um comportamento mais cauteloso, mas

    incrementa constantemente as exigências, obrigando a uma ação constante e ao

    ativar em permanência de um imperativo intervencionista (Furedi, 2009: 210).

    Frank Furedi conclui o seu artigo desta forma lapidar: "Concern about risk

    and safety express the difficulties that Western culture has in making sense of

    change in an uncertain world. The response of precaution is an attempt to deal

    with this predicament." (Furedi, 2009: 220)

    3.2 O princípio da precaução e a democracia dialógica: os fóruns híbridos

    e a participação

    Cada vez mais a legitimação da atividade científica e o delinear de po-

    líticas públicas nas área do risco exigem a participação ativa dos cidadãos.

    O crescente desfasamento entre a capacidade para agir e a capacidade para

    prever aumenta os riscos de forma dramática, tanto na sua escala como na

    sua frequência. Tal facto coloca novos desafios à regulação do risco pelos

  • 39

    Estados, devido sobretudo às dinâmicas transnacionais e à exigência crescente

    dos cidadãos quanto à sua segurança e pela existência de planos de prevenção

    e de mitigação bem delineados e com objetivos claramente definidos.

    No sistema atual das ciências sociais e humanas tal implica um trabalho crí-

    tico e político de empoderamento dos cidadãos em todo o processo de produção

    científica, e uma reorganização das instituições de investigação, de planeamento

    e de intervenção, permitindo a participação efetiva das pessoas que diretamente

    estão ligadas aos temas em questão. Não é um processo fácil, e implica uma

    aprendizagem, dos especialistas e dos cidadãos, de uma prática democrática

    (para uma tipologia dos mecanismos de participação dos cidadãos, ver Rowe e

    Frewer, 2005; para uma análise geral sobre as aprendizagens cívicas e a cidadania,

    ver Biesta et al., 2014; para a participação numa lógica de uma sociologia da

    intervenção, ver Guerra, 2006).

    Trata -se de conciliar as teorias e os laboratórios das ciências com o que Michel

    Callon, Pierre Lascoumes e Yannick Barthe (2001) chamaram de laboratórios ao

    ar livre, os mesmos que foram descritos para as ciências e as tecnologias (Fischer,

    2000). E uma pergunta torna -se legítima: uma democracia participativa e dia-

    lógica é possível na produção de conhecimento nas ciências sociais e humanas

    e na sua aplicação às questões do risco?

    De relevo para este debate é a noção de epistemologia cívica de Sheila

    Jasanoff (2005: 247 -271; 2003). A autora parte da noção de que a forma

    como os públicos avaliam as afirmações feitas pelos cientistas ou em nome da

    ciência constituem um elemento fundamental da cultura política das socieda-

    des de conhecimento contemporâneas. O termo epistemologia cívica refere -se

    às formas de conhecimento público, culturalmente específicas, e histórica e

    politicamente ancoradas (2005: 249). Com esta proposta, a autora quer ir

    para além dos pressupostos simplistas sobre a ciência e a sua perceção pelos

    cidadãos, patente nos estudos sobre a compreensão pública da ciência (public

    understanding of science).

    Sheila Jasanoff define, assim, epistemologias cívicas como, "as práticas

    institucionalizadas pelas quais os membros de uma dada sociedade testam e

    aplicam as afirmações baseadas no conhecimento utilizadas para fazer escolhas

  • 40

    públicas" (2005: 255). A epistemologia cívica refere -se à variedade de maneiras

    como o conhecimento é apresentado, testado, verificado e utilizado nas arenas

    públicas (2005: 258).

