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Rachel Barros Nigro Desconstrução Linguagem Política Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Paulo Cesar Duque Estrada Rio de Janeiro Agosto de 2007

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Rachel Barros Nigro

Desconstrução Linguagem Política

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Cesar Duque Estrada

Rio de Janeiro Agosto de 2007

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Rachel Barros Nigro

Desconstrução Linguagem Política

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof Paulo Cesar Duque Estrada

Orientador Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Prof Danilo Marcondes Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Prof Miroslav Mirovic (Unb)

Prof Norman Madarasz (UGF)

Prof Nythamar de Oliveira (UFRS)

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia

e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2007.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Rachel Barros Nigro possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (1998) , mestrado em Ciências jurídicas pela Pontificia Universidade Catolica do rio de janeiro (2000) e mestrado em Filosofia pela Pontifícia universidade do Rio de Janeiro (2003) . Atualmente é Quadro complementar da Pontifícia universidade do Rio de Janeiro.

CDD: 100

NIGRO, Rachel Barros

Desconstrução Linguagem Política /Rachel Barros Nigro; orientador: Paulo Cesar Duque Estrada. – Rio de Janeiro: PUC; Departamento de Direito, 2007.

279.f; 30 cm 1. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro, Departamento de Direito. Inclui referências bibliográficas.

1.Direito – Tese. 2. Desconstrução. 3. Linguagem. Política. 4. Pragmática. I. Nigro, Rachel Barros. II. Estrada, Paulo Cesar Duque. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. IV. Título.

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FABLE

Par le mot par commence donc ce texte, Dont la première ligne dit la vérité,

Mais ce tain sous l´une et l´autre Peut-il être toléré?

Cher lecteur déjà juges Là de nos difficultés…

(APRÈS sept ans de malheurs,

Elle brisa son miroir).

(Francis Ponge)

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AGRADECIMENTOS

À minha família, Orlando, Helena e Isabela, cujo apoio incondicional me

permite a dedicação exclusiva à vida acadêmica;

À todos os professores que ajudaram a despertar o meu interesse pela

filosofia, especialmente Antonio Cavalcanti Maia que, com sua energia e

entusiasmo, faz tudo parecer bem mais fácil do que realmente é; à Leandro

Konder, cujas aulas marcaram minha entrada na filosofia; à Danilo Marcondes,

cujas aulas me ensinaram, muito além que o conteúdo filosófico, a postura

exemplar de um professor;

Ao Need, Núcleo de estudos em ética e desconstrução, formado pelos

colegas e amigos Rafael Haddock-Lobo, Ana Maria Continentino, Carla

Rodrigues, Tatiana Grenha e a estrangeira Lígia Saramago, cujas discussões

foram e são fundamentais para o desenvolvimento desta tese;

À Paulo Cesar Duque-Estrada, orientador e amigo que, com sua serenidade

e carinho, faz com que as exigências de rigor e seriedade pareçam menos pesadas

do que são;

Enfim, dedico esta tese à Jean-Marc e a nossa filha Olivia (à venir)

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Resumo

Nigro, Rachel Barros, Duque Estrada, Paulo Cesar. Desconstrução

Linguagem Política. Rio de Janeiro, 2007, p.279 Tese de Doutorado Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Desconstrução Linguagem Política promete trabalhar a noção de

linguagem no pensamento desconstrutor e a questão política que ela evoca. Em

termos mais precisos, Desconstrução Linguagem Política pretende investigar até

que ponto a desconstrução pode ser considerada uma filosofia pragmática da

linguagem e qual a sua relação com a esfera política.

Palavras-Chaves

Desconstrução, Linguagem, Política, Pragmática

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Abstract

Nigro, Rachel Barros, Duque Estrada, Paulo Cesar. Deconstruction

Language Politics. Rio de Janeiro, 2007, p.279 Tese de Doutorado Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Deconstruction Language Politics promise to work on the notion of language in deconstruction´s though and on the political question it evokes. More precisely, Deconstruction Language Politics intends to investigate what are the possibilities to consider deconstruction a pragmatic philosophy of language and what is its relation to the political realm.

Keywords

Deconstruction, Language, Politics, Pragmatic

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Sumário 1 – Introdução 15 1.1 Primeira aporia 16 1.2 Desconstrução e Metafísica 22 PARTE 1 A LINGUAGEM 2 – A Virada Lingüística na filosofia contemporânea 31 2.1 Frege e o descolamento entre sentido e referência 35 2.2 Espectro Husserl 38 2.3 Movimento de Temporização e différance 57 3 – O Giro linguístico na Tradição Alemã 66

3.1 O Expressivismo alemão 66 3.2 Humboldt e a virada copernicana da linguagem 75 3.3 Espectro Heidegger 93 3.4 Derrida herdeiro de Heidegger 114 3.5 Derrida crítico de Heidegger 126 4 – A Virada pragmática 144

4.1 Considerações iniciais 144 4.2 Wittgenstein e os jogos de linguagem 151 4.3 Austin e a dimensão performativa da linguagem 157 4.4 Respostas a Searle 161 PARTE 2 - A DESCONSTRUÇÃO

5 - A Escritura derridiana 180

5.1 Virada e deslocamento 180 5.2 A oposição entre fala e escrita 184 5.3 Gramatologia e Lingüística 190 6 - Os traços disseminantes da escritura 208 6.1 Indecidível différance ou o pensamento do rastro 208 6.2 A différance e a força performativa da linguagem 214 6.3 Différance e lei 217 6.4 O tempo da différance 222 6.5 Différance e a língua da filosofia 226 6.6 O caráter ex-apropriativo da língua 233 6.7 As promessas da escritura 239

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PARTE 3 – POLÍTICA 7 – Desconstrução (é) Política 252 8 - Notas conclusivas 265 9 - Bibliografia 272

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PREFÁCIO – Da Identidade à différance

A presente pesquisa, iniciada no curso de mestrado em Direito, cuja

dissertação foi defendida em março de 2000, partiu de uma questão política

bastante atual, a saber, a crise de soberania enfrentada pelos Estados nacionais

frente aos imperativos globalizantes. Antes mesmo dos acontecimentos marcantes

de 11 de setembro de 2001, as principais categorias da filosofia política já

encontravam-se desafiadas pelas transformações tecnológicas, econômicas e

sociais em curso. Alguns conceitos estruturantes da modernidade, herdadas do

iluminismo, como a soberania do Estado-nação, a democracia de base territorial, o

direito internacional e as demais construções jurídico-políticas modernas, já não

respondiam às questões contemporâneas, especialmente ao fenômeno de

desterritorialização da política e da economia.

Nesse cenário global, os Estados nacionais, especialmente os mais fracos,

reduzem-se a meros administradores de crises de legitimidade e de

governabilidade. Enquanto isso, o mercado financeiro e sua mão invisível

conduzem populações inteiras à miséria absoluta, enquanto outros poucos

acumulam fortunas inimagináveis, aumentando o fosso da desigualdade social que

parece se aprofundar mesmo nas democracias ditas avançadas. Pensadores de

correntes diversas, até mesmo politicamente antagônicas1, concordam quanto à

necessidade de repensar a democracia, a cidadania e as formas possíveis de

organização e participação política dentro desse novo contexto global. De formas

variadas e com enfoques distintos, todos admitem a urgência de reformulações,

desconstruções, reconstruções e reinvenções das categorias modernas que

forjaram o imaginário social desde as revoluções burguesas, construindo a

organização política e social que hoje assumimos como natural: o Estado

democrático de Direito com base territorial alicerçado pelas noções correlatas de

cidadania e identidade nacional.

Dentro dessa miríade de questões inter-relacionadas, minha primeira

dissertação de mestrado em Direito se concentrou na análise inter-disciplinar da

noção de identidade coletiva, especialmente de identidade nacional, enquanto

1 A reforma da Organização das Nações Unidas, por exemplo, é uma medida defendida por teóricos marcadamente de direita, como Francis Fukoyama e por pensadores marxistas, como Toni Negri, passando por Jurgen Habermas e mesmo por Jacques Derrida.

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mecanismo moderno de agenciamento coletivo que sustenta a legitimidade

democrática do Estado-nação. De modo ainda mais específico, a pesquisa

pretendeu contribuir para uma reflexão do discurso sobre a identidade nacional

brasileira, ou seja, das narrativas identitárias que constituíram o Brasil como uma

‘nação moderna’.

Já no segundo mestrado, agora no ambiente da Filosofia, decidi aprofundar

a questão da identidade nacional através da leitura mais cuidadosa do filósofo

canadense Charles Taylor, na tentativa de compreender melhor o fenômeno de

identificação coletiva. Nesse sentido, ainda bastante influenciada pela idéia de

‘identidade nacional’, fui conduzida, através de Taylor, à noção da linguagem

como expressão e constituição de mundo. No entanto, apesar de apontar a

importância da língua na formação da identidade nacional, Taylor ainda conserva,

de modo não problematizado, a noção de identidade e, consequentemente, de

sujeito coletivo uno e idêntico a si mesmo.

Seguindo minha trajetória na filosofia, já no mestrado de filosofia iniciado

em 2001, deu-se o encontro com o pensamento de Jacques Derrida. No entanto,

devido à complexidade que seu pensamento demanda e que, por isso, exige um

certo tempo de ‘maturação’, apenas no início das pesquisas do doutorado e com a

contribuição das discussões travadas no Need2, é que abriu-se para mim um novo

espaço de reflexão que me permitiu pensar em outro registro a questão da

identidade nacional. Com efeito, a desconstrução aponta, de modo potente, para a

possibilidade de pensar o vínculo de pertencimento que estrutura o princípio da

nacionalidade através de um outro enfoque, ou seja, para além das categorias

metafísicas de povo e sujeito, ou de povo/nação como o sujeito coletivo por

excelência. Ou seja, a desconstrução surgiu para mim como um pensamento

vigilante e atento para a inevitável armadilha metafísica da linguagem, sem,

contudo, renunciar a falar sobre tais armadilhas, como a questão da identidade

nacional.

A princípio, pretendi escrever uma tese que relacionasse a noção de

escritura desenvolvida por Derrida e a linguagem utilizada nos discursos sobre a

identidade nacional. Gostaria de apresentar a utilização (política) do poder da

escritura (de uma certa característica estrutural da linguagem que comanda a

2 Need - Núcleo de estudos em ética e desconstrução, grupo de pesquisa coordenado pelo professor Paulo Cesar Duque-Estrada.

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construção de sentidos) na construção de identidades fixas e estabilizadas, como

as identidades nacionais, tal como foram estabelecidas na modernidade. Em

outros termos, gostaria de mostrar como a construção de identidades coletivas

passa necessariamente pela imposição de uma língua – porque é na e pela

linguagem que se constrói algo como uma nação. O título estava pronto e me

parecia muito bonito: “A escritura da Nação”.

Dentro desse primeiro esquema, a tese partiria da hipótese de que os

discursos sobre identidade coletiva (em especial, desde a modernidade, o discurso

nacionalista) utilizam-se da ambigüidade estrutural da linguagem em geral,

presente em todas as línguas particulares, na construção de ‘mundos nacionais’.

Gostaria de mostrar como o discurso da nacionalidade retira sua força narrativa e

psicológica da ambivalência da própria linguagem, a sua ‘lei da indecidibilidade’,

visto que esta ambigüidade é promissória, messiânica, mas também perversível,

ou seja, ela lança uma promessa/ameaça para o futuro indefinido. De modo

emblemático, o discurso em torno da nacionalidade revela a ambivalência da

própria linguagem e sua permanente contaminação pela alteridade. Para tanto,

pretendia apoiar-me nos textos sobre o nacionalismo em culturas pós-coloniais de

Homi Bhabha, crítico indo-britânico que trabalha na trilha da desconstrução.

Segundo Bhabha: “It is the project of Nation and Narration to explore the Janus-

faced ambivalence of language itself in the construction of the Janus-faced

discourse of the nation”3.

Nesse sentido, minha pesquisa buscaria explorar a dupla face da

linguagem, especialmente a retórica utilizada no discurso nacionalista, enquanto

um discurso que é efeito da écriture, ou seja, que pertence ao sistema total de

referências e diferencialidades que constituem a linguagem, tal como a entende a

desconstrução.

Pretendendo ou prometendo realizar uma leitura desconstrucionista do

nacionalismo, a tese buscaria, no interior da linguagem expressivista dos discursos

nacionalistas, os sinais ou os sintomas de um desejo de originalidade e

autenticidade, sintomas que revelam uma filosofia ainda refém do significado

transcendental, ou seja, da referência única, do sentido, do sujeito (self), da idéia

clara e distinta, enfim, da presença a si que se exprime numa língua. Seguindo

3 Bhabha, Homi (org.), Nation and Narration, Introduction, pág. 3. Routledge, London and New York, 1990.

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Derrida, queria mostrar como esse desejo de identidade, de autenticidade e de

pertencimento são experiências lingüísticas ambivalentes, ambíguas e cujas

promessas nunca serão cumpridas. Ao desconfiar de todas essas pretensões

metafísicas, a desconstrução propõe uma nova forma de entender a linguagem,

problematizando a própria noção de signo e de sentido. Com este novo estilo de

pensamento e através de uma nova compreensão da linguagem enquanto

promessa, a questão da identidade nacional ganharia, portanto, uma nova visada.

E certas famosas afirmações ganhariam outro brilho, como por exemplo:

“MINHA PÁTRIA, MINHA LÍNGUA”

Entretanto, infelizmente ou felizmente, fui ‘obrigada’ a abandonar este

projeto inicial porque a questão da linguagem transbordou e invadiu todo o espaço

desta pesquisa. Antes de tudo, lá estava ela. E não pude desviar de sua

onipresença, fui obrigada a atravessá-la para chegar ao meu objetivo: pensar a

linguagem do nacionalismo sob o viés da desconstrução. Mas não cheguei nunca

ao nacionalismo, mal pude tocar a noção do ‘político’. Permaneci na linguagem,

‘abduzida’ pelo seu poder de ‘meio absoluto’, como diz Derrida. No entanto,

mesmo abandonando a questão da identidade nacional stricto sensu, acredito que

a tese ainda guardou um pouco da intenção original, ou seja, a de pensar a

possibilidade da política no mundo globalizado, para além das categorias políticas

e jurídicas da modernidade, como soberania, estado-nação e cidadania.

Desse modo, resumindo violentamente meu trajeto, posso dizer que fui

conduzida, na trilha da desconstrução, da identidade à différance. Pensando a

linguagem e seu jogo de diferenças, tive que abandonar a identidade. Mas talvez

este seja o trajeto ‘natural’ de uma pesquisa sobre a desconstrução. Abandonar o

projeto inicial porque ele já estava sobredeterminado, já estava teleologicamente

marcado pela intenção de ‘defender’ certos tipos de nacionalismo (o brasileiro,

desde que não chauvinista). Mas a desconstrução e sua linguagem me fizeram

desviar para a diferença e para a impossibilidade de separar o ‘bom’ do ‘mau’

nacionalismo. Derrida e seus textos complexos me fizeram enxergar que isso tudo,

o nacionalismo, o bem, o mal, a identidade, a política, enfim, ‘tudo’ é efeito da

linguagem enquanto escritura, é efeito do jogo da différance. Logo, só resta pensar

isso.

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1

Introdução

O problema do Título:

Como assinala Derrida, as questões de título, de maiúsculas e de temas

capitais são sempre questões de autoridade, de reserva e de direiro, de hierarquia e

de hegemonia. Sobretudo, como a questão da língua é anterior a qualquer outra,

um título nos envia a questões de linguagem, de idioma, de léxico e de gramática1.

Neste caso, desconstrução linguagem política, um título sem vírgula, sem ‘e’ nem

‘de’, enfim, sem pontuação, pretende marcar exatamente a dificuldade de intitular

uma pesquisa sobre a desconstrução que se pretende (e precisa ser) uma ‘tese de

doutorado’.

A ausência das proposições quer deixar, portanto, em aberto, até que ponto

esta escritura pretende falar sobre ‘a desconstrução da linguagem como política’

ou sobre ‘a linguagem política da desconstrução’, ou ainda, ‘a política na

linguagem da desconstrução’. A possibilidade de substituir os nomes por

advérbios e vice-versa, quer apontar exatamente para o jogo da linguagem e

deixar em aberto todas as alternativas possíveis, visto que são todas alternativas

interessantes. Deixo, portanto, ao leitor, a escolha que melhor lhe convier (e não é

isso sempre o que se passa numa leitura?)

Indo direto ao assunto:

Desconstrução Linguagem Política promete investigar a noção de

linguagem no pensamento desconstrutor e a questão política que ela evoca. Em

termos mais precisos, Desconstrução Linguagem Política pretende investigar até

que ponto a desconstrução pode ser considerada uma filosofia pragmática da

linguagem e qual a sua relação com a esfera política. Em outras palavras, será que

Derrida realiza a ‘virada lingüística-pragmática’ que marca a filosofia

contemporânea?

1 Derrida, Prefácio à Du droit à la philosophie, Galilée, 1990.

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Na tentativa de responder a tal questionamento, uma pré-questão se

coloca: qual o método desta pesquisa?

1.1

Primeira Aporia

A desconstrução não é um método, Derrida não se cansa de repetir. Não há

nenhum caminho a seguir, nenhum telos a alcançar, no máximo alguns rastros,

talvez uma trilha sinuosa assombrada por espectros e com destinação imprecisa.

Mas, como cumprir as exigências de uma tese de doutorado sem metodologia?

Como dar conta da contribuição original que Derrida oferece para o pensamento

filosófico em geral, e para o pensamento político, em particular, ou seja, como

colocar-me “diante da lei” de seu pensamento, de sua obra e, simultaneamente,

responder à mesma sem um prévio questionamento teórico, sem um procedimento

metodológico devidamente pré-estabelecido? Neste segundo caso, como colocar-

me “diante da lei” das exigências e procedimentos acadêmicos com intuito de

apresentar e responder por um pensamento que resiste e ultrapassa as fronteiras

acadêmicas e que questiona a lei que rege a própria Filosofia, disciplina esta no

interior da qual, afinal, eu mesma me encontro? 2.

A desconstrução resta indefinível e não redutível às regras de um

determinado domínio de estudo. Ela não pode ser reduzida a uma técnica de

leitura de textos, nem um método de pesquisa filosófica ou de crítica literária com

regras pré-estabelecidas e objetivos determinados de antemão. Mas ela também

não é um vale-tudo ou uma destruição niilista da metafísica. Se exige-se uma

definição, arriscamos dizer que a desconstrução é simplesmente uma postura

diante da leitura de textos. Uma visada que contenta-se em permanecer dentro da

2 É nesse sentido que, seguindo a leitura de Fernanda Bernardo, reservarei o termo “pensamento” para o “estilo” de fazer filosofia da desconstrução, um estilo que não pode ser reduzido a uma técnica, método, nem mesmo a uma “filosofia” em sentido estrito, visto que a desconstrução questiona os pressupostos daquilo que se convencionou chamar de Filosofia (uma disciplina com fronteiras bem delimitadas, objeto determinado e herdeira de uma longa tradição que remonta a Sócrates). Entretanto, apesar da desconstrução colocar em questão a metafísica, isto é, a tradição filosófica como um todo, é por amor e respeito a essa mesma tradição que assim o faz. Longe de uma destruição da metafísica, a desconstrução exige uma leitura vigilante e cuidadosa de seus textos, uma leitura feita a partir de uma nova forma de pensar, de um novo registro que Derrida aceitou chamar de desconstrução. Fernanda Bernardo já traduziu diversos livros de Derrida para o português, entre eles Force de Loi e O monolingüismo do outro, além de ser uma interlocutora que muito enriquece as discussões do Need (Núcleo de pesquisas em ética e desconstrução).

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17

linguagem para detectar as regras que comandam o seu jogo, para tentar revelar a

lei que comanda aquele texto particular, para apontar aquilo que não está

“literalmente” escrito e que não pertence necessariamente a ordem do querer-dizer

do autor.

Derrida reconhece que é impossível reconstituir “fielmente” a cadeia de

significados que inspiraram o dizer de cada autor, mas a desconstrução se contenta

em, ao iluminar a lei que comanda o texto, ao chamar a atenção para o sistema

textual e sua lógica de oposições, mostrar, no percurso, certos efeitos que eles

produziram e, com isso, estimular deslocamentos de barreiras e novos caminhos

de pensamento.

No intuito de guardar a diferença da desconstrução, Derrida multiplica as

suas definições. Em Limited Inc, por exemplo, respondendo à acusação de que a

desconstrução seria politicamente conservadora, encontramos a seguinte

explicação que enxerto a seguir:

“não existe A ou uma só Desconstrução. Se só houvesse uma, e homogênea, ela não seria “intrinsecamente” nem conservadora, nem revolucionária, nem determinável segundo o código dessas oposições. É bem isso que enerva todo mundo (...) A desconstrução, no singular, não é “intrinsecamente” nada, nada que seja determinável a partir desse código e desses critérios (...) a avaliação política de cada um dos gestos ditos desconstrutores dependerá de análises muito difíceis, muito minuciosas, muito livres quanto aos estereótipos do discurso político-institucional. A desconstrução não existe em algum lugar, pura, própria, idêntica a si mesma, fora de suas inscrições em contextos conflituais e diferenciados, ela só é o que ela faz e o que se faz dela, onde tem lugar”3.

Já em “Autrui est secret parce qu´il est autre” , escreve Derrida : “a

desconstrução não é nem uma filosofia, nem uma ciência, nem um método, nem

uma doutrina, mas (...) o impossível e o impossível como aquele que chega”4.

A razão dessa aporia reside na impossibilidade de se prevenir à

desconstrução, de a ver chegar e operar, de estar preparado para ela. Com efeito,

os textos derridianos denunciam a contaminação constitutiva entre forma e

contéudo e, portanto, não podem ser encaixados num “método desconstrucionista”

que seria idêntico em todos os textos. Cada contexto, cada conteúdo, transforma a

“forma” desconstrutora. Escreve Derrida:

3 Derrida, Limited Inc, pág. 193 – 194. 4 “n´est ni une philosophie, ni une science, ni une méthode, ni une doctrine, mais, (...) l´impossible et l´impossible comme ce qui arrive ». In “Autrui est secret parce qu´il est autre” in Marges linguistiques, n. 9 mai 2005 M.L.M.S. éditeur

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“J´ai essayé de montrer les chemins par lesquels, par exemple, le questions déconstructives ne peuvent pas, c´est ainsi, originer de méthodes pour des procédés techniques qui puissent être répétés d´un contexte à un autre. Dans ce que j´écris, je crois qu´il y a aussi quelques règles générales, quelques procédés qui puissent être transposés par analogie – cela est ce qu´on appelle un enseignement, une connaissance, des applications – mais ces règles sont recueillies dans un texte qui est, à chaque fois, un élément unique et que ne se laisse pas transformer complètement en une méthode »5.

Seguindo a trilha da desconstrução encontramos, portanto, uma aporia

logo de saída. Por onde começar, qual o ponto de partida desta pesquisa? Como

seguir um caminho (mesmo uma trilha sinuosa) sem princípio? Como trabalhar

com um pensamento que coloca em questão o valor de arkhê? Que não tem

postulados, axiomas ou definições? Ou que, como diz Derrida:

“Tudo no traçado da différance é estratégico e aventuroso (...) poderíamos chamá-la tática cega, errância empírica, se o valor do empirismo não recebesse ele próprio todo o seu sentido da oposição à responsabilidade filosófica. Se há uma certa errância no traçado da différance, ela não segue mais a linha do discurso filosófico-lógico do que a do seu reverso simétrico e solidário, o discurso empírico-lógico. O conceito de jogo mantém-se para além dessa oposição, anuncia, às portas da filosofia e para além dela, a unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim”6.

Na tentativa de iluminar um pouco este caminho sinuoso, solicito a ajuda

de dois espectros, dois filósofos que marcam a obra derridiana de ponta a ponta:

Husserl e Heidegger. Além deles, buscarei trabalhar outros autores que, embora

não influenciem diretamente a obra derridiana, são cruciais para uma melhor

compreensão do movimento de virada rumo à linguagem que estou chamando

aqui de ‘virada lingüística-pragmática’. Ao assinalar a amplitude de tal

movimento, que vai da fenomenologia husserliana ao expressivismo alemão de

Humboldt e Herder, acredito que a singularidade da desconstrução aparece de

modo ainda mais potente. Assim, através das questões por eles levantadas, através

de seus rastros, segue a desconstrução. E esta tese tentará acompanhar este

percurso. Este é o desafio que me coloco a seguir.

Aporia em suspensão ou

5 In Marges linguistiques, n. 9 mai 2005 M.L.M.S. éditeur 6 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, pág. 37 – 38.

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19

Introdução:

Em sentido rigoroso, Derrida não pode ser classificado como um filósofo

pragmático da linguagem. No entanto, pode-se afirmar que a desconstrução é

tributária de uma certa filosofia da linguagem que hoje chamamos de pragmática e

da dimensão performativa por ela posta em evidência. É nesse sentido que parece-

me perfeitamente legítimo associar o pensamento de Derrida com os filósofos “da

linguagem”, sejam eles classificados como analíticos ou continentais, lingüistas

ou semiólogos, pragmáticos ou estruturalistas7.

Entretanto, apesar da palavra ‘linguagem’ aparecer frequentemente neste

trabalho e, inclusive, fazer parte do título, é por conveniência e necessidade que

assim o faço, visto que, como assinala Derrida, não há como escapar aos conceitos

e noções herdados da metafísica, mesmo quando estamos tentando com ela

romper. Tudo que podemos tentar fazer é desenhar os limites de tais conceitos e

reinscrevê-los em outros contextos. Nesse sentido, após atravessar o pensamento

do rastro, tal como proposto por Derrida, veremos que a écriture derridiana

dissolve o conceito de linguagem e que, após considerar a lei da indecidibilidade

inscrita na différance, não podemos mais falar simples e impunemente em

‘linguagem’ como algo que resta a ser pensado, seja como objeto ou como

conceito filosófico.

Desse modo, a linguagem, isso que não existe ‘enquanto tal’, que nunca

será ‘próprio’ ou ‘apropriável’, atravessa esta tese como um espectro, como aquilo

que não se deixa apreender ou dominar, mas que, contudo, deixa seu rastro por

onde quer que passe.

Para Derrida, “o problema da linguagem nunca foi apenas um problema

entre outros”8 e, para tentar dar conta de tal fenômeno ultra complexo, lança mão

7 No texto “Mes chances: au rendez-vous de quelques stéréophonies épicuriennes” in Psyché, Nouvelle edition, 1987-1998, Galilée, Derida propõe chamar de “pragmatológico” o espaço de uma análise indispensável “à união de uma pragmática e uma gramatologia” (pág. 41). Para ele, “a gramatologia sempre foi uma espécie de pragmática, mas a disciplina que hoje porta esse nome comporta muitos pressupostos por desconstruir, assim como a teoria dos speech acts. Uma pragmatologia (por vir) articularia de modo mais fecundo e mais rigoroso os dois discursos”. Derrida, Limited Inc. Papirus, Campinas, 1991, pág. 203. 8 Derrida, “O Fim do Livro e o Começo da Escritura” in Gramatologia, op. cit. pág. 7.

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do “quase-conceito” de écriture9, noção que pretende ir além do pensamento

tradicional sobre a linguagem. Segundo Derrida, a escritura é o movimento da

différance10, um jogo sem fim de remetimentos de significantes, um jogo animado

pela diferencialidade estrutural da linguagem. Como pretendo argumentar neste

trabalho, com estes “quase-conceitos”, também chamados de indecidíveis – não

apenas écriture, différance, mas também outros como rastro, hospitalidade, perdão

– Derrida rompe, de forma radical, com a visão metafísica da significação e,

conseqüentemente, com a concepção tradicional da linguagem enquanto

representação, rumo a um novo pensamento sobre a linguagem, para além do

pressuposto comunicativo que domina a filosofia da linguagem contemporânea.

Em Gramatologia, publicada em 1967, Derrida apresenta, pela primeira

vez, a crítica ao que denomina “metafísica da presença”, ou seja, uma filosofia

refém daquilo que ele chama de significado transcendental e que, de formas

variadas, confina a linguagem em geral e a escrita, em particular, a uma função

segunda e instrumental. Nesse ambiente, a linguagem é tratada como mero

suplemento do sentido original, como simples porta-voz do “querer-dizer”, enfim,

9 A palavra écriture foi vertida para o português, por alguns tradutores, como escrita. De minha parte, utilizarei a palavra escritura para me referir à noção derridiana de écriture. Reservarei o uso da palavra escrita para fazer referência à linguagem escrita, ou seja, ao texto escrito, tal como tradicionalmente compreendido. 10 A différance já foi traduzida de diversos modos (diferência, diferança), mas usarei aqui o termo original différance para guardar a ambiguidade pretendida por Derida e os diversos motivos que ela evoca. Ao escrever propositalmente a palavra différence com um “a” no lugar do “e”, Derrida quer chamar atenção para algumas peculiaridades da linguagem como um todo, tanto a escrita quanto a falada. O fato de não se escutar (em francês) a troca da letra “a” pela “e”, visto que a pronúncia não se altera, assinala uma falta à ortografia, um desrespeito à lei que rege a língua, mas que, no entanto, pode passar em silêncio. Essa diferença inaudível quer apontar para o fato de que a diferença passa pelo texto escrito, mas não se “entende” (não se escuta e não se compreende) nem pode ser traduzida numa presença escrita. O “a” da différance remete-nos ao texto escrito e à diferença gráfica, mas o atravessa para situar-se entre a fala e a escrita. Desenvolvo a noção de différance na Parte 2 desta tese. A escolha do verbo différer também segue a mesma direção ao combinar os dois sentidos do verbo latino differre. A différance remete, assim, além da noção corrente de não-idêntico (que já é problemática), tanto para a noção de deferir, ou seja, aceitar o pedido, responder à solicitação, como também de diferir, adiar, divergir, não trazer à presença. Este segundo sentido temporal (perdido na tradução por diferença) remete-nos a um “plus tard”, um intervalo, uma distância ou espaçamento que se produz em qualquer repetição ou reprodução. Assim, apesar da legitimidade das diversas traduções brasileiras, que mantém o artificialismo do neologismo criado por Derrida, opto por usar o termo original e enxertá-lo na língua portuguesa, realçando a sua citacionalidade estrutural e o fato de que um termo jamais será idêntico a outro, por mais que tenha sido apenas repetido ou reproduzido fielmente. Derrida desenvolve a questão do “a” da différance especialmente no texto “A diferença” in Derrida, Margens da Filosofia, trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. Ed. Papirus, Campinas, SP, 1991.

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como um instrumento a serviço da “fala plena e plenamente presente (presente a

si, a seu significado, ao outro)”11.

Ao decretar o “fim do livro e o começo da escritura”, Derrida anuncia a

morte dessa linguagem centrada na fala e que se pretende plenamente presente,

fiel portadora do sentido original, autêntica porque mais próxima do “verdadeiro

querer-dizer”. Esse preconceito fundamental que afeta toda uma época precisa ser

denunciado, ou seja, é preciso desconstruir o logo-fono-centrismo da metafísica

ocidental rumo a uma nova forma de compreender a linguagem, portanto, um

novo pensamento sobre a linguagem que assuma a ausência do significado

transcendental, a ausência de um significado central, originário, que tem por

finalidade o fechamento, a totalização ou o fim do jogo da linguagem. O que a

desconstrução não se cansa de revelar – e de apontar as conseqüências de tal

revelação – é que não existe significado fora do sistema de diferenças que

constitui a linguagem12.

Para Derrida, a história da metafísica e do ocidente é a história da

substituição de centros, de fundamentos, de significados últimos que amenizem a

indeterminação do sentido. A forma matricial dessa história é a determinação do

ser como presença, em todos os sentidos dessa palavra. Assim, todos os nomes do

fundamento, do princípio ou do fim, sempre designaram o invariante de uma

presença – eidos, arquê, ousia, energeia, aletheia, transcendentalidade,

consciência, Deus, homem – de algum sentido que organize o jogo da linguagem.

No interior dessa tradição de pensamento, a linguagem ocupa um papel

secundário, de mera representação do sentido original, da coisa em si, da realidade

“nua”, da existência, da imanência, não importa o nome que se dê ao que Derrida

chama de presença. No entanto, essa linguagem, onde o privilégio do sentido

encontra-se na fala viva e onde a escrita é entendida como “fala decaída”,

representação da representação, essa linguagem tal como compreendida no

ocidente, é apenas um momento dentro de um movimento muito maior, o da

escritura.

11“Todas as determinações metafísicas da verdade são inseparáveis da instância do logos ou de uma razão pensada na descendência do logos, em qualquer sentido que seja entendida: no sentido pré-socrático ou no sentido filosófico, no sentido do entendimento infinito de Deus ou no sentido antropológico, no sentido pré-hegeliano ou pós-hegeliano”. Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 9-13. 12 “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas” (1967) pág. 231, in A Escritura e a Diferença. Ed. Perspectiva, São Paulo, 1995.

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1.2

Desconstrução e Metafísica

Apesar de apresentar uma forte crítica à metafísica, a desconstrução

reconhece que nada mais é pensável sem os conceitos herdados dessa tradição e

propõe, paradoxalmente, abalar a metafísica da presença com a ajuda do conceito

de signo13. Isto não significa destruir a metafísica ou sair fora de seu jogo. Se a

desconstrução tem um “estilo” de pensamento, uma forma de questionamento,

então ela é dupla, visto que não quer apenas inverter oposições, mas realizar um

gesto duplo, uma escrita dupla que provoque uma reviravolta e um deslocamento

geral do sistema. Diz Derrida:

“cada conceito pertence a uma cadeia sistemática e constitui ele próprio um sistema de predicados. Não existe conceito metafísico em si. Existe um trabalho – metafísico ou não – sobre sistemas conceituais. A desconstrução não consiste em passar de um conceito a outro, mas em modificar e deslocar uma ordem conceitual assim como a ordem não-conceitual à qual se articula”14.

Para a desconstrução, não faz nenhum sentido abandonar os conceitos da

metafísica para abalar a metafísica. Como coloca Derrida:

“não dispomos de nenhuma linguagem – de nenhuma sintaxe e de nenhum léxico – que seja estranho a essa história; não podemos enunciar nenhuma proposição destruidora que não se veja já obrigada a escorregar para a forma, para a lógica e para as postulações implícitas daquilo mesmo que gostaria de contestar”15.

É por isso que Derrida mantém conceitos clássicos como escrita, perdão,

responsabilidade, no intuito de mostrar exatamente os predicados outros que tais

conceitos comportam, mas que foram subordinados, excluídos ou mantidos em

reserva.

A desconstrução é, antes de tudo, uma crítica da linguagem pela

linguagem que tem consciência da impossibilidade de criticar a metafísica

utilizando-se de seus conceitos. Como escreve Derrida: “a linguagem carrega em

13 Derrida, “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”,op. cit. pág. 233. 14 Derrida, “Assinatura Evento Contexto” in Margens da Filosofia, pág. 372. 15 Derrida, “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, op. cit., pág. 233.

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si a necessidade de sua própria crítica”16 e isso faz com que o pensamento

filosófico digno do nome tente, incessantemente, “esboçar um passo para fora da

Filosofia” ao questionar e desconstruir os conceitos herdados da metafísica,

mesmo sabendo ser esta uma tarefa impossível. Afinal, como denunciar um

discurso como metafísico sem acolher os conceitos e premissas dessa mesma

metafísica? Segundo Derrida, “é com os conceitos herdados da metafísica que

Nietzsche, Freud e Heidegger operaram as suas críticas à metafísica (...) é o que

então permite a esses destruidores destruírem-se reciprocamente, por exemplo a

Heidegger considerar Nietzsche o último metafísico, o último platônico”17. E

Derrida não pretende ser o primeiro ou o único a “escapar” da metafísica. Mas a

desconstrução não se cansa de denunciar seu jogo, de desenhar suas fronteiras e

forçar seus limites.

Entretanto, apesar de Derrida reconhecer que também se encontra preso na

clausura da tradição filosófica ocidental, é preciso levantar a questão: qual o

espaço da desconstrução? De “onde” ela pretende criticar a metafísica? E, na

sequência, questionar a própria questão: como “acomodar” um pensamento

inquieto e transgressor? E afinal, um pensamento “se acomoda”, mantém-se

(demeure) dentro de espaços delimitados?

Em Force de Loi, Derrida fala do lugar da desconstrução como de uma

“instabilidade privilegiada”, como o lugar da tensão, do paradoxo, da aporia,

enfim, como o local do pensamento da incondicionalidade. Operando na tensão, o

“estilo” da desconstrução aparece como um exercício duplo18. Por um lado, ganha

ares de uma demonstração lógica e a-histórica ao apresentar os paradoxos da

linguagem filosófica, ao tentar realizar uma prudente universalização de certas

estruturas da linguagem, rumo a um pensamento do impossível. Por outro lado,

Derrida realiza leituras inventivas e rigorosas de textos clássicos da filosofia,

participando, ao mesmo tempo em que ajuda a desconstruir, da história das idéias,

tal como concebida no ocidente.

Nesse sentido, podemos arriscar dizer que a desconstrução é uma postura

diante da leitura de textos. Uma postura cuidadosa, atenciosa, amorosa, mas

desconfiada. A desconstrução acontece dentro da linguagem, no espaço fugidio

16 Derrida, “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, idem, pág. 237. 17 Derrida, “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, idem, pág. 234. 18 Derrida, Force de Loi, op. cit. pág. 48.

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entre a fala e a escrita, no instante fugaz em que o argumento filosófico deixa

revelar sua infra-estrutura, seu jogo de oposições e dicotomias, sua hierarquia

violenta19. Essa atitude vigilante quer flagrar o logos fazendo metafísica, ou seja,

criando as oposições, constituindo a lei, prometendo trazer o sentido à presença (e

sempre falhando em sua promessa). Desse modo, a desconstrução pode ser

entendida como uma aproximação aos textos tradicionais da metafísica que busca

revelar, inverter e deslocar suas hierarquias, sem contudo cair na totalização ou

negação do conceito em si. Daí a importância da fase do deslocamento. Como

coloca Paulo Cesar Duque-Estrada:

“No texto Posições, Derrida fala de uma estratégia geral da desconstrução que, por um lado, aponta para a hierarquia intrínseca de toda e qualquer dicotomia conceitual e, consequentemente, para o que há de impositivo e conflitivo na universalidade dos conceitos. (...) É nesse sentido que se coloca a necessidade de uma fase de inversão no interior do trabalho desconstrucionista. Mas, por outro lado, este momento de inversão é estruturalmente inseparável de um momento de deslocamento com relação ao sistema a que antes pertenciam os termos de um dada oposição conceitual. (...) Re-situados em um outro registro, segundo outros critérios, não se pode pensar que, ainda assim, se trate dos mesmos conceitos”20.

Com efeito, a desconstrução é um jogo duplo de inversão e deslocamento.

O trabalho, sempre marginal, entre a existência e a não existência do conceito

procura suspender as oposições e mostrar aquilo que o texto reprimiu, aquilo que

ficou subentendido, mas que faz parte da genealogia estrutural de seus conceitos.

Assim, a desconstrução nos conduz a uma leitura dos textos metafísicos como

sintomas “de alguma coisa que não pôde se apresentar na história da metafísica”,

sintoma necessariamente e estruturalmente dissimulado e que, se hoje é

descoberto, não o é por um achado feliz do qual alguém pudesse ter a iniciativa.

Como escreve Derrida: “Ele é efeito de uma certa transformação total que não se

pode, nem mesmo, chamar mais de ‘histórica’ ou ‘mundial’, uma vez que ela

incide inclusive sobre a segurança dessas significações”21.

Sempre visando balançar o sistema logocêntrico sobre o qual se funda a

história da cultura ocidental, pode-se identificar, esquematicamente, três estilos ou

motivos segundo os quais a desconstrução opera: 1) um processo etimológico pelo

19 Derrida, Posições. Ed. Autêntica, Belo Horizonte, 2001. 20 Duque-Estrada, Paulo Cesar. “Derrida e a escritura”. In Duque-Estrada (org.). Às Margens – a propósito de Derrida. Puc-Rio/Loyola, Rio de Janeiro, 2002. 21 Derrida, Posições, op. cit. pág. 13.

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qual se remonta a história da palavra e de sua polissemia, por exemplo, a palavra

“mimesis” que Derrida investiga em Signéponge22; 2) um desnudamento da

metáfora (“mise à nu de la métaphore”) que comanda o jogo de linguagem,

permitindo uma leitura literal do texto. Por exemplo, em Farmácia de Platão,

Derrida leva ao pé da letra a expressão “envoyer promener les mythes”, usada no

discurso socrático, para ressaltar o lugar problemático da mitologia na escrita de

Platão; 3) uma tentativa de revelar o jogo de linguagem e seus paradoxos. Por

exemplo, em Donner le temps Derrida analisa e brinca com as palavras de uma

carta escrita por Madame de Maintenon (amante influente de Luis XIV) à

Madame Brinon, onde a primeira diz: “Le roi prend tout mon temps; je donne le

reste à Saint-Cyr, à qui je voudrais le tout donner”. E Derrida pergunta: mas um

tempo se dá ou um tempo se toma?

Na posse de tais ‘estratégias’, a desconstrução quer denunciar a

diferencialidade estrutural a todo signo, uma diferença original e mais “velha” que

interdita a apropriação do sentido originário, próprio, e que exige um “pensamento

sem álibi”. Assim, ao trabalhar com os conceitos tradicionais da metafísica,

Derrida aceita a contaminação estrutural da língua e diz sim à disseminação e à

deriva essencial da différance. É por isso que a desconstrução gosta de operar com

expressões “velhas” e prenhas de ambigüidade, como escritura, perdão e justiça.

Manter o antigo nome significa aceitar a estrutura do enxerto que constitui a

linguagem. Dessa forma, a desconstrução submete-se á lei da linguagem: que haja

língua! Que haja lei! Que haja promessa e espera! Mas sempre lembrando que não

há horizonte de espera, não há nenhum telos, pois a linguagem é alteridade

radical, é promessa de sentido e, simultaneamente, ameaça de erro, de desvio e

fracasso.

Entretanto, reconhecer a inevitável disseminação do sentido, reconhecer a

alteridade da própria língua e a impossibilidade de sua apropriação, não significa

igualar todos os discursos ou cair no relativismo. Com efeito, escreve Derrida:

“a qualidade e a fecundidade de um discurso medem-se talvez pelo rigor crítico com que é pensada essa relação com a história da metafísica e aos conceitos herdados. Trata-se aí de uma relação crítica à linguagem das ciências humanas e de uma responsabilidade crítica do discurso. Trata-se de colocar expressa e

22 “Mimeux: se dit des plantes qui, lorsqu´on les touches, se contractent. Les plantes mimeuses. Étym. De mimus, parce qu´en se contractent ces plantes semblent représenter les grimaces d´un mime. Le mimosa. » Derrida, Signéponge , Paris, Seuil, 1988, coll. « Fiction et Cie », p. 12.

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sistematicamente o problema do estatuto de um discurso que vai buscar numa herança os recursos necessários para a desconstrução dessa mesma herança”23.

Sem nunca abandonar seu impulso inicial, os textos derridianos refletem

essa inquietação com e na linguagem, independentemente da trama conceitual a

ser desconstruída. Desse modo, desde a Gramatologia até os últimos escritos, o

problema da linguagem ocupa um lugar privilegiado na démarche derridiana. A

princípio, as desconstruções dirigem-se para noções e distinções estruturais da

lingüística – como signo, sentido, significado/significante, fala/escrita – e a cadeia

de conceitos que tais noções evocam. No entanto, a partir do encontro com a

teoria dos atos de fala legada por Austin, a desconstrução incorpora, de uma vez

por todas, o vocabulário da pragmática, sobretudo a noção de “força

performativa”.

Sendo assim, esta tese pretende atravessar a escritura derridiana e dialogar

com outros espectros, outras vozes que, de formas variadas, também tentaram

encarar a linguagem de modo não metafísico ao assumir a desconcertante

descoberta da filosofia “pós” (pós-fregeana, pós-wittgensteiniana, pós-

estruturalista): aceder à linguagem é aceder à totalidade de referências que

constituem nosso “mundo”. Em outros termos, o “mundo” que fornece “sentido à

nossa existência” é, desde sempre, linguisticamente estruturado. Ou ainda, como

coloca Derrida, a própria idéia de “mundo” é uma criação da linguagem

metafísica “a partir da diferença entre o mundano e o não mundano, o fora e o

dentro, a idealidade e a não-idealidade, o universal e o não-universal, o

transcendental e o empírico, etc” 24.

Contudo, não pretendo “defender” a desconstrução dos ataques e das más

interpretações, até porque a desconstrução não é algo que possa ser apropriado e

defendido25. Prometo apenas fazer algumas articulações e apontar possíveis

convergências entre a desconstrução e a pragmática. Também não pretendo

apresentar uma genealogia da virada lingüístico-pragmática que faça justiça à

complexidade e à riqueza do pensamento contemporâneo. Toda essa tradição, ou

seja, muitos dos autores que buscam uma nova concepção de linguagem falarão

neste texto, alguns de modo direto, outros influenciados pela leitura de Derrida. 23 Derrida, Limited Inc, op. cit. pág.235. 24 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 9 25 Exceto na seção “Respostas a Searle”, onde Derrida responde às críticas e más interpretações do ‘herdeiro’ da Escola de Oxford.

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Desse modo, este empreendimento – mesmo sem pretender exaurir o contexto em

que se insere o pensamento de Derrida – justifica-se na medida em que atravessa

questões e autores que participam da “virada lingüística” e que ajudam a

compreender a radicalidade do pensamento desconstrutor.

Tal ecletismo, talvez exagerado, deve-se ao pensamento disseminante do

principal inspirador deste trabalho. Ao ler os textos de Derrida, os espectros nos

assombram e somos forçados a desbravar outros caminhos. A desconstrução

implica um novo estilo de pensamento e pressupõe outros modos de leituras, o

que torna impossível escrever algo sobre Derrida, ele mesmo. Seguindo Derrida,

pode-se afirmar que a desconstrução, no singular, não é “intrinsecamente” nada,

nada que seja determinável a partir dos critérios estabelecidos pela tradição

metafísica e suas oposições conceituais restritivas, como a lógica da “essência”

(por oposição ao acidente), do “próprio” (por oposição ao impróprio) e inclusive

do “intrínseco” por oposição ao extrínseco. A desconstrução coloca em questão o

código mesmo que regula tais oposições26.

De fato, não existe um Derrida e uma desconstrução27. Existem

“disseminações”, debates, respostas, defesas, promessas e ameaças. Textos mais

ou menos violentos, mais ou menos metafísicos e que hoje nos convocam à

leitura. No entanto, não custa lembrar que textos filosóficos são, como todos os

textos, escritos datados, debates circunscritos à determinada época, e muitos deles

já não despertam grandes paixões. E este texto, enquanto mais uma escrita

filosófica que pretende ingressar nessa corrente da écriture, que pretende realizar

um gesto desconstrutor, promete mostrar algumas convergências entre a

linguagem da desconstrução e a dimensão performativa da linguagem e, através

da análise da herança da desconstrução, tentar compreender melhor o pensamento

errante de Derrida.

26 Derrida, Limited Inc, op. cit. pág. 193. 27 A respeito de tal “indeterminação”, Derrida e a desconstrução já foram acusados de “obscurantismo terrorista” no New York Review of Books de 27/10/1983 supostamente por Michel Foucault. Apesar da incerteza sobre a autenticidade da citação (será que Foucault realmente falou isso), ela tornou-se incontrolável como toda citação e serviu de argumento para uma carta escrita ao governo francês por Mrs Ruth Barcan Marcus (Universidade de Yale) condenando a nomeação de Derrida para o posto de diretor do Collège International de Philosophie. Ver, a respeito das práticas acadêmicas repressivas e de “baixa política” – uma “Interpol” universitária, como chama Derrida – em Limited Inc., op. cit. pág. 191.

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No entanto, atento para a característica “expropriante” de toda tentativa de

apropriação28, esta escrita quer também apontar as diferenças entre a tradição

pragmática e a desconstrução, na tentativa de revelar a singularidade do

pensamento derridiano.

Minha proposta de leitura quer dar ênfase ao fato de que, ao denunciar o

logo-fono-centrismo que domina a metafísica ocidental, Derrida oferece uma

contribuição original para pensar a linguagem de modo diverso da tradição

filosófica ocidental, de Platão a Descartes. E esse pensar diferente passa

necessariamente por uma “linguagem que questiona continuamente a linguagem”,

como define Barthes29, ou seja, por uma nova forma de compreender a linguagem

em sua relação constitutiva com o “mundo” e a “realidade”. Para além da visada

analítica que privilegia o estudo de sentenças ou atos de fala, para além da

linguagem enquanto expressão ou comunicação, para além dos pressupostos

comunicacionais que poderiam garantir a determinação do sentido, a

desconstrução propõe um pensamento sobre a linguagem em associação com a

alteridade e, consequentemente, com a ética e a política.

Com efeito, a desconstrução não pode ser classificada como uma filosofia

da linguagem porque não realiza simplesmente um estudo ou análise sobre o

fenômeno da linguagem, por mais complexo que este possa ser entendido. A

desconstrução propõe uma ‘disseminação do performativo’ que implode o

conceito de linguagem, tal como entendido pela tradição. Ao absorver as filosofias

contemporâneas sobre a linguagem – aqui representadas por Humboldt, Saussure,

Peirce, Heidegger e Wittgenstein – ou seja, enquanto herdeiro de toda a tradição

filosófica que se propôs pensar a linguagem fora do modelo representacional,

Derrida coloca em prática a descoberta que transformou a filosofia

contemporânea, qual seja: não existe a linguagem como uma entidade, objeto ou

fenômeno que possa ser delimitado e analisado enquanto tal. A écriture derridiana

performatiza a impossibilidade de uma análise exaustiva da linguagem, visto que

ela é apenas um jogo de rastros, de performances e de ações jamais

completamente apreensíveis, jamais saturadas e que apenas por conveniência

analítica podemos chamar de ‘atos de fala’.

28 Segundo Derrida, “a desconstrução no singular não pode ser simplesmente “apropriada” por quem quer que seja ou por o que quer que seja. As desconstruções são movimentos de “ex-apropriação” in Limited Inc. op. cit. pág. 194. 29 Barthes, Elementos de Semiologia, op. cit. pág 8.

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Ao implicar a indeterminação do sentido e a estrutura diferida de toda

língua, Derrida aponta para o caráter disseminante da linguagem em geral, para

sua ambigüidade constitutiva, para a estrutura de promessa e ameaça que torna

toda língua uma fonte de violência e opressão, mas também de abertura e espera.

Nesse sentido, a forma com que Derrida trabalha a questão da linguagem faz com

que a desconstrução seja um pensamento eminentemente político, mesmo quando

está tratando de temas conceituais, como a fenomenologia husserliana e a

lingüística de Saussure. Com efeito, se a desconstrução é uma hiper politização da

política é exatamente porque a questão da linguagem atravessa a obra de Derrida

de ponta a ponta. Mas raramente encontramos o termo ‘linguagem’ nos textos de

Derrida, visto que a écriture ultrapassa a linguagem ao nos remeter à

performatividade geral que não se reduz ao elemento lingüístico. É nesse sentido

que a desconstrução não pode ser entendida como uma corrente da filosofia

pragmática da linguagem, mas participa do espaço aberto pela virada lingüístico-

pragmática.

Na tentativa de trabalhar tais questões que, na obra derridiana, encontram-

se todas emaranhadas, proponho a seguinte divisão para este trabalho:

A parte 1 dedica-se à questão da linguagem através da análise de filósofos

que, de modo pioneiro, romperam com a ‘filosofia da consciência’, ou seja, com a

noção dominante durante mais de 2 mil anos de Filosofia, de que a linguagem é

um mero suplemento das idéias. Em outras palavras, como as investigações sobre

a linguagem foram lentamente superando o preconceito, mais que arraigado na

história da Filosofia, de que a mente (pensamento ou idéia que ocorrem no interior

do sujeito) precisa da linguagem (como de um instrumento) para poder expressar

(exteriorizar) o seu conteúdo. Nesse sentido, os trabalhos de Humboldt, Frege,

Husserl, Heiddeger, Wittgenstein, Austin, dentre outros, serão apresentados como

pioneiros na superação dessa concepção instrumentalista ou representacional da

linguagem. Aproveito para já inserir Derrida como herdeiro dessa ‘virada’ rumo à

linguagem, marcando especialmente a influência de Heidegger e Husserl. É esse

novo espaço de pensamento que denomino de ‘virada lingüístico-pragmática’ ou

simplesmente ‘virada lingüística’.

A parte 2 será dedicada inteiramente à desconstrução e ao modo singular

com que Derrida trabalha a questão da linguagem em diálogo com a herança

metafísica e, sobretudo, com os filósofos que romperam com a matriz platônica.

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30

Nesse sentido, darei enfoque aos textos em que Derrida discute com a lingüística

moderna rumo à noção de écriture.

Já a parte 3 pretende relacionar esta singular pertença da desconstrução à

tradição metafísica e os efeitos políticos dessa relação. Em outros termos,

desenvolvo a hipótese central que anima esta tese, ou seja, de que a visada

desconstrucionista sobre a linguagem torna a desconstrução um pensamento

intrinsecamente político.

“Falar mete-me medo porque,

nunca dizendo o suficiente,

sempre digo também demasiado”

(Derrida, A Escritura e a

diferença)

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PARTE 1– A LINGUAGEM

2

A virada lingüística da filosofia contemporânea

A linguagem somente passa a dominar a cena filosófica a partir do século

XIX, como uma reação ao idealismo, seja o transcendental de matriz kantiana,

seja o absoluto de inspiração hegeliana, bem como ao empirismo psicologista na

esteira de John Stuart Mill. Tal movimento da filosofia contemporânea rumo a

uma crítica da linguagem, redundará no nascimento de uma verdadeira “filosofia

da linguagem”, uma filosofia que tem como concepção básica a análise da

linguagem e do processo de significação, seja por uma corrente “analítica” que

estuda a linguagem ideal, ou por uma corrente “pragmática”, que investiga a

linguagem ordinária e seu uso efetivo nos diversos contextos cotidianos30.

O que me interessa destacar nesse novo modo de fazer filosofia é que, pela

primeira vez no pensamento ocidental, a visão platônica do mundo foi

questionada na sua raiz, ou seja, no pressuposto de que existe uma separação, e

mesmo uma oposição, entre a realidade “nua” e a representação lingüística dessa

realidade. Para a concepção tradicional, de Platão a Husserl, a linguagem é

compreendida como mero suplemento das idéias, incapaz, portanto, de expressar a

essência das coisas31. Geoffrey Bennington expressa tal preconceito filosófico da

seguinte maneira:

“toda filosofia que coloca para si mesma o mundo e a linguagem como sendo dois reinos separados por um abismo que tem que ser atravessado permanece presa, exatamente no suposto ponto de travessia, no círculo do dogmatismo e do relativismo que ela não consegue quebrar”32.

30 De modo geral, pode-se identificar duas grandes vertentes desse novo modelo de filosofia: a Escola Analítica de Cambridge (Frege, Russell e o primeiro Wittgenstein) que resultará no positivismo lógico do Círculo de Viena e a Escola de Oxford, também conhecida como filosofia da linguagem ordinária (Gilbert Ryle, o segundo Wittgenstein e Austin). Esta segunda vertente, que também pode ser caracterizada pela expressão “virada lingüística” é a que me interessa aqui. Ver, a respeito, Marcondes, Danilo. “Duas Concepções de Análise na Filosofia Analítica” in Linguagem e Construção do Pensamento. Casa do psicólogo, São Paulo, 2006, pág. 23. 31 Segundo Danilo Marcondes, a primeira formulação filosófica dessa impossibilidade do conhecimento imediato da realidade encontra-se no diálogo Teeteto de Platão e pode ser resumido no “paradoxo do Teeteto”. Idem, pág. 25. 32 “We can announce already that any philosophy which gives itself world and language as two separate realms separated by an abyss that has to be crossed remains caught, at the very point of

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32

Com efeito, a relação entre a linguagem e o mundo não pode ser explicada

logicamente porque o “mundo” é linguagem. A linguagem sempre já é anterior a

toda pergunta específica sobre qualquer coisa no mundo. A linguagem abre o

mundo, ela tem papel constitutivo na nossa relação com o mundo, mas não é um

objeto do mundo e, por isso, não podemos simplesmente submetê-la às distinções

tradicionais, como entre “realidade” e “representação”.

O que parece difícil de entender é esta interpenetração indissolúvel, esta

“contaminação” incontornável entre a linguagem e o mundo. Nosso contato com a

realidade encontra-se, desde sempre e desde já, lingüisticamente estruturado. Não

há como escapar da linguagem, não há um “fora” da linguagem, nem pensamentos

“pré-linguísticos”. Todas as oposições que estruturam nosso pensamento são

oposições lingüísticas e nada pode ser “pensável” sem elas. É nesse sentido que

Derrida afirma: “Os movimentos da desconstrução não solicitam as estruturas do

fora”. O pensamento crítico da desconstrução, seja ele classificado como

filosófico ou literário, opera do interior e empresta da estrutura antiga todos os

“recursos estratégicos e econômicos da subversão”33. É nesse sentido que Derrida

entende a inquietação sobre a linguagem que domina a cena filosófica,

especialmente no século XX. Segundo Derrida, tal inquietação “só pode ser uma

inquietação da linguagem e na própria linguagem”34.

O “mundo da vida”, seja ele entendido como o conjunto de referências

possíveis, ou como “tudo que é o caso”, ou ainda como “rede de interlocução”,

esse “mundo” é, ele mesmo, linguisticamente estruturado. Esse “estar no mundo”,

desde sempre e desde já, aparece de forma paradigmática quando pensamos a

linguagem. Somente podemos compreender a nossa existência através de uma

língua particular que, mesmo compartilhando elementos da linguagem em geral,

será sempre relativa à determinada comunidade lingüística ou ‘forma de vida’. A

noção de horizonte de sentido usada pela hermenêutica, na esteira de Gadamer,

aponta para essa condição humana inescapável. Pertencemos sempre a um

the supposed crossing, in the circle of dogmatism and relativism that it is unable to break”. Bennington, Geoffrey. Jacques Derrida. Pág. 103. Chicago: University of Chicago Press, 1993. 33 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 30. 34 Derrida, “Força e significação”, pág 12, in A escritura e a diferença, Editora Perspectiva, São Paulo, 1995.

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33

determinado horizonte de sentido formado, em última instância, por significações

compartilhadas35.

No entanto, por mais “própria” que a supomos, a língua não está à nossa

disposição, isto é, ela não pode ser objetivada completamente, investigada como

um objeto inerte, passível de análise. É assim também que, para Habermas,

seguindo a trilha aberta por Humboldt e pela Hermenêutica, a linguagem abre o

acesso ao mundo, mas não será jamais compreendida dentro desse mundo36. Por

mais inquietante que seja esta constatação, ela é uma conseqüência irrecusável,

visto que o nosso estar-aí-na-língua faz com que a linguagem seja “mais velha”

que qualquer sentido possível. A língua não é um elemento exterior, mas um

“meio absoluto”, diz Derrida. Ela é inultrapassável e incontestável, não podemos

recusá-la senão atestando a sua onipresença37.

Assim, a “virada lingüística” aponta para uma filosofia que quer pensar a

linguagem e o complexo processo de significação em outras bases. No lugar de

uma filosofia centrada na consciência e no sujeito, presa ao mentalismo e

conseqüente psicologismo, surge uma filosofia que, através de uma investigação

sobre o funcionamento da própria língua, tenta esclarecer os problemas filosóficos

tradicionais através de uma crítica da própria linguagem em que tais problemas

são elaborados. Dessa forma, propõe um novo enfoque para os velhos problemas

da metafísica, ao abandonar a noção de que o pensamento é algo da ordem da

subjetividade.

Como desenvolvo adiante, Frege e Husserl – e, de modo distinto,

Humboldt – podem ser considerados os precursores desse novo pensamento, uma

vez que o sentido não é considerado um elemento pertencente nem à realidade

nem à consciência. Na linguagem fenomenológica, o sentido ou conteúdo

noemático é um componente não real do vivido. Já Frege aponta para o

35 A relação entre a desconstrução e a Hermenêutica é de uma proximidade complexa, visto que a desconstrução questiona a ilusão do sentido – indeterminado, mas sempre possível – pressuposta na tarefa interpretativa, tal como a entende a Hermenêutica. Já a desconstrução se coloca a tarefa de pensar um pensamento “sem horizonte de sentido ou de espera”. Derrida confronta a desconstrução e a hermenêutica em Béliers. Galilée, 2003. 36 Habermas, Verdade e Justificação, pág. 126. Ed. Loyola, São Paulo, 2004. 37 Derrida fala de uma espectralidade implicada em toda língua, visto que não há uma língua originária ou “língua de partida” da qual “derivam” outras línguas. Assim, sem referência fixa, toda tradução traz em si uma inventividade intrínseca, tendo em vista a “dissimetria de origem”, ou seja, a divisão que corta a língua e impede qualquer purificação. Toda língua “própria” é desde sempre contaminada pelo “estrangeiro”. Ver, a respeito, Duque-Estrada, Paulo César. “Alteridade, Violência e Justiça: Trilhas da desconstrução” in Desconstrução e Ética, op. cit. pág. 45.

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34

“descolamento” entre sentido e referência, o que nos leva à mesma conclusão,

qual seja, a de que o sentido de uma expressão independe do sujeito, visto que ele

é sempre ideal38.

Assim, a visada dessa nova forma de investigação filosófica diz respeito à

análise do significado, das proposições lingüísticas que estruturam o pensamento

e não mais dos processos mentais e subjetivos que dominavam o projeto

racionalista da modernidade, seja ele de matriz cartesiana, kantiana e mesmo

hegeliana.

No entanto, uma investigação que faça justiça à complexidade do

fenômeno da linguagem não pode se contentar com a análise de enunciados

lingüísticos ou com a forma lógica que estrutura as proposições. Para tentar dar

conta do processo de significação, a “virada lingüística” que busco destacar, para

além da perspectiva analítica, consiste na abertura de uma nova dimensão de

compreensão da linguagem, qual seja, a dimensão pragmática que busca estudar a

linguagem cotidiana em ação e não apenas a linguagem ideal e sua estrutura

lógica. A pragmática pretende realizar assim, uma investigação da linguagem

concreta, em pleno funcionamento, e determinar, na medida do possível, o sentido

de uma proposição através da análise da nova unidade de significação, o ato de

fala.

O termo “pragmática” provém de uma classificação proposta por Morris

em 1938 e adotada por diversos pensadores da linguagem, tanto da vertente

analítica como da ordinária. Considerando a linguagem humana como um

conjunto de signos, Morris divide o fenômeno da significação em três áreas

distintas: sintaxe, semântica e pragmática. Dentro dessa tipologia, a pragmática é

definida como a parte da semiologia que estuda a relação entre os signos e seus

usuários. Enquanto a sintaxe estuda apenas a relação entre os signos, e a

semântica restringe-se a investigar a relação entre os signos e o mundo, o estudo

da linguagem sob o ponto de vista pragmático pretende dar conta da experiência

concreta da linguagem, do contexto e dos múltiplos usos da linguagem cotidiana.

Tais pretensões desafiam os cânones da ortodoxia analítica e por isso

foram excluídas da investigação filosófica tradicional. Com forte inspiração na

38 É importante notar que Frege não usa a palavra “idéia” porque ela ainda nos remete a algo interior à mente do sujeito, mas o sentido de “conteúdo objetivo de uma proposição” é o mesmo de Husserl. Desenvolvo o espectro Husserl e a leitura derridiana da fenomenologia na sequência de Frege.

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35

lógica simbólica de Frege e Russell, a filosofia analítica aborda a dimensão

pragmática da linguagem como algo que é preciso dominar, controlar, visando

impedir que os inúmeros e indeterminados efeitos do discurso contaminem o

processo de determinação do significado. Desse modo, a filosofia analítica se livra

do fardo de explicar o processo de significação nos múltiplos contextos de uso dos

enunciados, recolhendo-se na cômoda ante sala da semântica. Como coloca

Habermas:

“mesmo depois da virada lingüística, o mainstream da filosofia analítica se ateve ao primado da proposição enunciativa e de sua função de representação. A tradição da semântica da verdade fundada por Frege, o empirismo lógico de Russell e do círculo de Viena, as teorias da significação de Quine a Davidson, partem todos da idéia de que a análise da linguagem deve tratar a proposição enunciativa ou a asserção como o caso paradigmático. Com exceção do segundo Wittgenstein e de seus discípulos não-ortodoxos, a filosofia analítica deu continuidade à teoria do conhecimento por outros meios”39.

Entretanto, apesar do domínio da filosofia analítica, o novo paradigma

lingüístico, faz com que a tradição filosófica dominante – então reduzida à

epistemologia – encontre seu limite, uma vez que a verdade dos enunciados não

pode mais ser compreendida como correspondência a algo no mundo, sob pena de

ser preciso “sair” da linguagem por meio da linguagem. De fato, a “verdade” de

um enunciado somente pode ser assegurada pela sua coerência com outros

enunciados. Dessa forma, a ambição da filosofia de servir como fundamentação

das ciências só pode ser resolvida após o devido esclarecimento das expressões

lingüísticas, isto é, dos conceitos que utilizamos em nosso discurso, seja ele

científico ou não. Essa tarefa será assumida pela corrente analítica da filosofia da

linguagem e, de modo distinto, pela fenomenologia husserliana, como apresento a

seguir.

2.1

Frege e o descolamento entre sentido e referência

Frege pode ser apontado como o primeiro filósofo e lógico a oferecer uma

contribuição à filosofia da linguagem de modo geral, antes mesmo da distinção

39 Habermas, Verdade e Justificação, op. cit. pág. 9.

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entre analítica (linguagem ideal) e pragmática (linguagem ordinária). O grande

salto da filosofia da linguagem e que pode ser atribuído a Frege consiste

exatamente na compreensão de que sentido (Sinn) e referência (Bedeutung) são

independentes, ou seja, uma expressão pode ter sentido e não ter referência, como

por exemplo: “o corpo celeste mais distante da Terra”. Ademais, uma mesma

referência pode ser utilizada de diversos modos. Em outros termos, pode-se dizer

que a referência é o objeto designado, enquanto o sentido é o modo de designar o

objeto.

Ao deduzir logicamente que o sentido de uma proposição é independente

do seu referente, Frege é obrigado a concluir que a relação de significação não

pode ser analisada como um processo que tem lugar na consciência subjetiva,

visto que o sentido de uma sentença precisa ser objetivamente determinado.

Segundo ele, é preciso distinguir “idéia” de “pensamento” (Gedanke), uma vez

que “o pensamento não pertence nem ao meu mundo interior, como uma idéia,

nem tampouco ao mundo exterior, ao mundo das coisas sensorialmente

perceptíveis”40.

O pensamento (Gedanke) não é, portanto, algo subjetivo, que se processa

no interior da mente do sujeito cognoscente, mas sim, algo objetivo, a referência e

sua relação com a realidade, que se apresenta sob a forma de enunciados

lingüísticos. Apenas o pensamento pode ser verdadeiro ou falso, visto que apenas

ele pode ter valor de objetividade. Assim, a filosofia caracteriza-se pela

investigação lógica do pensamento (Gedanke), isto é, do “sentido de uma

sentença”. Para Frege, “Ao pensar não produzimos pensamentos, mas os

apreendemos”41. Isto porque “o pensamento veste-se com a roupagem perceptível

da sentença, tornando-se assim mais facilmente apreensível.”. Daí que sua análise

restringe-se às “sentenças mediante as quais comunicamos ou declaramos algo”42.

Independentemente das críticas que foram formuladas à concepção

fregeana de Verdade e ao seu projeto logicista, o que quero destacar aqui é a

contribuição original de Frege para a virada da filosofia contemporânea em

direção ao estudo da linguagem. Ao proclamar a necessidade de se distinguir o

40 “Nem tudo o que pode ser objeto de meu conhecimento é uma idéia. Eu próprio, como portador de idéias, não sou uma idéia”. Frege, Investigações lógicas, Cadernos de Tradução n.7, DF/USP, 2001 pág. 31. 41 Frege, idem, pág 32. 42 Frege, Investigações lógicas e outros ensaios, Cadernos de Tradução n.7, DF/USP, 2001, pág.13 e 14.

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37

sentido da referência na constituição do significado lingüístico Frege dá o ponta

pé inicial para a “virada lingüística”, uma vez que, segundo ele, o filósofo deve

concentrar sua atenção sobre o pensamento (Gedanke), enquanto o “conteúdo

objetivo de uma proposição” e não como um processo mental, subjetivo e

psicológico.

Segundo Danilo Marcondes, “Frege rompe com a lógica tradicional que

via a proposição ou juízo como resultado da cópula (união) entre conceitos com

sentidos previamente determinados, que constituíam o sujeito e o predicado”. E

acrescenta: “a distinção entre sentido e referência constitui a contribuição mais

fundamental de Frege ao desenvolvimento da filosofia da linguagem, sendo o

tratamento dado por ele a essa questão uma das causas da centralidade que a

linguagem veio a ter na tradição analítica”43.

Entretanto, Frege parou a meio caminho entre a filosofia da consciência e

a filosofia da linguagem porque ainda manteve a noção da linguagem como

expressão (das representações, sentimentos e conhecimentos) tal como a tradição

estóica e medieval. Apesar da superação do psicologismo, Frege não questiona a

noção de “consciência” como “presença a si”, não problematiza a ambigüidade da

linguagem que produz algo como o “eu” e, desse modo, continua preso na ilusão

da presença e do “querer-dizer”, como algo uno e idêntico a si. Voltarei a essa

questão adiante.

Assim, mesmo tendo rompido com a noção de verdade como

correspondência, ao afirmar que apenas as sentenças podem ter valor de verdade,

Frege excluiu de sua análise as sentenças classificadas como “não sérias”, como

as da poesia e da ficção. Diz Frege: “a ciência exata está voltada para a verdade e

apenas para a verdade. Portanto, os componentes da sentença às quais não se

aplica a força assertiva não pertencem à exposição científica, mas muitas vezes

estes componentes são difíceis de serem evitados”44 (grifo meu).

Apesar de seguir na trilha do projeto logicista da filosofia, as investigações

de Frege também inauguraram o espaço para o desenvolvimento da filosofia da

43 Marcondes, “Duas concepções de análise na Filosofia Analítica”, op. cit., pág. 36, 37. 44 Ao restringir a filosofia a análise de proposições assertivas, Frege faz um comentário interessante: “Quanto mais rigorosamente científica for uma exposição, menos discernível será a nacionalidade de seu autor, e mais fácil será traduzi-la”. Assim, a verdadeira filosofia – a lógica – não tem nação. Frege, Investigações lógicas, op. cit. pág. 16 e 17. Sobre a noção de Gedanke, ver: Frege, Gottlob. Investigações lógicas e outros ensaios, op. cit.; Écrits logiques et philosophiques, Éditions du Seuil, traduction et introduction de Claude Imbert, 1971.

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linguagem, ao mudar o foco da investigação dos processos mentais para as

sentenças lingüísticas. Agora, a racionalidade deve ser buscada nos enunciados e

não nas intuições ou percepções dos sujeitos cognoscentes. Esse passo certamente

fez estremecer a noção de consciência subjetiva e representou um momento

importante para a futura virada lingüística-pragmática que apenas se concretizará

com um dos seus discípulos mais potentes e infiéis, como veremos adiante.

2.2

Espectro Husserl e a fenomenologia:

No entanto, apesar da enorma influência de Frege, é Husserl45 e a

fenomenologia que despontam como a herança mais explícita do pensamento de

Derrida. Assim como Frege, Husserl também desloca suas análises para a

linguagem, ou melhor, nos termos fenomenológicos, para a idealidade da pura

expressão. O descolamento entre sentido e referente que torna a linguagem o tema

mais candente da filosofia do século XX também aparece no que Husserl chama

de “crise do sentido”, ou seja, a constatação de que o signo funciona, mesmo na

ausência da intenção, do querer-dizer, do “meaning” do falante, mesmo na

ausência de valor objetivo da proposição (por exemplo, “o círculo é quadrado”) e,

surpreendentemente, o signo “significa”, opera, produz efeito, mesmo na ausência

de gramaticalidade, isto é, de mínima concordância com a estrutura lógica da

linguagem (“o verde é ou” e “abracadrabra” são exemplos daquilo que Husserl

chama de “sinnlosigkeit” ou “agramaticalidade”), possibilidade que Frege nem

considera como pensamento (Gedanke).

No primeiro capítulo de Recherches logiques (Ausdruck und Bedeutung)

Husserl estabelece as ‘distinções essenciais’ que comandam rigorosamente todas

as análises ulteriores. Para Derrida, a primeira distinção feita por Husserl inspira,

ainda que de forma germinal, toda a filosofia husserliana. Segundo Husserl, a

palavra ‘signo’ (Zeichen) engloba dois conceitos heterogêneos: o de ‘expressão’

(Ausdruck) e o de ‘índice’ (Anzeichen)”46. Tal oposição coloca, de um lado, a

noção de índice, uma realidade empírica, existente no mundo e que não exprime

45 Derrida desenvolve uma crítica à filosofia husserliana em A Voz e o Fenômeno. Tr. Lucy Magalhães, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1994. A edição utilizada será a brasileira (ed. Br.) em confronto com o original (ed. Fr.) La voix et le phénomène. Puf, Paris, 1967. 46 Derrida, A voz e o fenômeno, ed. Br. pág. 25.

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39

nada, visto que não transporta nenhum Bedeutung; de outro lado, a noção de

expressão, uma idealidade, um signo puramente linguístico, que concerne tão-

somente à voz e ao espírito e que quer dizer algo, ou seja, que contém um

conteúdo discursivo47.

Entretanto, esta distinção trará sérias dificuldades à Husserl, visto que um

único e mesmo fenômeno pode ser apreendido como expressão ou como índice,

como signo discursivo ou não-discursivo, dependendo do vivido intencional que o

anima. Nesse sentido, esclarece Husserl: “os signos no sentido de índice não

exprimem nada, a menos que cumpram, além da função de indicar, uma função de

Bedeutung”. E mais adiante, reconhece a relação intrínseca, o emaranhamento

(Verflechtung) entre ambos: “O querer-dizer (bedeuten) – no discurso

comunicativo – está sempre entrelaçado (verflochten) em uma relação com esse

ser-índice...”48.

Entretanto, apesar de assinalar essa contaminação entre a expressão e o

índice, o projeto husserliano quer retomar a possibilidade de uma pureza

expressiva e lógica da Bedeutung, para além da função comunicativa, uma vez

que a comunicação já é uma camada extrínseca da expressão. Husserl pretende,

portanto, estabelecer uma rigorosa distinção de essência entre índice e expressão.

Tal distinção abre o espaço mesmo da fenomenologia, no sentido de seu

distanciamento do mundo, como se ela pudesse preexistir à questão da linguagem,

ou melhor, como se não fosse a própria linguagem que permitisse tal distinção.

Nesse sentido, para realizar tal distanciamento, é preciso encontrar uma situação

fenomenológica na qual a expressão não esteja entrelaçada com o índice. Uma vez

que toda comunicação implica o ser-índice da expressão, então apenas numa

linguagem não comunicativa que se poderá encontrar a pureza da expressão. Essa

linguagem sem comunicação é o monólogo ou a voz da “vida solitária da alma”.

Assim, o projeto fenomenológico mostra sua essência, segundo Derrida:

“o idealismo transcendental fenomenológico responde à necessidade de descrever a objetividade do objeto (Gegenstand) e a presença do presente (Gegenwart) – e a

47 Nesse sentido, ao contrário de Frege, nas Recherches logiques, Husserl não faz nenhuma distinção entre Sinn e Bedeutung. Já em Idées I, Husserl reserva a palavra Bedeutung para se referir ao conteúdo ideal da expressão verbal, ao passo que Sinn cobre todos os vividos intencionais até em sua camada não-expressiva. Apud Derrida, A Voz e o fenômeno, ed. Br.. pág. 26. 48 Derrida, A voz e o fenômeno, ed. Br. pág. 28.

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40

objetividade na presença – a partir de uma “interioridade”, ou antes, de uma proximidade a si, de um próprio que não é um simples dentro, mas a íntima possibilidade da relação com um lá e com um fora, em geral. É por isso que a essência da consciência intencional só se revelará na redução da totalidade do mundo existente em geral”49.

Assim, na primeira das Recherches logiques, já podemos identificar,

seguindo Derrida, as raízes que o discurso posterior de Husserl não mais abalará.

O valor de presença (seja como proximidade do que é exposto como objeto na

intuição, seja a proximidade do presente temporal que conforma a intuição clara e

atual do obejto) modifica-se a si mesmo mas não se perde jamais. E sempre que

esse valor de presença for ameaçado, Husserl o despertará sob a forma do telos,

isto é, da Idéia kantiana. Isto porque, como lembra Derrida, não pode haver uma

idealidade sem que uma Idéia no sentido kantiano não esteja em ação.

Essa idealidade é a própria forma na qual a presença de um objeto pode,

indefinidamente, ser repetida como a mesma. A não-realidade do objeto ideal, a

não-realidade do sentido (o noema que, segundo Husserl, não pertence à

consciência) darão pois a segurança de que a presença na consciência poderá ser

repetida indefinidamente. Presença ideal em uma consciência ideal ou

transcendental. Em outros termos, um significante deve permanecer o mesmo e

poder ser repetido como tal, apesar e através das deformações que as ocorrências

empíricas lhe aportam. Um fonema ou grafema só funciona como signo se uma

identidade formal permitir sua reedição e seu reconhecimento. Essa identidade é,

segundo Derrida, necessariamente ideal50. No entanto, ela implica uma

representação, mesmo que na forma de uma Vorstellung, ou seja, uma

representação pura e direta, pretensamente não afetada pela ficção. E conclui

Derrida: “a idealidade é a salvação ou o domínio da presença na repetição”51.

Seguindo seu projeto fenomenológico, Husserl analisa nas Recherches

Logiques, a possibilidade da ausência do referente no processo de significação,

situação que pode ocorrer em duas hipóteses. Primeira hipótese: um enunciado

pode ser proferido e entendido, mesmo se o objeto (referente) não esteja

disponível ao falante e ao ouvinte. Por exemplo, o enunciado “o céu é azul” é

49 Derrida, A voz e o fenômeno . Ed. Br. pág. 30-31. 50 Derrida, A Voz e o Fenômeno. Ed. Br. pág. 59. 51 Derrida, A voz e o fenômeno. Ed. Br. pág. 15-16.

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inteligível e comunicável mesmo se o interlocutor não vê o céu, mesmo se o autor

da frase não o vê e mesmo se está chovendo no momento da comunicação. Assim,

pertence à estrutura do enunciado poder funcionar separado de seu referente. Essa

possibilidade é o que Derrida chama de iterabilidade geral, generalizável e

generalizadora de qualquer marca, sem a qual não haveria enunciado.

A segunda hipótese ou possibilidade analisada por Husserl diz respeito à

ausência de significado. No entanto, esta possibilidade é considerada perigosa e

inferior, visto que ocasiona a “crise do sentido”, seja pela ausência de intenção de

significação, seja pela ausência de significação objetiva ou, ainda pior, a ausência

de sentido. Um signo “funciona” mesmo quando nada quer dizer, mesmo quando

se trata de um non-sense desprovido de referente, de significado e também de

sentido. Este é o caso dos enunciados “o verde é ou” e “abracadabra”, citados por

Husserl. Uma vez que a fenomenologia husserliana busca dissociar rigorosamente

a análise da expressão (Ausdruck) como signo significante, ou seja, que quer dizer

alguma coisa (bedeutsame Zeichen), de qualquer fenômeno de comunicação, a

possibilidade de um signo “sem sentido” aparece como uma dificuldade decisiva

em seu projeto. Tais expressões agramaticais, desprovidas de lógica

(sinnlosigkeit) devem ser banidas do discurso filosófico rigoroso52, uma vez que o

que interessa a Husserl é o sistema de regras de uma gramática universal, sob o

ponto de vista lógico e epistemológico, formando assim, aquilo que denominou

uma “gramática pura lógica”53.

Desse modo, as expressões consideradas problemáticas por Husserl e que

perturbam seu projeto logicista são as expressões “sem sentido”. Por outro lado,

estes são os casos que mais interessam à desconstrução, visto que libertados do

regime lógico tradicional. Para Derrida, nenhum signo é inútil, mesmo que não

funcione como índice e mesmo que não obedeça à lógica gramatical. Mesmo a

expressão “o verde é ou”, para além das diversas possibilidades de tradução que

poderiam lhe prover alguma gramaticalidade, significa alguma coisa, a saber,

significa um exemplo de agramaticalidade54. E essa possibilidade acaba por

52 Como escreve John D. Caputo, as expressões agramaticais são inúteis, desprovidas de propósito, improdutivas e não aportam nenhuma contribuição para seu projeto. “The Economy of Signs in Husserl and Derrida: from uselessness to full employment” in Sallis, John (ed.) Deconstruction and Philosophy. The University of Chicago Press, 1987. 53 Husserl, Recherches Logiques, T.2, Part. 2, cap. IV, trad. Francesa Elie, Kelkel, Scherer, pág. 136 apud Derrida, “Assinatura Evento Contexto”, in Margens da Filosofia. op. cit. pá. 361, nota 4. 54 Derrida, A voz e o fenômeno. Ed. Br. pág. 362.

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revelar a estrutura mais profunda da linguagem e do processo de significação, para

além da fenomenologia e do pressuposto comunicacional da linguística. E é sobre

essa possibilidade que insiste Derrida:

“possibilidade de isolamento e de enxerto citacional que é apanágio da estrutura de qualquer marca, falada ou escrita, e que constitui qualquer marca como escrita, antes mesmo e fora de qualquer horizonte de comunicação semio-linguística; como escrita, quer dizer, como possibilidade de funcionamento separado, em certa medida, de seu querer-dizer “original” e da sua pertença a um contexto saturável e constrangedor. Qualquer signo, falado ou escrito, pode ser colocado entre aspas”55.

Contudo, Husserl admite que nem todas as expressões estão destinadas a

comunicar. Ou, na linguagem fenomenológica, nem todos os signos operam como

índices. Com efeito, a voz interior a que Husserl se refere é algo ideal, que não

existe efetivamente e expressa algo também não existente, a idealidade da

expressão. Deste modo, o discurso expressivo não tem necessidade, enquanto tal

em sua essência, de ser efetivamente proferido no mundo. A expressão como

signo querendo-dizer é, pois, uma dupla saída: saída fora de si do sentido (Sinn) e

em si, na consciência, no com-sigo ou junto a si, que Husserl começa por

determinar como ‘vida solitária da alma’56. Mais tarde, indica Derrida, depois da

descoberta da redução transcendental, ele a descreverá como “esfera noético-

noemática da consciência”57.