    Como a epistemologia cívica está diretamente relacionada com a cultura

    política de um país e as práticas institucionais associadas, numa análise com-

    parativa corre -se o risco de dispersão e de se apresentar uma simples descrição

    dos mecanismos envolvidos e dos atores em presença nas discussões sobre

    a ciência e a sua aplicação nas políticas públicas. Para evitar essa dispersão, a

    autora aponta cinco critérios que devem ser analisados para operacionalizar

    a epistemologia cívica: os estilos de produção do conhecimento público exis-

    tentes; o sistema de responsabilidade pública (que é a base para a confiança);

    as práticas de demonstração do conhecimento; a objetividade (relacionada

    com os registos do conhecimento); e, por último, o sistema de peritagem e o

    papel dos especialistas.

    Várias experiências com a participação dos cidadãos em temas relaciona-

    dos com a ciência e as políticas públicas levaram à criação de fóruns híbridos,

    que permitem um trabalho constante de adaptação e de reinvenção com base

    nas identidades pessoais e coletivas emergentes (Callon, Lascoumes e Barthe,

    2001). Estes procedimentos dialógicos fazem com que o risco seja o que fica

    por discutir, o que se pensa por último, depois de um trabalho de exploração

    comum das incertezas técnicas e políticas. Este trabalho de verdadeira democracia

    técnica, permite que se concebam cenários alternativos possíveis, e não a sim-

    ples aceitação de cenários delineados e determinados por outros, normalmente

    exteriores, portadores de autoridade e prestígio, mas, como referia Hélène Joffe

    (1999), sendo simples representantes de alteridades distantes.

    Aqui já não se fala de prevenção, onde os cálculos dos riscos são exatos e

    bem delimitados, mas sim de precaução, num contexto de atenção extrema aos

    interesses particulares, mas tendo sempre como referência a construção de um

    mundo comum e da universalização de uma vida decente. Este princípio de

    igualdade assenta numa democracia de processos, numa justiça processual, que

    conduz da democracia delegativa (com conhecimentos e identidades estabilizadas)

    à democracia dialógica assente em conhecimentos e identidades a construir.

  • 41

    A aplicação desta metodologia às questões económicas foi também realçada

    por Michel Callon, Cécile Méadel e Vololona Rabeharisoa (2002). Para os

    autores, os fóruns são espaços públicos que são híbridos por duas ordens de

    razões: porque há uma grande variedade e heterogeneidade de atores envolvidos;

    e porque as questões abordadas são múltiplas, e vão da economia, à política,

    à ética, à ciência, etc. O resultado mais relevante destes fóruns é a redistribuição

    processual e subsequente das competências dos vários atores que participam

    nos mesmos (Callon, Méadel e Rabeharisoa, 2002: 195).

    A construção deste espaço público, onde se cruzam múltiplas identidades

    e diversos conhecimentos (práticos e científicos), é uma de várias formas de

    criação de pessoas e coletivos compatíveis com o desafio de imaginar a hu-

    manidade comum.

    Embora esteja assegurada a representatividade dos diferentes grupos de

    interessados nos processos de participação e nos fóruns híbridos, fica sempre

    a questão de se saber que opções, nas temáticas em discussão, não foram to-

    madas. Será Brian Wynne quem, para atender às estruturas de poder em que

    a ciência também é parte ativa, apelará a uma reimaginação e a um repensar

    da participação pública e dos seus objetos (Wynne, 2007).

    Ou seja, o conjunto de prioridades e de compromissos assumidos antes de

    ocorrerem os processos de participação não são em nada democráticos ou passíveis

    de prestação de contas (Wynne, 2007: 106). E este interesse sociológico pelas

    fases a montante da participação, responsáveis pelos compromissos assumidos

    de investigação e de inovação, visa influenciar o "social" que está totalmente

    incorporado nas culturas técnico -científicas, atendendo também ao questio-

    namento sobre o que deve ser relevante investigar. Como refere Brian Wynne,

    "Uninvited forms of public engagement are usually about challenging just these

    unacknowledged normativities" (2007: 107) (para outros textos acutilantes

    sobre os processos de participação ver Welsh e Wynne, 2013; Wynne, 2011).