Os monólogos ou solilóquios são expressões da vida interior que não se

destinam à comunicação, mas possuem, segundo Husserl, intenção de significação

(bedeutungen)58. O falar a si mesmo relaciona-se com o si mesmo numa

proximidade absoluta. A linguagem e a representação viriam juntar-se a essa

consciência simples e presente a si, uma consciência que é a presença a si do

viver, do Erleben, da experiência, do vivido que, no “discurso interior da alma”

pode refletir em silêncio a sua própria presença. Escreve Husserl: “cada vivido em

geral (cada vivido efetivamente vivo) é um vivido no modo do ‘ente presente’.

Pertence à sua esência a possibilidade da reflexão sobre aquilo mesmo em que ele

é necessariamente caracterizado como estando certo e presente”59.

55 Derrida, ed. Br. pág. 362. 56 Derrida, A voz e o fenômeno, ed. Br. pág. 40 57 Derrida, A voz e o fenômeno, ed. Br. pág. 40 58 Husserl, Recherches logiques, 1, cap. I, par. 8 apud Derrida, ed. Br. pág. 361 59 Husserl, Idées I, par. 111 apud Derrida, A voz e o fenômeno, ed. Br. pág. 68.

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Assim, apesar do caráter excepcional do solilóquio, ou seja, mesmo sendo

inútil ou supérfluo (zweckos, dirá Husserl) indicar algo para si mesmo, visto que

que o vivido é imediatamente presente a si no modo da certeza e da necessidade

absoluta, o monólogo interior conserva a lógica gramatical que garante o sentido

da expressão e, sobretudo, o “querer-dizer” do seu autor. Esclarece Derrida:

“Na expressão, a intenção é absolutamente expressa porque ela anima uma voz que pode permanecer apenas interior, e porque o expresso é uma Bedeutung, isto é, uma idealidade que não ‘existe’ no mundo. (...) Confirma-se, de outro ponto de vista, que não há expressão sem intenção voluntária. De fato, se a expressão é sempre habitada, animada por um bedeuten como querer-dizer, é que para Husserl, a Deutung, digamos, a interpretação, o entendimento, a inteligência da Bedeutung nunca pode ocorrer fora do discurso oral (Rede)”60.

Somente um discurso intencional pode se oferecer à interpretação. E este

entendimento nunca é essencialmente leitura, mas escuta. A Bedeutung é

reservada ao que fala e que fala enquanto diz o que quer dizer, ou seja, de forma

expressa, explícita e consciente. Segundo Derrida, é esse privilégio do discurso

oral que mantém Husserl preso ao fonocentrismo e, consequentemente, ao

logocentrismo que determinam toda a metafísica ocidental. Como desenvolvo

com maior vagar na parte 2, para Derrida, a metafísica é fonocêntrica,

logocêntrica e etnocêntrica, pois tem como base a escrita fonética, ou seja, a

redução da escrita à idealidade do sentido (ou significado). Isto configura um

processo de apagamento do signo (no intuito de que o significado se manifeste)

que traz consigo as marcas de um logocentrismo (logos como presença,

fundamento, querer-dizer), de um fonocentrismo (primado da voz como expressão

imediata de um querer-dizer) e de um etnocentrismo (toda metafísica é

etnocêntrica, já que se apóia no reconhecimento exclusivo das linguagens

fonéticas).

Com isso, pode-se perceber o rebaixamento da escrita em relação à

linguagem falada (que estaria, metafisicamente, mais próxima da origem, do

sentido, da presença)61. Tal rebaixamento deve-se à pretensa presença da coisa

mesma que coloca o logos (o sentido da coisa que afeta a alma) e a fala juntos,

sendo eles a idealidade mesma do sentido. A escrita, por sua vez, continua presa

60 Derrida, A voz e o fenômeno, ed. Br. pág. 41-42. 61 Desenvolvo tal crítica derridiana no capítulo 2, especialmente na seção “A oposição entre fala e escrita”.

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ao esquema platônico, ou seja, diz respeito à dimensão do sensível, da aparência,

da exterioridade decaída do sentido.

E, mais ainda, para a fenomenologia, a essência do entendimento encontra-

se no solilóquio, na voz interna da consciência, visto que o que está em jogo na

referencialidade entre Deutung e Bedeutung é a relação da consciência consigo

mesma. Além disso, ainda que o sentido (representado pela consciência) queira

representar-se como um querer-dizer, a pura intenção espiritual (ou pura

animação) pelo Geist (ou vontade) só se dá em referência à totalidade visível e

espacial (seja ela representada pelos gestos, pelo corpo do signo, pela fisionomia

etc.). Deste modo, em Husserl, o que ainda se encontra em jogo é a antiga

oposição metafísica entre corpo e alma 62, sendo que, devido à sofisticação de seu

sistema, torna-se impossível pensar este dentro da consciência senão em relação,

ou como diria mais radicalmente Derrida, pressuposto por este fora.

Assim, um diálogo interior é algo puramente imaginário e não constitui

uma comunicação genuína e efetiva, visto que a característica indicial da

linguagem resta sem utilidade. Os signos são inúteis na vida solitária da alma

porque não existe a necessidade de se indicar atos mentais para si mesmo, uma

vez que “os atos em questão são experienciados por nós no mesmo momento (Im

selben Augenblick)”63. E esta é a redução fenomenológica em sua essência:

estreitar a originalidade da expressão como “querer-dizer” e como relação com o

objeto ideal e afastar a indicação como fenômeno extrínseco e empírico, ainda que

ambos encontrem-se intrinsecamente ligados.

Derrida rejeita ambas as possbilidades descritas por Husserl. Primeiro,

questiona a possibilidade de se determinar uma comunicação como “real” ou

“genuína”, uma vez que toda representação, inclusive aquela feita para si mesmo,

comporta uma mediação que, desde sempre, interdita a presença imediata de uma

consciência a si mesma.

Segundo, os signos não são inúteis em si mesmos. É o projeto

fenomenológico que determina seu papel secundário e marginal. Portanto, é a

redução fenomenológica – operação fundamental da crítica filosófica, segundo

62 “Isso explica porque tudo o que escapa à pura intenção espiritual, à pura animação pelo Geist – que é vontade –, tudo isso é excluído do bedeuten e, conseqüentemente, da expressão: por exemplo, o jogo de fisionomia, o gesto, a totalidade do corpo e a inscrição mundana, em resumo, a totalidade do visível e do espacial como tais”. Derrida, A voz e o fenômeno, ed. Br. pág. 43. 63 “The acts in question are themselves experienced by us at that very moment”, Husserl, Recherches logiques, par. 8 apud Caputo, op cit. pág. 101.

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Husserl – que expulsa os signos indiciais e “sem-sentido” para fora de seu

domínio. O ideal de toda fenomenologia é a descrição, isto é, um acesso

“desinteressado” às “coisas mesmas”. Com isso, empreender-se-ia uma suspensão

da atitude natural, a fim de abraçar um ideal de um “querer nada pressupor” 64.

Segundo Husserl, a voz do interior da alma é pura e direta, visto que nada

separa o ego de si mesmo, nem mesmo um piscar de olhos. Essa imediatidade da

comunicação interior é a não-alteridade, a não diferença na identidade da presença

como presença a si. Assim, tal conceito de presença comporta não apenas o

aparecer de um ente na proximidade absoluta de si mesmo, mas também a

essência temporal dessa proximidade. A presença a si do vivido deve se produzir

no presente como agora. Por isso, os atos psíquicos são “vividos por nós no

mesmo instante (im selben Augenblink). E conclui Derrida: “o presente da

presença a si seria tão indivisível quanto um piscar de olhos”65. Desse modo, a

percepção ou intuição de si por si na presença não é apenas a instância na qual a

“significação” pode ocorrer, mas sobretudo, ela assegura a possibilidade de uma

intuição originária em geral, isto é, “a não significação como ‘princípio dos

princípios’. E, assinala Derrida, “cada vez que Husserl quiser marcar o sentido da

intuição originária, lembrará que ela é a experiência da ausência e da inutilidade

do signo”66. Em Idées I, pode-se ler: “entre a percepção de um lado, e a

representação simbólica por imagem ou por signo, de outro, existe uma diferença

eidética intransponível”67.

No entanto, a estrutura das investigações husserlianas comporta um

conflito interno, ou mesmo uma autocontestação implícita, no que diz respeito ao

ideal de presença. Este ideal em Husserl, segundo Derrida, seria contaminado por

uma “ausência constitutiva”. Tal alteridade fundadora é tratada cuidadosamente

por Derrida no terceiro capítulo de A Voz e o Fenômeno, intitulado “O querer-

dizer como solilóquio”. Sua tese central é a de que o fora não expresso por

Husserl em sua fenomenologia da presença, mas pressuposto em sua concepção

64 Derrida questiona este acesso “desinteressado” às coisas mesmas, e aponta a ‘vida’ ou “o ‘viver’ como o nome daquilo que precede à redução e escapa a todas as partilhas que esta faz aparecer” (p. 21). Com isso, Derrida mostra que a fenomenologia quer dar conta dogmaticamente de uma “presença”, mas que a vida mesma está precedida e constituída por uma alteridade: “La chose même se dérobe toujours...”in Derrida, A voz e o fenômeno, ed. Br.pág. 117. 65 Derrida, A Voz e o Fenômeno, ed. Br. pág. 69. 66 Derrida, ed. Br., pág. 70. 67 Husserl, Idées I apud Derrida, idem, pág. 70.

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de expressão, indicaria a alteridade da consciência nela mesma 68. Em outros

termos, o que Derrida nos revela é a tensão entre ausência e presença no cerne da

própria idealidade.

Senão vejamos o que escreve o próprio Husserl: nas Meditações

cartesianas, mais especificamente na quinta meditação, Husserl fala sobre a não

presença do outro, que nunca estaria presente, a quem o “eu” nunca terá acesso

senão por analogia. Quando eu escuto o outro, o seu vivido não está presente para

mim, originariamente, em pessoa. Para Husserl, é possível ter uma intuição

originária ou uma percepção imediata do seu corpo, gestos e fala, isto é, daquilo

que ele expõe ao mundo. Mas a sua consciência, os atos pelos quais o outro dá

sentido aos seus signos, não me estão imediata e originariamente presentes. O

vivido do outro apenas se manifesta para mim através da mediação simbólica, isto

é, através de signos que comportam uma face física e não através de nossa

intuição originária e imediata. Existe aí, portanto, um limite irredutível e

definitivo. A relação com o outro como não-presença é a impureza da expressão e,

para conquistar a pura expressividade é preciso suspender a relação com outrem.

Já em A idéia de fenomenologia, ao analisar a lembrança primária ou

retenção, Husserl assinala que ela está sempre entrelaçada com a percepção. O

vivido originário torna-se objeto de reflexão imediata, um objeto que perdura

como o mesmo, uma vez que vivido no verdadeiro agora que continuará o mesmo

agora, mas recuando ao passado e se constituindo por ele. Escreve Husserl:

“on pourrait porter l´attention sur ce qu´on appelle le souvenir primaire, la rétention, qui est nécessairement entrelacée avec toute perception. Le vécu que nous vivons maintenant devient pour nous objet dans la réflexion immédiate, et en lui se figure continuellement un même objet: le même son, ayant existé à l´instant encore en tant qu´un vrai maintenant, continuellement le même, mais reculant dans le passé et constituant par là le même point temporel objectif”69. (grifo meu)

Portanto, a descrição da constituição do objeto encontra-se determinada

por uma temporalidade que remete a um passado de tipo especial, a saber, um

68 “A ex-pressão é exteriorização. Ela imprime em um certo exterior um sentido que se encontra inicialmente em um certo dentro. (...) O fora não é nem a natureza, nem o mundo, nem uma exterioridade real em relação à consciência. Este é o momento de precisar. O bedeuten visa um fora que é o de um ob-jeto ideal. Esse fora é então ex-presso, passa fora de si em um outro fora que está sempre ‘na’ consciência. (...)”. Derrida, A voz e o fenômeno. Ed. Br. pág. 40. 69 Husserl, L´idée de la phénoménologie. Cinquième leçon, Pág.91. Puf, 8 ed. 3 tir. Paris, 2006

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‘verdadeiro agora vivido’ que projeta-se no futuro como o mesmo. Lê-se,

portanto, no próprio texto husserliano, que não há somente o presente da presença.

A redução fenomenológica exige uma suspensão do tempo cronológico, mas não

consegue suspender a temporalização constitutiva da apreensão do objeto ou

fenômeno puro.

Já em Leçons, Husserl confirma que a presentificação (percepção

presentativa), “onde a coisa percebida parece se dar imediatamente”70, necessita

da função representativa, de um Verstellung em geral71. Do mesmo modo que a

imaginação é dependente da impressão originária, a lembrança secundária é

irredutível à retenção. A síntese retenção-protensão nos leva forçosamente a

concluir que o “agora” é continuamente composto pelo não-agora, a presença pela

não-presença.

Assim, levando em consideração a própria escrita husserliana sobre a

temporalidade da consciência, o agora não é jamais completo em si mesmo, puro e

simplesmente. Vê-se, portanto, que a presença do presente percebido só pode

aparecer como tal na medida em que ela se compõem continuamente como uma

não-presença e uma não-percepção. E tais não-percepções não acompanham

eventualmente o agora atualmente percebido; elas participam de modo essencial

da sua possibilidade. Husserl admite que a retenção é ainda uma percepção, mas

este é o único caso em que a percepção não é um presente, mas um passado como

modificação do presente. Assim, por retenção Husserl se refere à lembrança

primária, onde o passado se dá de modo presentativo. E, segundo ele, não há

descontinuidade radical entre a percepção original e a retenção. Escreve Husserl:

“...se damos o nome de percepção ao ato em que reside toda origem, ao ato que

constitui originariamente, então, a lembrança primária é percepção. Pois é

somente na lembrança primária que vemos o passado, é somente nele que se

constitui o passado, e não de modo re-presentativo, mas, ao contrário,

presentativo”72.

70 « dans la perception, la chose perçue semble être donnée immédiatement », Husserl, L´idée de la phénoménologie, op. cit. pág. 41. 71 Husserl distingue Vorstellung (Repräsentation) de re- presentação como repetição ou reprodução da presentação, como Vergegenwärtigung modificando a Präsentation ou Gegenwärtigung. Mas Derrida questiona tais distinções e aponta para o sentido geral de representação, contido em todos os tipos husserlianos, qual seja, a idéia de “ocupar o lugar de”. Derrida, La voix et le phénomène, ed. fr. pág. 54. 72 Husserl, Leçons, trad. Francesa, pág. 58 apud Derrida, idem, pág. 75.

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Husserl se esforça para distinguir retenção e reprodução, argumentando

que, fenomenologicamente, existe uma diferença entre aquilo que acabamos de

escutar (retenção) e aquilo que ouvimos há dias atrás (reprodução). No entanto,

Derrida aponta para a impossibilidade de se distinguir um passado “recém

passado” de um passado “mais passado”. Com efeito, retenção e reprodução são

variantes da representação e não podem ser distinguidos, exceto pelo lapso

temporal que o separam do momento “original” da impressão. Uma vez que a

retenção indica uma modificação representativa do agora, então o agora vivo e

genuíno é um produto ou um efeito da retenção e dependente, portanto, da

representação. Assim, a presença (o agora) é um efeito da representação e não o

contrário (representação como modificação da presença), como pressuposto pela

metafísica tradicional73.

Prossegue Husserl:

“no sentido ideal, a percepção (a impressão) seria então a fase da consciência que constitui o puro agora e, a lembrança, toda uma outra fase da continuidade (...) Ainda assim, mesmo esse agora ideal não é algo diferente do não-agora, mas, ao contrário, está em comércio contínuo com ele. E a isso corresponde a passagem contínua da percepção à lembrança primária”74.

Desse modo, um certo conceito de agora, do presente como possibilidade

do instante, autoriza todo sistema de distinções proposto por Husserl. No entanto,

como indica Heidegger, Husserl foi o primeiro a romper com um conceito de

tempo herdado da Física de Aristóteles, determinado a partir das noções de

“agora”, “ponto”, “limite” e “círculo”. Husserl reconhece que nenhum “agora”

pode ser isolado como instante e pontualidade pura. Escreve Husserl em Leçons:

“...pertence à essência dos vividos serem obrigados a estender-se de tal modo que

nunca pode haver fase pontual isolada”75. Portanto, conclui Derrida:

“se a pontualidade do instante é um mito, uma metáfora espacial ou mecânica, um conceito metafísico herdado, se o presente da presença a si não é simples, se ele se constitui em uma síntese originária e irredutível, então toda argumentação de Husserl fica ameaçada no seu princípio”76.

73 Caputo, op. cit. pág. 102. 74 Apud Derrida, A Voz e o Fenômeno, pág. 75. 75 Husserl, Leçons, pág. 65 ed. francesa apud Derrida, ed. Br. pág. 71. 76 Derrida, A Voz e o Fenômeno, op. cit. pág. 71.

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Mas, apesar reconhecer a impossibilidade de se isolar o “agora” do fluxo

temporal, ou seja, da extensão irredutível do vivido, Husserl ainda pensa e

descreve tal extensão a partir da identidade a si do agora como ponto, como

“ponto-fonte”. Assim, a idéia de uma presença originária, de um “começo

absoluto”, de um principium remete sempre a esse “ponto-fonte”. Diz Husserl: “a

apreensão-de-agora é como o núcleo face a uma cauda de cometa de retenções e,

cada vez, só há uma fase pontual que está agora presente, ao passo que as outras

se ligam a ela como cauda de retenção”77. Desse modo, escreve Derrida: “apesar

de toda complexidade de sua estrutura, a temporalidade tem um centro

inamovível, um olho ou um núcleo vivo, e é a pontualidade do agora atual (...) e é

essa identidade a si mesmo do agora atual que Husserl se refere no ‘im selben

Augenblick’”78.

E aqui revela-se o que Derrida chama de autocontestação implícita do

discurso husserliano: a partir do momento em que se admite a continuidade do

agora e do não-agora, da percepção e da não-percepção, na zona de originariedade

comum à impressão originária e à retenção, acolhe-se o outro na identidade a si do

Augenblick: a não presença e a inevidência no piscar de olhos do instante. E essa

alteridade não é algo que vem surpreender ou dissimular a presença da impressão

originária. Ao contrário, ela é produtiva, ou seja, é a não-presença que permite o

surgimento da impressão originária, mas, entretanto, destrói radicalmente toda

possibilidade de identidade a si na simplicidade. E conclui Derrida: “essa

intimidade da não-presença e da alteridade à presença corta na raiz o argumento

da inutilidade do signo na relação a si”79.

Desta forma, a fenomenologia husserliana mantém e refina o domínio do

agora que dá continuidade à metafísica grega da presença, passando pela

metafísica “moderna” da presença como consciência de si até a metafísica da idéia

como representação (Vorstellung). E é por isso que a fenomenologia não pode

admitir uma teoria da não-presença como inconsciente. Para Husserl, a

consciência íntima do tempo não comporta a “posterioridade” de um “conteúdo

inconsciente”, isto é, a estrutura temporal freudiana. Para ele, “é um verdadeiro

77 Husserl, Leçons, pág. 45-55, apud Derrida, ed. Br., op. cit. pág. 72. 78 Derrida, A Voz e o Fenômeno. Ed. Br. pág. 72. 79 Derrida, A Voz e o Fenômeno. Ed. Br.pág. 76.

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absurdo falar de um ‘conteúdo’ inconsciente que só se tornaria consciente na

posteridade. A consciência é necessariamente ser-consciente em cada uma de suas

fases. A retenção de um conteúdo inconsciente é impossível”80.

Segundo Derrida, a fenomenologia merece o crédito de ter efetuado uma

crítica ao psicologismo que dominava o cenário metafísico do final do século

XIX81. Entretanto, ainda permaneceu refém da teleologia da presença e da

completude. A identidade a si mesmo do agora atual que Husserl se refere no “im

selben Augenbrick” marca o privilégio do agora-presente que define o próprio

elemento do pensamento filosófico. Ele é a própria evidência, o próprio

pensamento consciente que comanda todo conceito possível da verdade e do

sentido82.

A fenomenologia assumiu uma atitude vigilante, mas não foi suficiente

para escapar ao desejo de presença. Com efeito, diz Derrida, “a forma

fenomenológica dessa vigilância já encontra-se comandada pela metafísca”83.

Husserl nunca levantou a questão do logos transcendental, da linguagem herdada,

na qual a fenomenologia produz e exibe os resultados de suas operações de

redução. A unidade entre a linguagem tradicional da metafísica e a linguagem

fenomenológica nunca foi rompida84. Assim, a fenomenologia transcendental

“com o maior refinamento crítico” alcança o ponto mais alto da metafísica da

presença, inseparável do logo-fono-etnocentrismo. Diz Derrida:

Deveríamos talvez concluir que (...) o conceito de intencionalidade permanece preso à tradição de uma metafísica voluntarista, isto é, talvez simplesmente preso à metafísica. A teleologia explícita que comanda toda a fenomenologia transcendental seria, no fundo, apenas um voluntarismo transcendental. O sentido quer significar-se, ele só se exprime em um querer-dizer que não é senão um querer-dizer-se da presença do sentido. 85 Desta maneira, a voz fenomenológica é a que fala e que, por isso, está

“presente a si” mesmo com a suspensão (isto é, ausência) do mundo. E Derrida 80 Husserl, Leçons, Suplemento IX, trad. Francesa, pág. 160-161 apud Derrida, idem, op. cit. pág. 74. 81 A psicologia fenomenológica deverá, com efeito, lembrar a toda psicologia atuante o seu capital de pressuposições eidéticas e as condições de sua própria linguagem. Cabe a ela fixar o sentido dos conceitos da psicologia e, antes de tudo, o sentido do que se chama psiché. No entanto, essa psicologia pura é dependente de uma consciência pura ou transcendental que, por sua vez, também não questiona sua herança metafísica. Derrida, idem, pág. 17. 82 Derrida, A Voz e o Fenômeno. Ed. Br. pág. 72. 83 Derrida, ed. Br. pág. 11. 84 Derrida, ed. Br. pág. 14. 85 Derrida, A voz e o fenômeno, pág. 42-43.

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aponta que, na fenomenologia (como metonímia do pensamento ocidental, como

diria Rafael Haddock-Lobo), o privilégio da presença como consciência não pode

estabelecer-se senão pela excelência da voz. Husserl radicaliza o privilégio da

phoné implicado por toda a história da metafísica, visto que a voz fenomenológica

não é a substância sonora ou a voz física, mas sim a voz em sua carne

transcendental, o sopro, a animação intencional que transforma o corpo da palavra

em ‘carne espiritual’. “A voz fenomenológica seria essa carne espiritual que

continua a falar e a estar presente a si – a ouvir-se – na ausência do mundo”86.

Ao excluir a indicação (e toda exterioridade) da “vida solitária da alma”,

Husserl também exclui a linguagem em geral da impressão originária presente e

atual. Assim, a linguagem aparecerá como uma ocorrência secundária e posterior

a uma camada pré-expressiva de sentido. A própria linguagem expressiva

sobrevém ao “silêncio absoluto da relação a si”87. Daí que Husserl é obrigado a

realizar uma dupla exclusão: a da alteridade na identidade a si e a da linguagem

expressiva ao sentido. A expressão pura (lógica) é para Husserl um medium que

reflete a camada de sentido pré-expressivo. Sua única tarefa consiste em fazer o

sentido passar para a idealidade da forma conceitual e universal. Como esse

sentido é determinado a partir de uma relação com o objeto, o medium da

expressão deve respeitar e restituir a presença do sentido “de imediato” e como

proximidade a si na interioridade. Esse medium é a voz fenomenológica, visto que

entre a idealização e a voz, existe uma cumplicidade indefectível. Um objeto ideal

é liberado de toda espacialidade mundana, ele é puro noema, que pode ser

expresso sem ter que passar pelo mundo. Escreve Derrida:

“Sendo a idealidade do objeto apenas o seu ser-para uma consciência não empírica, ela só pode ser expressa em um elemento cuja fenomenalidade não tenha a forma da mundanidade. A voz é o nome desse elemento. A voz se ouve. Os signos fônicos (as “imagens acústicas” no sentido de Saussure, a voz fenomenológica) são “ouvidos” pelo sujeito que as profere na proximidade absoluta de seu presente. O sujeito não tem que passar para fora de si para ser imediatamente afetado por sua atividade de expressão. Minhas palavras são “vivas”, porque parece que elas não me deixam: não caem fora de mim, para fora da minha respiração; não deixam de me pertencer, de estar à minha disposição”88.

86 Derrida, idem, pág. 23. 87 Derrida, idem, pág. 79. 88 Derrida, idem, pág. 86.

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52

A voz fenomenológica pode mostrar o objeto ideal ou a Bedeutung ideal

sem sair da idealidade e da interioridade da vida presente a si, visto que a

idealidade do objeto torna-se absolutamente disponível nela. O significante,

animado pela respiração e pela intenção de significação, está absolutamente

próximo daquele que fala e se escuta, como se a “alma” da linguagem não se

separasse de si mesma e não corresse o risco de perecer no corpo exterior de uma

marca entregue ao mundo. E tudo isso como se, ao falar a mim mesmo, eu não me

modificasse nem ficasse sabendo nada (que eu já não soubesse) sobre mim

mesmo.

Do ponto de vista fenomenológico – de suspensão da atitude natural e do

“mundo” – a operação do “ouvir-se falar” é uma auto-afecção89 de tipo único,

incomparável com a visão, o tato ou o olfato. O falar e o ouvir-se entregam-se

como puro fenômeno e permitem ao sujeito deixar-se afetar pelo significante que

ele produz “sem nenhum desvio pela instância da exterioridade” e sem renunciar à

universalidade. Já na experiência do olhar e do tocar, uma vez que meu corpo

deve se expor ao mundo, o não-próprio invade a auto-afecção e impede a pureza

do contato. Até podem existir outras auto-afecções independentes da exposição

mundana, mas elas permanecem como formas empíricas não traduzíveis em

significados universais.

A citação de um trecho de Émile feita por Derrida em Gramatologia é

reveladora nesse sentido. Escreve Rousseau:

“Temos um órgão que corresponde ao da audição, a saber, o da voz; não temos, porém, um que corresponda à visão, e não emitimos cores como emitimos sons. Este é mais um meio para cultivar o primeiro sentido, exercitando-se mutuamente o órgão ativo e o órgão passivo”90.

Além da pureza da auto-afecção, o falar e o ouvir-se estão em relação

única com a universalidade. Entre a interioridade da voz que se ouve (auto-

afecção pura) e a universalidade existe uma cumplicidade que torna a voz

fenomenológica própria à significação universal. E isto se dá basicamente por dois

89 Traduzo a expressão “auto-affection” usada por Derrida por “auto-afecção”, no lugar de “auto-afeição”, tal como proposto pela tradutora Lucy Magalhães - Jorge Zahar. Prefiro usar “auto-afecção” para evitar uma possível confusão com a idéia de um ‘sentimento por si próprio’ e também para marcar a idéia de afetação, de algo que toca internamente, que afeta o interior do sujeito, de “dentro” para “dentro”. Derrida, La Voix et le phénomène, ed. puf, 1967. 90 Rousseau, Émile. apud Derrida, Gramatologia, pág. 121.

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motivos: primeiro, porque a proximidade a si da voz interior realiza uma redução

absoluta do espaço. No monólogo interior, a voz (fenomenológica) não necessita

da intervenção de nenhuma superfície mundana e não encontra nenhum obstáculo

para sua emissão, uma vez que a sua aparição dá-se como pura auto-afecção. A

unidade entre sentido e som é imaginada pelo sujeito fenomenológico,

pertencendo ao âmbito da idealidade. É essa pureza que torna a voz

fenomenológica apta à universalidade.

Em segundo lugar, o poder fenomenológico da voz é o que torna possível a

subjetividade, o para-si, sem o qual não seria possível nenhum “mundo”. De

modo direto, escreve Derrida: “a voz é a consciência”91. De acordo com a lógica

da argumentação fenomenológica, tal como explicitada por Derrida, ao

possibilitar ao falante ouvir-se falar, a voz também permite ao outro que escuta

(nesse caso, o próprio falante), reproduzir imediatamente em si o falar do locutor

(si mesmo), exatamente da mesma forma em que foi produzido ou pronunciado.

Seguindo o pressuposto fenomenológico, essa possibilidade de reprodução,

imediata e atual, permitiria um enorme domínio sobre o significante, visto que ele

não seria uma marca exterior, mundana, passível de deriva e corrupção. Ao falar e

ouvir-se falar e, imediatamente, presenciar a reprodução do meu falar no outro

(que sou eu mesmo), o significante se tornaria perfeitamente diáfano em razão da

sua proximidade absoluta do significado. Nenhum intervalo ou espaço se

interporia entre significado e significante e poderíamos acessar o signo puro e

presente a si. No entanto, ainda seguindo a argumentação fenomenológica, essa

proximidade é rompida quando escrevo, faço gestos ou me comunico com outrem.

Mesmo podendo ser reproduzidos, a escrita e o gestual (a linguagem de sinais, por

exemplo), como também o meu discurso comunicativo, não são mais puros, estão

já contaminados pela exterioridade e pelo afastamento do sentido original (do

significado). Desse modo, Husserl reduz a linguagem à voz fenomenológica no

intuito de retomar à originariedade do sentido.

Mas, pergunta Derrida, como conciliar essa redução da linguagem à

lógica, se Husserl (assim como Frege, acrescento), afirma que só pode haver

verdade científica em “enunciados”? E mais, desde as Recherches até a Origine de

la Géométrie, Husserl sustenta que não apenas a linguagem falada, mas também a

91 Derrida, ed. Br., pág. 90.

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inscrição seriam indispensáveis à constituição de objetos ideais, isto é, objetos

passíveis de serem reproduzidos como os mesmos. Apesar dessa dificuldade

elementar não ser devidamente problematizada por Husserl, a fenomenologia

ainda considera apenas a escrita fonética como sendo capaz de reproduzir o

sentido de origem. Assim, além de considerar a linguagem em geral como um

suplemento, uma camada secundária que vem se sobrepor à experiência primária

– e é por isso que ela deve sofrer o processo de redução fenomenológica –, a

linguagem escrita encontra-se ainda mais afastada do sentido original. O

privilégio da phoné e sua íntima associação com o logos torna-se, assim,

refinadamente explícito em Husserl. A voz é a guardiã favorita do sentido. Ela

guarda a presença imediata e plena do significado. A escrita é, com efeito,

fundamental para garantir a transmissão do significado, mas ela comporta um

risco duplo: risco de esquecimento e de “perda” ou desvio do sentido. E, uma vez

que a escrita se prolifera devido ao progresso tecnológico, fica cada vez mais

difícil reconstituir a presença do ato de pensamento puro que criou a idealidade do

sentido.

Percebe-se, portanto, que Husserl não abandona nem questiona as

oposições tradicionais da linguagem metafísica, como a diferença entre corpo e

alma. A escrita é decaída porque exteriorizada em um corpo, lançada no espaço,

no fora do mundo. Já a voz anima o corpo, o faz passar do estado de sonoridade

inerte (Körper) para o estado de corpo animado (Leib). O ato originário de um

querer-dizer (bedeuten) transforma a palavra em “carne espiritual” (geistig

Leiblichkeit), assim como a alma anima o corpo. Seguindo a mesma metáfora,

pode-se dizer que a alma sobrevive ao corpo, ela é independente, originária e

presente a si, assim como o sentido, mas “necessita” se encarnar em corpos, ou

seja, em significantes. Derrida percebe nessa “necessidade” de encarnação, um

problema que atormentava Husserl e que contestava, a partir de dentro, a

segurança das distinções por ele utilizadas. Na origem do sentido e da presença,

antes de qualquer idealidade possível, uma diferença pura – a différance – já se

deu, já dividiu a presença a si e já impediu qualquer redução transcendental pura.

Uma vez que a auto-afecção (mesmo que seja o falar e o ouvir-se) é a

condição indispensável para a presença a si, tudo aquilo que Husserl pressupunha

poder excluir, o mundo, o fora, o corpo, invade e contamina o espaço da pureza

fenomenológica. A indiscernibilidade entre consciência e linguagem introduz a

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não-presença e a diferença no coração da presença a si. Esse movimento, que

nunca foi inscrito na língua, merece, segundo Derrida, um outro nome: différance.

Derrida reconhece que é preciso passar por uma certa redução, isto é,

tentar purificar a linguagem até seu ponto limite, para lá encontrar, mais próximo

de si mesmo, o movimento da différance. Um movimento que não tem identidade

nem origem; que é contaminado desde sempre e que produz. Produz o sujeito

transcendental e, portanto, produz o sentido original e a auto-afecção que não é

nem pura nem a mesma em si. Nas palavras de Derrida:

“esse movimento da différance não sobrevém a um sujeito transcendental. Ele o produz. A auto-afecção não é uma modalidade de experiência caracterizando um ente que já seria ele mesmo (autos). Ela produz o mesmo como relação a si na diferença consigo, o mesmo como o não-idêntico”92.

A différance também não é algo que sobrevenha ao “vivido pré-

expressivo” que se situaria ao nível do sentido. Mesmo esse nível originário é um

modo da temporalidade ou, como escreve Derrida: “o sentido, antes mesmo de ser

expresso, é inteiramente temporal”93. A auto-afecção pura pretende escapar ao

movimento da temporalização através do conceito de “agora” presente e atual,

mas toda linguagem fracassa ao descrever esse puro movimento, esse “processo

pelo qual o agora vivo retém-se em outro agora e afeta-se a si mesmo, fundando

uma nova atualidade original, um outro do mesmo”94. Esse estranho movimento,

para o qual “os nomes nos faltam”, como escreveu Husserl, não pode ser descrito

senão por metáforas. Mas o uso de metáforas não é aconselhável pela

fenomenologia, uma vez que quando fala-se por metáforas, diz-se dos efeitos do

movimento, daquilo que ele torna possível. Todos os conceitos da metafísica

apenas recobrem esse movimento, mas não podem dar conta dele.

Husserl aponta a essência temporal de todo vivido, mas reluta em assumir

as consequências dessa temporalidade absoluta. A metáfora ôntica que diz da

temporalidade originária nunca é questionada. O que Husserl não admite é que o

movimento da auto-afecção é um movimento de “diferença pura”, différance,

irredutível aos conceitos metafísicos, porque a estrutura da temporalidade sempre

já se deu, sempre já transformou o presente no presente-passado, um agora-

92 Derrida, A Voz e o Fenômeno, op. cit. pág. 93. 93 Derrida, ed. Br., pág. 94. 94 Derrida, A Voz e o Fenômeno, e. br. pág. 95-96.

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passado que só existe porque aberto à exterioridade do tempo. Diz Derrida: “o

presente vivo jorra a partir da sua não-identidade a si, e da possibilidade do rastro

(trace) retencional”95

A fenomenologia quer subordinar o signo à lógica e instituir a teoria do

conhecimento como a única ciência capaz de determinar a origem da linguagem,

mas tal tentativa pode ser contestada pelas próprias premissas da fenomenologia

96. Como a consciência de si só aparece em sua relação com um objeto cuja

presença ela pode guardar e repetir, ela nunca é completamente estranha ou

anterior à possibilidade da linguagem. A voz fenomenológica (a consciência) e a

linguagem estão de tal modo embaralhadas que torna-se vã a tentativa husserliana

de manter uma camada silenciosa ou pré-expressiva do vivido que escape à

linguagem ou que preceda à redução.

A própria idéia de uma “interioridade pura” ou do “ouvir-se falar” é

radicalmente contrariada pelo próprio “tempo”. A origem do sentido é de natureza

temporal, Husserl bem o afirmou97. Assim, o sentido não será nunca simplesmente

presente, ele já terá sempre saído de si na camada expressiva do vivido, ou seja,

na linguagem e suas metáforas perigosas. Esta saída para o mundo, esta queda na

linguagem, que é a condição de possibilidade de todo sentido, é uma abertura para

a exterioridade em geral, ou seja, para o não-próprio, para o outro, para o espaço.

Assim, Derrida cunha a expressão “espaçamento” para realçar esse movimento

ininterrupto da temporalização do sentido. Diz Derrida: “a temporalização do

sentido é, logo de saída, “espaçamento”98.

Uma vez admitido o mínimo intervalo ou espaçamento, a pureza já está

interditada e não se pode mais clamar por uma “interioridade pura” ou auto-

afecção pura”; o fora já se insinuou no movimento da temporalização. O espaço

95 Derrida, La voix et le phénomène, ed. fr. pág. 95. « Le présent vivant jaillit à partir de as non-identité à soi, et de la possibilité de la trace rétentionnelle ». Sobre o pensamento do rastro, ver a parte 2. 96 Ou, como coloca Derrida: “reencontramos aqui a necessidade que levou Husserl a estudar a linguagem de um ponto de vista lógico e epistemológico, a gramática pura como gramática pura lógca, comandada, mais ou menos imediatamente, pela possibilidade de uma relação com o objeto”. A Voz e o Fenômeno, e. br. pág. 81. 97 Em L´idée de la phénoménologie lemos : « nous nous mouvons dans le champ des phénomènes purs. Mais porquoi dis-je champ ; c´est plutôt un perpétuel flux héraclitéen de phénomènes ». ed. fr. pág.72. 98 Derrida, A voz e o fenômeno, ed. Br. pág. 96. Desenvolvo esta questão do devir-espaço do tempo e do devir-tempo do espaço (temporização e espaçamento) na Parte 2 desta tese. Tendo em vista as divergências de tradução, utilizo indiscriminadamente os termos temporalização e temporização, ambos remetendo à mesma noção de espaçamento e différance, tal como sugere Derrida.

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abre-se no tempo e impede o instante absoluto do piscar de olhos. O movimento

da temporalização implica também uma saída para o mundo, um espaçamento e,

portanto, o limite de qualquer redução fenomenológica. Escreve Derrida: “o

ouvir-se falar não é a interioridade de um dentro fechado em si, ele é a abertura

irredutível para o dentro, o olho e o mundo na palavra. A redução fenomenológica

é uma cena”99.

Assim, ao questionar o ideal de evidência pressuposto pela fenomenologia

husserliana, Derrida conclui: “Husserl parece aplicar à linguagem a distinção

fundamental entre a realidade e a representação”. Desse modo, para Husserl, no

monólogo ou solilóquio, teríamos acesso à linguagem interior como pura

representação (Vorstellung), sem necessidade de passar pelo índice, ou seja, pelos

significantes exteriores. No entanto, a crítica desconstrucionista nos lembra que a

representação nunca é um acidente, algo que vem acrescentar-se eventualmente ao

discurso. Ou, nas palavras de Derrida:

“há razões para crer que, na linguagem, a representação e a realidade não se acrescentam aqui ou ali pelo simples motivo de que é impossível, em princípio, distingui-las rigorosamente. E não há, sem dúvida, razão para dizer que isso se produz na linguagem. A linguagem, em geral, é isso. E somente a linguagem assim o é”100.

2.3

Movimento de temporização e différance:

Se há algo “mais velho” que qualquer idealização, esse algo é, na origem,

diferido. Esse “algo” é uma diferença pura fundada na temporalidade e o “fora” da

indicação (a linguagem) não é algo acidental que afeta o “sentido pré-expressivo”

ou que se acrescenta à expressão. Os conceitos do fora, os índices, a linguagem

em geral, estão entrelaçados com o sentido originário. Esse entrelaçamento

(Verflechtung), tão bem apontado por Husserl, é originário e representa um limite

absoluto à qualquer tentativa de análise ou redução. E para falar disso, ou seja,

99 “le s´entendre-parler n´est pas l´intériorité d´un dedans clos sur soi, il est l´ouverture irréductible dans le dedans, l´œil et le monde dans la parole. La réduction phénomènologique est une scène » in Derrida, La voix et le phénomène, ed. fr. pág. 96; ed. br. pág. 97. 100 “Or, il y a tout lieu de croire que dans le langage la représentation et la réalité ne s´ajoutent pas ici ou là pour la simple raison qu´il est impossible au principe de les distinguer rigoureusement. E l´on n´a sans doute pas à dire que cela se produit dans le langage. Le langage en général est cela. Lui seul » (minha tradução), pág 55, La Voix et le phénomène, Puf, Paris, 1967.

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dessa não-presença do sentido e, simultaneamente, da sua constante

“presentificação”, Derrida utiliza-se do termo “suplemento”.

Um “suplemento” é algo que vem suprir uma “falta originária”, isto é, a

não-presença a si que contamina a “presença” do sentido e instaura a sua crise. Se

o índice acrescenta-se à voz que, por sua vez, acrescenta-se ao objeto ideal, se a

voz deve se acrescentar à identidade pensada do objeto, é porque, diz Derrida: “a

“presença” do sentido e da palavra já tinha começado a faltar a si própria”101.

Entendendo o suplemento de modo originário, pode-se dizer, com Derrida, que a

suplementaridade é a différance. Em outros termos, “a operação do diferir que,

simultaneamente, fissura e retarda a presença, submetendo-a, ao mesmo tempo, à

divisão e ao atraso originários”102. Assim, a presença é desde sempre diferida, não

presente a si e também atrasada, deslocada, espaçada, lançada ao futuro,

postergada. A différance deve ser pensada “antes” do verbo diferir se diferir de si

próprio, mas Derrida sabe que um pensamento como tal é impossível a partir da

consciência – que é uma presença – e de qualquer noção de “sucessão temporal”,

por mais complexa que seja. É preciso tentar pensar isto: “a diferença suplementar

rebaixa (vicarie) a presença na sua falta originária a si mesma”103.