  • (Página deixada propositadamente em branco)

  • 4 . c o n c e i to S e c l A S S i f i c A ç ã o

    n A A n á l i S e d o S r i S c o S

    Qualquer taxonomia é sempre redutora e depende dos critérios a utilizar

    na classificação dos riscos (Proske, 2008). Optei por utilizar as tipologias que

    têm uma base de construção mais próxima dos critérios das ciências sociais,

    e que atendem aos efeitos nas populações afetadas e na recuperação depois

    da ocorrência de acontecimentos extremos ou catástrofes. Por outro lado,

    como na definição de risco está sempre presente a noção de que há pessoas e

    comunidades que são afetadas pelos perigos existentes na verdadeira aceção

    do termo, todos os riscos são sociais. As estruturas e as condições sociais,

    as dinâmicas de poder e as desigualdades existentes, baseadas nas diferenças

    sexuais, étnicas ou de classe social marcam a forma como as pessoas, os grupos

    e as comunidades são afetadas pelos riscos e pelas catástrofes (para o caso do

    furacão Katrina nos EUA, ver Chester e Squires, 2006).

    Nas secções seguintes mantenho a divisão clássica, por questões de expo-

    sição pedagógica, dos riscos naturais, dos riscos antrópicos (que incluem os

    riscos tecnológicos e os riscos sociais) e dos riscos mistos. Não procederemos à

    discussão dos riscos mistos, dos riscos natecno (naturais/tecnológicos) ou dos

    riscos ligados à saúde.

    4.1 Os riscos naturais

    Há uma vasta literatura quanto aos riscos naturais, à sua forma de avaliação e

    ao seu impacto nas populações (Rougier, Sparks e Hill, 2013). Uma abordagem

  • 44

    excelente dos riscos naturais, e de cariz mais pedagógico, é apresentada por

    David Alexander (1995). Após rever algumas das definições convencionais de

    perigos naturais, Alexander opta por definir risco natural como um evento físico

    que tem impacto nos seres humanos e no seu ambiente (Alexander, 1995: 4).

    Assim, o perigo envolve uma população humana que se coloca em risco perante

    acontecimentos geofísicos. Alexander (1995: 5 -6) definiu também quatro níveis

    de adaptação aos riscos naturais:

    • ocupação persistente da zona de perigo, apesar das ameaças existentes.

    Podem existir nos locais habitados medidas de mitigação do risco. Se estas

    medidas não existirem, podem estar presentes somente medidas de aviso

    e de evacuação das populações. Se não existir qualquer tipo de proteção

    ou de aviso, a vulnerabilidade das populações será máxima.

    • o segundo nível de adaptação envolve a cohabitação com os danos cau-

    sados por desastres anteriores, num estado de inércia geográfica máxima.

    • o terceiro nível de adaptação implica o abandono das zonas destruídas

    ou afetadas por parte das populações, sendo estas realojadas na zona

    de risco, criando uma inércia geográfica de segundo nível.

    • o quarto nível de adaptação implica a deslocação planeada ou não das

    populações para outras zonas fora da zona de perigo.

    David Alexander (1995: 7) também apresenta uma lista de processos poten-

    cialmente perigosos mais estudados, e que incluem: avalanches, erosão costeira,

    seca, terramotos, cheias, geada, granizo, furacões, deslizamentos, queda de

    raios, tempestades de neve em espaços urbanos, tornados, tsunamis, erupções

    vulcânicas e tempestades.

    Já a classificação de Ortwin Renn (2008: 6), que se baseia nos agentes

    desencadeadores dos processos potencialmente perigosos, indica os seguintes

    riscos naturais como mais relevantes: tempestades, terramotos, vulcões, seca,

    cheias, tsunamis, incêndios florestais e avalanches.

    Para Portugal, uma proposta de tipologia de riscos naturais pode ser encontrada

    em Julião et al. (2006: 24 -26), onde os autores distinguem entre riscos ligados a

  • 45

    condições meteorológicas potencialmente adversas (nevoeiros, nevões, ondas de

    calor, ondas de frio e secas), riscos relacionados com a hidrologia (cheias, inundações

    urbanas, inundações progressivas, inundações e galgamentos costeiros e inundação

    por tsunami), riscos ligados à geodinâmica interna (sismos, atividade vulcânica e

    radioatividade natural) e riscos associados com a geodinâmica externa (movimentos

    de massa em vertente, erosão costeira e colapso de cavidades subterrâneas naturais).

    A nível da sociologia, durante muito tempo houve a noção de que as conse-

    quências psicossociais e os impactos nas comunidades dos desastres tecnológicos

    eram maiores do que os associados aos desastres naturais (Tierney, 2012: 61).

    Entre os autores que mudaram a sua posição essencialista inicial temos Steve

    Kroll -Smith e Stephen Couch (1991: 361), que passaram a propor um quadro

    analítico "ecológico -simbólico", em que a verdadeira questão não é a quali-

    dade do agente do desastre, mas sim se o mesmo altera de forma significativa

    a relação entre a comunidade e os seus ambientes biofísico e construído, e a

    forma como as pessoas interpretam as mudanças ocorridas nesses ambientes.

    Esta reconcetualização está de acordo com a abordagem sociológica dos riscos

    e dos desastres, em que se deve atender às dimensões sociais e não às caracterís-

    ticas dos agentes dos riscos. Os riscos naturais podem, de facto, afetar e mudar

    radicalmente a relação das pessoas e das comunidades com os seus ambientes

    envolventes (Tierney, 2012: 61). Por outro lado, há também nos riscos e nos

    desastres naturais, como nos riscos e desastres tecnológicos, a constituição de

    movimentos sociais de protesto e níveis de litigação altos (Blocker, Rochford e

    Sherkat, 1991; Picou et al., 2004).

    4.2 Os riscos antrópicos: os riscos tecnológicos

    A sociologia desde cedo se debruçou sobre o impacto dos riscos tecnológicos,

    e, como vimos, anteriormente, muito do sucesso do conceito de sociedade do

    risco de Ulrich Beck ficou -se a dever aos acontecimentos posteriores a Chernobyl.

    Esse impulso para o estudo dos riscos tecnológicos prende -se com as grandes

    catástrofes de Bhopal (Jasanoff, 1994), Three Mile Island (Perrow, 1981) e Seveso.

  • 46

    O efeito destrutivo dos acidentes tecnológicos foi uma das linhas de investi-

    gação privilegiadas nos estudos sociológicos, como se pode constatar na síntese

    de Kathleen Tierney (2012: 59 -60). Muitos desses estudos concentraram -se nos

    impactos destruidores que ocorriam quando os recursos naturais e de subsistência

    das comunidades eram afetados pelos desastres tecnológicos, induzindo uma

    desestruturação do sentimento de identidade e da coesão dessas comunidades.

    O estudo clássico de sociologia dos riscos tecnológicos é o de Kai Erikson

    (1976), que desenvolveu a sua análise numa publicação posterior (Erikson,

    1994). Para alguns autores, os riscos tecnológicos passam a ser vistos e geridos

    como propiciadores de "desastres normais", na assunção de Charles Perrow

    (1984), dado que as organizações falham de forma permanente e constante.

    No mundo francófono muitos estudos têm abordado, a partir de diferentes

    paradigmas analíticos da sociologia, desde a teoria do ator -rede até às perspe-

    tivas mais institucionalistas, os riscos tecnológicos (Borraz, 2008), sobretudo

    devido às controvérsias públicas que advieram, por exemplo, da questão da

    gestão dos detritos nucleares (Barthe, 2006) ou do sangue contaminado

    (Fillion, 2006). Estes eventos originaram toda uma reflexão sociológica sobre

    os riscos tecnológicos e o papel dos lançadores de alertas (Chateaureynaud

    e Didier, 1999).