O movimento da suplementaridade ou da différance não é um atributo que

reserva-se à escrita, mas estende-se à linguagem em geral (falada ou escrita). E tal

noção de “suplementaridade originária” ou “suplemento de origem” designa, além

da não-plenitude da presença, uma função de suplência substitutiva em geral, a

estrutura do “em lugar de” que pertence a operação de significação em geral. De

modo direto, o “para-si da presença a si” aparece no movimento da différance sob

a forma do “em lugar de” (für etwas). O “para-si” é, antes, um “em-lugar-de-si”.

Todo signo é originariamente trabalhado pela ficção104, diz Derrida. Mesmo na

comunicação expressiva, mesmo na pura “representatividade” da vida solitária da

alma, não temos nenhum critério seguro para distinguir entre uma linguagem

efetiva ou fictícia, interior ou exterior. O índice contamina a linguagem como um

todo e, ao contrário do estatuto secundário que Husserl lhe reserva, o índice – ou

101 Derrida, ed. Br. pág 98. 102 « Ainsi entendue, la supplémentarité est bien la différance, l´operation du différer qui, à la fois, fissure et retarde la présence, la soumettant du même coup à la division et au délai originaires » in Derrida, La voix et le phénomène, ed. fr. pág. 98; ed. Br. pág. 99. 103 Derrida, “la différence supplémentaire vicarie la présence dans son manque originaire à elle-même » ed. fr. pág. 98, ed. br. pág 99. 104 Derrida, La voix et le phénomène, ed, fr. pág. 63.

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significante – é o melhor representante da complexa estrutura de

suplementaridade da linguagem em geral.

Usando os termos tradicionais da linguística, o significante (índice, para

Husserl) não apenas representa o significado ausente (a coisa), como também

substitui um outro significante, a saber, o signo expressivo que está mais próximo

da “presença” faltante. Assim, o índice conserva um duplo grau de

suplementaridade: ele supre o significado ausente e também a expressão que,

animada pelo querer-dizer, está colada ao sentido ideal. É por isso que o índice ou

significante diz mais sobre o jogo de remetimentos que constitui a linguagem do

que a expressão.

O movimento da idealização que conduz à expressão pura é animada pelo

jogo da différance. Por isso, quanto mais o “significado” for ideal, mais ele

aumenta sua potência de repetição da presença, mais ele conserva, reserva e

capitaliza o sentido, ou seja, mais ele dissemina sentidos e revela que, para além

da fronteira do discurso comunicativo, admitida por Husserl, a expressão funciona

como índice (significante) na linguagem em geral105.

Seguindo as premissas colocadas por Husserl, faz parte do “ser signo” do

signo “funcionar” mesmo quando nada quer dizer, mesmo quando se trata de um

non-sense desprovido de referente, de significado e também de sentido. Este é o

caso dos enunciados “o verde é ou” e “abracadabra”.

E é aqui que Derrida se espanta com as conclusões de Husserl, uma vez

que este estava na posse de tais premissas, qual sejam: a ausência de objeto não

implica a ausência do querer-dizer; uma expressão pode ter sentido inteligível

(Sinn) mesmo na ausência do objeto, seja por razões empíricas (“o planeta mais

distante da terra”), seja por razões apriorísticas (“círculo quadrado”); e mesmo as

expressões agramaticais (Sinnlos) como “o verde é ou” permenecem uma

categoria do sentido, a saber, a das expressões “sem-sentido”, apesar de deverem,

para Husserl, serem excluídas do discurso normal.

Com efeito, na posse de tais premissas, pergunta Derrida, como pôde

Husserl não concluir que “não só o querer-dizer não implica necessariamente a

intuição do objeto, mas que ele a exclui essencialmente”? Intenção e intuição

nunca formarão uma “unidade na origem do querer-dizer” porque a ausência da

105 Desenvolvo os predicados da escritura generalizáveis a toda linguagem – iterabilidade, citacionalidade, e deriva essencial – no capítulo 2.

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intuição é requerida por todo e qualquer discurso. Um discurso que não pressupõe

a ausência do objeto, do falante, do ouvinte e do querer-dizer, não pode ser

considerado um discurso. Essa possibilidade estrutura o sistema de significação

em geral. Mesmo um “enunciado de percepção” pressupõe a ausência da

percepção atual que descreve e, portanto, sempre atua como signo, ou seja, “em

lugar de”. Assim, segundo Derrida, tirando as conclusões que Husserl não tirou, a

partir das suas próprias premissas:

“(A ausência da intuição)...é radicalmente requerida: a ausência total do sujeito e do objeto de um enunciado – a morte do escritor e/ou o desaparecimento dos objetos que ele descreveu – não impedem um texto de “querer-dizer”. Pelo contrário, essa possibilidade faz nascer o querer-dizer como tal, dá-lo a ouvir e a ler”106.

Assim, aquilo que Husserl exclui como anormalidade (palavras estranhas

ao seu “querer-dizer” ou desprovidas de Bedeutung) constitui, ao contrário, a

“normalidade”, ou seja, a regra e a estrutura necessárias a todo enunciado. Por

exemplo, quando digo “eu” não estou necessariamente na presença atual do meu

querer-dizer, e é estrutural para o funcionamento do signo “eu” que ele possa se

descolar de seu autor. Se assim não fosse, não poderíamos ler autores mortos. Pelo

contrário, afirma Derrida, a possibilidade da morte é estrutural para o

pronunciamento do Eu. Ela é anterior à possibilidade de que eu esteja vivo e

presente ao meu “querer-dizer”. Escreve Derrida:

“a Bedeutung “eu estou vivo” ou ainda “meu presente vivo é” só é o que ela é, só tem identidade ideal própria a toda Bedeutung se ela não se deixar afetar pela falsidade, isto é, se eu puder estar morto no momento em que ela funcionar (...) O enunciado “eu estou vivo” é acompanhado pelo meu ser-morto e sua possibilidade requer a possibilidade de que eu esteja morto; e vice-versa. Isso não é uma das histórias extraordinárias de Poe, mas a história comum da linguagem”107. (grifo meu)

O “eu” funciona de modo paradigmático108 porque o anônimo do Eu

escreve a impropriedade como a situação normal da linguagem e não como uma

excepcionalidade ou mau funcionamento. É o próprio Husserl quem escreve sobre

106 Derrida, ed. br., pág. 104. 107 Derrida, ed.br., pág. 108. 108 Desenvolvo a complexa estrutura do “Eu” na parte final de “repostas a Searle”, quando este último serve-se de um enunciado em primeira pessoa para criticar Derrida.

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a complexidade desafiante do pronome Eu: “A palavra Eu nomeia, segundo os

casos, uma pessoa diferente, e ela o faz por meio de uma Bedeutung sempre

nova”. E adiante: “O que constitui cada vez a sua Bedeutung (a da palavra Eu) só

pode ser tirado do discurso vivo e dos dados intuitivos que fazem parte dele.

Quando lemos essa palavra sem saber quem a escreveu, temos uma palavra, se

não desprovida de Bedeutung, pelo menos estranha à sua Bedeutung normal”109.

Husserl tenta reservar a possibilidade da não-presença para o discurso

comunicativo e salvar o solilóquio dessa contradição do signo “eu”. Nesse

sentido, Husserl parece pensar que, para aquele que fala, essa Bedeutung, como

relação com o objeto (Eu, aqui, agora), é “realizada”. Assim, no discurso solitário,

a Bedeutung do Eu se realiza essencialmente na representação imediata de nossa

própria personalidade. Já no discurso, cada interlocutor tem a sua representação

do eu e é por isso que a Bedeutung dessa palavra difere de indivíduo para

indivíduo. Mas aparece aí uma contradição no discurso husserliano. Se o Eu é um

conceito individual cuja Bedeutung difere de um indivíduo para outro, como pode

a palavra Eu funcionar mesmo na ausência daquele que designa-se a si mesmo?

Com efeito, o Eu funciona como idealidade já no discurso solitário e já implica,

necessariamente, a possibilidade da ausência “daquele que se auto-designa”.

Desse modo, Derrida questiona a possibilidade de se determinar uma

comunicação como “real” ou “genuína” e de distingui-la da fala interior. Com

efeito, toda representação, inclusive aquela feita para si mesmo, comporta uma

mediação que, desde sempre, interdita a presença imediata de uma consciência a

si mesma. Mesmo a fala silenciosa da interioridade pura é contaminada. A

“camada pré-expressiva” do sentido, a “vivência” do sentido original são, desde

sempre, expostos à linguagem, ao fora, ao corpo do índice. O “mundo da vida” é

linguisticamente estruturado.

Por isso, a escritura (enquanto movimento da différance) não pode vir

acrescentar-se à fala viva. Ela já duplicou a fala desde a sua véspera, animando-a,

desde o seu despertar. O índice não degrada nem desvia a expressão, ele a dita.

Mas Husserl não poderia chegar a tais conclusões, apesar de apontá-las. Ele não

preencheu a sua “própria” intenção de significação e seu texto funcionou como

índice para Derrida e para todos os demais leitores infiéis. O que Husserl não

109 Husserl, Recherches logiques, apud Derrida, ed.br, pág. 107.

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poderia assumir é, segundo Derrida, “a emancipação do discurso como não-

saber”, ou seja, a constatação de que o telos do sentido não é necessariamente a

verdade, visto que “o círculo quadrado” também tem força de significação. Com

efeito, o discurso husserliano continuou refém da teleologia e “o círculo não é

quadrado” fala melhor. Expressões sem-sentido devem ser expulsas do domínio

da “gramática lógica pura”. No novo país da fenomenologia, os índices são

levados para passear e o sentido pode, enfim, alcançar o porto seguro do

“presente” e pôr um fim à deriva e ao risco de naufrágio nas “tempestades

cépticas”110 do pensamento.

Mas isso também não significa afirmar que o sentido não espera a

verdade, que não está, de certa forma, orientado para algo. Mas esta é uma

orientação aberta, uma espera sem horizonte de espera, uma destinação errante,

uma destinerrância. Já Husserl tem destino certo: a normalidade, a objetividade

(“a idealidade absoluta só pode estar ao lado das expressões objetivas”), a

gramática pura lógica, a intuição, a evidência, enfim, “a presença plena do sentido

a uma consciência presente a si na plenitude da sua vida, de seu presente vivo”.

Mas a contaminação já se fez presente antes disso tudo. O projeto fenomenológico

é contaminado desde sua véspera pelo telos formalista, pelo sentido de uma

racionalidade cognoscente e, portanto, limitado inicialmente por reduções, como

“do sentido ao saber, do logos à objetividade, da linguagem à razão”, e por

“distinções essenciais” que, efetivamente, “nunca são respeitadas”111.

O conceito fundador da fenomenologia encontra-se assim colocado: “o

presente-vivo”112. E seu telos bem determinado: fazer uma ciência pura e rigorosa.

Com eles, a fenomenologia permanece solidária da matriz comum do sistema

metafísico que a precedeu: a determinação do ser como presença e seus conceitos

correlatos: sentido, idealidade, objetividade, intuição, percepção, expressão. A

metafísica da presença, ou seja, a filosofia como saber da presença do objeto,

110 Em L´idée de la phénoménologie, Husserl abusa das metáforas e descreve a tarefa da fenomenologia : “prendre fermement pied dans le nouveau pays et ne finissons pas par faire naufrage sur sa rive. Car cette rive a ses écueils, des nuages d´obscurité planent sur elle qui nos menacent de tempêtes sceptiques ». op. cit. pág. 70. 111 Derrida, ed.br., pág. 111-114. 112 Em L´idée de la phénoménologie, Husserl descreve a unidade fenomenológica como aquilo que dura no fluxo dos fenômenos e declara: “La présence est partout, que l´objet qui se montre en elle soit simplement représenté ou qu´il existe véritablement, qu´il soit réel ou idéal, possible ou impossible, une présence dans le phénomène cognitif, dans le phénomène d´une pensée au sens le plus large du mot, et partout il faut suivre, sur le plan de l´essence, cette corrélation si étonnante au premier abord ». Husserl, op. cit. pág. 100.

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acredita no fechamento do saber absoluto. Para a metafísica, a história da presença

– presença a si na consciência, o ser como presença –, esta história está fechada,

pois, como coloca Derrida: “a “história” sempre quis dizer apenas isto:

apresentação do ser; produção e recolhimento do ente na presença, como saber e

domínio (...) A história da metafísica é o querer-ouvir-se-falar absoluto”.

Mas esta história que acabou, que se fechou sobre si mesma no absoluto

infinito que é a sua própria morte, essa história comporta um “para além” porque

“uma voz sem différance, uma voz sem escritura é, a um só tempo, absolutamente

viva e absolutamente morta”113.

Exige-se, segundo Derrida, “pensamentos inauditos”, para além das

dicotomias e oposições dominantes. O pensamento da différance ou desconstrução

pretende ser um pensamento vigilante e desconfiado que quer continuar

indefinidamente a interrogar a presença no fechamento do saber, mas que também

abre um novo espaço, onde “nós não sabemos mais”, onde nos situamos para além

do “saber absoluto”, onde o pensamento não pertence mais ao sitema do querer-

dizer e, portanto, “não quer dizer nada”. Essa “direção” que a différance nos abre

coloca em questão a “anterioridade” de certos conceitos instituídos, como sentido

e origem. Com efeito, o suplemento, a escritura e o rastro são “mais velhos” do

que a presença, mais velhos que o sentido, que a intuição originária.

Assim, no espaço do “não saber” da desconstrução, não sabemos mais se o

que sempre foi rebaixado como acidente acabou por reprimir a relação entre a

verdade e sua própria morte e origem. Nesse novo espaço, outros nomes são

necessários para pensar como “normal” aquilo que Husserl acreditava poder

isolar, isto é, a deriva indefinida dos signos, o encadeamento de re-presentações, o

jogo de remetimentos de significantes, sem começo nem fim. Nessa “galeria”114

composta de labirintos e que contém suas saídas, nunca se cai para fora da língua.

Fora da galeria, na plena luz da presença, não há percepção nem promessa. No

entanto, do interior da galeria, mesmo sabendo que “a própria coisa se esquiva

113 Derrida, ed.br, pág. 115. 114 Derrida utiliza essa expressão no final de A Voz e o Fenômeno em referência a uma citação feita por Husserl em Idées I e reproduzida como epígrafe no início de A Voz e o Fenômeno: “Um nome pronunciado diante de nós transporta-nos à galeria de Dresde e à última visita que fizemos a ela: erramos pelas salas e detemo-nos diante de uma tela de Téniers que representa uma galeria de quadros. Supomos, ademais, que os quadros dessa galeria representam, por sua vez, quadros que revelam inscrições passíveis de ser decifradas, etc.”. Tal descrição nos remete ao jogo sem fim da linguagem e aos remetimentos de significantes que a constitui. Em outros termos, à aporia da auto-referencialidade da linguagem, do labirinto que contém suas saídas.

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sempre”, resta falar, escrever, ressoar a voz da presença, tentar suprir seu brilho

para lembrar que ela nunca se apresentará enquanto tal.

Nesse exercício da desconstrução, uma vez que a linguagem não escapa

jamais à analogia, “ela deve assumir livremente a sua própria destruição e lançar

as metáforas contra as metáforas”115. E é graças a essa “guerra da linguagem

contra si mesma” que podem ser pensados o sentido e a questão de sua origem.

Mas essa guerra não é uma entre outras, pois ela se situa nessa “diferença que não

pode habitar o mundo, mas apenas a linguagem, em sua inquietação

transcendental”. Aliás, a diferença não apenas habita a linguagem, ela é também

sua origem e sua morada. “A linguagem guarda a diferença que guarda a

linguagem”116.

Assim, ao denunciar a pertença da fenomenologia à metafísica da

presença, a desconstrução realiza uma radicalização da redução fenomenológica

em direção a uma “redução semiológica”117, segundo Caputo, ou, arriscaria dizer,

uma redução “gramatológica” ou mais precisamente, “pragmatológica”118. Em

textos como Gramatologia, A Voz e o Fenômeno, Assinatura Evento Contexto, a

partir de Husserl e contra ele119, Derrida questiona a plenitude do sentido

intencional ou do querer-dizer e todos os seus correlatos, como os valores de

consciência, presença e intuição originária que regulam a fenomenologia. A marca

grafemática ou o grafema em geral implica a possibilidade de funcionamento do

signo na ausência da presença plena e atual do ato intencional. Em outros termos,

a différance e sua iterabilidade são co-originários à estrutura da temporalização. A

não-presença a si, a diferença pura que divide toda marca, possibilita e limita, ao

mesmo tempo, qualquer idealização120.

Com efeito, Derrida reconhece as análises sutis e decisivas empreendidas

por Husserl para demonstrar a idealidade da Bedeutung, ou seja, a não

necessidade de coincidência entre a Bedeutung e o objeto ou, nos termos

115 Derrida, ed.br, pág. 21. 116 “Le langage garde la différence qui garde le langage”. Derrida, La voix et le phénomène, ed. fr. pág. 13; ed. br. pág. 21. 117 Caputo, op. cit. pág. 101. 118 Ver a Parte 2, seção ‘Gramatologia e Lingüística’. 119 “Através do texto de Husserl, isto é, em uma leitura que não pode ser meramente nem a do comentário nem a da interpretação”. Derrida, A Voz e o Fenômeno, ed.br., pág. 99. Ou ainda, como Derrida escreve em “Força e significação”, Husserl nos ensina a pensar que “o sentido deve esperar ser dito ou escrito para se habitar a si próprio e tornar-se naquilo que a diferir de si é: o sentido”. In A escritura e a diferença, op. cit. pág 24. 120 Retornarei à questão da iterabilidade e de uma possível “pragmatologia” na Parte 2 desta tese.

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fregeanos aqui adotados, entre sentido e referência. Desse modo, é inegável que

Husserl realiza a virada linguística, uma vez que percebe que a racionalidade não

pode mais ser buscada no interior da mente subjetiva, apesar de não assumir as

consequências de sua descoberta. Nesse sentido, para além das críticas a seu

projeto logicista e intuicionista121, Husserl detectou a independência ou o

“descolamento” entre sentido e referência. Escreve Derrida:

“a submissão final ao intuicionismo não oprime o que se poderia chamar a liberdade de linguagem, “le franc-parler” de um discurso, ainda que ele seja falso e contraditório. Pode-se falar sem saber; é contra toda a tradição filosófica que Husserl demonstra que a palavra ainda é palavra de pleno direito, desde que ela obedeça certas regras que não se dão imediatamente como regras de conhecimento. A gramática pura lógica deve nos dizer, a priori, em que condições um discurso pode ser um discurso, ainda que ele não torne possível nenhum conhecimento”122.

121 Derrida critica a noção intuicionista do conhecimento que comanda o conceito husserliano de linguagem. Segundo Derrida, a intuição e a intenção se fundem na originalidade do querer-dizer. Na plenitude da presença que acompanha a Bedeutung, intuição e intenção “formam uma unidade de íntima confusão de um caráter original”. in A Voz e o Fenômeno, Capítulo VII, O suplemento de origem, ed.br. pág. 99 e sgts. 122 Derrida, La voix et le phénomène, ed. Fr. Pág. 100; ed. Br. pág. 101.

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3

O Giro linguístico na Tradição Alemã

3.1

O Expressivismo alemão

O problema da linguagem também recebeu um tratamento distinto do

tradicional por uma outra vertente da filosofia alemã, cuja reflexão encontrava-se

marcada pelo ambiente pós-revolução francesa e pós-crítica kantiana. Assim, além

de inaugurar a vertente analítica, com Frege e Husserl, a crítica ao racionalismo,

de Leibniz a Kant, também abriu espaço para um movimento expressivista rumo a

uma nova concepção de linguagem. Esse movimento engloba o período que vai

do Iluminismo alemão, de Leibniz e Wolff, passando pela crítica kantiana e

culminando no Romantismo, especialmente nas figuras de Hamann, Herder e

Humboldt. A geração romântica que iria transformar a literatura e a filosofia

alemã na virada do século XVIII para o XIX, nasceu num período de gigantesca

efervescência cultural, conhecida como Sturm und Drang123. Seguindo a leitura de

Charles Taylor124 e Cristina Lafont125, chamarei de “expressivismo alemão” esse

movimento que parte de uma crítica ao racionalismo de Kant e desemboca no

Romantismo e no Espírito absoluto hegeliano.

Esse momento encontra-se profundamente associado ao clima otimista da

época pós Revolução Francesa, quando os pensadores alemães nutriam forte

esperança numa transformação da Alemanha, numa nova edição da experiência

ateniense de harmonia e unidade. As décadas entre 1780 e 1800 marcaram um

período de efervescência cultural e política que influenciou profundamente a

filosofia germânica como um todo, destacando a valorização da língua alemã e o

início da consolidação da Alemanha enquanto estado-nação.

123 Literalmente, “tempestade e ímpeto”, expressão com a qual ficou conhecida a reação de artistas alemães contra o racionalismo iluminista em literatura, estética, filosofia, etc. A noção dominante de “razão” e que merecia a maior parte das críticas era a Razão do Iluminismo alemão dominante à época (Leibniz e Wolff), com seu rigor lógico-demonstrativo que não difere substancialmente do modelo iluminista francês de matriz cartesiana. Dicionário Hegel, Michael Inwood, Jorge Zahar Editor, 1997. 124 Taylor, Charles. Human Agency and Language – Philosophical Papers I. Cambridge University Pres, 1985 e As Fontes do Self, Edições Loyola, 1997. 125 Lafont, Cristina. La Razón como Lenguaje – Uma revisión del ‘giro lingüístico’ em la filosofia del lenguaje alemana. Visor Dis, Madrid, 1993.

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A nova concepção de linguagem que aparece em Hamann, Humboldt e

Herder (além de Rousseau), influenciará poetas e filósofos como Schelling,

Novalis, Hölderlin e Hegel126. E esta transformação está intrinsecamente

vinculada a uma nova noção de interioridade e de linguagem. Nesse sentido, de

modo paradigmaticamente moderno, o giro linguístico da filosofia alemã deu-se

de modo indissociável com o giro subjetivista, ou seja, com a valorização da

interioridade expressiva do ser humano que se apresenta na forma de uma voz

autêntica e singular proveniente das profundezas interiores do sujeito. Rousseau é,

com efeito, um dos maiores representantes desse movimento e Derrida reserva

grande parte da Gramatologia para a análise de seu Ensaio sobre a origem das

línguas. Entretanto, tendo em vista a influência que a tradição alemã exerce sobre

Heidegger e, portanto, sobre Derrida, optei por seguir a trilha do ‘expressivismo

alemão’ sem, contudo, deixar de referir-me, ocasionalmente, aos textos

rousseaunianos.

Com efeito, a primeira aparição da nova concepção de linguagem pode ser

localizada na crítica feita por Hamann a Kant em 1784 no texto “Metakritik über

den Purismus der Vernunft”127. O motivo central de tal crítica pode ser resumido

nas seguintes afirmações de Hamann, traduzidas por Cristina Lafont: “A razão é

linguagem, logos”, ou ainda: “sem a palavra, nem razão nem mundo”.

Pode-se argumentar que tais afirmações já se encontram na filosofia grega,

e que, portanto, as observações de Hamann não oferecem nada de novo. No

entanto, a identificação entre razão e linguagem que orienta o expressivismo

alemão não pode ser reduzida à concepção grega de logos. Seguindo a concepção

aristotélica que dominou a filosofia ocidental até Kant, a linguagem resta como

um instrumento mediador, com função de designação de objetos por meio de

palavras. O trecho clássico de Aristóteles, onde este explica o processo de

significação que será o modelo da filosofia posterior encontra-se em De

Interpretatione, e é citado por Heidegger em “A essência da linguagem”, assim

como por Lafont. Escreve Aristóteles:

126 Seguindo a temática geral que dirige esta tese, não me aprofundarei na crítica que Hamann, Herder e Humboldt fazem a Kant, senão na medida em que tais autores apresentam as idéias básicas de uma nova concepção de linguagem que, como pretendo desenvolver na seqüência, chegará até Heidegger e atravessará os textos de Derrida. 127 Citado no breviário sobre Hamann Vom Magus im Norden und der Verwegenheit des Geistes, editado por S. Majestschak, Munich, 1988, p. 205-212 apud Lafont, op. cit. pág. 23.

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“De um lado, os sons da voz são símbolos das disposições da alma, de outro, as marcas escritas o são dos sons da voz. E assim como as letras não são as mesmas para todos, do mesmo modo também os sons. São idênticas em todas as disposições da alma, das quais os sons são os primeiros signos, como já são também as mesmas coisas, das quais aquelas são semelhanças”128.

Aristóteles estabelece, portanto, o modelo do processo de significação que

dominará a filosofia enquanto metafísica. As coisas reais produzem imagens em

nossa alma (ou mente) e nós produzimos sons para expressá-las. Os sons podem

variar, visto que são convencionais e arbitrários, assim como os signos escritos

que usamos para grafá-los. No entanto, as imagens que aparecem na alma são as

mesmas para todos, devido à identidade entre o mundo exterior e a organização da

sensibilidade humana. Segundo Heidegger, essa passagem clássica permite-nos

vislumbrar a “estrutura da linguagem como vocalização sonora: as letras são

signos dos sons da voz, os sons da voz são signos das disposições da alma e essas,

signos das coisas”129.

Assim, a diversidade das línguas não representa uma objeção contra a

unidade e identidade da razão (e do significado). É por isso que Aristóteles pode

identificar razão e linguagem sem ter que responder ao paradoxo da unicidade da

Razão frente à variedade das línguas naturais. As impressões (imagens) que se

encontram em toda consciência (sensibilidade humana comum a todos os homens)

representam o mundo objetivo (coisas reais) que existe independentemente da

linguagem. Portanto, a linguagem é instrumento de uma razão humana invariável.

Esse preconceito filosófico permaneceu inquestionado de Aristóteles até Kant130.

Hamann é o primeiro a problematizar tal concepção, ao ressaltar que nossa

experiência encontra-se determinada e constituída pela linguagem. Desse modo,

não se sustenta uma concepção de razão ‘alingüística’, que permaneceria idêntica

a si, independentemente da linguagem. Toda razão é, desde sempre, lingüística.

Daí a impossibilidade de se pensar uma ‘razão pura’ separada de suas condições

históricas e reais, ou seja, separada de uma língua concreta. A identificação entre

128 Aristóteles, De Interpretatione I, 16 a 1 apud Heidegger, “A essência da linguagem” in A caminho da linguagem, Ed. Vozes, 2003. pág. 160. Cristina Lafont traduz a mesma passagem da seguinte maneira: “Pois bem, os sons vocais são símbolos das afecções da alma e as letras são (símbolos) dos sons vocais. E assim como a escrita não é a mesma para todos, tampouco os sons vocais são os mesmos. Mas aquilo de que estes (sons) são primariamente signos, as afecções da alma, são as mesmas para todos, e aquilo de que estas são imagens, as coisas reais, são também as mesmas”, in Lafont, op. cit. pág. 24. 129 Heidegger, “A essência da linguagem”, op. cit. pág. 160. 130 Schnädelbach, Philosophie, 1986 apud Lafont, op. Cit. Pág. 24.

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linguagem e razão ganha assim uma nova dimensão que será plenamente

reconhecida apenas no século XX através do que estamos chamando de ‘virada

lingüística’.

No texto A linguagem, Heidegger cita uma carta escrita por Hamann a

Herder em 1784, no qual este refere-se à identificação entre razão e linguagem

como uma aporia ou “abismo”. Escreve Hamann:

“Se eu fosse tão eloqüente como Demóstenes, nada mais precisaria fazer a não ser repetir três vezes uma única palavra: razão é linguagem, logos. Não consigo deixar de roer e haverei de roer esse osso até morrer. A profundidade dessa palavra permanece, no entanto, para mim muito obscura. Aguardo sempre a vinda de um anjo apocalíptico trazendo a chave desse abismo”131.

Segundo Heidegger, o “abismo” reclamado por Hamann consiste no fato

de que este volta-se para a linguagem na tentativa de dizer o que é a razão. É por

isso que seu pensamento “cai nas profundezas de um abismo”132. Mas qual seria o

incômodo maior, pergunta Heidegger: constatar que a razão repousa na linguagem

ou investigar a linguagem enquanto linguagem? Como desenvolvo na próxima

seção, Heidegger avança uma concepção de linguagem independente do projeto

racionalista que orienta a filosofia enquanto metafísica, aí incluído o

expressivismo alemão. De fato, Heidegger pretende ir além da metafísica

expressivista ao propor que “a linguagem é: linguagem. A linguagem fala”133.

No entanto, apesar de ainda participar do projeto racionalista, a

valorização da linguagem e da expressividade humanas presentes no

expressivismo alemão, já apontam para uma crítica ao racionalismo. Os textos de

Hamann, ainda que fragmentários, apontam para a impossibilidade de ‘purificar’ a

razão da linguagem, visto que “a linguagem é o único, o primeiro e o último órgão

e critério da razão”134. Nesse sentido, Hamann coloca em questão a própria

condição de possibilidade do projeto kantiano, ou seja, da realização de uma

‘crítica da razão pura’. É por isso que Hamann denomina sua objeção a Kant de

‘metacrítica’. Ele ressalta os pressupostos que Kant não revelou e as questões que

não fez, como por exemplo: ‘como é possível a capacidade de pensar’? Uma

131 Hamans Schriften, ed. Roth VII, p. 151 apud Heidegger, “A Linguagem” in A Caminho da Linguagem, op. cit. pág. 11. 132 Heidegger, “A Linguagem”, op. cit. pág. 11. 133 Heidegger, “A Linguagem”, op. cit. pág. 11. 134 Hamann, Metakritik, apud Lafont, op. cit. pág. 26.

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questão como essa aponta para uma nova concepção de linguagem, uma vez que o

pensamento é indissociável da linguagem. E, assim como não pode haver um

pensar livre de qualquer linguagem, assim também não pode haver uma razão

suprahistórica ou ahistórica. E nesse sentido, Hamann afirmará que a linguagem é

a ‘raiz comum do entendimento e da sensibilidade’, unidade que Kant não

conseguiu encontrar.

Segundo Lafont, a explicação que Hamann oferece a esse respeito

constitui o núcleo de sua metacrítica e restará como o lugar comum de todo

posterior ‘giro lingüístico’135. Com Hamann, a linguagem ganha um caráter de

‘quase-transcendentalidade” que a coloca no centro da investigação filosófica,

especialmente no século XX. A partir do expressivismo alemão, a peculiaridade

da linguagem será destacada em seu duplo caráter, ou seja, de representação e de

criação ou, nos termos de Hamann, em sua capacidade lógica e estética. Assim, a

linguagem extrapola a função indicativa na medida em que unifica em si ambas as

dimensões, a saber, tanto o âmbito conceitual do significado (sentido, idealidade),

assim como o seu substrato simbólico (signo, índice). Assim, no lugar da

sensibilidade humana kantiana, capaz de perceber as coisas objetivas, Hamann

fala em uma ‘receptividade da linguagem’ que, por sua vez, é uma capacidade

própria dos seres humanos, visto que apenas os homens são capazes de utilizar

signos para representar coisas distintas destes.

Nesse sentido, pode-se afirmar que Hamann e o expressivismo alemão

realizam uma virada em relação ao projeto transcendental kantiano. A síntese

buscada por Kant no esquematismo da razão e a pretensão de realizar uma

dedução a priori dos princípios da razão pura, encontra-se interditada pelo caráter

lingüístico do entendimento. Ao desconsiderar tal relação indissociável entre

razão e linguagem, a filosofia kantiana resta refém do paradoxo da ‘auto-

produção’ da Razão, ou seja, como objeta Hamann, ‘como a razão pode dar a si

mesma os princípios puros que a rege se a linguagem é anterior aos princípios?’

Nas palavras de Hamann:

“Não se requer dedução alguma para demonstrar a prioridade genealógica da linguagem frente aos princípios e deduções lógicas. Não somente a capacidade de

135 Lafont, op. cit. pág. 26.

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pensar, enquanto tal, descansa na linguagem, como também a linguagem constitui o centro dos mal entendidos da razão consigo mesma”136.

Assim, segundo Hamann, enquanto a natureza da linguagem continuar

oculta, ou seja, enquanto sua ‘Nichthintergehbarkeit’137 (incontornabilidade)

permanecer esquecida, a razão nunca irá se entender consigo mesma. A linguagem

não pode ser pensada como um ‘produto puro da razão’, uma vez que ela é

pressuposta tacitamente pelo empreendimento kantiano. A Crítica da Razão Pura

encontra-se, desde sua primeira linha, contaminada pela linguagem.

Nesse sentido, o novo desafio colocado pela concepção espressivista da

linguagem é o da compatibilidade entre um sistema filosófico que se pretende

universal (como o kantiano) e o caráter situado e condicionado historicamente de

todo pensar humano. Afinal, como a ‘Crítica da Razão Pura’ pode ser ‘pura’ e

‘universal’ se ela está escrita em alemão? Segundo Lafont, mesmo que de modo

fragmentário, tais considerações de Hamann expõem e radicalizam os problemas

internos da filosofia transcendental kantiana, além de antecipar as questões que,

atualmente, são discutidas no âmbito da virada lingüística-pragmática.

Além de Hamann, Herder também merece destaque na formação daquilo

que Taylor chamou de “triple-H theory” em referência a Hamann, Herder e

Humboldt138. Com efeito, Herder realiza uma crítica contundente à concepção

naturalista da linguagem tal como formulada por Condillac. Segundo Taylor,

“Herder é a figura revolucionária que cria um modo fundamentalmente diferente

de pensar sobre a linguagem e o significado”139.

No seu Essai sur l´origine des langages140, escrita contemporânea ao texto

de Rousseau sobre a origem da linguagem, Herder percebeu, mesmo que de modo

implícito, uma ‘dimensão lingüística’ mais sofisticada que nos distingue dos

demais animais com linguagem. Tal perspectiva lingüística não se resume na

capacidade de construir frases e de combinar elementos finitos para fins infinitos

(como assinala Humboldt). O que Taylor chama de ‘dimensão lingüística’ é a sua

leitura daquilo que Herder chamou de Besonnenheit, isto é, uma espécie de

136 Hamann, apud Lafont, op. Cit. Pág. 27. 137 Expressão utilizada por Hamann para se referir ao caráter indissociável entre pensamento e linguagem. 138 Taylor, Charles. “Theories of meaning” in Philosophical Papers I, Cambridge, MA, 1985. 139 Taylor, “A importância de Herder” in Argumentos Filosóficos, Edições Loyola, 2000. 140 Herder, Traité sur l´origine des langues (1772) apud Taylor, “A importância de Herder”, op. cit.

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reflexão que nos capacita a ser usuários da língua. Essa reflexão pode ser

entendida como uma concentração ou contemplação dos objetos através do seu

reconhecimento, o que se traduz na criação de um espaço de atenção, de

distanciamento da significação instintiva imediata das coisas. Essa atitude

reflexiva que a dimensão lingüística exige é uma condição própria e exclusiva da

espécie humana. Assim, escreve taylor: “uma criatura adquire linguagem no

sentido humano quando entra na perspectiva lingüística”141.

Este é o ponto central da crítica herderiana à teoria de Condillac. Antes de

aprender qualquer palavra (‘signos instituídos’) a partir dos ‘signos naturais’

(gritos e gestos como expresão natural dos sentimentos), é preciso que o aprendiz

(a criança no deserto na fábula de Condillac) seja capaz de atuar na dimensão

lingüística, ou seja, tenha a capacidade de reflexão (Besonnenheit) e de

distanciamento dos objetos. Herder inaugurou uma nova forma de pensar a

linguagem porque percebeu o pano de fundo sobre o qual a linguagem é possível,

mesmo que não tenha conseguido extrair plenas conclusões de seu pensamento. A

partir da compreensão do caráter situado da linguagem, Herder pode intuir que a

expressão constitui a dimensão lingüística, isto é, se expressar através da

linguagem não é uma ação corporal dentre outras. Ela distingue-se enquanto uma

ação expressiva de caráter reflexivo frente aos objetos.

Assim, para Herder, a fala é a expressão do pensamento142. Mas não é

simplesmente exterior a algo que poderia existir independentemente da

linguagem. A fala é constitutiva do pensamento reflexivo na medida em que esse

pensamento atua na dimensão lingüística. Nesse sentido, Herder foi, juntamente

com Rousseau, pioneiro no entendimento do homem como um ser de expressão.

Segundo ele, o homem é a única criatura que pode tomar consciência da grande

unidade da natureza e dar-lhe expressão através da linguagem. Assim, os seres

141 Taylor, “A importância de Herder”, op. cit. pág. 99. 142 É interessante notar que, neste ponto do texto, Taylor tece uma crítica a Derrida nos seguintes termos: “A tentativa derridiana quase obsessiva de negar todo status especial à fala na capacidade lingüística humana evoca a questão de saber se ele não tem mais em comum com a tradição cartesiana do que gostaria de admitir. L´écriture e la différance, embora mergulhadas na cultura são funções peculiarmente desencarnadas”in Taylor, “A importância de Herder”, op. cit. pág. 107, nota 23. Aproveito a oportunidade para adiantar que Derrida não pretende inverter a oposição entre fala e escrita, mas simplesmente mostrar como toda a tradição filosófica, mesmo as teorias ditas ‘revolucionárias’, permanece no interior da clausura humanista, dependente da noção de ‘presença’ enquanto ‘presença a si’ na consciência. Nesse sentido, mesmo admitindo os avanços da filosofia da linguagem de Herder, a noção de Besonnenheit pressupõe o sujeito auto-consciente plenamente presente a si capaz de ‘expressar’ suas emoções, desejos e sentimentos interiores. Volto a esta questão na Parte 2 deste trabalho.

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humanos encontram-se inseridos numa ordem natural mais ampla e sua vocação é

de “epítome e administrador da criação”. Como destaca Taylor, esta filosofia da

natureza como fonte é essencial ao romantismo e constitui o quadro adotado pelos

escritores alemães da década de 1790, por exemplo, Hölderlin, Schelling e

Novalis143.

No entanto, a novidade que aparece com Herder consiste no privilégio

dado ao interior do sujeito. A voz da natureza que nos fala da importância de

nossa própria realização natural e da solidariedade com nossos semelhantes é uma

voz que se encontra dentro de nós. Assim, ter uma postura moral adequada em

relação à ordem natural é ter acesso à própria voz interior. Como destaca Taylor, o

original dessa filosofia da natureza como fonte, tal como aparece em Herder,

consiste na valorização dos sentimentos por si mesmos. Ao contrário da ética

aristotélica movida por fins e da concepção de amor ao Bem em Platão, o que se

requer não é o amor a um objeto transcendente, mas sim determinada forma de

experenciar nossa vida, nossos desejos e realizações comuns. Estar em sintonia

com a natureza significa vivenciar tais desejos como ricos, plenos,

significativos144.

Segundo Taylor, tal concepção da natureza como fonte intrínseca caminha

junto com uma visão expressiva da vida humana. Mas expressar não significa

simplesmente manifestar algo que já estava pronto e acabado. Ao contrário, ao

expressar a voz interior e torná-la manifesta para mim e para os demais, estou

também realizando tal expressão, ou seja, estou dando-lhe uma forma única e

original. Nesse sentido, imitar o outro pode ser uma traição à minha própria

vocação. Esta é a noção de originalidade e de fidelidade ao modo único de ser de

cada sujeito (e de cada povo) que Herder inaugura e que tronar-se-á um dos

pilares da cultura moderna.

Como destaca Taylor, um dos frutos do romantismo e do expressivismo é

o nacionalismo. Paralelamente à noção de que o locus da soberania tem que ser

um povo, tal como formulada por Rousseau, Herder também desenvolve a idéia

de que cada Volk, ou seja, de que cada povo tem seu próprio modo de ser, de

pensar e de sentir, ao qual deve fidelidade. Certamente, a primeira onda de

formação das nações modernas, anteriores ao nacionalismo herderiano, basearam-

143 Taylor, As Fontes do Self, pág.474. Ed. Loyola, 1997. 144 Taylor, As Fontes do Self, op. cit. pág. 477.

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se na coesão política. No entanto, logo em seguida, também aderiram ao novo

princípio de coesão social que, a partir daí, tornou-se dominante: a língua.

Com efeito, a língua, segundo tal visão ‘expressivista’, surge como a base

para o nacionalismo moderno nascente. A noção de que cada povo possui um

caráter especial, isto é, uma identidade singular que faz dele mais do que um

agregado de pessoas, e que este caráter pode ser expressado através da língua

nacional, constitui uma das mais potentes idéias da modernidade. A língua,

entendida de modo expressivista, tal como desenvolvido por Herder, torna-se o

veículo privilegiado para trazer à luz a identidade nacional, visto que ela assume

de modo definitivo o papel de constituição e definição da essência de um

determinado povo.

Taylor celebra tal noção expressivista e apenas lastima que ela possa ser

combinada com a razão instrumental, como ocorreu, por exemplo, na Alemanha

nazista. Segundo Taylor, “o lado mais sombrio do nacionalismo moderno

combina com frequência um apelo chauvinista à personalidade ou vontade

nacional com um impulso para o poder”. Segundo sua leitura, o nazismo chegou

ao poder apelando à integridade expressiva contra a razão instrumental, mas a sua

prática traiu a justificativa original ao aplicar impiedosamente essa mesma razão

‘sem coração’. Assim, para Taylor, o problema não está na idéia mesma de uma

identidade nacional ou na essência de cada povo (enquanto sujeito coletivo) que

se expressa autenticamente através de sua língua. O problema está somente na

combinação dessa vertente com a técnica.