    Uma das tipologias mais interessantes sobre riscos tecnológicos é -nos proposta

    por Stuart Anderson e Massimo Felici (2009), recorrendo a uma matriz que dá

    especial relevo à questão das escalas. A tipologia distingue os riscos sociotécnicos

    emergentes em três categorias: os riscos de fronteira, os riscos evolutivos e os

    riscos de performatividade (Anderson e Felici, 2009: 210). Esta tipologia parte

    da noção de que as organizações são compostas por diferentes culturas, e que

    há que entender como as tecnologias e os riscos inerentes atravessam as fron-

    teiras das organizações (necessidade de identificação dos objetos de fronteira).

    Quanto ao facto dos riscos serem evolutivos, a história das organizações

    influencia a inovação tecnológica e os riscos associados (trajetórias das tecnolo-

    gias). O terceiro aspeto prende -se com a maneira como os feedbacks negativos

    sobre os produtos tecnológicos afetam a performatividade das organizações

    (falhanços sociotécnicos).

  • 47

    Esta análise permite orientar a análise empírica dos riscos tecnológicos emer-

    gentes, para além das tipologias mais convencionais sobre os riscos industriais

    e tecnológicos. Numa perspetiva mais clássica, Ortwin Renn (2008: 6) iden-

    tifica como riscos tecnológicos os oriundos de substâncias tóxicas, substâncias

    genotóxicas ou cancerígenas e poluentes ambientais.

    Para Portugal, a tipologia de riscos tecnológicos de Julião et al. (2006:

    26 -27) enumera os riscos ligados aos transportes, às vias de comunicação e

    infraestruturas e à atividade industrial e comercial.

    4.3 Os riscos antrópicos: os riscos sociais

    Os riscos sociais assumiram alguma visibilidade pela atenção dada por

    instâncias internacionais como a OCDE (OECD, 2003), que no seu relatório

    sobre os riscos emergentes listava o terrorismo, a sabotagem, o comportamento

    das multidões, a depressão, o suicídio e outras causas possíveis de causar

    danos a nível social. Como se pode verificar, esta lista de riscos sociais não

    veicula qualquer quadro analítico sociológico, mas é sim a projeção insti-

    tucional de possíveis ameaças às lógicas de regulação e de controlo social

    dos Estados e das instâncias internacionais. Ortwin Renn (2008: 63), numa

    perspetiva mais sociológica, apela a uma análise que enquadre os riscos sociais

    nas dinâmicas e nas configurações relacionadas com a identidade, a justiça

    e a legitimidade sociais.

    Renn (2008: 6) lista como riscos sociocomunicativos os riscos de terrorismo

    e sabotagem, a violência humana e os crimes, a humilhação, os comportamen-

    tos das multidões e de estigmatização, as experiências com seres humanos, a

    histeria de massa e os sintomas psicossomáticos. Aqui também se verifica que

    estamos perante uma lista desconexa e quase arbitrária de riscos, o que também

    demonstra, quase paradoxalmente, a menor capacidade de reflexão sociológica

    sobre os riscos sociais, quando comparados com os riscos naturais e tecnológicos.

    Esta fraqueza da análise sociológica está associada à importância destes riscos

    para as políticas de regulação das populações e para as políticas securitárias,

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    imperando um forte viés ideológico que afeta a capacidade de afastamento e

    de interpretação analítica.

    Uma análise brilhante sobre os riscos sociais e uma crítica à democratiza-

    ção dos riscos foi proposta recentemente por Dean Curran (2013). Curran

    argumenta, basicamente, que na crescente produção e distribuição de "males"

    (bads), as desigualdades de recursos económicos ganharam uma importância

    acrescida, pois são as diferenças em recursos económicos que permitem aos que

    estão em vantagem minimizarem a sua exposição aos riscos. Essas diferenças

    impõem aos desfavorecidos a necessidade de se confrontarem com os riscos

    criados pela sociedade do risco (Curran, 2013: 44).

    Para além desta problemática, temos toda uma literatura que aborda os

    novos riscos que derivam da crise no Ocidente dos Estados -providência e da

    hegemonia do