Nesse sentido, o ‘Selbst’, ou simplesmente o sujeito auto-consciente

(individual ou coletivo), capaz de linguagem e de expressão autêntica permanece

intocável. Aliás, ele resta como a referência última do sentido (e da presença, diria

Derrida). Uma vez que a identidade pessoal é definida em relação a uma voz

interior – idéia que pode ser restreada até Santo Agostinho145 - o expressivismo

145 Taylor considera Santo Agostinho o primeiro representante desse movimento de subjetivação que encontra seu ápice na modernidade. A linguagem da interioridade de Agostinho representa uma doutrina radicalmente nova de fontes morais, em que o caminho para o superior passa por dentro. A partir daí, o ponto de vista de primeira pessoa torna-se fundamental para a epistemologia moderna, culminando em Descartes e na noção do “eu penso” como algo externo à experiência do mundo. Além de inaugurar o argumento do cogito, Agostinho constrói toda uma hierarquia valorativa com base nesse fato. Segundo seus textos, existe um abismo insuperável entre os seres capazes de raciocínio e os que carecem dessa faculdade. Não apenas o elemento inerte se diferencia do que vive, mas, entre os que vivem, passa a existir uma diferença qualitativa entre os seres que vivem e têm consciência de que vivem em relação ao simples vivente. Essa hierarquia implícita funciona como uma ontologia moral oculta e confere aos humanos um sentimento de

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vem acrescentar a essa voz interior a idéia de singularidade e de autenticidade, ou

seja, de uma exigência de fidelidade ao modo ‘próprio’ de ser de cada indivíduo

ou povo. No entanto, a noção mesma de propriedade, de identidade a si, de

singularidade e de auto-consciência permanecem não problematizados.

Contudo, importa ressaltar que a noção de autenticidade é uma novidade

eminentemente moderna, até porque uma idéia como essa só pode fazer sentido

para um sujeito interiorizado, que se auto-interpreta e se auto-define como um ser

consciente, com profundezas interiores, capaz de linguagem e que busca auto-

realização através da expressão autêntica de sua singularidade. É nesse sentido

que Rousseau fala de um ‘sentimento de existência’, uma situação em que

desfrutaríamos de uma felicidade plena e perfeita, uma experiência “de nada

exterior a nós, de nada a não ser de nós mesmos e de nossa própria existência;

enquanto este estado dura bastamo-nos a nós mesmos como Deus”146.

Uma vez que o mundo não mais se define como o locus privilegiado do

sagrado, mas sim como correlação de contingências e jogos de força, assim

também define-se o sujeito moderno, em correspondência às expectativas da nova

episteme. Ou seja, ele é um sujeito auto-centrado, atomizado, tornado presente a

si, um sujeito que pode controlar a natureza com seu intelecto e, posteriormente,

com sua técnica, visto que o universo é ordenado matematicamente. O sujeito

auto-centrado que permanece pressuposto pelo expressivismo, resiste às

imposições da Natureza (necessidade) através de seu ‘poder interior’. Nesse

processo, realiza-se enquanto ser humano livre e autônomo.

3.2

Humboldt e a revolução copernicana da linguagem

Essa nova concepção de subjetividade que estava se formando exigia um

novo modelo de linguagem, diverso do paradigma iluminista de inspiração

aristotélica, que reduzia a linguagem a um instrumento. Na esteira de Hamann e especialidade e superioridade que os levam a demandar por respeito e consideração, independentemente da religião que adotam. É interessante notar que Taylor acompanha a crítica que Wittgenstein faz à concepção de linguagem agostiniana, mas conserva, sem problemas, a concepção de self moral, tal como apresentada por Santo Agostinho. No entanto, nos parece que a virada lingüística, quando efetivamente realizada, deve conduzir necessariamente a uma desconstrução da noção de interioridade. Afinal, as oposições interior/exterior e humanidade/animalidade são efeitos da linguagem. 146 Rousseau, Os devaneios do caminhante solitário, pág. 76. Editora UnB, 1995.

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Herder, Humboldt pode ser considerado o primeiro filósofo a desenvolver,

explícita e sistematicamente, uma nova filosofia da linguagem condizente com as

novas exigências. Com efeito, a importância da concepção de linguagem

elaborada por Humboldt não se constata apenas na sua enorme influência sobre a

filosofia alemã posterior, como também na riqueza de perspectivas com que

aborda o complexo problema da linguagem, superando os reducionismos das

teorias da época147. Entretanto, tendo em vista a vastidão das reflexões

humboldtianas sobre a linguagem, que incluem diversas investigações

empíricas148, não pretendo realizar uma exposição de sua filosofia, mas apenas

tecer breves comentários sobre a novidade que representa sua concepção de

linguagem, apontando a influência de sua reflexão na filosofia tardia de

Heidegger, especialmente na tese da linguagem como abertura de mundo149.

Mas, independentemente da apropriação feita por Heidegger e pela

hermenêutica, a nova concepção de linguagem inaugurada por Humboldt abriu

um novo espaço para se pensar a linguagem de modo radicalmente oposto à

tradição filosófica até então. A consideração central a partir da qual Humboldt

desenvolve sua filosofia é a de que ‘não há mundo sem linguagem’. A partir daí,

avança diversas teses que ressoarão, de modos variados, na filosofia da linguagem

nascente.

Em primeiro lugar, a noção humboldtiana da linguagem rejeita a premissa

básica presente em todas as teorias da época, a saber, a de que a linguagem é

apenas um sistema de signos, ou seja, um simples instrumento para a transmissão

de pensamentos pré-lingüísticos ou para a designação de objetos independentes da

linguagem (‘coisas reais’). Para Humboldt, “a diversidade das línguas excede a

simples diversidade de signos”, ou seja, uma língua faz muito mais que

simplesmente indicar, uma vez que “as palavras e a sintaxe formam e determinam

ao mesmo tempo os conceitos”150.

147 Lafont, op. cit. pág 31. 148 Thouard, Denis. “L´embarras des langues ». Présentation a Humboldt, Wilhelm von. Sur le Caractère National des langues et autres écrits sur le langage. Bilingue allemand-français. Seuil, Paris, 2000. 149 Como indicado pelo próprio Heidegger em “Carta sobre o humanismo”, seu pensamento sofre uma virada (Kehre) em relação ao enfoque adotado em Ser e Tempo, como desenvolvo na sequência. 150 Humboldt, Sur le Caractère National des langues et autres écrits sur le langage. Bilingue allemand-français. Seuil, Paris, 2000. pág 131.

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A filosofia de Humboldt possui uma inegável proximidade com a estrutura

kantiana. Como ele escreve, em explícita alusão a Kant, “a verdadeira importância

do estudo da linguagem radica na sua participação na formação das

representações”, ou ainda, “a linguagem é o único meio pelo qual as

‘representações’ podem obter objetividade, isto é, converter-se em conceitos

apreensíveis pelo sujeito”151. No entanto, na confrontação entre ambos, surgem

diferenças que nos remetem, exatamente, ao papel reservado à linguagem na

filosofia de Humboldt.

Contrariamente a Kant, que decompõe a produção do conhecimento em

duas fontes fundamentais, sensibilidade e entendimento, Humboldt enfatiza uma

produção mais importante, a saber, a formação das representações. Assim, para

Humboldt, a representação (Vorstellung) não possui o mesmo sentido que para

Kant, onde esta designa a receptividade do espírito (Gemüt). Já para Humboldt, a

representação consiste no resultado ou efeito da síntese entre sensibilidade e

entendimento. Assim, a ênfase de Humboldt dirige-se para o estudo da linguagem

como formadora de representações e não para a dualidade de fontes do

conhecimento, como acentua Kant.

Nesse sentido, na filosofia kantiana, o movimento de análise é

‘regressivo’, na medida em que busca decompor a unidade do conhecimento rumo

à dualidade das fontes (sensibilidade e entendimento). Já em Humboldt, o

movimento é invertido, ou seja, sua investigação é ‘progressiva’, no sentido de

que este parte das fontes do conhecimento para o objeto, acentuando a síntese

irredutível entre intuição e conceito152. No entanto, para Humboldt, a produção da

representação não basta para o conhecimento do objeto. A representação deve ser

‘reconhecida’ pelo espírito para que o objeto apareça à consciência. Portanto,

vemos que, para Humboldt, o conceito de ‘objeto’ não é exatamente o mesmo que

‘representação’. Esta última é o resultado imediato ou imanente da atividade que a

produz, enquanto que o ‘objeto’ refere-se àquilo que é destacado da atividade

produtora (atividade subjetiva) e se oferece ao espírito enquanto algo específico.

151 Lafont, op. Cit. pág. 38. 152 Escreve Humboldt: “É dessa ligação que se desprende a representação que, face à energia subjetiva, se investe sobre o objeto e retorna à sua origem na medida em que se oferece à percepção sob uma forma renovada”. Humboldt, Sur la diversité de structure du potentiel linguistique de l´humanité, apud Hansen-Love, Ole. La révolution Copernicienne du Langage dans l´oevre de Wilhelm von Humboldt, pág. 53. ed. J. Vrin, Paris, 1972.

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O intervalo entre a representação e o objeto é preenchido pela linguagem,

enquanto som aticulado.

Portanto, Humboldt entende a atividade subjetiva de síntese ou a ‘ação

interna do espírito’ como um movimento de cooperação indissociável entre

sensibilidade e entendimento. Tal síntese é compreendida como algo necessário e

indissociável. Nesse sentido, utiliza-se frequentemente da expressão Bilden para

marcar essa atividade do espírito, esse Darstellung (‘colocar em cena’) que se

opera na e pela linguagem. Essa atividade é carregada de riqueza plástica e

pulsional, proveniente tanto da imaginação quanto da afetividade. É nesse sentido

que podemos resumir a diferença entre Humboldt e Kant pelo papel que a

linguagem desempenha para o primeiro. Escreve Humboldt sobre a função

indispensável da linguagem na formação do conhecimento:

“Nela (a linguagem) se abre o duplo movimento da tensão espiritual que se desprende dos lábios e retorna ao ouvido sob a forma daquilo que ela produziu. A representação é assim transposta em objetividade sem, contudo, subtrair-se da subjetividade. Tal operação é um privilégio exclusivo da linguagem; sem essa transposição incessante que, seja ela proferida ou implícita, efetua a passagem da subjetividade à objetividade retornando ao sujeito, é impossível dar conta da formação do conceito e, em geral, de todo pensamento verdadeiro”153.

Desse modo, a crítica à redução semiótica da linguagem é justificada por

Humboldt através da tese da indissociabilidade entre linguagem e pensamento. É

exatamente aí que resta a enorme importância filosófica do estudo da linguagem e

que explica a sua centralidade na filosofia contemporânea. Com efeito, esta tese

será repetida, de modos diversos, por todos os autores que rejeitam a visão

tradicional da linguagem. Por exemplo, Peirce escreve: “cada pensamento é uma

palavra não pronunciada”. Wittgenstein, por sua vez, afirma: “o pensamento é a

frase com sentido”154.

153 “C´est là qu´apparaît le rôle indispensable de la langue: en elle se déploie le double mouvement de la tension spirituelle se frayant une issue par les lèvres et faisant retour à l´oreille sous la forme de ce qu´elle a produit. La représentation se voit ainsi transposée en objectivité sans pour autant être soustraite à la subjectivité. Une telle opération est le privillège exclusif de la langue ; et sans cette transposition incessante et qui, proférée ou même implicite, effectue le passage de la subjectivité à l´objectivité avec retour au sujet, il est impossible de rendre compte de la formation du concept et en général de toute pensée veritable ». Humboldt, Sur la diversité de structure du potentiel linguistique de l´humanité, apud Hansen-Love, Ole. La révolution Copernicienne du Langage dans l´oevre de Wilhelm von Humboldt, pág. 55. ed. J. Vrin, Paris, 1972. 154 Lafont, op. cit. pág. 33, nota 3.

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Um terceiro passo que pode ser atribuído a Humboldt rumo à virada

lingüística consiste na associação entre língua e visão de mundo. Escreve

Humboldt: “considerados em seus contextos (...) as diferentes línguas são, de fato,

diferentes visões de mundo”155. Ao rejeitar a redução semiótica da linguagem,

Humboldt não nega que a linguagem opera como um sistema de signos, ou seja,

que ela serve para designar objetos. Mas a relação de significação da linguagem

humana não pode ser reduzida ao processo que associa o signo ao objeto, visto

que a palavra forma uma unidade com o conceito. Em outros termos, um signo

designa algo que tem existência independente dele, enquanto que um conceito

apenas se realiza na palavra. Com efeito, a palavra compartilha certas

propriedades do signo, mas não se reduz a ele, visto que sua natureza é diversa.

Esclarece Humboldt:

“Na medida em que o som da palavra evoca um conceito, ela cumpre sem dúvida a finalidade de todo signo, mas excede a classe dos signos (...) o conceito somente adquire sua completude mediante a palavra e ambos não podem ser separados. Desconhecer este fato significa considerar as palavras como meros signos e este é o erro principal que comete toda ciência da linguagem”156.

Portanto, Humboldt volta-se contra a objetivação da linguagem, contra a

noção corrente de que ela pode ser investigada como um objeto intramundano,

como um sistema de signos com regras determinadas. Assim, além de rejeitar a

concepção instrumental da linguagem, Humboldt realiza uma ruptura definitiva

com tal tradição ao introduzir uma distinção que será essencial para a filosofia da

linguagem posterior, a saber, a distinção entre ‘significado’ e ‘referência’, ou seja,

nos termos fregeanos, o descolamento entre sentido e referência. Escreve

Humboldt:

“A palavra faz com que a alma se represente o objeto que lhe é dado. Esta representação deve ser distinguida dos objetos; (...) esta tem, juntamente com a parte objetiva que se refere ao objeto, uma subjetiva que consiste no modo de apreensão (...) No entanto, vale assinalar que esta divisão baseia-se exclusivamente numa abstração, pois a palavra não tem outra morada senão o pensar e assim também o objeto, se este é imaterial (...) Mas também isso ocorre no caso dos objetos sensíveis, visto que estes nunca se apresentam à alma

155 Humboldt, Sur le Caractère National des langues et autres écrits sur le langage. Bilingue allemand-français. Seuil, Paris, 2000. pág. 131. 156 Humboldt, obras em 5 volumes de A. Flitner/K. Giel, vol. V, 428 Darmstadt, 1979 apud Lafont, op. Cit. pág. 35.

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diretamente, visto que nela se apresenta somente a representação que a palavra oferece deles”157. (grifo da tradutora)

Assim, o significado constitui, nas palavras de Humboldt, o modo de

apreensão ou a representação mental do obejto feita pelo sujeito, distinta do objeto

ele mesmo (referência) que, por sua vez, nunca se apresenta enquanto tal. Ao

excluir a possibilidade de uma relação de pura designação entre o nome e o

objeto, Humboldt rompe com a concepção de linguagem tradicional, na qual as

palavras são ‘rótulos’ para as coisas.

Para Humboldt, a linguagem não pode ser objetivada porque ela não é um

produto (ergon) humano, mas uma atividade (energeia) humana158. Com efeito,

uma língua corresponde a uma visão de mundo, ela abre a possibilidade de algo

como o “mundo” converter-se em conceito apreensível pelo sujeito. Nas palavras

de Humboldt: “a linguagem começa imediatamente e ao mesmo tempo que o

primeiro ato de reflexão”159. Portanto, a linguagem já está presente antes de

qualquer transmissão de informação ou comunicação de sentido entre sujeitos.

Com efeito, a linguagem é condição necessária de todo pensamento, aí incluído o

indivíduo que ‘pensa com seus botões’ ou, na linguagem fenomenológica, o

solilóquio na vida solitária da alma.

Apesar das inevitáveis consequências relativistas que podem decorrer da

identificação entre linguagem, pensamento e visão de mundo, Humboldt não

deixa de criticar a raiz da reflexão transcendental kantiana e, consequentemente,

colocar novos obstáculos ao projeto racionalista de fundamentação objetiva do

conhecimento, isto é, à suposição da existência de um mundo objetivo

independente da linguagem160. Dessa forma, ao entender a linguagem como

‘condição necessária’ para o conhecimento, uma vez que é na língua que a

representação se transforma em objetividade, sem contudo abandonar a

subjetividade, Humboldt conduz a linguagem ao campo das estruturas a priori do

157 Humboldt, V p. 418 apud Lafont, op. Cit. Pág. 49. 158 Humboldt, VII 46 apud Lafont, op. Cit. Pág 35. 159 Humboldt, obras em 17 volumes de Königlich Preussischen Academie der Wissenschaften, Berlin, 1903-1936, VII 582 apud Lafont, op. Cit. Pág.38. 160 Para Cristina Lafont, a tematização da linguagem realizada pelo segundo Heidegger radicaliza a concepção de Humboldt e tende a hipertrofiar a linguagem (hipostatizar), ou seja, a linguagem converteria-se em um ‘absoluto contingente’ (termos de Habermas) que, ao coincidir com os limites do ‘mundo’, acaba por determinar tudo aquilo que pode aparecer nesse ‘mundo’. Desse modo, a intuição imprescindível para a objetividade do conhecimento resta relativizada pela tese da ‘preeminência do significado sobre a referência” que, segundo a autora, é a responsável pela dita ‘hipostatization del lenguaje’”. In Lafont, op. Cit. Pág. 47.

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pensamento161. É nesse sentido kantiano que Hansen-Love interpreta a concepção

de linguagem de Humboldt como uma ‘revolução copernicana’, visto que para

ele, a linguagem é uma origem radical que integra, de modo indissociável, a

natureza humana.

Entretanto, seguindo a crítica humboldtiana, a síntese originária não pode

ser encontrada na Razão, como queria Kant, mas também não reside na

Linguagem ‘em geral’. Humboldt deixa claro que o pensar não é dependente da

linguagem em geral, mas de cada língua particular. Aliás, não se poderia mesmo

falar em linguagem no singular. Como escreve Humboldt:

“A linguagem aparece na realidade somente como uma multiplicidade. Falar de uma linguagem em geral é uma abstração do entendimento. De fato, a linguagem aparece exclusivamente como um particular, além disso, somente na sua configuração mais individual, ou seja, como dialeto”162.

Uma vez que não existe a linguagem em geral, a idéia de buscar a

“origem” da linguagem, bastante discutida na época, parece absurda para

Humboldt. Tal questão surge de uma má colocação do problema e de uma

desconsideração da linguagem como atividade humana constitutiva de mundo.

Nas palavras de Humboldt: “o homem só é homem mediante a linguagem; para

ter inventado a linguagem, teria já que ser previamente homem”163. Desse modo,

Humboldt questiona a própria questão sobre a ‘origem da linguagem’, revelando a

sua impropriedade. Uma vez que a linguagem é a condição de possibilidade de

toda experiência, a tentativa de pensar uma situação “anterior” a linguagem torna-

se absurda ou irrelevante. Um objeto só pode ser apreendido enquanto tal através

da conceitualização que passa, necessariamente, pela linguagem.

A linguagem consiste, portanto, no lugar e na condição da constituição da

objetividade. Como escreve Humboldt: “do mesmo modo que sem linguagem não

é possível nenhum conceito, não pode haver tampouco um objeto para a alma,

visto que todo (objeto) exterior só obtém uma essencialidade perfeita para a alma

161 Lembrando a citação feita acima : « dans la langue la répresentation se voit ainsi transposée en objectivité sans pour autant être soustraite à la subjectivité », Humboldt, Sur la diversité de structure du potentiel linguistique de l´humanité, apud Hansen-Love, Ole. La révolution Copernicienne du Langage dans l´oevre de Wilhelm von Humboldt, op. cit. pág. 56 162 Humboldt, VI 241 apud Lafont, op. Cit. pág. 40. 163 Humboldt, IV 15-16 apud Lafont, op. Cit. pág 41.

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por meio do conceito”164. A emissão (através da fala) e a recepção (através da

escuta) estão ligados da mesma forma que a intuição e o conceito. Essa

solidariedade necessária indica, por sua vez, a correlação entre subjetividade e

objetividade. É nesse sentido que Humboldt troca a correlação entre sujeito/objeto

pela correlação atividade/receptividade. No exercício da língua, o homem é,

simultaneamente, ativo e receptivo, uma vez que o mundo se impõe a ele. A

linguagem é, portanto, o movimento pelo qual o mundo converge em direção ao

homem através da língua que ele fala e, ao mesmo tempo, ela se projeta para fora

pelo exercício ativo da fala. É assim portanto, que Humboldt explica a relação

entre o sujeito e o mundo. A língua, através do som articulado que constitui a sua

essência, é exatamente o lugar da síntese entre a atividade e a receptividade do

homem, ela “solda em si mesma o mundo ao homem”165.

Ao afirmar que “em cada linguagem radica uma perspectiva peculiar de

mundo”166, Humboldt não quer dizer que a linguagem é uma extensão do mundo

ou um espelho da natureza, mas que ela opera uma transformação tal nos objetos

que permite ao espírito compreender o “nexo ou a sistematicidade inerente ao

conceito de mundo”167. Segundo Lafont, esta afirmação inaugura a concepção

holista da linguagem que será herdada pela hermenêutica filosófica de Heidegger

e Gadamer. A linguagem cumpre a função de abertura de mundo porque sua

estrutura holista, ou seja, seu caráter de totalidade articulada, permite que o dito

“mundo” apareça como um todo ordenado. A linguagem “traz à luz o nexo do

mundo”168, escreve Humboldt.

Assim, a linguagem, enquanto constitutiva de mundo, enquanto condição

necessária à constituição da objetividade, é a instância determinante dos objetos

que aparecem nesse mundo e constitui o marco de referência absoluto para os

indivíduos que se encontram dentro desse dito mundo. Segundo Humboldt, a

atividade espiritual interior opera ‘praticamente sem deixar rastros’. Ela deve ao

som articulado a sua existência exterior e perceptível. É nesse sentido que a

atividade intelectual do espírito faz com a língua uma unidade indissolúvel. Ela

164 Humboldt, VII 60 apud Lafont, op. Cit. pág. 41. 165 La langue « soude en soi-même de monde à l´homme », Humboldt, Sur la diversité de structure du potentiel linguistique de l´humanité, apud Hansen-Love, Ole. La révolution Copernicienne du Langage dans l´oevre de Wilhelm von Humboldt, op. cit. pág. 62. 166 Humboldt, VI 180 apud Lafont, op. Cit. pág. 42. 167 Humboldt, VI 180 apud Lafont, op. Cit. pág. 42. 168 Ibid. apud Lafont, op. Cit. pág. 42.

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não pode prescindir do elemento fonético, sob pena do pensamento não aceder à

sua exteriorização, nem a representação tornar-se conceito169.

Mas o objeto não deve sua existência à representação subjetiva, ou seja,

contrário às teses idealistas reinantes, Humboldt rejeita a idéia de que o sujeito é

criador de representações. A energia individual não pode se opor à força massiva

da língua. A linguagem é, na verdade, um elemento estrangeiro ao sujeito. O

homem nasce já no interior de uma determinada língua que lhe antecede. Assim,

cada língua impõe ao falante toda a riqueza das gerações anteriores e da história

de cada nação a qual pertence. Ao falar, o sujeito apenas atualiza um passado

coletivo e traz à tona todo o sistema da língua a qual pertence170. Desse modo,

escreve Humboldt:

“Com o mesmo ato por meio do qual o homem vai tecendo a partir de si mesmo a rede da linguagem, ele vai se enredando nela e cada língua traça, em torno da nação a que pertence, um círculo do qual somente é possível sair na medida em que se entra ao mesmo tempo no círculo de outra língua”171. (grifo meu)

As consequências dessa tese, que serão exploradas pela filosofia

contemporânea, dos jogos de Wittgenstein a fusão de horizontes de Gadamer, são

explicitamente reveladas por Humboldt, como na passagem a seguir:

“A aprendizagem de uma língua estrangeira deveria ser a aquisição de um novo ponto de vista em relação ao mundo precedente, posto que toda linguagem contém a rede completa de conceitos e modos de representação de uma parte da humanidade. Mas, como sempre se transfere para a língua estrangeira, em maior ou menor medida, a própria perspectiva de mundo, mais ainda a própria perspectiva de linguagem, esse resultado nunca é sentido de forma pura e completa”172. (grifo meu)

169 « L´activité intellectuelle qui transite de manière purement spirituelle, intérieure et pratiquement sans laisser de trace, doit au son d´acquérir dans la parole une existence extérieure et perceptible. C´est porquoi elle ne fait pas avec la langue qu´une seule et même réalité indissoluble. Mais elle ne peut se soustraire à la nécessité de conclure une alliance avec l´élément phonétique, faut de quoi la pensée ne pourrait pas accéder à la transparence ni la representation au concept ». Percebe-se que Humboldt, apesar de iniciar o movimento de virada lingüística, ainda mantém a noção de interioridade, isto é, de algum conteúdo que existe no espírito, mesmo sem exteriorização, mesmo sem ‘deixar traço’. Humboldt, Sur la diversité de structure du potentiel linguistique de l´humanité, apud Hansen-Love, Ole. La révolution Copernicienne du Langage dans l´oevre de Wilhelm von Humboldt, op. cit. pág. 58. 170 « C´est toujours la langue qui fait sentir à chaque individu, de la façon la plus vive, qu´il n´est rien qu´un rameau prodigué par l´ensemble de l´espèce humaine », Humboldt, Sur la diversité de structure du potentiel linguistique de l´humanité, apud Hansen-Love, Ole. La révolution Copernicienne du Langage dans l´oevre de Wilhelm von Humboldt, op. cit. pág. 65. 171 Humboldt, VI 180-181 apud Lafont, op. Cit. pág. 43. 172 Humboldt, VI 181 apud Lafont, op. Cit. pág. 43.

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A linguagem revela, segundo a visão expressivista, uma singularidade

individual ou coletiva (um sujeito ou um povo), enfim, um “espírito” que se

realiza em sua plenitude na medida em que a língua se desenvolve. A língua

revela o “espírito” da nação e, por isso, o trabalho de tradução envolve,

simultaneamente, a língua, a cultura e a nação. A tradução é de suma importância

para Humboldt porque implica na capacidade de alargamento da língua e,

portanto, na capacidade de expressão de uma cultura e de uma nação. Assim, o

trabalho dos tradutores, ao incrementar o poder de expressão da língua original,

aumenta também o poder de seu povo. É nesse sentido que Humboldt falará da

enorme dificuldade em traduzir um texto estrangeiro, como o chinês173, além da

impossibilidade de se compreender inteiramente um poeta estrangeiro. Escreve

Humboldt:

“As palavras de uma língua estrangeira se assemelham a signos mortos; no lugar daqueles da nossa que são vivos, porque eles se ligam a tudo que respira em torno de nós. Mesmo se uma expressão estrangeira nos é perfeitamente conhecida e que nós a tenhamos pronunciado no país mesmo a que ela pertence, ela jamais entrará no fundo de nossos pensamentos, ela não nos servirá jamais para descobrir uma idéia nova ou interessante, ela não irá jamais ser pronunciada num momento de emoção ou dor; e isso faz com que ela permaneça, em certo ponto, sempre estrangeira”174.

A tradução é, para Humboldt, uma das tarefas mais importantes e

necessárias de uma literatura, uma vez que traz novas formas de expressão que

enriquecem a capacidade expressiva da própria língua e, consequentemente,

desenvolvem o sentido da nação. “Ao mesmo tempo que se alarga o sentido da

língua, alarga-se também o sentido da nação”, escreve Humboldt175. É nesse

sentido que Humboldt irá enaltecer a língua francesa, enquanto aquela que atingiu

o nível mais refinado e delicado de expressão de seu próprio caráter. Assim, a

poesia francesa sofre sempre injustiças quando tenta ser traduzida, visto que

“nenhuma outra poesia se atém tão fortemente à sua língua; nenhuma outra nação

173 Humboldt, Lettre à Abel-Rémusat du 6 juillet 1827 éditée par J. Rousseau, in Lettres édifiantes et curieuses, p. 250 apud Humboldt, Sur le Caractère National des langues et autres écrits sur le langage. Op. cit. pág 25. 174 Article français sur Essais esthétiques sur Hermann et Dorothée de Goethe adressé par Humboldt à Madame de Staël, 1799 apud Humboldt, Sur le Caractère National des langues et autres écrits sur le langage. Op. cit. pág 30. 175 Humboldt, « Sur la traduction Introduction à l´Agamemnon » in Sur le Caractère National des langues et autres écrits sur le langage. Op. cit.. pág 35.

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tem uma maneira de sentir tão delicada, tão refinada; e é por isso, talvez, que as

nações estrangeiras, quando pretendem formar seu caráter particular, tratam ainda

assim as obras clássicas francesas com injustiça”176.

Mas o exemplo maior dessa relação inerente entre linguagem e caráter

nacional é o enriquecimento que a língua alemã obteve depois que passou a imitar

a língua grega, na sua forma autêntica e não desnaturada. Assim, a nação alemã

deve muito de seu amadurecimento aos tradutores do grego clássico que

introduziram na língua alemã as expressões (e sentimentos, pensamentos,

imagens, lembranças) dessa elevada cultura. O privilégio da língua grega sobre as

demais deve-se ao seu poder de amplificação. Para Humboldt, o ritmo da poesia

grega, especialmente a dramática, independentemente da música e dos

pensamentos que a acompanham, expressa de modo singular a essência do mundo

grego. Para ele, os gregos foram os únicos a portar esse ritmo, uma forma graciosa

e elevada que, através do som, expressa o mundo em si. As demais línguas (e

nações) não conheceram esse ritmo. Os romanos, por exemplo, não produziram

senão que um “eco rude e fraco”177.

Nesse sentido, a língua alemã parece-lhe, entre as línguas modernas, a

única a possuir as qualidades capazes de reproduzir um tal ritmo. A língua alemã

possui, portanto, poder de amplificação devido a sua qualidade ritmica

comparável ao grego. Assim como um instrumento musical, uma língua deve

ressoar e permitir ser “tocada” em toda sua potencialidade.

Para Humboldt, o ritmo da língua, ou seja, a forma com a qual as palavras

se ligam em sílabas, as sílabas em palavras e as palavras se relacionam umas com

as outras no discurso, esse jogo de duração e sonoridade determina ou designa o

destino intelectual, logo, o destino moral e político de uma nação. É nesse sentido

que os gregos foram o povo mais afortunado que se conhece, pois, com sua língua

elevada e potente, exerceram o domínio através do espírito e da palavra, e não

pela potência da ação178. A língua e a nação possuem, assim, uma relação de

176 Humboldt, Article français sur Essais esthétiques sur Hermann et Dorothée de Goethe adressé par Humboldt à Madame de Staël, 1799 apud Humboldt, Sur le Caractère National des langues et autres écrits sur le langage. Op. cit. pág 30. 177 Humboldt, « Sur la traduction Introduction à l´Agamemnon » (1816) in Sur le Caractère National des langues et autres écrits sur le langage. Op. cit. pág. 45. 178 Humboldt, « Sur la traduction Introduction à l´Agamemnon » (1816) in Sur le Caractère National des langues et autres écrits sur le langage. Op. cit. pág. 47.

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reciprocidade constitutiva. Uma verdadeira individualidade espiritual não se

apresenta senão em línguas que já alcançaram um certo nível elevado de cultura,

diz Humboldt. É nesse sentido que o estudo das diversas línguas existentes ganha

sua importância. Humboldt avança teses estruturalistas ao investigar a língua de

uma determinada cultura a fim de revelar sua singularidade, pressupondo que uma

investigação genealógica das línguas permitiria determinar com rigor a origem

dos diversos povos e culturas179.

É interessante notar que o jovem Nietzsche, em textos como Sobre

Verdade e mentira em sentido Extramoral, Sobre o futuro de nossos

Estabelecimentos de Ensino e os cursos sobre a Retórica (1873-1874) também

ressaltam a musicalidade como a dimensão mais importante da linguagem. Seja

para ressaltar a música como o núcleo metafísico da tragédia, seja para associar a

musicalidade com a sedução, a dissimulação próprios da oratória, Nietzsche

considera que a incompetência de sua época em compreender a tragédia grega

deve-se, sobretudo, à perda do elemento musical. Escreve Nietzsche: “Somos hoje

incompetentes face à tragédia grega porque seu efeito devia-se em grande parte a

um elemento que perdemos: a música (...) A música (...) toca imediatamente o

coração, pois é a verdadeira linguagem universal, compreendida em toda parte”180.

E ainda, no curso “Retórica”, Nietzsche fala sobre “o extraordinário

desenvolvimento do senso rítmico entre os gregos e romanos, para quem escutar a

palavra era ocasião de um formidável exercício contínuo”181.

Entretanto, apesar de apontar para o caráter determinante e contingente da

linguagem, Humboldt permanece fiel ao projeto universalista e, nesse sentido,

compartilha com Hamann a noção de ‘quase-transcendentalidade’ da linguagem.

Uma vez que a objetividade do conhecimento não pode mais se fundamentar no

‘mundo’ pré-lingüístico, como postulava o realismo tradicional, apenas o apelo a

uma certa universalidade inerente à linguagem pode salvar o universal. Assim,

para Humboldt, toda linguagem tem um caráter universal, isto é, em toda língua

179 Humboldt, « Sur le caractère national des langues » (fragment) in Sur le Caractère National des langues et autres écrits sur le langage. Op. cit. pág. 133. 180 Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, apud Suarez, Rosana. “Nietzsche e os Cursos sobre a Retórica”. In O que nos faz pensar, Cadernos do Departamento de Filosofia da Puc-Rio, Agosto de 2000. 181 Nietzsche, “Retórica” apud Suarez, Rosana. “Nietzsche e os Cursos sobre a Retórica”, op. cit. pág. 69.

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pode-se expressar, com mais ou menos dificuldade, todo pensamento e todo

conceito. Esclarece Humboldt:

“Tanto aos conceitos como à linguagem de cada povo, por mais primitivo que ele seja, subjaz uma totalidade equivalente em extensão à ilimitada capacidade de aprendizagem humana, a partir da qual é possível criar, sem ajuda externa, tudo aquilo que abarca a humanidade”182.

Desse modo, o caráter universal da linguagem situa-se exatamente nessa

competência compartilhada por todas as línguas, qual seja, a de expressar a

concatenação de idéias subjacente a cada cultura. Nesse ponto, Humboldt apela

para uma ‘forma’ que seria comum a todas as línguas e que garantiria, em última

análise, a objetividade do conhecimento. Como assinala Lafont, Gadamer

empreenderá uma crítica a tal visão formalista de Humboldt, uma vez que a forma

lingüística e o conteúdo transmitido são inseparáveis da experiência hermenêutica

enquanto tal183. De qualquer modo, considerando a démarche humboldtiana em si

mesma, parece incompatível a defesa de uma forma universal subjacente a toda

linguagem com a tese de que cada língua abre uma perspectiva de mundo

particular. Nesse sentido, apesar de superar a concepção instrumental da

linguagem, a filosofia humboldtiana ainda busca a objetividade e a universalidade

na linguagem, mesmo que pagando o preço da auto-contradição.

Além disso, ao considerar a linguagem como o local da síntese – entre a

receptividade humana (sensibilidade) e a atividade ou espontaneidade do espírito

(entendimento) – Humboldt assinala que é a articulação sonora, enquanto essência

da linguagem humana, aquilo que preenche o intervalo entre a Vorstellung e o

Objekt, ou seja, aquilo que permite a Darstellung. Apenas esta última é

propriamente lingüística. Sem o som (voz, phonè), o pensamento não se

exterioriza. E este som articulado que tem lugar na fala é uma propriedade

exclusiva da espécie humana. A linguagem é o mediador privilegiado entre o

homem e o mundo porque sua essência reside na articulação que, por sua vez, é

uma caraterística humana por excelência. Assim como pensava Aristóteles, os

animais podem emitir sons, mas não possuem linguagem.

182 Humboldt, VII 29 apud Lafont, op. Cit. Pág. 53. 183 Lafont, op. cit. pág. 53, nota 18.

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É nesse sentido que Humboldt define a linguagem como um ‘órgão’ que

dá forma ao conteúdo do pensamento. Através da noção de ‘organismo’ (comum

ao romantismo de sua época), Humboldt evoca o liame indissolúvel, interior e

funcional que une a língua ao pensamento. Mas também evoca “a aliança

indissolúvel que liga o pensamento, os órgãos da fala e da audição à língua e que

repousa em última análise na organização originária da natureza humana”184.

Assim, a especificidade da linguagem humana reside na articulação sonora. O

som lingüístico é o som articulado. Escreve Humboldt: “O som articulado ou, de

modo mais geral, a articulação é a essência por excelência da linguagem”185.

Apesar de Humboldt apontar para uma nova concepção de linguagem,

levando em consideração seu caráter constitutivo e situado, o privilégio da phonè

(e, portanto, da presença a si na fala) permanece intocado. A língua, através da

fala e da escuta, expressa um espírito, um povo, uma nação, uma identidade que

evolui rumo à sua plenitude, ou seja, rumo à expressão mais completa e autêntica

de sua essência. Uma cultura evoluída tem necessariamente uma língua evoluída,

visto que a linguagem influencia a “alma” de um povo186. Em outros termos, a

identidade a si do sujeito (individual ou coletivo) que se expressa através da

língua falada, tal como aparece em Herder (e Taylor), resta não questionada.

Nesse sentido, a noção de autenticidade desenvolvida por Herder, somada à

concepção situada da linguagem de Humboldt, resultará uma combinação perfeita

para o novo sentido de ´pátria´ e ‘nação’ em vias de formação.

Com efeito, o sujeito ainda não morreu e a idéia moderna de nação está em

pleno florescimento. A confiança na subjetividade humana determina a filosofia

da época, e podemos compreender melhor a razão de seu domínio, se fizermos

referência ao momento histórico em que tais idéias nasceram. No início do século

XVII, após a guerra dos 30 anos, a Alemanha era um território politicamente

desorganizado, dividido em estados minúsculos, sem uma classe média auto-

sustentável, com desenvolvimento econômico precário e um certo desprezo pela

184 “L´alliance indissoluble qui lie la pensée, les organes phonateurs et l´ouïe à la langue repose en dernier recours sur l´organisation originaire et irréductible de la nature humaine » Humboldt, Sur la diversité de structure du potentiel linguistique de l´humanité, apud Hansen-Love, Ole. La révolution Copernicienne du Langage dans l´oevre de Wilhelm von Humboldt, op. cit. pág. 60. 185 Humboldt, Sur la diversité de structure du potentiel linguistique de l´humanité, apud Hansen-Love, Ole. La révolution Copernicienne du Langage dans l´oevre de Wilhelm von Humboldt, op. cit. pág. 62. 186 Idem, pág. 149.

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língua alemã. A geração de Leibniz foi a primeira a valorizar a “singularidade” da

filosofia e língua alemã187. Como escreve Inwood:

“Leibniz exaltou as virtudes da língua alemã e defendeu o seu desenvolvimento e uso para fins acadêmicos, científicos e filosóficos. Mas Leibniz, tal como a maioria dos demais pensadores alemães do final do século XVII, escreveu quase sempre em latim ou francês. O alemão tinha caído em desuso como língua erudita. O problema para o filósofo que escrevia em alemão não era primordialmente a inexistência de palavras no vernáculo para uso, mas o fato de não haver um vocabulário filosófico estabelecido e geralmente aceito. O passo mais significativo nessa direção foi dado pelo principal filósofo do Iluminismo alemão, Christian Wolff (1679-1754)” 188.

Não é de se estranhar que, num momento instável como esse, a filosofia

buscasse uma unificação que pudesse estabelecer as bases racionais para o

conhecimento científico nascente, sem negligenciar a religião que ainda

determinava o pensamento189. Kant foi inspirado por esse desejo de harmonização

e de segurança, mas não conseguiu superar o paradoxo iluminista. Em outros

termos, não conseguiu reunificar sujeito e objeto. O abismo entre entendimento e

sensibilidade restou a ser ultrapassado. E esta tarefa foi o desafio que

expressivismo alemão assumiu.

Com efeito, a concepção expressivista da linguagem – e o subjetivismo

que a acompanha – buscou superar a oposição entre natureza e liberdade, ao

propor uma noção distinta de criatividade, oposta à concepção de sujeito e de

linguagem do Iluminismo (nesse ponto, essencialmente nas figuras de Locke e

187 Em 1710 Leibniz escreve Brevis designatio meditationum de originibus gentium, ductis potissimum ex indicio linguarum (‘Breve comentário sobre a origem dos povos deduzido principalmente pelas indicações fornecidas pelas línguas’), onde utiliza-se de conhecimentos linguísticos para esclarecer a origem dos povos. Marc Crépon traduz várias passagens desse texto em Leibniz, L´harmonie des langues, Seuil, Paris, 2000. 188 in Inwood, “Hegel e sua Linguagem”, Dicionário Hegel, op. cit. pág 22. 189 Nesse sentido, a disputa filosófica dessa época também ficou conhecida como “conflito do panteísmo”. O pano de fundo desse ‘conflito’ era marcado pela oposição entre fé e saber, ou seja, entre o lugar e o papel que a fé e a razão desempenham no domínio moral, político e religioso. Assim, o ‘conflito do panteísmo’ é uma expressão que se refere à polêmica entre fé e razão, tal como foi protagonizada por Jacobi, Lessing, Mendelssohn e Kant Guiando-nos pela leitura que se fazia de Spinoza à época, o materialismo coerente do sistema espinozista só poderia nos levar ao ateísmo, conduzindo a uma ruptura total entre razão e fé. Levando isso em conta, a afirmação feita por Jacobi de que Lessing teria se convertido ao espinozismo antes de morrer, pareceu algo inaceitável para os “amigos de Lessing”, por levar à conclusão de que Lessing teria rejeitado sua religião. Mendelssohn, que defendia a possibilidade de um conhecimento racional de Deus, sai em defesa do amigo morto contra Jacobi. Ao tomar posição nessa polêmica, Kant apresenta uma terceira posição, contra Jacobi e Mendelssohn, no texto “O que Significa orientar-se no pensamento”. Para Kant, não podemos abrir mão de nossa razão e de suas necessidades próprias, e uma dessas necessidades da razão é a exigência de postulação da existência de um ser supremo. A essa necessidade da razão Kant dá o nome de fé racional.

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Condillac). Ao apontar para um novo entendimento da linguagem como

constitutiva da realidade e não apenas como sua representação190, a ‘concepção

expressivista da linguagem’ apresenta as palavras como constituintes do

pensamento e emoções, e não apenas como rótulos colados às coisas.

Charles Taylor pode ser considerado um ‘herdeiro fiel’ de tal concepção.

Segundo sua leitura da “triple H theory”, a noção de expressão em jogo nessa

nova concepção de linguagem não se resume a um ‘trazer à luz’ algo que estava

oculto. Ao articular sentimentos e emoções, a linguagem constitui parte daquilo

que o self buscava expressar. Assim, a dimensão expressivista da linguagem é

também constitutiva porque participa da auto-compreensão que o sujeito faz da

sua própria expressão. Como a filosofia de Taylor permanece essencialmente

marcada pela noção de self, então a sua compreensão da linguagem resta

vinculada à noção de ‘self-understanding’. Apesar de ressaltar a abertura do

espaço comum permitida pela dimensão expressivista da linguagem191, Taylor

vincula este caráter ao self moral, isto é, ao homem enquanto único animal capaz

de auto-compreensão e de avaliações morais192.

A articulação lingüística da auto-compreensão do self é fundamental, uma

vez que a esclarece e ajuda a determinar seus limites. Segundo Taylor, “descrever

algo de forma diferente do usual pode mudar a percepção de uma pessoa quanto a

isso”. E acrescenta:

“A idéia revolucionária do expressivismo é que o desenvolvimento de novos modos de expressão nos torna capazes de ter novos sentimentos, mais poderosos e mais refinados e, certamente, uma maior auto-compreensão. Ao expressar nossas emoções e sentimentos nós lhe damos uma dimensão reflexiva que os transforma”193.

190 Taylor segue o trabalho de Isaiah Berlin que utiliza o termo ´expressionismo` para debater as idéias de Herder. Alguns intérpretes de Taylor vêm se referindo a ele como representando um certo ´expressivismo hermenêutico`. 191 “Public space is constituted by expression, and so any reveletions concerning it have to be expressive” in Taylor, “Theoies of meaning”, op. cit. pág. 266. 192 Taylor desenvolve a noção de “avaliações de segundo grau” para marcar a característica propriamente humana de ter pensamentos e sentimentos de alto grau de complexidade. Nesse sentido, segundo ele, podemos imaginar que os animais tenham sentimentos como a raiva, mas não como a indignação, visto que esta última exige uma avaliação moral da atitude de outra pessoa, ou seja, exige um julgamento moral mais complexo que apenas tem lugar num mundo lingüisticamente estruturado. Taylor desenvolve tais idéias especialmente em Fontes do Self, op. cit. 193 Taylor, “Philosophy of Language” Philosophical Papers I, parte III, Cambridge University Press, 1985.

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Nesse sentido, o sujeito não apenas reflete uma ordem predeterminada,

mas realiza tal ordem ao expressá-la com seu modo único de ser. O “espírito” só

pode encontrar sua completa expressão na auto-consciência humana imanente em

sua relação indissociável com a linguagem. Esse passo aprofunda ainda mais a

noção de interioridade que marca a virada subjetivista da modernidade, iniciada

com Santo Agostinho. Com a “virada expressivista”, a linguagem volta-se para a

expressão subjetiva, isto é, para a auto-expressão única e singular do ser humano.

O que está em jogo nessa “antropologia expressivista” é uma nova noção de

expressão humana.

Segundo Taylor, a linguagem não pode ser tratada como objeto não apenas

porque ela não se resume a um instrumento para designar uma realidade pré-

existente. A visão instrumentalista (seja ela naturalista ou nominalista) da

linguagem não se sustenta porque não leva em consideração a característica

‘essencial’ da linguagem, qual seja, a sua dimensão expressivista/constitutiva.

Tomar a vida e a atividade humanas como expressivistas significa dizer

que tais eventos revelam um sujeito, ou seja, realizam, trazem para a realidade

externa uma subjetividade, além de simplesmente transmitir algum conteúdo.

Nesse cenário, a dimensão criativa da linguagem tende a superar a visão

instrumental aristotélica. Mas a noção de criação enquanto revelação de um

sentido ‘próprio’ ou ‘autêntico’ de um sujeito (self moral) ou de uma determinada

parcela da humanidade (que se auto-define como povo ou nação) resta a ser

desconstruída. O que permanece não tematizado é a noção mesma de self, de

sujeito que se auto-realiza no compartilhamento de uma língua, ou seja, no

interior de uma determinada ‘forma de vida’194.

Entretanto, o ‘expressivismo alemão’ (aqui representados por Hamann,

Herder e Humboldt), considerada em oposição à visão reificada do signo das

teorias de Locke e Condillac, representa, sem dúvida, uma linha divisória na

compreensão filosófica da linguagem. A idéia revolucionária implícita nos textos

de Hamann, incrementada por Herder e melhor desenvolvida por Humboldt, foi a

de que o desenvolvimento de novas modalidades de expressão nos capacita a ter

novos sentimentos, mais potentes ou mais aprimorados e, por certo, mais auto-

conscientes. Ao sermos capazes de exprimir nossos sentimentos, através da

194 Taylor considera Wittgenstein um membro honorário da “Triple H theory”, in “Theorys of meaning”, op. cit. pág. 290.

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articulação lingüística, nossos pensamentos ganham uma dimensão reflexiva que

os transforma. No entanto, os sentimentos ou emoções em si mesmos, ou seja,

enquanto auto-afecções da alma, do interior do sujeito auto-consciente permanece

não problematizado.

Nesse sentido, como resta patente no texto humboldiano, a plenitude da

cultura alemã resta a ser expressada, assim como a língua alemã resta a ser

enriquecida. Isto porque existe algo como a ‘identidade alemã’ ou a ‘língua

alemã’. E esta busca de plenitude e de ‘auto-realização’ é uma tarefa deve ser

assumida pelo ‘povo’ e realizada através do cultivo da ‘língua nacional’, uma

língua idêntica a si mesma e que se expressa, essencialmente, na fala reconstituída

pela ‘boca do povo’.

Mesmo reconhecendo a novidade do expressivismo e sua valorização da

linguagem concreta e do contexto em que ela se situa, cabe investigar até que

ponto essa concepção expressivista ainda resta cativa de uma visão metafísica da

linguagem. Com efeito, a “virada linguística” ainda está distante de ser realizada e

a linguagem, apesar de ganhar uma concepção mais larga e complexa, continua a

ser tratada como um meio a serviço de algo, a saber, a serviço da expressão dos

sentimentos originais e autênticos do sujeito moderno (o self ou o “povo”).

O sujeito, singularidade única, expressa e realiza a natureza enquanto tal,

visto que faz mais do que meramente refletir passivamente o ‘mundo objetivo’ em

si mesmo195. Segundo a concepção expressivista, o eu interior mais profundo

permanece livre para se auto-expressar, uma vez que ele é o veículo privilegiado

para trazer o “espírito” à sua completa realização. Segundo a visão expressivista,

o “poder” que permeia a totalidade da natureza pode alcançar sua mais completa

expressão na auto-consciência subjetiva. Assim, o “espírito” alcança sua

consciência e realização no ser humano. E a linguagem, ela mesma, resta um

fenômeno exterior, um mediador entre o sujeito e o mundo, uma forma (a mais

conveniente e apropriada à natureza humana) de expressão da autenticidade de um

sujeito ou de um grupo de sujeitos que identificam-se como ‘povo’ ou ‘nação’.

Além de manter intacta a noção metafísica de ‘sujeito’ (individual ou

coletivo), o expressivismo alemão, sobretudo Humboldt, continua determinado

195 Nas palavras de Taylor: “On this view, the cosmic spirit which unfolds in nature is striving to complete itself in conscious self-knowledge, and the locus of this self-consciousness is the mind of man”. Taylor, Hegel, op. cit. pág. 44.

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pelo desejo de fundamentação do conhecimento. Com efeito, mesmo adiantando

teses importantes da virada lingüística, os textos humboldtianos ainda deixam

espaço para uma leitura de viés racionalista. Mesmo realizando uma crítica à

filosofia kantiana e suas oposições irreconciliáveis, Humboldt resta cativo da

ilusão de ‘objetividade’.

Nesse sentido, Lafont critica a apropriação feita por Heidegger da

lingüística humboldtiana, visto que este promoveria uma ‘hipostatización’ da

função de abertura de mundo da linguagem, negligenciando a dimensão

comunicativa, também presente nas análises de Humboldt. Seguindo a leitura

heideggeriana, argumenta Lafont, a possibilidade da objetividade do

conhecimento restaria impossibilitada pela ‘proeminência do significado sobre a

referência’. Assim, para Lafont, uma “boa” leitura de Humboldt deve salvar a

possibilidade do conhecimento objetivo através da ‘razão comunicativa’

pressuposta na linguagem enquanto fenômeno dialógico e intersubjetivo. Na

esteira de Apel e Habermas, a linguagem seria, assim, essencialmente voltada ao

entendimento e à comunicação. Este caráter comunicativo da concepção de

linguagem de Humboldt seria, portanto, o mais essencial.

Além de não subscrever a leitura de Lafont, não me interessa aqui

investigar até que ponto Heidegger mantém-se fiel à sua herança expressivista ou

se sua leitura de Humboldt é apropriada ou não. Com efeito, o que me interessa

destacar é o movimento de virada da filosofia rumo à linguagem e, nesse sentido,

como a filosofia heideggeriana, enquanto herdeira do expressivismo alemão,

influencia o pensamento de Derrida, sobretudo em seu empenho em ultrapassar a

metafísica que determina a filosofia ocidental. Nesse sentido, a radicalização que

Heidegger opera na filosofia de Humboldt, somada a sua crítica à fenomenologia

de Husserl, parece-me um caminho interessante a seguir rumo a uma melhor

compreensão da écritue derridiana.

3.3

Espectro Heidegger

Tendo em vista a complexidade da filosofia de Heidegger, inicio esta

seção espectral com um pedido de desculpas. Seria impossível fazer justiça à

noção de linguagem desenvolvida por Heidegger e, além disso, este não é o

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motivo central desta tese. Desse modo, não apresentarei uma análise exaustiva de

seus textos, nem me reportarei a noções cruciais de sua filosofia. No entanto,

pergunto-me se é legítimo utilizar-me dos textos heideggerianos que me

interessam e não render a mesma atenção, por exemplo, a Ser e Tempo, obra onde

Heidegger estabelece noções básicas indispensáveis para a compreensão de sua

filosofia. Mas como toda leitura é um perjúrio, começo já traindo e perjurando o

querer-dizer de Heidegger, assim como o de Derrida e, por isso, peço perdão.

Mas como somos todos, desde sempre, tradutores endividados, não me

absterei em apontar a enorme influência que a obra de Heidegger exerce sobre o

pensamento de Derrida. Nesse sentido, inicio apresentando uma leitura da A

caminho da linguagem, obra que reúne os últimos textos de Heidegger

publicados, nos quais este potente pensador se lança ao desafio de pensar a

essência da linguagem para além da representação metafísica tradicional. Na

sequência, apresento a crítica desenvolvida por Derrida, em diversos textos, à

filosofia de Heidegger, acentuando, sobretudo, a crítica desconstrutora à

vinculação entre ‘ser’ e ‘linguagem’ presente no texto de Heidegger.

Heidegger afirma, logo no início de A Linguagem196, texto escrito em

1959, que as palavras de Wilhelm von Humboldt são determinantes para pensar a

linguagem enquanto uma atividade humana que resta oculta e mal compreendida.

Vale citar o longo e inspirador primeiro parágrafo de A Linguagem:

“O homem fala. Falamos quando acordados e em sonho. Falamos continuamente. Falamos mesmo quando não deixamos soar nenhuma palavra. Falamos quando ouvimos e lemos. Falamos igualmente quando não ouvimos e não lemos e, ao invés, realizamos um trabalho ou ficamos à toa. Falamos sempre de um jeito ou de outro. Falamos porque falar nos é natural. Falar não provém de uma vontade especial. Costuma-se dizer que por natureza o homem possui linguagem. Guarda-se a concepção de que, à diferença da planta e do animal, o homem é o ser vivo dotado de linguagem. Esta definição não diz apenas que, dentre muitas outras faculdades, o homem também possui a de falar. Nela se diz que a linguagem é o que faculta o homem a ser o ser vivo que ele é enquanto homem. Enquanto aquele que fala, o homem é: homem. Essas palavras são de Wilhelm von Humboldt. Mas ainda resta pensar o que se chama assim: o homem”197.

A concepção de linguagem elaborada pela tradição Hamann-Herder-

Humboldt é, sem dúvida, o ponto de partida de Heidegger rumo à superação da

196 Heidegger, Martin. “A Linguagem” in A Caminho da Linguagem. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Ed. Vozes, 2003. 197 Heidegger, “A Linguagem”, op. cit. pág.7.

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filosofia da consciência e a um novo pensamento sobre a linguagem. No entanto,

a filosofia heideggeriana opera uma radicalização de tal concepção ao propor um

novo modelo de explicação da relação entre sujeito e mundo. Para Heidegger, a

estrutura primária de nossa relação com o mundo só pode ser analisada sob a

forma do ‘compreender’ e não através do modelo da ‘percepção’ que domina a

filosofia da consciência. Não podemos estabelecer uma relação de ‘pura

percepção’ com as coisas intramundanas porque os entes estão já sempre

compreendidos pela nossa situação de ‘ser-no-mundo’. Desse modo, estamos

situados, sempre e já, num ambiente de pré-compreensão, situação que Heidegger

define como um ‘fato’, como escreve logo no início de Ser e Tempo: “Nos

movemos sempre e já em uma compreensão do ser”198.

Nesse sentido, o dasein não é um ‘sujeito criador’ de mundo, mas participa

da constituição de sentido do mundo em que se encontra já sempre situado. O

‘mundo’ não pode mais ser entendido como o conjunto de todos os entes, onde o

sujeito ocupava o papel de ‘observador’ situado frente aos objetos que se prestam

à observação e ao conhecimento. Com efeito, o mundo é um todo simbolicamente

estruturado onde o sujeito encontra-se lançado, desde sempre e desde já. O dasein

é, antes de tudo, um ‘ser-no-mundo’. É por isso que sua relação com o mundo só

pode se dar na forma da compreensão, ou seja, de uma antecipação de sentido. A

compreensão do sentido do ser das coisas é anterior a qualquer conhecimento que

possamos ter sobre tais coisas.

A partir de tais teses, já presentes em Ser e Tempo, Heidegger efetua um

rompimento absoluto com a filosofia da consciência, para além da definição

humboldtiana de linguagem como ‘atividade humana’ e que ainda guarda traços

da filosofia do sujeito. Assim, duas premissas podem ser identificadas como

invariantes no pensamento de Heidegger, a saber: a noção de pré-compreensão ou

de antecipação de sentido, visto que ‘nos movemos sempre já em uma

compreensão do ser’; e a noção de dasein como ‘ser-no-mundo’, ou seja, como

participante da constituição de sentido desse mundo, visto que o dasein permanece

sempre em um estado de abertura ao sentido (dos entes intramundanos e, em

última instância, do ser).

198 Heidegger, Ser e Tempo, op. cit. pág. 31.

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No entanto, a manutenção de tais teses obriga Heidegger a efetuar uma

‘virada’ em seu pensamento, movimento que ele mesmo denomina de ‘Khere’. A

base metodológica adotada em Ser e Tempo parte de uma analítica existencial do

dasein (enquanto o ente privilegiado para responder à demanda do ser) rumo a

uma compreensão da constituição do mundo. Nesse sentido, a ontologia

fundamental é o ponto de partida para pensar a constituição simbólica do mundo.

Só podemos compreender o nosso ‘estar-aí-no-mundo’ a partir de uma analítica

existencial do dasein. No entanto, tal base metodológica mostrou-se incompatível

com as próprias premissas avançadas em Ser e Tempo, ou seja, com a idéia de que

‘sempre já’ nos movemos num mundo onde a compreensão do ser das coisas já se

deu. Como compreender a constituição do mundo a partir de um ente que, por

mais privilegiado que seja, encontra-se sempre já mergulhado na mundanidade?

Com efeito, ao vincular o mundo à estrutura existencial do dasein,

Heidegger ainda deixa restos de uma filosofia do sujeito e permite leituras

antropologizantes de sua obra. Com efeito, como destaca Derrida, a recepção de

Heidegger na França foi determinada por uma leitura redutora de Ser e Tempo,

onde o dasein foi compreendido em termos antropológicos. E, mesmo após a vaga

humanista e antropologista que envolveu a filosofia francesa, essa leitura redutora

de Heidegger (assim como de Hegel e Husserl), continuaram a produzir efeitos.

Escreve Derrida: “os esquemas da má interpretação antropologista do tempo de

Sartre operam ainda e, por vezes, são esses esquemas que guiam a rejeição de

Hegel, de Husserl e de Heidegger para as trevas da metafísica humanista”199.

Nesse sentido, o ‘segundo’ Heidegger, ou seja, o Heidegger após a

‘Khere’, apesar de manter a estrutura essencial de Ser e Tempo, elegerá a

linguagem como a instância privilegiada de constituição de sentido do mundo. A

linguagem tornar-se-á a “condição de possibilidade” para que o dasein encontre-

se, desde sempre e desde já, em um mundo estruturado. Assim, a linguagem será

definida como a instância de abertura que permite ao dasein participar na

constituição de sentido do mundo e estar, ao mesmo tempo, sempre já situado

nesse mundo onde os entes aparecem. Nesse sentido, duas afirmações de

Heidegger são bastante ilustrativas: “A linguagem é a casa do ser” e “Somente

199 Derrida, “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 158.

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onde há linguagem há mundo”200. Voltaremos a elas na sequência. Por ora, deixo

assinalado duas coisas: Heidegger realiza uma ‘virada’ em relação à posição

assumida em Ser e Tempo, ao privilegiar a linguagem e sua função de abertura de

mundo; contudo, não abandona o pensamento do dasein e daquilo que é o

‘próprio’ do homem, a saber, sua destinação ao sentido do ser. Desenvolvo, a

seguir, a concepção de linguagem do ‘segundo’ Heidegger para depois, seguindo

a crítica de Derrida, apontar os restos de metafísica que ainda comandam a

filosofia heideggeriana.

Segundo Heidegger, “a linguagem fala”. Com esta simples frase, quer

apontar para o fato de que não é mais o dasein que, através da linguagem, fala e

participa da constituição do sentido do mundo. “A linguagem fala” nos diz que,

através do dasein – ente privilegiado porque capaz de se colocar a questão sobre o

sentido do ser – fala e constitui sentido para as coisas no mundo. Somente a

linguagem traz os entes à luz, ou seja, doa ser aos entes. Assim, ao afirmar que “a

linguagem fala”, Heidegger nos convoca a pensar a linguagem ela mesma, e nada

além dela, ou seja, “penetrar na fala da linguagem a fim de conseguirmos morar

na linguagem, isto é, na sua fala e não na nossa”. O seu texto não quer

“fundamentar a linguagem com base em outra coisa do que ela mesma nem

esclarecer outras coisas através da linguagem”. Apenas assim a linguagem nos

confiaria o seu modo de ser, a sua essência, diz Heidegger201.

Nesse sentido, inicia sua investigação apresentando a caracterização

corrente de linguagem. Segundo o senso comum, “a fala é uma atividade dos

órgãos que serve para a emissão de sons e para a escuta. Fala é expressão e

comunicação sonora de movimentos da alma humana. Esses movimentos são

acompanhados por pensamentos”202. A partir dessa caracterização, Heidegger

deduz três afirmações: 1) a fala é a expressão de uma interioridade; 2) falar é uma

atividade humana, portanto, “o homem fala” e; 3) a expressão do homem é uma

apresentação do real e do irreal.

Com efeito, tais teses não são falsas, afirma Heidegger. A linguagem pode

ser caracterizada como expressão sonora de movimentos interiores da alma e da

200 “A linguagem não é apenas um instrumento que o homem possui entre muitos outros, senão que a linguagem é o que previamente o possibilita a estar no meio da abertura do ente. Somente onde há linguagem há mundo” in Hölderlin e a essência da poesia, apud Lafont, op. cit. pág. 35. 201 Heidegger, “A Linguagem”, op. cit. pág. 9 202 Heidegger, “A Linguagem”, op. cit. pág. 10

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visão de mundo que os acompanha, como atividade humana e como representação

figurada e conceitual. No entanto, tais formulações não conseguem escapar à

representação tradicional da linguagem que, há mais de dois milênios e meio,

sustenta a lógica e a gramática, a filosofia da linguagem e a lingüística. Tais

formulações remetem a uma antiga tradição que muito tem a nos ensinar, mas que

deixa inobservado, segundo Heidegger, “o cunho mais antigo da essência da

linguagem. Apesar de antigas e compreensíveis, elas nunca se dirigem à

linguagem como linguagem”203. É preciso, portanto, romper com tais

representações para encontrar a linguagem nela mesma, pois, em sua essência,

afinal: “a linguagem não é expressão nem atividade do homem. A linguagem

fala”204.

E será no poema que Heidegger buscará o falar da linguagem, pois a sua

essência está “na poética do que se diz”205. O poema nos revela o falar da

linguagem porque o poema é o dizer genuíno206. Heidegger defende uma

proximidade ou vizinhança entre o pensamento e a poesia e que a torna o local

privilegiado da fala da linguagem, ou seja, o campo onde a linguagem como

linguagem pode vir à palavra.

Contudo, Heidegger não pretende apresentar uma nova representação da

linguagem. Isto significaria cair na armadilha metafísica e realizar apenas mais

uma objetificação de um ‘fenômeno’ que não se deixa reduzir a um objeto. O que

Heidegger nos propõe é a possibilidade de ‘fazer uma experiência com a

linguagem’, ou seja, deixar que a linguagem nos atravesse e nos transforme, sem

tentar apropriá-la ou dominá-la. Permitir que a linguagem venha ao nosso

encontro implica em “deixarmo-nos tocar propriamente pela reivindicação da

linguagem, a ela nos entregando e com ela nos harmonizando”207. Para isso, é

indispensável, segundo Heidegger, perdermos o hábito de só ouvir o que já

compreendemos. É preciso pensar nossa relação com a linguagem de modo novo

e não apenas adquirir conhecimentos sobre ela, o que poderia ser muito útil, mas

não alcançaria a essência mesma da linguagem.

203 Heidegger, “A Linguagem”, op. cit. pág. 11 204 Heidegger, “A Linguagem”, op. cit. pág. 11 205 Heidegger, “A Linguagem”, op. cit. pág. 14 206 Seguindo tal intuição, Heidegger dedica-se à leitura do poema Uma tarde de inverno de Georg Trakl, rumo à tese da linguagem como ‘morada do ser’ que aparece, de modo mais explícito, no texto “A essência da linguagem”, op. cit. pág. 127. 207 Heidegger, “A essência da linguagem” in op. cit. pág. 121.

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Fazer uma tal experiência com a linguagem é algo que compete a nós,

homens, mesmo que Heidegger desconfie da capacidade dos homens de hoje de

fazer tal experiência. Com efeito, a nossa relação com a linguagem, que poderia

nos proporcionar um acesso à nossa própria essência, passou despercebida

enquanto tal por toda a tradição filosófica ocidental. Apesar da proximidade que

mantemos com a linguagem, através da fala cotidiana, a nossa relação com ela

permanece estranhamente “indeterminada, obscura, quase indizível”, escreve

Heidegger. Os homens da atualidade tornaram-se “por demais negligentes e

calculadores na compreensão e uso dos signos”208. A relação entre palavra e coisa

não é questionada, especialmente na fala cotidiana, onde a habitualidade não nos

reserva mais surpresas.

O pensamento foi, portanto, reduzido ao cálculo e, nesse sentido,

concentra suas forças na apropriação e domínio da natureza, entendida como

matéria-prima à disposição humana. Mas apesar do domínio da técnica, o homem

continua sendo o ente privilegiado para fazer a experiência com a linguagem. Nos

termos heideggerianos, ele é o alvo do consentimento à linguagem, aquele que

pode receber sua reivindicação e escutar sua fala209. Mas, apesar de intimamente

relacionada ao homem, a linguagem não é uma simples habilidade humana, não é

algo com o qual travamos uma relação. “A linguagem é a relação de todas as

relações”210, diz Heidegger. Mas não podemos nos apressar aqui. É preciso

pacientemente seguir os passos do texto heideggeriano com vagar e tentar ‘entrar’

na sua escrita. Voltemos ao texto A Essência da Linguagem.

Para Heidegger, a tarefa que resta ao pensamento consiste em “indicar os

caminhos que possam nos colocar na possibilidade de fazer uma experiência com

a linguagem”211. Mesmo que a plenitude de uma experiência como tal esteja desde

sempre interditada, o pensamento digno do nome deve tentar escutar a fala da

linguagem. Contudo, não é em qualquer fala (nem em qualquer língua) que a

linguagem fala, ou seja, que ela vem à palavra. Como escreve Heidegger: “por

mais que falemos uma língua, a linguagem propriamente nunca vem à palavra”.

Ela permanece resguardada e apenas raramente, em situações excepcionais, dá

indícios de si. Mas onde ou como isso ocorre?

208 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 123. 209 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 153. 210 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 170. 211 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 123.

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Segundo Heidegger, “a linguagem como linguagem vem à palavra lá onde

não encontramos a palavra certa para dizer o que nos concerne, o que nos

provoca, oprime ou entusiasma”212. Nesse momentos inauditos, onde a palavra

“falha” ou “quebra”, a linguagem nos toca com seu vigor, mesmo que por poucos

instantes e de modo fugidio. O indizível revela o vigor da linguagem, visto que é

ele que concede a palavra apropriada, sem a qual, não há fala.

Enquanto espaço privilegiado de escuta da linguagem, a poesia é, segundo

Heidegger, o lugar do “dizer da linguagem”. O poeta é aquele que traz à

linguagem algo que nunca foi dito e, assim, pode chegar a fazer uma experiência

com a linguagem, ou seja, “poeticamente, trazer à linguagem a experiência que ele

fez com a linguagem”213. Com efeito, um dos motivos centrais que atravessa o

texto heideggeriano é a proximidade entre poesia e pensamento. Para Heidegger,

na poesia também se pensa, e aliás, num poema de estirpe pode-se pensar sem

ciência e sem filosofia214.

Assim, como no texto “A Linguagem” e em diversos outros escritos, como

em “A Essência da Linguagem”, Heidegger realiza um comentário de um poema

que, segundo ele mesmo anota, “não possui a menor pretensão de cientificidade”.

O poema A Palavra, de Stefan George, publicado em 1919, é um exemplo

precioso dessa estratégia heideggeriana. Nesse sentido, vale a pena transcrevê-lo

na íntegra, mesmo se só iremos acompanhar a análise que Heidegger faz da última

estrofe:

“A palavra

Milagre da distância e da quimera Trouxe para a margem de minha terra

Na dureza até a cenzente norna

Encontrei o nome em sua fonte-borda –

Podendo nisso prendê-lo com peso e decisão Agora ele brota e brilha na região...

Outrora eu ansiava por boa travessia

Com uma jóia delicada e rica,

212 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 123. 213 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 123. 214 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 125.

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Depois de longa procura, ela me dá a notícia: “Assim aqui nada repousa sobre razão profunda”

Nisso de minhas mãos escapou

E minha terra nunca um tesouro encontrou...

Triste assim eu aprendi a renunciar: Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar”215.

A partir do último verso, Heidegger busca pensar a relação entre palavra e

coisa, no sentido em que vinha desenvolvendo, ou seja, apontando para o poder de

‘expressão’ e ‘criação’ da linguagem. Enquanto nomeadora da ‘coisa’, a

linguagem permite ou concede a sua ‘existência’. E quando a palavra falta,

nenhuma coisa pode ser. Nas palavras de Heidegger: “Somente quando se

encontra a palavra para a coisa, a coisa é coisa. Somente então ela é (...) É a

palavra que confere ser às coisas”216.

Assim, na direção contrária à razão instrumental que dominava a filosofia

no início do século XX, Heidegger empreende uma potente crítica da “ratio, ou

seja, do cálculo em sentido amplo”217. Assim, ao invés de métodos ou propostas

de ação, aposta na poesia e no vigor da linguagem poética como sendo o campo

mais próximo do pensamento.

Mas Heidegger não pretende ‘usar’ a poesia como um subterfúgio ou

como uma espécie de linguagem ‘irracional’ ou ‘aracional’ que viria se opor à

lógica e à ciência. A ‘fala’ privilegiada da poesia não é o ‘outro’ da razão. Os

enunciados poéticos abrem a possibilidade de se fazer uma experiência com a

linguagem porque a poesia encontra-se em uma relação de proximidade com o

pensamento. E Heidegger propõe pensar essa proximidade. Com efeito, poesia e

pensamento são, para Heidegger, “os modos privilegiados de dizer”218. Mas essa

proximidade, essa ‘relação’ de vizinhança entre poesia e pensamento não significa

que a primeira possa ser ‘traduzida’ em logos, ou seja, em linguagem filosófica.

Nesse sentido, Heidegger nos adverte frequentemente quanto ao “perigo de

215 Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schuback in A Caminho da linguagem, op. cit. pág. 124. 216 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 126. 217 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 133. 218 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 145.

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sobrecarregar um poema com excesso de pensamento e assim, impedir que o

poético nos toque”219.

O que Heidegger busca é fazer uma experiência pensante com a linguagem

através de uma experiência poética da linguagem que, por sua vez, só pode ser

uma experiência de pensamento, visto que “a grandeza poética de toda poesia

sempre vibra num pensamento”. Desse modo, Heidegger aponta para a

interdependência entre poesia e pensamento. Porque o pensamento segue seu

caminho na vizinhança da poesia, “ambos precisam um do outro ao extremo,

precisam de cada um em sua vizinhança (...) ambos encontram-se no mesmo

âmbito”220. Nestas afirmações está em jogo a noção de ‘pensamento’ em

Heidegger e que influencia sobremaneira o uso dessa palavra nesta tese. Para

Heidegger “o pensamento não é nenhum meio para o conhecimento. O

pensamento abre sulcos no agro do ser”. Arrisco dizer que Derrida concordaria

com a primeira parte dessa citação, mas não subscreveria a segunda, visto que

nela Heidegger vincula a linguagem ao ser. Apesar de evocar Nietzsche ao citar a

passagem: “Nosso pensamento deve ter o cheiro de um trigal numa noite de

verão”221, Heidegger ainda pensa a linguagem na dependência de algo maior,

daquilo que resta a ser pensado, ou seja, o ser.

A linguagem poética nos possibilita pensar os caminhos do pensamento, e

assim, direcionar o pensamento rumo àquilo que é digno de ser pensado. E como

sabemos, e Derrida denuncia com frequência, o que é digno de ser pensado para

Heidegger é a questão do ser. Aqui, já podemos vislumbrar uma das críticas da

desconstrução à filosofia heideggeriana, qual seja, a vinculação que esta faz do

problema da linguagem à questão do ser. Para o pensamento da desconstrução, a

essência da linguagem, se é que existe algo assim, é disseminação e não

‘destinação do ser’. Retorno a esta crítica na sequência. Por ora, voltemos à bela

argumentação de Heidegger em A Essência da Linguagem e à interpretação do

verso final da poesia de Stefan George:

“Triste assim eu aprendi a renunciar:

Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar”

219 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 133. 220 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 133. 221 Segundo Heidegger, Nietzsche escreveu tal frase por volta do ano de 1875. Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 133.

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Heidegger avança uma interpretação ‘seca’ deste verso através do

enunciado: “alguma coisa só é quando a palavra apropriada e competente nomeia

algo como sendo um ente, estabelecendo assim cada ente como tal”. Ou ainda: “o

ser de tudo aquilo que é mora na palavra. Nesse sentido, é válido afirmar: a

linguagem é a casa do ser”.

Mas, ao avançar tais teses, Heidegger recua logo em seguida e coloca em

questão sua leitura do poema, buscando não esquecer o que significa fazer uma

experiência com a linguagem. Nesse sentido, retorna ao verso para melhor

analisar a frase que precede a última linha do poema. Diz o poeta: ‘triste assim eu

aprendi a renunciar’, seguido de um sinal de dois pontos. O que viria a seguir,

segundo às regras gramaticais, deveria ser um discurso direto ou a explicação de

alguma coisa. É por isso que Heidegger ensaia a troca da palavra ‘seja’ por ‘é’,

transformando o dizer do poeta num enunciado direto, condizente com a lógica

gramatical. Mas, se este não é o caso, resta admitir que o que se segue ao sinal de

dois pontos é o conteúdo da renúncia, isto é, aquilo que o poeta, tristemente,

aprendeu a fazer. Então, resta deduzir que o poeta renuncia a ‘que nenhuma coisa

seja onde a palavra faltar’. Mas não!, reclama Heidegger. É justamente o contrário

o que se passa. O que segue ao sinal de dois pontos não é uma explicação da

renúncia, mas sim aquilo que dá nome ao “âmbito para onde a renúncia conduz”

(grifo meu). Escreve Heidegger:

“O que se nomeia é o chamado para se entregar à relação agora experimentada entre palavra e coisa. O poeta aprendeu a renunciar à opinião que ele antes tinha sobre a relação entre coisa e palavra. A renúncia diz respeito à relação poética com a palavra que aí estava em jogo. A renúncia consiste na prontidão para um outro relacionamento”222.

Seguindo esta pista, argumenta Heidegger, o “que seja” encontrado no

verso de Stefan George não seria o conjuntivo de “é”, mas uma espécie de

imperativo que o poeta deve, a partir de agora, seguir (mesmo que tristemente).

Desse modo, o que se segue ao sinal de dois pontos poderia ser interpretado como

um chamado ao poeta que diz: “a partir de agora não admita nenhuma coisa como

um ente onde a palavra faltar”. Este é o conteúdo da renúncia. No entanto,

222 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 128.

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pergunta Heidegger: “o que significa renunciar?” Ao analisar o antigo uso do

verbo alemão verzeihen (renunciar), Heidegger depara-se com a noção de “abdicar

de alguma coisa”, relevar, re-nunciar, ver-zeihen. Zeihen, por sua vez, significa

anunciar, como no latim dicere e, no antigo alemão, sagan (de onde, veremos

adiante, Heidegger se inspira para cunhar a expressão Saga para designar a

linguagem após a renúncia da antiga concepção). Seguindo essa linha de

interpretação, conclui Heidegger: “Renunciar é re-anunciar. Em sua renúncia, o

poeta abdica de sua relação anterior com a palavra. Só isso? Não, abdicando, algo

se lhe anuncia, um chamado, que o poeta não pode mais recusar”.

Portanto, o poeta renuncia à antiga relação que mantinha com a palavra, ou

seja, abdica à concepção de linguagem tradicional, onde palavra e coisa se

relacionavam de modo ‘natural’. E, ao aprender a renunciar, o poeta faz uma

experiência com a linguagem, independentemente da ‘coisa’. Como comprova o

título do poema, “A Palavra”, argumenta Heidegger, a ‘coisa’ já não importa mais

ao poeta. Ao fazer a experiência propriamente dita com a palavra ela mesma, ou

seja, com a palavra à medida que esta abriu mão de um relacionamento com a

coisa, “o poeta faz a experiência de que é a palavra que deixa aparecer e vigorar

uma coisa como a coisa que ela é”223.

Essa nova concepção de linguagem que é, na verdade, uma experiência

com a linguagem, revela toda uma dignidade da palavra, antes negligenciada. A

palavra é um bem maior, uma ‘jóia’ inominável (qual a palavra para a palavra?)

com a qual o poeta (e, talvez um pensador de calibre) faz uma experiência única.

“O poeta faz a experiência de um poder, de uma dignidade da palavra, que não

consegue ser pensada de maneira mais vasta e elevada”. Assim, o ofício do poeta

exige uma “vocação para a palavra, assumida como fonte e borda do ser”224. E

para atingir esse ponto de fazer a “experiência do poder mais elevado da palavra”,

o poeta deve estar afinado pela tristeza. Mas a tristeza não deve ser entendida

como abatimento ou depressão, lembra Heidegger, ressoando Ser e Tempo. “Em

223 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 129. De tais afirmações, não me parece arbitrário atribuir à Heidegger a inversão entre significado e referência que a acompanha a tese da linguagem como abertura de mundo, segundo a crítica elaborada por Lafont. 224 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 129.

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105

sentido próprio, a tristeza articula-se no relacionamento com a máxima

alegria”225(grifo meu).

A tristeza do poeta não provém da renúncia, visto que ela não é uma perda,

mas um aprendizado. O triste do poema, interpreta Heidegger, diz respeito ao tom

de quietude exigido para que o poeta faça a experiência com a linguagem. Assim,

a tristeza é a tonalidade afetiva que afina o poeta na sua tarefa elevada de fazer a

experiência do poder da palavra. É nesse sentido de “fazer uma experência”, de

deixar-se afetar e transformar pela linguagem, que o poeta e o pensador

caminham, seguem um caminho, estão sempre andando, dando passos. Escreve

Heidegger: “fazer uma experiência significa literalmente: eundo assequi; no

andar, estando a caminho, alcançar alguma coisa, andando, chegar num caminho”.

Experiência é, portanto, percorrer um caminho. Mas onde chega o poeta e o

pensador? Rumo a quê eles caminham? A algum conhecimento? Responde

Heidegger:

“Ele chega à relação da palavra com a coisa. Essa relação não é contudo um relacionamento entre a coisa de um lado e a palavra de outro. A palavra é ela mesma a relação que a cada vez envolve de tal maneira a coisa dentro de si que a coisa “é” coisa”226.

Ressoam aqui ecos da concepção de linguagem de Humboldt,

especialmente da sua tese da inexistência de conceitos independentes da palavra,

isto é, da identidade entre palavra e conceito. Mas é preciso cuidado aqui. A tese

da linguagem como abertura de mundo, avançada já por Humboldt, não significa

necessariamente a inversão entre sentido e referência, como se agora o

significante fosse o novo absoluto, como parece ser a leitura que Lafont faz de

Heidegger. O que Heidegger aponta, de modo potente, é a impossibilidade de

manter a visão platônica de mundo – e a concepção aristotélica da linguagem que

a acompanha. As palavras não são rótulos colados às coisas, ou nos termos de

Heidegger, “garras que agarram e seguram em si o que já existe e o que se toma 225 O sentido ‘próprio’ destacado pr Heidegger diz respeito à disposição enquanto modo originário de estar no mundo do dasein, ou seja, entendido em sua dimensão ontológica. Em Ser e Tempo, especialmente no parágrafo 29, Heidegger discorre sobre um dos modos fundamentais do dasein, a saber, a disposição ou humor. Assim, além da pré-compreensão do ser, o modo de ser do dasein é o de estar sempre aberto aos humores, isto é, às tonalidades afetivas que não se deixam reduzir a ‘estados de alma’ ou ‘estados psicológicos’. Nesse sentido, a tristeza mencionada por Heidegger não é uma afecção empírica, mas uma tonalidade afetiva, um modo de abertura ao mundo. Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 129. Ser e Tempo, op. cit. pág. 188. 226 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 130.

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por existente”. Essa é exatamente a visão antiga que o poeta nutria antes de fazer a

experiência, ou seja, antes de percorrer o caminho e ser transformado por aquilo

que vem ao seu encontro.

Essa ‘região’ onde o poeta faz a experiência com a linguagem é a fronteira

da ‘terra poética’, a margem, o limite, enfim, uma região misteriosa. Segundo

Heidegger, seguindo a trilha indicada pelo poema de Stefan George: “A palavra, a

linguagem pertencem ao âmbito dessa paisagem misteriosa onde a saga poética do

dizer delimita a fonte cheia de destino da linguagem”227. Antes da renúncia, o

poeta acreditava que as coisas poéticas “já se achavam por si mesmas bem

abrigadas no ser, faltando somente a arte de encontrar a palavra capaz de

descrevê-las e apresentá-las”. Esta concepção antiga da linguagem, a qual o poeta

deve renunciar, identifica-se com a noção de linguagem que acima nomeamos

como ‘expressivismo alemão’, nas figuras de Hamann, Herder e Humboldt. Mas

Heidegger denuncia como metafísica a representação da linguagem como

‘expressão de vivências’. A noção de expressão remete-nos a idéia de

exteriorização e, portanto, para um espaço ‘interior’, que seria a mente ou a alma

do sujeito. A noção de ‘vivência’, cara à fenomenologia, pertence, segundo

Heidegger, “ao âmbito metafísico da subjetividade”228. É nesse sentido que

Heidegger abandona expressões como “expressão”, “vivência” e “consciência”.

Vê-se, portanto, que Heidegger não só radicaliza a concepção de

linguagem de Humboldt (e de Husserl), como também a ultrapassa. A linguagem

não é simplesmente uma atividade humana229, nem somente uma arte expressiva

que traz à tona sentimentos e emoções e permite a exteriorização da vida solitária

da alma. A relação misteriosa entre palavra e coisa permanece como mistério,

visto que ela é indizível, inominada. Ao afirmar que “é a palavra que deixa

aparecer uma coisa como a coisa que ela é”, Heidegger não está defendendo uma

tese idealista nos moldes metafísicos, ou seja, não está dizendo que ‘nada’ existe

no ‘mundo’ sem linguagem. Pensar desse modo seria manter-se na clausura da

227 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 131. 228 Heidegger, “De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador” in A Caminho da Linguagem, op. cit. pág. 102. 229 Lembrando a afirmação de Humboldt já citada: “A linguagem não é um produto (ergon) mas uma atividade (energeia). (...) É o trabalho do espírito que se repete eternamente, capacidade de articular o som para expressar os pensamentos”. Humboldt, obras completas, vol.VII, op. cit. pág.418 apud Lafont, op. cit. pág. 35.

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oposição entre realismo e idealismo. A filosofia heideggeriana exige uma leitura

menos metafísica.

O verso final “Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar” aponta para

um novo tipo de relação entre palavra e coisa que não se deixa reduzir a uma mera

inversão entre coisa e palavra (ou entre referência e significado). Uma vez que se

toma a palavra como sendo ela mesma a relação, ou seja, uma vez que se pensa a

“relação” não como a interposição entre duas coisas, então a palavra pode ser

entendida como a ‘sustentação’ que permite à coisa ser coisa. Nesse sentido,

pode-se compreender a afirmação de Heidegger: “se a palavra não fosse essa

sustentação, não só o todo das coisas, o “mundo” mergulharia na obscuridade

como também o “eu””230.

O tesouro que porta o poeta, a jóia indizível que Heidegger identifica à

palavra, é exatamente aquilo que propicia ao poeta e pensador fazerem a

experiência com a linguagem, isto é, fazerem poesia e pensamento. A linguagem

reporta-se sempre à linguagem. Ao renunciar à visão tradicional da relação entre

palavra e coisa, ou seja, ao tentar pensar fora da metafísica, o poeta encontra-se

com seu próprio poema. Diz Heidegger: “Admitindo que o poema poetiza o

caminho próprio da poesia de Stefan George (...) O próprio poema testemunha

que ele aprendeu a renunciar, pois o poema ele mesmo conseguiu tornar-se canção

cantadora da linguagem”.

A caminho da linguagem diz: o caminho do pensamento conduz à

linguagem, ela mesma. Ou ainda, como observa Heidegger a respeito do título do

texto A essência da linguagem: “A essência da linguagem: a linguagem da

essência”. Nesse sentido, um tanto misterioso, Heidegger assinala que, apesar do

título presunçoso, seu texto não pretende ser nada além de um experiência com a

linguagem. Na trilha aberta pelos poetas, não pretende elaborar um discurso

seguro sobre a essência da linguagem e sugere acrescentar dois pontos de

interrogação no título: A essência? – da linguagem? E o que entendemos por

essência? Se por essência entendemos fundamento, então um pensamento que

pensa a essência da linguagem é um questionar por sua essência. Mas Heidegger

não quer questionar, no sentido de interpelar e buscar a radix, a raiz de tudo

aquilo que é. Apontando para o passo que deu no seu próprio pensar, que certa

230 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 136.

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vez disse que “questionar é a piedade do pensamento”231, Heidegger defende

agora que “o gesto próprio do pensamento não pode ser questionar mas sim

escutar o consentimento daquilo que todo questionar questiona ao interrogar sobre

a essência”232. Mais adiante, afirma: “O pensamento é escuta do

consentimento”233.

E o que todo questionar questiona ao se interrogar sobre a essência do

questionar? Ouso responder simplesmente: a própria linguagem. Para acessar a

essência da linguagem é preciso, segundo Heidegger, antes de mais nada, que a

linguagem já tenha se dado. É preciso que ela consinta, que ela dê indícios de si

mesma. Por mais que falemos sobre a linguagem, é na verdade, a partir da

linguagem que falamos234. Assim, ao questionar sobre a essência da linguagem, é

preciso que a linguagem, ela mesma, já se nos tenha indicado, consentindo-se”235.

E é assim que a essência da linguagem torna-se o consentimento de sua essência,

ou seja, torna-se a linguagem da essência. Repetimos, então, a enigmática frase de

Heidegger: “A essência da linguagem: a linguagem da essência”.

Assim, fazer uma experiência com a linguagem é deixar-se afetar no

caminho pela própria linguagem. Mas não existe um ‘método’ ou percurso a

seguir. O pensamento que busca fazer a experiência com a linguagem não é da

ordem do método e não busca nenhum conhecimento. Uma vez que falamos

sempre a partir da linguagem, ela sempre já nos ultrapassou e nos envolveu

porque a linguagem nos precede. Nesse sentido, o caminho pensante com a

linguagem não implica nenhuma discussão metodológica, visto que “já estamos

andando no campo e no âmbito do que nos concerne”236, isto é, a linguagem.

É por isso que o caminhar do pensamento, segundo Heidegger, não conduz

a lugar nenhum, ou melhor, exige mesmo um passo atrás, um retorno para onde

nós (propriamente) já estamos237. As ciências conhecem o caminho para o saber e

o nomeiam ‘método’. No entanto, denuncia Heidegger, “o método não é um mero

231 Heidegger refere-se ao texto A questão da técnica que encerra-se com essa frase. Não obstante, diz Heidegger, tal texto já se movimenta na conjuntura do consentimento, visto que a noção de ‘piedade’ já apontava para o sentido de harmonia e sintonia com aquilo que o pensamento tem de pensar. Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 135. 232 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 135. 233 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 139. 234 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 148. 235 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 135-136. 236 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 138. 237 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 148.

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instrumento à serviço da ciência. Pelo contrário. O método é que põe as ciências a

seu serviço”. Assim, o método não apenas propõe um tema à análise científica,

mas o impõe e subordina a sua investigação. Diz Heidegger: “É no método que

reside todo poder e violência do saber”. Mas o pensamento digno do nome, aquele

que busca fazer uma experiência com a linguagem, está distante do método e

próximo da poesia. Ele não quer forçar ou ferir a essência da linguagem, mas

apenas atender ao seu chamado.

Ao se permitir escutar o consentimento da linguagem que vem ao

encontro, o pensamento situa-se no mesmo âmbito da poesia, ou seja, mantém

com ela uma relação de vizinhança que não se reduz a uma proximidade espacial.

Heidegger assinala que o discurso sobre a vizinhança entre poesia e pensamento

diz que “um habita diante do outro, que um se instalou frente ao outro, que um se

voltou para a proximidade do outro (...) um encontro face a face de um e de

outro”238.

A dificuldade enfrentada por toda a filosofia ocidental, desde os tempos

mais remotos até a poesia de Stefan George, diz Heidegger, consiste em que “a

essência da linguagem recusa-se a vir à linguagem, isto é, a vir àquela linguagem

em que se pronunciam enunciados sobre a linguagem”239. Mas é exatamente essa

recusa o que permite a Heidegger fazer uma afirmação sobre a essência da

linguagem, qual seja, a de que essa recusa, esse resguardo, fazem parte de sua

essência. Segundo Heidegger, a linguagem nega a sua essência para os nossos

hábitos representacionais240. Desse modo, aquilo que há de mais corriqueiro, a

nossa relação com a linguagem, torna-se também o mais desconhecido.

A poesia é o campo onde, devido à sua proximidade com o pensamento,

podemos vislumbrar alguns indícios da essência que a linguagem resguarda. Na

poesia, vem à tona a relação entre coisa e palavra, isto é, podemos perceber que a

palavra é, ela mesma, a relação, visto que ela sustenta não apenas a relação com a

coisa, mas a coisa como coisa. Mas não é fácil nos desprendermos de nossos

hábitos representacionais e pensar uma relação a partir da relação, isto é, sem

pressupor a existência dos elementos relacionados, como palavra e coisa, poesia e

pensamento. O que Heidegger nos propõe pensar é que:

238 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 145. 239 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 144. 240 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 144.

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“tanto a poesia como o pensamento movimentam-se no elemento do dizer. Pensando a poesia, já nos vemos no mesmo elemento em que se movimenta o pensamento. Aqui não é possível decidir se a poesia é propriamente um pensamento ou se o pensamento é propriamente poesia”241.

A dificuldade em pensar esse relacionamento deve-se à obscuridade do

lugar onde movimentam-se poesia e pensamento. Esse âmbito ou elemento é a

“saga do dizer”242. No texto “De uma conversa sobre a linguagem entre um

japonês e um pensador”, Heidegger propõe um novo termo para ‘linguagem’, um

termo que evoque algo diferente do que dizem os termos metafísicos de

linguagem, como Sprache, língua, langage, langue. Segundo Heidegger, “de há

muito que a palavra língua pena para pensar a linguagem”. Nesse sentido, propõe

a palavra “saga” para pensar “o dizer, o dito e o que deve ser dito”243.

Seguindo esse esforço de pensar de modo diferente a linguagem,

Heidegger questiona-se sobre qual seria a ‘referência’ entre coisa e palavra. Uma

palavra é alguma coisa? “Ou será que a palavra, falando como palavra, não é

coisa, não é nada semelhante ao que é? Será a palavra um nada?”244 E se ela é

algo, como nomeá-la? Segundo Heidegger, o poema de Stefan George nos remete

ao mistério da linguagem, através da seguinte questão: qual a palavra para a

palavra? Permito-me fazer uma longa citação do parágrafo onde Heidegger se

lança no desafio de pensar essa questão, talvez um exemplo de encontro entre

pensamento e poesia e que mereceria um longo comentário (que não virá):

“A palavra para dizer a palavra não se deixa encontrar em nenhum lugar em que o destino dá aos entes o presente da linguagem nomeadora e inaugural, essa que nomeia o que o ente é e como o ente brilha e brota. A palavra para a palavra, um tesouro na verdade, nunca foi encontrado na terra do poeta; mas e na terra do pensamento? Quando o pensamento procura pensar a palavra poética, mostra-se que a palavra, o dizer, não tem ser. Nossos hábitos representacionais reagem todavia contra esse entendimento. Todo mundo vê e escuta as palavras, tanto na escrita como na língua falada. As palavras são. As palavras podem ser como as coisas são, a saber, perceptíveis para os sentidos. Para dar um exemplo grosseiro, basta folhearmos um dicionário. Ele está cheio de coisas impressas. Sem dúvida. Cheio de palavras e ao mesmo tempo sem nenhuma palavra. É que o dicionário

241 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 146. 242 Heidegger “De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador” in A Caminho da linguagem, op. cit. pág. 113. 243 Heidegger “De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador” in A Caminho da linguagem, op. cit. pág. 113. 244 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 149.

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não é capaz de apreender e abrigar a palavra pela qual as palavras vem à palavra. Aonde pertence a palavra, aonde pertence o dizer?”245

“O dizer não tem ser”; a palavra não é uma coisa, não é um ente, não é.

Mas e o que dizer do “é” ? Ele também não é uma coisa. Então, Heidegger

conclui: “Com o “é” acontece o mesmo que com a palavra. Como a palavra,

também o “é” não pertence às coisas existentes”246. Assim como a palavra que

nomeia as coisas, mas que não é uma coisa, o “é” também não é um ente. É essa

relação estranha entre o ser (“é”) e palavra que, segundo Heidegger, a experiência

poética com a linguagem revela. A poesia nos desperta da “sonolência das

opiniões apressadas” e nos acena para aquilo que é digno de se pensar, para aquilo

que motiva o pensamento. “Ela acena para o que se dá, mas não “é””247.

Começa a se revelar aqui, a relação estreita entre ser e linguagem na

filosofia de Heidegger. Tudo aquilo que se dá (além de tudo que “é”) pertence,

antes de mais nada, à linguagem. É por isso que a palavra, na sua essência, abriga

o ser. “A linguagem é a casa do ser”. Com efeito, mais do que atribuir nome às

coisas (função de designação do “é” enquanto predicação; e, afinal, toda

linguagem é predicativa), a linguagem se dá, ou seja, “a palavra ela mesma dá e

concede”248. E o que a palavra dá ou concede é o ser. Assim, a palavra (a

linguagem) aparece como doadora (do sentido do ser) e nunca como algo dado,

isto é, como uma coisa ou ente intramundano.

Segundo Heidegger, esse “dá-se” da linguagem consiste naquilo que, em

toda parte, é digno de se pensar. E a poesia pode ajudar nessa tarefa, visto que, ao

renunciar à linguagem instrumental, o poeta não abdica da palavra, enquanto tal.

Ao contrário, ao confrontar-se com o enigma da palavra, com a jóia inominada

que escapa-lhe das mãos, “o poeta medita o sentido e o medita ainda mais do que

antes: ele ainda articula a saga do dizer, só que o faz, agora, de maneira bem

diversa. Ele canta canções (...) Ele canta o segredo intuído na palavra”249. A

poesia revela, de modo privilegiado, o digno de ser pensado, ou seja, a linguagem

em sua relação com si mesma enquanto a ‘casa do ser’.

245 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 150. 246 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 150. 247 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 151. 248 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 151. 249 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 151.

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Nas palavras de Heidegger: “O poema canta a proximidade misteriosa do

poder da palavra”. Já o pensamento tenta fazer o mesmo, mas sucumbe ao “dizer

difícil de se determinar” e, sobretudo, “não cantante”250. Contudo, o pensamento

deve seguir os passos da poesia para tentar fazer uma experiência pensante com a

linguagem, ou ainda, “uma experiência poética com a palavra”251. É somente na

vizinhança da palavra poética que Heidegger ousa afirmar: “Um “é” se dá, onde

se interrompe a palavra”252.

Ao seguir o caminho da linguagem poética, o pensamento alcança o que o

alcança, ou seja, deixa-se afetar e transformar pela intimação da palavra. A

renúncia efetuada pelo poeta, e que deve ser seguida pelo pensador, consiste em se

deixar atingir pela intimação do dizer da linguagem. Escutar a fala da linguagem,

permitir que ela venha ao nosso encontro, essa é a tarefa do pensamento. Escreve

Heidegger: “Temos de nos esforçar incessantemente para falar da linguagem.

Contudo, o que então se conseguir dizer, nunca poderá assumir a forma de um

trabalho científico”253. Nesse sentido, esta tese está de acordo com a ‘tarefa do

pensamento’, mas, se pretende mesmo fazer uma ‘experiência com a linguagem’,

se pretende ser um ‘caminho de pensamento’, então não poderá ser uma ‘tese

acadêmica’, rigorosamente falando254.

Assim, o ponto crucial de um pensamento que dedica-se à pensar a

essência vigorosa da linguagem consiste em pensar esse vigor obscuro que, no

entanto, fala. Para fazer uma experiência com a linguagem é preciso, antes de

mais nada, insistir em pensar sobre o nosso modo habitual de representar a

linguagem. Uma vez que não dispomos (ainda, diz Heidegger) de um pensamento

adequado para a essência da linguagem, e considerando que “a tradição guarda

muita verdade”255 e que não é possível forçar uma liberação, devemos então, nos

contentar em permanecer na indicação fornecida pelas palavras-guia, isto é,

permanecer pensando a linguagem enquanto tal. Heidegger reformula as

250 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 152. 251 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 154. 252 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 171. 253 Heidegger, “De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador” in op. cit. pág. 116. 254 E nos deparamos com a aporia do método já assinalada no prefácio. 255 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 159. No texto “De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador”, Heidegger reitera seu respeito pela tradição ao escrever: “Todo pensador está sempre conversando com seus predecessores e talvez ainda mais e de modo velado com seus sucessores”, in op. cit. pág. 98.

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“palavras-guia” que devem nortear o pensamento na parte final do seu texto, ou

seja, de seu caminho de pensamento. Escreve Heidegger:

“O que nos concerne como linguagem determina-se pela saga do dizer, essa que tudo em-caminha e movimenta. Acenar é passar de um para outro. As palavras-guia acenam, fazendo-nos passar das representações corriqueiras da linguagem para a experiência da linguagem como a saga do dizer”256.

Mas para dar o passo no caminho do pensamento e tentar pensar a

linguagem de modo novo, permanecendo no âmbito do dizer, a relação de

vizinhança entre poesia e pensamento não pode ser pensada a partir de critérios

espaço-temporais. Segundo Heidegger, as noções tradicionais de espaço e tempo

não servem como parâmetros para pensar a proximidade que encaminha a

linguagem enquanto saga do dizer. Para fazer a experiência pensante da

linguagem é preciso, antes de mais nada, abandonar a representação do cálculo.

Poesia e pensamento não estão próximos no sentido espacial nem no sentido

temporal. Como coloca Heidegger: “na sequência consecutiva dos agoras,

assumidos como elementos do tempo paramétrico, um agora nunca está diante do

outro. O encontro face a face está excluído do parâmetro pelo qual representamos

o tempo”257.

No encontro face a face em que consiste a proximidade do âmbito do dizer

(poesia e pensamento), cada coisa está aberta para a outra, ou seja, “cada coisa é

em relação à outra como uma espécie de guardião, de proteção, de um véu”. Essa

proximidade é, na verdade, uma abertura, uma clareira que permite ao mundo

aparecer nas coisas. Cada coisa só alcança o seu ser no encontro face a face com

outra, se entregando à outra e, no entanto, “permanecendo o que cada uma é”258.

A linguagem é abertura, doação de ser. É a própria linguagem, enquanto saga do

dizer, que confere o que designamos pela palavra “é”. Nos termos de Heidegger:

“Em sua saga, o dizer concede o “é” na liberdade clara e ao mesmo tempo velada

de sua possibilidade de ser pensada”. Em outro lugar, Heidegger assinala que, um

pensamento que deixa a linguagem falar de acordo com sua saga, ou seja, que faz

256 Heidegger, “A Essência da linguagem”, op. cit. pág. 159. 257 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 167. 258 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 167.

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uma experiência pensante com a linguagem, deve despedir-se de todo “é”259. Uma

despedida que, contudo, não implica em perda, mas em retorno ao local em que já

estamos, ou seja, no âmbito do dizer.

Apesar de não poder se reduzir a uma simples atividade humana, a

linguagem, enquanto saga do dizer, se lança em direção a nós, homens, os únicos

animais capazes de fazer a experiência pensante na linguagem. O homem é

recomendado à linguagem, pois pertence, como o ser que é, a uma recomendação

que o requer e reivindica260. Segundo Heidegger:

“Mantendo-se resguardada em si mesma como a saga do dizer, a linguagem nos intima e se lança para nós, nós que como mortais pertencemos à quadratura, nós que só podemos falar à medida que correspondemos à linguagem. Mortais são aqueles que podem fazer a experiência da morte como morte. O animal não é capaz dessa experiência. O animal também não sabe falar”261.

Portanto, os homens são os seres privilegiados aos quais a linguagem pode

aparecer como mistério, ou seja, como revelação e resguardo, vigência e ausência

(jogo da différance, diria Derrida). E para escutar a fala da linguagem, a saga do

dizer que nos intima, é preciso renunciar à antiga visão de mundo que nos oferecia

conforto e segurança, onde as palavras correspondiam às coisas e a alma era capaz

de traduzi-las em sua pureza e autenticidade.

3.4

Derrida herdeiro de Heidegger

Certamente, Derrida aceita de bom grado renunciar à antiga concepção de

linguagem, e talvez nem precise da tonalidade afetiva da tristeza para realizar esse

gesto. A representação da linguagem como instrumento faz parte do logo-fono-

centrismo que a desconstrução não cansa de denunciar. Ela faz parte dessa época

mais larga da metafísica ocidental, isto é, do pensamento filosófico de matriz

greco-romana. No entanto, para a desconstrução, abandonar a concepção

aristotélica da linguagem não é suficiente para superar o logo-fono-centrismo. A

259 Heidegger, “De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador” in A Caminho da Linguagem, op. cit. pág. 119. 260 Heidegger, “De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador” in A Caminho da Linguagem, op. cit. pág. 99. 261 Heidegger, “A Essência da linguagem” in op. cit. pág. 170.

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filosofia de Heidegger merece o crédito de haver delimitado, como nenhum

pensamento antes o fez, a clausura da onto-teologia, ou seja, da metafísica

ocidental e de sua associação com o humanismo262. Desse modo, qualquer

filosofia que se pretenda ‘pós-metafísica’ e, consequentemente, meta-humanista,

deve enfrentar as questões esboçadas por Heidegger, sob pena de permanecer,

segundo Derrida, “historicamente regional, periódica e periférica, juridicamente

secundária e dependente, por muito interesse e necessidade que ela possa aliás

possuir enquanto tal”263.

Entretanto, apesar de reconhecer a centralidade da démarche

heideggeriana na superação da metafísica, Derrida assinala que a filosofia de

Heidegger consiste, paradoxalmente, no ponto mais elevado da filosofia enquanto

metafísica. Nesse sentido, é um pensamento que deve ser atravessado, visto que

avança vários motivos da desconstrução, mas depois superado, uma vez que acaba

por sucumbir ao mesmo humanismo que pretendia destruir, mas desta vez, um

humanismo mais refinado, melhor elaborado e ainda mais radical264. E, uma vez

que consideramos a afirmação do próprio Heidegger que diz: “todo humanismo

permanece metafísico”265, então é forçoso concluir que a filosofia heideggeriana

resta metafísica.

Com efeito, Heidegger reconhece, a todo momento, o perigo de recair na

metafísica, visto que a própria língua repousa sobre a distinção metafísica entre

sensível e não-sensível. O próprio termo “ser” pertence ao acervo da linguagem

metafísica e, apesar do esforço de pensá-lo fora dessa tradição, Heidegger admite

o perigo do seu uso. Mas, uma vez que toda expressão é um nomear que repousa

no apelo da linguagem, e sendo impossível dar um nome específico àquilo que

ainda se procura, resta-nos então, segundo Heidegger, suportar a confusão, “na

condição indispensável de nos empenharmos em desfazê-la com todo cuidado”266.

Nesse sentido, Derrida aproxima-se sobremaneira da filosofia heideggeriana, ao

262 A importante questão da crítica ao humanismo será tratada aqui nos limites de sua associação com a metafísica e com a concepção tradicional da linguagem. 263 Derrida, “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 169. 264 Segundo Derrida, a retórica heideggeriana “deixa intactos, abrigados na obscuridade, os axiomas do mais profundo humanismo metafísico; digo bem: o mais profundo”. In Derrida, Do Espírito, pág. 21 Ed. Papirus, Campinas, 1990.Voltarei a essa questão adiante. 265 Heidegger, Carta sobre o Humanismo, apud Derrida em “Os fins do Homem”, in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 155. 266 Heidegger, “De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador” in A Caminho da Linguagem, op. cit. pág. 89.

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tentar realizar uma superação da metafísica, sem contudo, destruí-la ou negá-la.

Desse modo, também utiliza-se de termos e expressões “metafísicas”, como

escritura, perdão e hospitalidade, apesar do risco de mal entendidos. Com efeito, o

que Derrida assinala é que, sempre que se põe uma questão de sentido (sentido do

ser ou sentido do tempo), tal questão não pode existir senão na clausura da

metafísica. Seria, portanto, tarefa vã, tentar arrancar a questão do sentido à

metafísica e ao sistema de conceitos ditos “vulgares”267.

Deste modo, a desconstrução não busca revelar o sentido da linguagem, do

ser ou do tempo, nem vincula o problema da linguagem a nenhuma outra questão.

A linguagem, enquanto écriture, é disseminação e não destinação do ‘sentido do

ser’. Derrida busca pensar os limites da metafísica através de uma nova concepção

da linguagem, projeto que, a princípio, chamou de ‘gramatológico’, mas que,

enquanto um gesto que questiona toda teleologia, estava fadado ao fracasso. Este

projeto impossível seria o de uma “história da escritura, cuja filosofia estará

sempre para vir”. E, para respeitar essa ‘lógica’ da desconstrução, é preciso

reconhecer que o “poder fracassar sempre é a marca da sua pura finitude e da sua

pura historicidade”268.

Assim, próximo ao sentido proposto por Heidegger, acredito que os textos

de Derrida tentam fazer uma experiência com a linguagem, tentam deixar a

linguagem vir à linguagem. Para Derrida, a escritura é “inaugural” não porque ela

“cria” sentidos, mas porque ela permite uma “certa liberdade absoluta de dizer, de

fazer surgir o já lá no seu signo (...) Liberdade de resposta que reconhece como

único horizonte o mundo-história e a palavra que só pode dizer que: o ser sempre

já começou”269.

Se a escrita literária ou a poesia possuem o poder revelador da verdadeira

linguagem é porque elas acedem à palavra livre, aquela em que a palavra “ser”

está liberta de suas funções sinalizadoras. É assim que, segundo Derrida:

“é quando o escrito está defunto como signo-sinal que nasce como linguagem; diz então o que é, por isso mesmo só remetendo para si, signo sem significação, jogo ou puro funcionamento, pois deixa de ser utilizado como informação

267 Derrida, “Ousia e Gramme” in Margens da Filosofia, op. cit. pág 87. 268 Derrida, “Força e significação” in A escritura e a diferença, op. cit. pág. 27. 269 Derrida, “Força e significação” in A escritura e a diferença, op. cit. pág. 26.

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natural, biológica ou técnica, como passagem de um sendo a outro ou de um significante a um significado”270. (grifo meu)

E acrescenta: “Ora, paradoxalmente, só a inscrição – embora esteja longe

de o fazer sempre – tem poder de poesia, isto é, de invocar a palavra arrancando-a

de seu sono de signo”271. É por isso que a escrita não pode ser reduzida a uma

“pintura da voz”, como pensava Voltaire ou como escreveu Rousseau: “A pintura

dos objetos convém aos povos selvagens; os signos das palavras e das orações,

aos povos bárbaros; e o alfabeto, aos povos policiados”272. A linguagem como

escritura não se restringe à escrita, ou seja, à inscrição gráfica da voz. Com efeito,

o grafema, com seu espaçamento e temporização constitutivos, já está presente na

fala, mesmo na ‘fala interior’ ou no solilóquio da vida solitária da alma. O grama

ou simplesmente a marca já se encontra em toda fala e interdita a presença plena e

presente, mesmo na voz fenomenológica.

Desse modo, com a noção de écriture, Derrida nos convoca a pensar a

linguagem de modo novo, isto é, deixar que a linguagem nos afete, nos tranforme,

ao mesmo tempo em que transforma nossa visão de mundo. Ou como escreveu

Merleau-Ponty: “As minhas palavras surpreendem-me a mim próprio e me

ensinam o meu pensamento”273.

Nesse sentido, Derrida ‘joga’ o jogo da linguagem com frases inquietantes

e ‘contraditórias’ na tentativa de fazer com que a linguagem o surpreenda, nos

surpreenda, nós, leitores e tradutores que pretendemos responder pelo “querer-

dizer” de Derrida. Mas os textos derridianos não pretendem explicar ou oferecer

razões, não pretendem revelar uma experiência primeira ou a palavra elementar.

Eles querem ‘simplesmente’ abrir espaço para a linguagem falar. Deixá-la

disseminar sentidos, sem nenhuma teleologia. Se a linguagem tem uma

“essência”, ela não é uma destinação ou um caminho em direção ao “sentido do

ser”. O movimento da linguagem não se subordina à destinação do ser, como

propugna Heidegger, antes e depois da ‘Kehre’274. A desconstrução pensa a

270 Derrida, “Força e significação” in A escritura e a diferença, op. cit. pág. 26. 271 Derrida, “Força e significação” in A escritura e a diferença, op. cit. pág. 26. 272 Rousseau, Essai sur l´origine des langues, apud Derrida, Gramatologia, Epígrafe, op. cit. pág. 3 273 Citado por Derrida em “Força e significação” in A escritura e a diferença, op. cit. pág 24. 274 Em textos como Introdução à Metafísica, tal ‘destinação’ da linguagem aparece explicitamente. Escreve Heidegger: “Ora, essência e ser falam na linguagem, sendo essa uma conexão, que já desde agora, quando investigamos a palavra “ser”, cumpre ressaltar”. Heidegger. Introdução à

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linguagem como différance, como jogo de presença/ausência, como iterabilidade

e disseminação.

Assim, como herdeiro infiel, Derrida atravessa o ‘texto’ Heidegger ao

analisar escritos de épocas diversas, e não apenas os textos tardios, após a dita

‘Kehre’. Sua leitura pretende revelar que a filosofia heideggeriana mantém-se fiel

à questão do ser e à estrutura da analítica existencial avançada em Ser e Tempo.

No entanto, isso não significa dizer que Heidegger pensa o ser como algo, ou seja,

como sentido ou como “significado transcendental”. Com efeito, Derrida não se

esquece que “o sentido do ser não é nunca simples e rigorosamente um

“significado” para Heidegger”275. Pelo contrário, o ser escapa ao movimento de

significação e, nesse sentido, diz Derrida: “o sentido do ser não é nem “primeiro”

nem “fundamental”, nem “transcendental”, quer se entendam estes termos no

sentido escolástico, kantiano ou husserliano”276.

No entanto, segundo Derrida, o pensamento heideggeriano não abala a

instância do logos e da Verdade. Ao contrário, ele a reinstala de modo ainda mais

potente, uma vez que “o Pensamento, dócil à Voz do Ser”277 é o primeiro e último

recurso do signo. Para Derrida, a diferença ôntico-ontológica278, ou seja, a

diferença entre ser e ente, pressupõe um significado transcendental para que essa

diferença seja, em algum lugar, absoluta e irredutível. E é por isso que o

pensamento do Ser, enquanto pensamento desse significado transcendental,

manifesta-se na Voz. Assim, Heidegger mantém-se fiel ao privilégio da voz, da

voz que se ouve no mais próximo de si, na auto-afecção pura que apaga o

significante, uma vez que independe do mundo ou da realidade, ou seja,

Metafísica, pág 82. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Tempo Brasileiro, Rio de janeiro, 1999. 275 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 27. 276 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 27. 277 Heidegger, Que é Metafísica, Posfácio, apud Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 24. 278 Heidegger inicia Ser e Tempo assinalando que a história da metafísica é a história do esquecimento do Ser, do esquecimento da diferença entre o ser e o ente. Desse modo, a relação entre presença (Anwesen) e presente (Anwesendem) mantém-se impensada e, imperceptivelmente, a presença vem a ser ela mesma um presente. Em “A fala de Anaximandro” (Der Spruch des Anaximander), texto de 1946, Heidegger escreve: “A essência da presença (Das wesen des Anwesens) e, deste modo, a diferença entre a presença e o presente é esquecida. O esquecimento do ser é o esquecimento da diferença entre o ser e o ente”. Segundo Derrida, aquilo que Heidegger quer marcar é que a diferença entre o ser e o ente desapareceu sem deixar rastro. “O próprio rastro da diferença se dissipou”. Derrida, “A diferença”, in Margens da Filosofia, op. cit. pág 57.

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independe de qualquer significado acessório ou substância de expressão alheia à

sua própria espontaneidade279.

Assim, por mais que essa experiência do significado que produz-se no

‘dentro de si’ tenha a forma do tempo, “a palavra é vivida como a unidade

elementar e indecomponível do significado e da voz, do conceito e de uma

substância de expressão transparente”280. Essa experiência primeira é a que

permite a experiência do “ser”. Desse modo, a palavra “ser” (e as palavras que

designam, nas diversas línguas, o sentido do ser) é uma “palavra originária”

(Urwort), visto que é condição de possibilidade do ser-palavra de todas as demais

palavras. Com efeito, o início do esquecimento do ser é solidário com a

degradação da língua ou, como escreve Heidegger: “De vez que o destino da

linguagem se funda na referência eventual de um povo com o Ser, a questão do

Ser se entrelaça intimamente com a questão da linguagem”281.

No entanto, isto não significa dizer que o sentido do ser seja a palavra

“ser” ou o conceito de ser. Como o sentido do ser não é nada fora da linguagem,

ele permanece ligado, de modo irredutível, à possibilidade da palavra em geral. O

que permanece de metafísico em Heidegger não é o uso da palavra “ser” que,

como toda palavra, acaba arrastada pelo sistema de conceitos metafísicos. O que

permanece solidário à onto-teologia que Heidegger pretende desconstruir é aquilo

que Derrida chama de a “esperança” (espérance) heideggeriana, ou seja, “a

procura do nome próprio, do nome único”282.

No entanto, a filosofia heideggeriana, assim como a lingüística e a

psicanálise, apesar de compartilhar certos pressupostos metafísicos, contribuem,

cada qual a seu modo, para deslocar a questão da unidade do sentido do ser e da

palavra, e assim, como coloca Derrida, “arrombar” a clausura metafísica e tentar

escapar de uma ontologia ou de um fenomenologia transcendental. Desse modo,

ao confrontar a metafísica com a questão do Ser, Heidegger também recoloca a

questão da verdade, do sentido e do logos, para além das certezas da onto-

teologia. É nesse sentido que Heidegger, apesar de evocar a “voz do ser”, assinala

que ‘a voz das fontes ocultas’ é silenciosa, muda, sem palavra. Assim, promove

uma ruptura entre o sentido originário do ser e a palavra, entre o sentido e a voz,

279 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 24. 280 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 24. 281 Heidegger, Introdução à Metafísica, op. cit. pág. 76. 282 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 62.

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radicalizando a perspectiva husserliana ao lançar uma suspeita à metáfora sonora.

Mas, ao mesmo tempo em que a denuncia, Heidegger a confirma, mantendo-se

assim, no solo onto-teológico que pretendia transgredir283.

É verdade que Heidegger renuncia à palavra ‘ontologia’284 porque o Ser

heideggeriano transcende as categorias do ente. No entanto, apesar da

dissimulação necessária do ser enquanto tal, apesar de sua ocultação, o ser se

produz enquanto história apenas pelo logos, ou seja, pela palavra. Fora do logos, o

ser não é nada. A diferença ôntico-ontológica, isto é, a diferença entre o ser e o

ente, não escapa ao movimento do significante. No entanto, lembra Derrida, essa

diferença “não é nada”285. Essa diferença estrutural que possibilita ao Ser se

transformar em ente e, portanto, ser alguma coisa, essa estranha diferença é,

segundo Derrida, a questão que deve ser atravessada, no sentido de ultrapassá-la,

para além dos limites encontrados por Heidegger.

Com efeito, no horizonte das questões levantadas por Heidegger, Derrida

aponta para um pensamento do rastro que seria ‘mais velho’ que o Ser. Nesse

sentido, a diferença ôntico-ontológica não é originária, mas já derivada de algo

ainda mais velho, a saber, a différance. Como coloca Derrida:

“Uma vez que o ser jamais teve “sentido”, jamais foi pensado ou dito senão dissimulando-se no ente, a différance, de uma certa e muito estranha maneira, (é) mais “velha” do que a diferença ontológica ou que a verdade do ser. É a essa idade que se pode chamar jogo do rastro. De um rastro que não pertence mais ao horizonte do ser, mas cujo jogo suporta e contorna (border) o sentido do ser: jogo do rastro ou différance que não tem sentido nem é. Que não pertence. Nenhum suporte, mas também nenhuma profundidade para esse jogo de xadrez sem fundo onde ser é posto em questão”286.

Nesse sentido, e como já assinalamos, a différance não pode ser pensada

como origem ou fundamento. No entanto, Derrida propõe que, de início, ela seja

pensada na esteira da diferença ôntico-ontológica, uma vez que a desconstrução

pretende operar no interior da metafísica, através de pensamentos potentes, como

o de Nietzsche e Heidegger. Assim, pensar a diferença ontológica é uma tarefa

difícil, porém necessária, e Derrida pretende demorar-se nessa passagem, no

283 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 27. 284 Heidegger, Introdução à Metafísica, pág 50 tr. francesa, apud Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 27. 285 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 28. 286 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 56.

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intuito de “deixar aparecer/desaparecer aí o rastro de que excede a verdade do ser.

Rastro (do que) não pode jamais apresentar-se, rastro que jamais pode, ele

próprio, apresentar-se: aparecer e manifestar-se como tal no seu fenômeno”287.

Com efeito, a différance não pode ser identificada com a diferença ôntico-

ontológica porque, simplesmente, “a différance não é”288. Mas como a meditação

heideggeriana é incontornável, a différance pode ser pensada, a princípio, como

um desdobramento historial da questão do ser ou da diferença ôntico-ontológica.

Segundo Derrida, “o a da différance marca o movimento desse desdobramento”289.

No entanto, uma diferença ainda pensada no horizonte da questão do ser resta

cativa da metafísica. E a différance, tal como propõe Derrida, clama por um

pensamento inaudito, por um traçado ou ‘sulcamento’ (tracement) que precede à

questão do ser290.

A desconstrução quer afirmar a ausência do nome e não, como faz

Heidegger, buscar a palavra única para nomear aquilo que desdobra no ser. Em “A

fala de Anaximandro”, discorrendo sobre “a primeira palavra do ser”, Heidegger

escreve:

“A relação com o presente, desdobrando a sua ordem na essência mesmo da presença, é única. Mantém-se, por excelência, incomparável a qualquer relação. Ela pertence à unicidade do próprio ser. A língua deveria, portanto, para nomear aquilo que desdobra no ser, encontrar uma só palavra, a palavra única. É aí que medimos quanto é arriscada toda a palavra do pensamento (toda palavra pensante) que se dirige ao ser. Não obstante, o que aqui se arrisca não é qualquer coisa de impossível; porque o ser fala em toda parte e sempre através de toda a língua”291.

O que Derrida ressalta nessa passagem de Heidegger é “a aliança da fala e

do ser na palavra única, na palavra, enfim, própria”292 e, portanto, a vinculação

entre a questão da linguagem e do sentido do ser. Com efeito, Heidegger

permanece no interior daquilo que pretende superar porque, apesar de interrogar a

determinação do ser como ente, apesar de interrogar o privilégio do presente,

daquilo que permanece e persiste, de Parmênides a Husserl, próximo e disponível,

287 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 56-57. 288 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 55. 289 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 55. 290 Voltarei a ‘pensamento do rastro’ em Derrida na Parte 2 sobre a desconstrução. 291 Heidegger, “A fala de Anaximandro”, apud Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 63. 292 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 63. Retomo, na sequência, a questão das metáforas na filosofia de Heidegger.

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ao alcance da mão (Vorhandenheit), Heidegger não problematiza algo ainda mais

“originário”, a saber: não a determinação do ser do ente como presença, mas a

presença mesma inerente, de um modo ou de outro, a toda e qualquer

determinação do ser. É neste sentido que, para Derrida, Heidegger segue inscrito

naquilo que chamou de “metafísica da presença”.

Em “Ousia e Gramme”, Derrida realiza uma leitura de uma nota de Ser e

Tempo293, onde Heidegger aponta a continuidade da filosofia de Hegel com a

concepção aristotélica do tempo, ou seja, com o conceito tradicional de tempo que

domina a filosofia enquanto metafísica. Os textos indicados aí por Heidegger são

os textos mais difíceis e, segundo Derrida, os mais decisivos da história da

filosofia, a saber: A Física de Aristóteles, A Lógica de Iena de Hegel, o Essai sur

les donnés immédiates de la conscience de Bergson. E, contudo, segundo Derrida,

o que Heidegger destaca de todos eles é algo muito simples: a solidariedade de

todos esses pensadores com a determinação do tempo a partir do presente, ou seja,

de um certo agora em geral que nenhuma experiência poderá jamais

abandonar294.

Entretanto, Heidegger não pretende ultrapassar esses autores e pensar de

outro modo o tempo, ou seja, não mais pensá-lo a partir da presença. O que ele

propõe é pensar o que não pôde ser pensado de outro modo. Isso significa dizer

que Heidegger não propõe pensar a ausência, que seria simplesmente uma outra

presença (modificada pela falta), mas pensar o “liame entre a verdade e a

presença” através de um pensamento que não tem mais que “ser verdadeiro e

presente, para o qual o sentido e o valor da verdade do presente são postos em

questão como jamais nenhum momento intra-filosófico o pôde fazer”295.

Não nos ocuparemos aqui dessa questão que exigiria um aprofundamento

da filosofia de Hegel, autor que primará por sua ausência nesta tese. Com efeito, o

espectro Hegel não comparecerá, apesar de Derrida dedicar várias páginas e

diversos textos ao seu pensamento. Reteremos dessa discussão apenas aquilo que

nos interessa, ou seja, a herança heideggeriana de Derrida, sobretudo no que diz

293 A nota é a mais longa de Ser e Tempo e aparece no penúltimo parágrafo do último capítulo denominado “A temporalidade e a intra-temporalidade como origem do conceito vulgar de tempo”. È interessante notar que nessa nota Heidegger promete voltar à questão do conceito de tempo em Arsitóteles no segundo volume de Ser e Tempo que, como sabemos, jamais foi escrito. Derrida, “Ousia e Gramme” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 71. 294 Derrida, “Ousia e Gramme” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 72. 295 Derrida, “Ousia e Gramme” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 72.

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respeito ao problema da linguagem. Nesse sentido, Derrida destaca que, o que

ficou eludido em toda essa discussão sobre o tempo, foi exatamente a sua

determinação a partir de uma pré-determinação do ser do ente como ousia, ou

seja, substância, presença. Assim, segundo Derrida, “Ser e Tempo traria à luz essa

omissão pela qual a metafísica acreditou poder pensar o tempo a partir de um ente

já silenciosamente pré-determinado na sua relação com o tempo”.

Segundo Derrida, acompanhando a reflexão de Heidegger, a questão

permaneceu eludida, de Aristóteles a Husserl, passando por Kant e Hegel, porque

posta em termos de pertença do tempo ao ente ou ao não-ente, estando o ente já

determinado como ente-presente. E é exatamente essa questão que Heidegger

recoloca, desde a primeira página de Ser e Tempo: tentar pensar o tempo como

aquilo a partir do qual se anuncia o ser do ente e não como algo já derivado de um

ente temporalmente pré-constituído, ou seja, um ente presente, seja ele um objeto

ou uma substância296.

É a partir dessa complexa reflexão sobre o tempo que Derrida segue a

trilha aberta por Heidegger e tenta pensar o rastro para além (ou aquém) da

diferença ôntico-ontológica. Segundo Derrida, Heidegger abala a ontologia

clássica ao denunciar a pré-determinação do ser do ente como presença. No

entanto, a filosofia heideggeriana permanece comprometida com a gramática e o

léxico dessa mesma ontologia, uma vez que todas as oposições conceituais que

servem à destruição da metafísica se ordenam em torno de um eixo fundamental, a

saber: aquele que separa o próprio do impróprio, o autêntico do inautêntico e, em

última instância, a temporalidade originária da temporalidade decaída297.

Como nos lembra Derrida, Heidegger ‘fecha’ Ser e Tempo (na verdade, o

interrompe) deixando em suspenso a questão de se a ‘temporalidade original’

conduz ao sentido do ser. Nesse sentido, o tema do tempo e todos os demais que

dele dependem (a questão da finitude, da historicidade) são reconstituídos em

função do tema da ‘epocalidade do ser’. E a passagem da temporalidade original –

autêntica ou própria (eigentlich) – para uma temporalidade inautêntica ou decaída

(Verfallen) determina todos os outros temas de Ser e Tempo. Como esclarece

Derrida, “o original, o autêntico, é determinado como próprio (eigentlich), ou seja,

296 Derrida, “Ousia e Gramme” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 83. 297 Derrida, “Ousia e Gramme” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 101.

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o próximo (próprio, proprius), o presente na proximidade da presença a si.”298.

Assim, o valor de proximidade e de presença a si se propagam a todos os

conceitos que, em Ser e Tempo, implicam o valor de ‘próprio’, como Eigen,

eigens, ereignen, Ereignis, eigentümlich, Eignen, etc.

Nesse sentido, pergunta Derrida: “Ora, a oposição do original e do

derivado não é ainda metafísica? A reclamação da arquia em geral, quaisquer que

sejam as precauções de que rodeemos este conceito, não é a operação ‘essencial’

da metafísica?”299 E o privilégio da presença, será que ele ainda persiste em

Heidegger? Com efeito, parece que, para além de Ser e Tempo, Heidegger apela

para uma determinação ainda mais estrita da presença, ou seja, para um

pensamento ainda mais original do ser como presença, um pensamento que

solicita um Wesen que não seria ainda um Anwesen.

Com efeito, segundo Heidegger, a tradução da palavra ousia por coisa (ou

de parousia por substância) não faz juz àquilo que os gregos experimentaram,

através dessa palavra, isto é, a noção de ‘algo que se apresenta’. O sentido da

parousia passou a designar simplesmente “substância” perdendo assim, na

tradução, a experiência originária. No entanto, a língua alemã pode salvar essa

experiência esquecida porque possui uma expressão adequada para dizer

parousia, qual seja: An-wesen, ou seja, aquilo que se apresenta, aquilo que,

segundo Heidegger: “consiste em si mesmo e assim se propõe. É. Para os gregos

“Ser” diz no fundo esse estado de apresentação e presença (Anwesenheit)”300.

Contudo, lamenta Heidegger, mesmo a filosofia grega não conseguiu retornar

mais a esse fundamento do Ser e ateve-se ao primeiro plano do que está presente,

ou seja, ateve-se à superfície do presente na presença, isto é, à physis.301

Assim, segundo Heidegger, o gesto mais difícil, mais inaudito, para o qual

estamos menos preparados, anuncia-se nas fissuras do texto metafísico. Aquilo

que se dá a pensar para além da clausura greco-ocidental-filosófica não é

simplesmente uma ausência, que seria ainda um modo negativo da presença. O

que se dá a pensar é um excesso, um signo excedente de toda a presença-ausência,

mas que ainda se signifique. Mas um signo desse excesso é informulável pela

metafísica como tal. Por isso, para excedê-la, é preciso que um rastro (Spur) esteja

298 Derrida, “Ousia e Gramme” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 101, nota 26. 299 Derrida, “Ousia e Gramme” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 101. 300 Heidegger, Introdução à Metafísica, op. cit. pág. 88-89 301 Heidegger, Introdução à Metafísica, op. cit. pág. 88-89.

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inscrito no texto metafísico, um rastro que aponte em direção a um texto

totalmente outro.

Portanto, o pensamento do rastro é apontado por Heidegger como aquilo

que não pode ser pensado no interior da clausura metafísica. O modo de inscrição

de um tal rastro, que não é presença nem ausência, nem perceptível nem

imperceptível, é o modo do apagamento. Assim, a diferença entre o ser e o ente,

que foi esquecida na determinação do ser como presença e da presença como

presente, se dissimulou sem deixar sequer rastro. Nos termos heideggerianos, o

rastro matinal (die fruhe Spur) da diferença apaga-se desde o momento em que a

presença aparece como um ente presente (das Anwesen wie ein Anwesendes

erscheint)302. O rastro da diferença apagou-se e apenas o já diferenciado, isto é, o

presente e a presença, vem à luz.

No entanto, lembra Derrida seguindo o ‘rastro’ heideggeriano, o

apagamento do rastro deve ser ‘sulcado’ no texto metafísico. Por isso, é forçoso

reconhecer que todas as determinações de semelhante rastro, ou seja, todos os

nomes que lhe damos, pertencem ao texto metafísico que abriga o rastro. Não há

nenhuma palavra ou experiência originária, única ou primeira que antecede o

rastro ou que pertença ao rastro enquanto tal, simplesmente porque não existe o

enquanto tal do rastro. Diz Derrida: “Não há rastro ele-mesmo, rastro próprio”303.

O rastro nunca vem à presença. Haveria, assim, uma diferença mais esquecida e

mais impensada ainda do que a diferença entre o ser e o ente. Uma diferença que

não pode ser nomeada, que está para além do ser e do ente, uma diferença que se

difere sem cessar e só deixa rastros: différance. Escreve Derrida: “semelhante

différance dar-nos-ia já, ainda, a pensar uma escrita sem presença nem ausência,

sem história, sem causa, sem arquia, sem telos, perturbando absolutamente toda a

dialética, toda a teologia, toda a teleologia, toda a ontologia”304.

A desconstrução é, em última instância, o pensamento desse rastro que

nunca vem à presença. A écriture é o movimento da différance na medida em que

ela deixa a linguagem falar e afirma a produção incessante de significantes que

não cessarão de se remeter a outros significantes, que não cessarão de produzir

rastros escritos e apagados. Mas a écriture não quer ser a língua primeira ou a

302 Heidegger, “A fala de Anaximandro”, apud Derrida, “Ousia e Gramme” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 104. 303 Derrida, “Ousia e Gramme” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 104. 304 Derrida, “Ousia e Gramme” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 105.

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126

presença originária. Ela não abriga o ser nem nos conduz em direção ao ‘sentido

do ser’. Ela apenas permite a disseminação de sentido ao abrir espaço para

diferentes falas e escritas.

3.5

Derrida crítico de Heidegger

A filosofia de Heidegger certamente inspirou Derrida a pensar a questão

do privilégio da presença que domina a filosofia ocidental. Derrida reconhece que

foi no ‘rastro’ das questões abertas por Heidegger que a desconstrução traçou seu

caminho. E Derrida não se cansa de reconhecer a potência do pensamento

heideggeriano, como escreve em Points de suspension: “O pensamento de

Heidegger resta para mim um dos mais rigorosos, provocantes e necessários de

nosso tempo”305.

No entanto, com ou sem ‘Khere’, Heidegger continuou preso ao

humanismo metafísico. Mesmo tendo renunciado a colocar o nós no discurso, ou

seja, mesmo tendo afastado a dimensão metafísica do ‘nós-os-homens’ e tendo

liberado o dasein das determinações metafísicas do próprio do homem (zôon

logon ekon), mesmo tendo elaborado uma concepção de linguagem para além do

modelo tradicional, a filosofia heideggeriana manteve, de modo sutil, o

pensamento do próprio do homem na sua vinculação com a questão ou a verdade

do ser306. E, nesse sentido, a vinculação entre a linguagem e o sentido do ser.

Segundo Derrida, mesmo depois da ‘virada’ para a questão da linguagem,

Heidegger permanece ‘magnetizado’ pelo pensamento do ‘próprio’ e da verdade

do ser que dirige Ser e Tempo. Mesmo admitindo que a analítica existencial não é

uma antropologia filosófica, ou seja, que “o dasein não é simplesmente o homem

da metafísica”, o ‘próprio do homem’ permanece no comando da filosofia

heideggeriana e dirige todos os seus caminhos de pensamento. É exatamente essa

‘magnetização’ que Derrida denuncia e que se deixa revelar através do conceito

geral de ‘proximidade’, sempre presente nos textos de Heidegger. Escreve

Derrida: “É no jogo de uma certa proximidade, proximidade a si e proximidade ao

305 Derrida, “Y a-t-il une langue philosophique” in Points de suspension, pág. 236. Galilée, 1992. 306 Derrida. “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 164.

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ser que iremos ver constituir-se contra o humanismo e contra o antropologismo

metafísicos, uma outra insistência do homem”307.

Sabemos que Heidegger inicia Ser e Tempo assinalando um ‘factum’, a

saber, de que nós sempre já nos movemos numa compreensão do ser. A partir daí,

pretende colocar a questão do ser na sua ‘estrutura formal’, ou seja, nós não

sabemos o que ‘ser’ quer dizer, mas desde que nos perguntamos “o que é o ser”

estamos já no ambiente de pré-compreensão do ‘é’. Esse é o factum assinalado por

Heidegger: apesar de não saber o que o ‘é’ quer dizer, possuímos sempre já uma

compreensão corrente, mesmo que vaga, do ‘ser’ e do ‘é’. Assim, escreve Derrida:

“Na ausência de qualquer outra determinação ou pressuposição, o ‘nós’ é pelo menos o que se abre a uma tal compreensão, o que é sempre já acessível e aquilo por intermédio de que um tal ‘fato’ pode ser reconhecido como tal. É portanto evidente que este nós, por muito simples, por muito discreto, por muito apagado que seja, inscreve a estrutura dita formal da questão do ser no horizonte da metafísica”308.

Portanto, é apenas no interior desses limites que o ‘factum’ da pré-

compreensão do ser pode ser entendido e autorizado. Mas tais limites são bem

determinados, isto é, são limites materiais. Eles apenas nos são dados após a

questão do sentido do ser, portanto, não podem servir para determinar

‘formalmente’ a estrutura do ser. Mas deixemos em suspenso tal aporia (já

apontada como o motivo do abandono do projeto iniciado em Ser e Tempo no

início da seção ‘espectro Heidegger’).

Uma vez estabelecida a ‘estrutura formal da questão do ser’, Heidegger

parte para a determinação do ente privilegiado para interrogar sobre a questão do

sentido do ser309. A determinação desse ente (que somos nós, no final das contas)

se dará, inicialmente, através de uma análise fenomenológica. Assim, o privilégio

do dasein é justificado pelo princípio dos princípios da fenomenologia, a saber: “o

307 Derrida. “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 164. 308 Derrida. “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 165. 309 Passamos ao largo aqui da distinção que Heidegger faz entre o Gefragte (o que é interrogado – a referência na linguagem fregeana), o Erfragte (quem é o interrogado – o sentido pra Frege) e o Befragte (o interrogado enquanto o ente que se interrogará sobre a questão do sentido do ser). O Dasein é o ente exemplar interrogado em vista do sentido do ser. Heidegger, Ser e Tempo, op. cit. apud Derrida, “Os fins do homem”, op. cit. pág. 165.

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princípio da presença e da presença na presença a si, tal como ela se manifesta ao

ente e no ente que nós somos”310.

Assim, esclarece Derrida: “É a proximidade a si do ente questionante que

faz com que ele seja escolhido como ente interrogado por privilégio (...) Nós que

estamos próximos de nós mesmos, nós nos interrogamos sobre o sentido do

ser”311. Mesmo tomando precauções para não identificar a ‘proximidade a si do

ente que nós somos’ com a consciência subjetiva da fenomenologia

transcendental, Heidegger permanece no terreno fenomenológico ao lançar mão

da oposição implícito/explícito para afastar a crítica de ‘círculo vicioso’ que uma

tal pré-determinação ontológica acarretaria. O dasein é, assim, uma ‘tomada de

consciência’, uma explicitação do ser do ente que nós somos, enquanto homens,

mas não pode ser reduzido ao sujeito da metafísica. Dessa forma, escreve

Derrida:

“O Dasein não é o homem, não é todavia outra coisa que não o homem. Ele é uma repetição da essência do homem que permite recuar aquém dos conceitos metafísicos da humanitas. Foi a sutileza e a equivocidade deste gesto que evidentemente autorizou todos os desvios antropologistas na leitura de Ser e Tempo, particularmente na França”312.

Além da insistência da filosofia heideggeriana na questão do homem, a

crítica desconstrutora que mais me interessa destacar diz respeito ao ‘valor de

proximidade’ que determina a escolha do dasein como ente privilegiado para se

colocar a questão sobre o sentido do ser. Apesar de anunciar a superação da

fenomenologia husserliana, o motivo da proximidade – e da presença em geral –

comandará o discurso heideggeriano antes e depois da ‘Khere’, através de

metáforas bastante significativas que associam a proximidade da presença a si aos

valores de vizinhança, abrigo, casa, guarda, voz e escuta. Nesse sentido, na Carta

sobre o Humanismo, Heidegger escreve: “Mas se o homem deve um dia chegar à

310 Derrida. “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 166. Em Ser e Tempo, Heidegger escreve: “As investigações que se seguem são apenas possíveis na base estabelecida por E. Husserl, cujas Investigações Lógicas fizeram nascer a fenomenologia”. Ser e Tempo, pág. 69. Editora Vozes, Petrópolis, 2000. 311 Derrida. “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 166. 312 Derrida. “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 167.

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proximidade do ser, é-lhe antes de mais necessário aprender a existir naquilo que

não tem nome...”313.

Para Heidegger, a relação entre a essência do homem e a essência da

linguagem é mais do que próxima. Para além dos humanismos metafísicos que

não conseguiram elaborar um pensamento à altura do dasein, a filosofia

heideggeriana pretende reinstaurar, revalorizar, reavaliar a essência e a dignidade

do homem que encontra-se ameaçada pelo domínio da metafísica e da técnica (e

da linguagem instrumental que a acompanha). Nesse sentido, escreve Heidegger:

“A devastação da linguagem que por toda parte se estende com rapidez não se liga

apenas à responsabilidade de ordem estética e moral assumida em cada um dos

usos que fazemos da palavra. Ela provém de uma ameaça à essência do

homem”314. E conclui Derrida: “É portanto essa essência que se trata de

reinstaurar (...) A restauração da essência é também a restauração de uma

dignidade e de uma proximidade”315.

Entretanto, essa proximidade a si que faz do homem o ente privilegiado

para se colocar a questão do sentido do ser é uma proximidade ôntica, assinala

Heidegger. Ontologicamente, a distância é tão grande quanto possível. Entretanto,

como destaca Derrida, nos textos posteriores a Ser e Tempo, de modo exemplar na

Carta sobre o Humanismo, Heidegger trata de reduzir essa distância ontológica e

aproximar o ser à essência do homem. Uma vez que o ser (dimensão ontológica)

só pode aparecer nos entes (dimensão ôntica), então o ser só pode ser dito ou

nomeado através de metáforas ônticas que ocorrem na linguagem e que, portanto,

deve ser tratada com toda a atenção e cuidado possível. Escreve Heidegger:

“Antes de falar, o homem deve deixar-se reivindicar pelo ser e predispor-se por ele ao risco de, sob essa reivindicação, só pouco ou raramente ter qualquer coisa a dizer. Só então é restituída à palavra a riqueza inestimável da sua essência e ao homem o abrigo para habitar na verdade do ser”316.

Nesse sentido, e como bem destaca Derrida, a escolha das metáforas é

determinante e nos diz muito sobre o pensamento de todo ‘filósofo’ e, sobretudo,

313 Heidegger, Carta sobre o Humanismo apud Derrida, “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 171. 314 Heidegger, Carta sobre o Humanismo apud Derrida, “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 169. 315 Derrida, “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 169-170. 316 Heidegger, Carta sobre o Humanismo apud Derrida, “Os fins do homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 169.

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sobre o pensamento de Heidegger. No entanto, Derrida não pretende,

ingenuamente, analisar ‘de fora’, as metáforas utilizadas por Heidegger e, a partir

daí, desenvolver uma crítica à sua filosofia. Uma vez que é impossível escapar à

linguagem (e, portanto, às metáforas do texto filosófico), cabe antes de mais nada

perguntar: ‘o que é uma metáfora?’ Seria possível elaborar uma ‘teoria geral da

metáfora’ ou, como coloca Derrida em “A mitologia branca”317, uma

‘metaforologia’? Ou ainda, seria possível uma ‘taxinomia geral das metáforas

ditas filosóficas’?

Certamente, antes de se lançar a um tal projeto, seria preciso elaborar uma

teoria para ‘decifrar’ a metáfora no texto filosófico. Segundo Derrida, “nunca se

respondeu a esta questão com um tratamento sistemático e isso não é, sem dúvida,

insignificante”. No entanto, Derrida não pretende responder a tal questão, nem

propõe lançar-se na realização de tal projeto. Ao contrário, pretende mostrar a

impossibilidade mesma de um tal projeto, visto que o conceito de metáfora é um

filosofema enredado no conjunto de filosofemas que constitui o sistema da

metafísica. Com efeito, diz Derrida: “A metafísica – mitologia branca que reúne e

reflete a cultura do Ocidente: o homem branco toma a sua própria mitologia, indo-

européia, o seu logos, isto é, o mythos do seu idioma, pela forma universal do que

deve ainda querer designar por Razão”318.

Desse modo, Derrida assinala o limite mais imediato a uma

‘metaforologia’, qual seja: “A metáfora permanece, através de todos os seus traços

essenciais, um filosofema clássico, um conceito metafísico. (...) É o produto de

uma rede de filosofemas que correspondem, eles próprios, a tropos ou a figuras

que lhe são contemporâneos ou sistematicamente solidários”319. A camada

‘originária’, de onde derivariam as primeiras metáforas, ou seja, a suposta

‘camada instituidora’ dos ‘primeiros’ filosofemas, simplesmente “não é domável”,

ou seja, “não se deixa dominar por si própria”. Com efeito, tudo se passa como se

o ‘sentido primitivo’ não fosse uma metáfora, mas uma espécie de figura

transparente, equivalente a um sentido próprio. Apenas torna-se-ia metáfora

quando o discurso filosófico a colocasse em circulação320.

317 Derrida, “A mitologia branca – a metáfora no texto filosófico” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 249. 318 Derrida, “A mitologia branca – a metáfora no texto filosófico”, op. cit. pág. 253 319 Derrida, “A mitologia branca – a metáfora no texto filosófico”, op. cit. pág. 259. 320 Derrida, “A mitologia branca – a metáfora no texto filosófico”, op. cit. pág. 251.

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Certamente, o sonho que acompanha a filosofia desde seus primórdios é o

de realizar uma metafilosofia, um discurso mais geral sobre as ‘metáforas de

primeiro grau’ que inauguraram a filosofia. Mas argumenta Derrida: “Se se

pretendesse conceber e classificar todas as possibilidades metafóricas da filosofia,

uma metáfora, pelo menos, ficaria sempre excluída, fora do sistema: aquela, pelo

menos, sem a qual não se teria construído o conceito de metáfora ou, para

sincopar toda uma cadeia, a metáfora da metáfora”321.

Portanto, antes de analisar ou criticar as metáforas escolhidas por

Heidegger, é preciso passar pelo problema da ‘metáfora da metáfora’. Quando e

como ela aparece na tradição filosófica ocidental? Derrida lança-se, então, no

projeto de reconstruir, através dos textos filosóficos, a história da metáfora e da

tentativa de sistematizá-la, ou seja, de dominá-la. Em primeiro lugar, uma teoria

geral da metáfora deve regular-se, parece evidente, por um conceito rigoroso de

metáfora capaz de distingui-la de outras figuras de linguagem, com as quais ela se

confunde frequentemente, como a catacrese, a sinédoque e a metonímia.

Nesse momento, nos deparamos com a primeira dificuldade: como

determinar a autoridade desse conceito? Se consideramos que a filosofia ocidental

tem uma data e um local de nascimento, então, necessariamente, as primeiras

metáforas filosóficas são ‘estrangeiras’, ‘importadas’, ‘alógenas’, transportadas do

seu ‘habitat próprio’ para o discurso dito filosófico. Assim, poderíamos classificar

as metáforas segundo seu local de origem e existiriam, nesse caso, metáforas

biológicas, orgânicas, mecânicas, técnicas, econômicas, históricas, matemáticas –

geométricas, topológicas, aritméticas. E foi segundo as suas ‘regiões de origem’

que se construíram as primeiras teorias sobre a metáfora. Surge assim, a primeira

possibilidade de classificação das metáforas, conduzindo à distinção entre os

discursos de origem (aqueles que emprestam as figuras) e discursos derivados

(que pediram emprestado as figuras). Nesse sentido, existiriam discursos mais

originários (metáforas físicas, animais, biológicas) e menos originários (metáforas

técnicas, artificiais, econômicas, culturais, sociais, etc.). E percebemos já que o

próprio discurso de classificação das metáforas obedece a uma oposição

metafísica que passa inquestionada, a saber: a oposição entre physis e tekhnè, ou

ainda, entre physis e nomos.

321 Derrida, “A mitologia branca – a metáfora no texto filosófico”, op. cit. pág. 260.

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E mesmo quando se pretende romper com a tradição e abandonar o critério

‘genealógico’ de classificação das metáforas, o resultado acaba sendo o mesmo,

visto que o conceito mesmo de metáfora resta a ser desconstruído. Derrida toma

como exemplo a tese Les métaphores de Platon escrita por Pierre Louis em

1945322, onde o autor propõe uma outra classificação das metáforas, distinto do

critério externo de proveniência. Nesse sentido, pretende utilizar um princípio de

organização interna das metáforas, regulado pelas ‘intenções do autor’, ou seja,

por aquilo que ele pretende dizer, por sua ‘intenção de verdade’, levando em

consideração a sua obra como um todo. Ora, para tanto, seria necessário, no caso

de Pierre Louis, “dar conta do pensamento platônico, do seu sentido e da sua

articulação interna”, lembra Derrida. Então, é forçoso admitir, a articulação

interna que Pierre Louis pretende demonstrar não é das próprias metáforas, mas

das ‘idéias’ filosóficas de Platão. O filósofo utiliza-se de metáforas para exprimir

melhor suas idéias, poupando-o de um longo desenvolvimento.

No intuito de escapar ao critério genealógico e da definição tradicional da

metáfora como um tipo de comparação, Pierre Louis nos apresenta, portanto, uma

teoria economicista da metáfora, onde esta seria destinada a poupar um ‘longo

desenvolvimento’. Desse modo, acaba por recair novamente no critério de

semelhança defendido por toda a tradição, desde Aristóteles, passando por Cícero,

Quintiliano e chegando até Hegel. Segundo essa visão tradicional, a metáfora é

uma “comparação contraída”, ou seja, uma figura de linguagem que permite ao

autor economizar texto, contrair tempo e espaço, conduzindo o leitor diretamente

à idéia que pretendia expressar323. Nada mais clássico e metafísico que isso ou,

como escreve Derrida:

“A metáfora estaria encarregada de exprimir uma idéia, de colocar no exterior ou representar o conteúdo de um pensamento que se designaria naturalmente “idéia”, como se cada uma destas palavras ou destes conceitos não possuíssem toda uma história (à qual Platão não é estranho) e como se toda uma metáfora ou, mais genericamente, uma trópica não tivesse deixado qualquer marca”324.

322 Louis, Pierre. Les Métaphores de Platon, Rennes, 1945 apud Derrida, “A mitologia branca – a metáfora no texto filosófico” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 261. 323 Derrida, “A mitologia branca – a metáfora no texto filosófico” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 262. 324 Derrida, “A mitologia branca – a metáfora no texto filosófico” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 264.

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Uma vez que o discurso filosófico é derivado (de uma suposta língua

originária ou natural), como poderia ele fornecer os critérios para uma

classificação das metáforas filosóficas? Seria preciso, então, que o autor saísse

para fora da sua linguagem e, do exterior, comandasse as figuras como se fossem

instrumentos. Este parece ser exatamente o ‘ideal platônico’ com o qual a filosofia

dita pós-metafísica pretende romper. E ele aparece de modo mais sutil e, portanto,

mais potente, nos conceitos ditos ‘fundadores’ da metafísica, a saber: conceito,

fundação e teoria. Como já destacou Heidegger, o valor de fundamento tem uma

história e responde, em última análise, ao “desejo do solo firme e último”325. Sem

falar no conceito de conceito, cuja carga metafórica nos remete ao desejo de

ordenação, de compreensão da coisa como um objeto.

No entanto, e como Nietzsche já denunciou no limite326, o uso contínuo

transforma as metáforas em ‘expressões próprias’, fazendo-nos esquecer a sua

origem sensível e nos reportando diretamente ao sentido espiritual. Tal

movimento de metaforização, ou seja, de aparição e apagamento da metáfora, de

passagem do sentido sensível (próprio, originário) ao sentido espiritual, foi

explicitado de modo paradigmático por Hegel, visto que, segundo Derrida, “ao

descrever o espaço de possibilidade da metafísica”, o conceito de metáfora lhe

pertence por excelência. Na Estética, Hegel escreve:

“O metafórico encontra a sua aplicação principal na expressão falada que podemos, sob esse ponto de vista, considerar os seguintes aspectos: a) qualquer língua possui à partida em si própria uma multidão de metáforas. Estas nascem de uma palavra que significa inicialmente qualquer coisa totalmente sensível e é transportada para a ordem do espiritual (...) em geral, palavras que se reportam ao saber, possuem na sua significação própria um conteúdo absolutamente sensível mas que é seguidamente abandonado e substituído por uma significação espiritual; o primeiro sentido é sensível, o segundo espiritual. b) mas, pouco a pouco, apaga-se pelo uso o metafórico de uma tal palavra que, pelo uso se transforma para se tornar, de expressão não-própria em expressão própria,

325 Derrida nos lembra que Heidegger propôs a interpretação do valor de fundamento através de uma leitura da teoria da hipotipose que Kant desenvolve na Crítica do juízo. Cf. Derrida, “A mitologia branca – a metáfora no texto filosófico” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 265. 326 Certamente, Nietzsche foi o primeiro a denunciar a metaforicidade geral da linguagem e a valorizar a metáfora que sempre permaneceu inferiorizada frente à primazia atribuída ao conceito na filosofia ocidental. Em “Introdução teorética acerca da verdade e da mentira em um sentido extramoral”, texto de 1873, Nietzsche não apenas reabilita a metáfora através da tese central exposta no texto, como também através da própria trama do texto no qual eclodem múltiplas metáforas que se interligam, instaurando um jogo que seduz o leitor e impede um mero resumo de sua tese central. Ver, a respeito, Ferraz, Maria Cristina Franco. “Da valorização estratégica da metáfora em Nietzsche” in Nove variações sobre temas nietzschianos. Relume-Dumará, Série Conexões, Rio de janeiro, 2002.

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enquanto que, no seguimento, pela facilidade corrente em captar uma na outra, a imagem e a significação não se distinguem já uma da outra e que a imagem, em vez de uma intuição concreta, dá-nos imediatamente a significação abstrata” 327.

A despeito dos diversos critérios usados na classificação das metáforas,

uma oposição parece permanecer intacta, qual seja, aquela que opõe a metáfora

originária ou própria (sensível, efetiva) à metáfora secundária (espiritual,

apagada). Nesse sentido, a noção de metáfora repousa na distinção entre sensível e

não-sensível, físico e não-físico, como dois domínios independentes. Como já

destacamos, junto a Derrida, uma tal separação constitui o traço fundamental

daquilo que se chama ‘metafísica’. E, uma vez reconhecida a insuficiência de tal

distinção, a metafísica tende a perder o lugar de pensamento privilegiado, ou seja,

do discurso que detém autoridade sobre as suas produções metafóricas. Desse

modo, a concepção determinante de metáfora cai por si mesma, visto que, como

coloca Derrida, “o conceito de metáfora, com todos os predicados que permitem

ordenar-lhe a extensão e a compreensão, é um filosofema”328.

Com efeito, a concepção corrente de metáfora nos remete à concepção

tradicional de linguagem, ou seja, ao modo como nós nos representamos o ser da

linguagem. Escreve Derrida:

“A constituição das oposições fundamentais da metaforologia (physis/tekhnè, physis/nomos, sensível/inteligível; significado/significante, etc) produziu-se através da história de uma linguagem metafórica, ou antes, através de movimentos “trópicos” que, para nunca poderem ser chamados por um nome filosófico, metáforas, não constituem, todavia, e pela mesma razão, uma linguagem própria. (...) Por definição, não existe, portanto, categoria propriamente filosófica para qualificar um certo número de tropos que condicionaram a estruturação das oposições filosóficas ditas ‘fundamentais’, ‘estruturantes’, ‘originárias’: tanto quanto as ‘metáforas’ que constituiram o título de uma tal tropologia, as palavras ‘figura’ ou ‘tropo’ ou ‘metáfora’ não escapam à regra”329.

É nesse sentido que o conceito de metáfora acaba por revelar a tese

filosófica por excelência, a saber: de que a palavra (no caso a figura de linguagem

denominada metáfora) transporta um sentido pré-existente, uma essência

rigorosamente independente daquilo que a transporta. Isto já é, segundo Derrida,

uma tese filosófica, ou melhor, “a única tese da filosofia, aquela que constitui o

327Hegel, Estética, apud Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 265. 328 Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 269. 329 Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 270.

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conceito de metáfora, a oposição do próprio e do não-próprio, da essência e do

acidente, da intuição e do discurso, do pensamento de da linguagem, etc.”330. E

esta tese que corresponde ao movimento de idealização próprio da filosofia,

Derrida chama de “lei da suplementaridade”. Fazendo ressoar os ecos

nietzschianos, Derrida nos lembra que a metaforização é o gesto primeiro e

inaugural. O sentido é sempre da ordem do suplemento, daquilo que se acrescenta,

ficcionalmente, às ‘coisas mesmas’ que, por sua vez, não detém nenhuma verdade

em si (diria Nietzsche)331.

E será na trilha dessa lei que ele buscará retraçar a história do conceito de

metáfora, seguindo o costume, ou seja, o código ou o programa de todo discurso

sobre a metáfora e que exige, em primeiro lugar, a evocação da definição

aristotélica. Derrida obedece ao protocolo e cita a definição de metáfora que

Aristóteles propõe na Poética (1457b): “A metáfora (metaphora) é o transporte

(epiphora) para uma coisa de um nome (onomatos) que designa uma outra

(allotriou), transporte do gênero para a espécie ou de uma espécie para o gênero,

ou da espécie para espécie, ou segundo a relação de analogia”332.

Segundo Derrida, tal definição aristotélica pode ser lida de dois modos: a)

como uma tese filosófica sobre a metáfora, certamente a mais explícita, mais

precisa e mais geral, solidária a toda uma cadeia de conceitos filosóficos que lhe

são correlatos, como mimesis, physis, logos, phonè; b) como um discurso

filosófico cuja superfície é inteiramente trabalhada pela metáfora. Atento a este

último sentido, Derrida não se contenta em analisar o discurso aristotélico sobre a

metáfora, mas busca também revelar o lugar reservado a esse discurso no interior

da obra de Arsitóteles. Esta reflexão também nos ajuda a entender melhor a

concepção aristotélica de linguagem que a ‘virada lingüística’ pretende superar.

Assim, seguindo Derrida, vemos que no livro III da Retórica, Aristóteles

situa a metáfora depois da dianoia, isto é, depois do ‘pensamento’, no sentido de

conteúdo da linguagem. A metáfora pertence à lexis, ou seja, ao ato de linguagem

330 Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 270. É importante notar que Derrida não quer inverter a lógica dominante na filosofia, ou seja, reduzir o conceito à metáfora. O que ele busca é pensar uma outra lógica entre o conceito e a metáfora que revele, em última instância, a metaforicidade geral de toda língua, mesmo daquela dita filosófica. Volto a questão da língua ‘própria’ da filosofia na Parte 2 desta tese. 331 Ferraz, Maria Cristina Franco. “Da valorização estratégica da metáfora em Nietzsche” in Nove variações sobre temas nietzschianos, op. cit. pág. 40. 332 Aristóteles, Poética (1457b) trad. Budé apud Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 271.

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enquanto enunciação. A dianoia não é manifesta por si mesma, enquanto que a

lexis é exatamente essa manifestação, ou seja, o ato de fala enquanto tal. O

‘sentido’ daquilo que é dito ou pensado não se manifesta por si mesmo; ele

precisa da linguagem para se exteriorizar. Portanto, conclui Derrida:

“Há metáfora apenas na medida em que alguém é suposto manifestar por uma enunciação tal pensamento que em si permanece inaparente, escondido ou latente. O pensamento cai sobre a metáfora, ou a metáfora chega ao pensamento no momento em que o sentido tenta sair de si para se dizer, enunciar, transportar-se à luz da língua”333.

A metáfora, assim como a linguagem em geral, é um meio de transporte do

sentido, do pensamento que ocorre no interior do sujeito. Entretanto, apesar de

situar a metáfora fora da dianoia, a teoria da metáfora aristotélica permanece uma

teoria do sentido. Esta aparente contradição pode ser resolvida se atentarmos para

o fato de que Arsitóteles encaixa a metáfora na parte da lexis destinada aos nomes

(onoma). A metáfora pertence, assim, ao campo do nominalizável, daquilo que

pode ser transformado em nome (verbo, adjetivo e mesmo alguns advérbios),

visto que são inteligíveis por si mesmos, isto é, possuem relação imediata com o

objeto ou a unidade de sentido que designam. Pertencem, desse modo, à ordem

semântica (phonè sémantikè). Logo, a metáfora pertence àquilo que é inteligível

por si mesmo, fora de qualquer relação sintática. Qualquer palavra que resista a

nominalização é estranha à metáfora, como as preposições, conjunções e demais

elementos da linguagem que, segundo Aristóteles, não posuem sentido em si

próprios e, logo, não pertencem ao campo semântico.

Esta definição aristotélica de metáfora enquanto pertencente à ordem

semântica, apesar das diversas críticas e aperfeiçoamentos, permanecerá, segundo

Derrida, determinante por toda a tradição filosófica, chegando até Husserl334.

Nesse sentido, a verdadeira metáfora, que não se confunde com a catacrese ou

com a sinédoque, pertence ao campo do sentido, daquilo que faz sentido e,

portanto, limita-se ao ‘nome’ aristotélico e ao sistema da sua ontologia. Segundo

Aristóteles, o nome é a primeira unidade semântica, o menor elemento

significante, composto por elementos (letras) por si mesmos insignificantes. A

333 Derrida, “A Mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 273. 334 Como assinala Derrida, Husserl define a metáfora como transporte de ‘categoremas’ e não de ‘sincategoremas’, uma vez que este último, normalmente, não pode dar lugar a uma operação de nominalização. Derrida, “A Mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 274.

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letra (que faz parte do nome e, portanto, da lexis), não possui nenhum sentido,

mas, enquanto átomo da voz, ela não é uma emissão vocal qualquer. Ela entra

‘naturalmente’ na formação ou composição do sentido, ou seja, no campo da

phonè sémantikè. E aqui aparece a diferença essencial entre o homem e o animal.

Apesar de ambos poderem emitir sons indivisíveis, apenas o homem pode fazer

uma letra. Escreve Aristóteles: “A letra é um som indivisível, não qualquer um,

mas aquele que, por sua natureza entra na formação de um som composto; porque

os animais também emitem sons indivisíveis, mas não dou a nenhum deles o

nome de letra”335.

Mas esta distinção não é justificada por Aristóteles, senão que por um

argumento teleológico e retrospectivo. Com efeito, salienta Derrida, “nenhum

traço interno distingue o átomo do som animal e a letra. É apenas a partir da

composição fônica significante, a partir do sentido e da referência, que se deveria,

portanto, distinguir a voz humana do grito animal”. Assim, o que os distingue é a

possibilidade, própria aos homens, de significar por um nome, uma vez que o

próprio dos nomes é significar qualquer coisa enquanto um ente independente,

idêntico a si e visado como tal. E aqui encontramos o ponto de articulação entre a

teoria do nome, tal como implicada pela teoria da metáfora, e a ontologia

aristotélicas. A metáfora, assim como a capacidade de significar através dos

nomes, é uma propriedade humana. Apenas o homem é capaz de construir

corretamente metáforas porque apenas o homem é capaz de ver corretamente o

semelhante. Assim, escreve Derrida: “A condição de metáfora (a boa verdadeira

metáfora) é a condição da verdade”336.

Por isso, é normal que o animal , que é privado de logos, seja também

incapaz de mimesis, ou seja, de produzir sentido e verdade no discurso. A mímica

gestual, a simples ‘macaquice’ não pertence à mimesis, tal como compreendida

por Aristóteles e com a qual ele abre a Poética337 e onde ele situa a metáfora. A

mimesis, apesar de pertencer à physis, é reduzida por Aristóteles à fala do homem.

E, segundo Derrida, “mais que uma redução, este gesto constitutivo da metafísica

e do humanismo é uma determinação teleológica (...) A mimesis é o próprio do

335 Aristóteles, Retórica (1456b) apud Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 277. 336 Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 277. 337 Aristóteles, Poética (1459 a) apud Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 277.

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homem. Apenas o homem imita propriamente. Só ele sente prazer em imitar, só

ele aprende a imitar, só ele aprende por imitação”338.

A metáfora consiste, assim, num meio de conhecimento por mimesis, por

analogia e comparação. Não possui a certeza própria do silogismo, mas nem por

isso é menos séria. A boa metáfora, ou seja, aquela que trabalha à serviço da

verdade, que diz, sem rodeios, o que uma coisa é, que discerne semelhanças e vai

diretamente ao alvo, essa boa metáfora proporciona tanto prazer quanto uma

dedução lógica. Diz Aristóteles:

“Aprender sem dificuldade é naturalmente agradável para qualquer um; ora, as palavras possuem uma significação; por consequência, são as palavras que nos trazem qualquer conhecimento, os mais agradáveis...A metáfora produz muito particularmente este efeito”339.

Assim, a metáfora possui a virtude de animar a fala, de dispor o objeto

diante dos olhos, de mostrar a coisa em ato, de transportar para a ordem psíquica

aquilo que encontrava-se oculto. E, nesse sentido, “um prêmio de prazer

recompensa o desenvolvimento econômico do silogismo na metáfora, a percepção

teórica da semelhança”340. Mas, assim como a semelhança não é uma identidade,

o prazer de saber por comparação ou mimesis requisita sempre a ausência do seu

objeto. O mimema não é nem a própria coisa nem absolutamente outra coisa. Ele é

o seu duplo muito semelhante. A lei desse prazer de aprender por analogia (que é

a metáfora por excelência) dá-se, portanto, segundo uma economia do mesmo e da

diferença. Nesse sentido, ao desligar-se da própria coisa, a metáfora abre também

a “errância do semântico”. Escreve Derrida: “O sentido de um nome, em vez de

designar a coisa que o nome deve habitualmente designar, transporta-se para

alhures. Se digo que a noite é a velhice do dia ou que a velhice é a noite da vida,

“a noite”, para ter o mesmo sentido, não designará mais as mesmas coisas”. É

exatamente essa errância, esse risco que também é uma chance, que a

desconstrução busca valorizar na linguagem.

Esse ‘deslocamento metafórico’ marca um momento de desvio, um

intervalo em que a verdade pode se perder. Assim, a metáfora é a oportunidade e o

338 Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 279. 339 Aristóteles, Retórica, livro III, cap. X apud Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 279. 340 Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 280.

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risco da mimesis, uma vez que pode sempre faltar ao verdadeiro. Mas esta

possibilidade lhe é estrutural, visto que, para funcionar, deve sempre contar com

uma ausência. Desse modo, nos ensina Aristóteles, apesar da metáfora ser uma

capacidade natural a todos os homens, ou seja, apesar do poder metafórico ser um

dom ‘natural’, certos homens são mais bem dotados que outros. “Ser brilhante nas

metáforas” é um dom que não se compra nem se empresta. O traço do gênio, ou

seja, o poder de captar uma semelhança escondida e de substituir um termo por

outro é conciliável com o caráter inato dessa habilidade, visto que a natureza

concede maior poder metafórico a alguns homens do que a outros. Os poetas são,

certamente, os mestres da metáfora. Eles ‘jogam com a multiplicidade dos

significados para chegar à identidade do sentido’. Os filósofos, por sua vez,

interessam-se mais pela ‘verdade do sentido, para além mesmo dos signos e dos

nomes’. Já os sofistas utilizam-se desse dom para ‘manipular signos vazios’ e

extrair efeitos desonestos da contingência dos significados341.

Assim, “a metáfora seria o próprio do homem”. Mais de alguns homens do

que de outros, mas jamais um traço da animalidade. Agora, resta desconstruir esse

valor de ‘propriedade’ que informa o conceito de matáfora enquanto caracterísitca

propriamente humana. Segundo Derrida, apesar de não apelar explicitamente à

oposição entre sentido próprio e sentido figurado da metáfora, o valor de

propriedade permanece no comando do discurso aristotélico. Nesse sentido,

segundo Derrida, o valor de idion (próprio, apropriado) parece sustentar, mesmo

sem se mostrar, toda sua metaforologia. O ideal de qualquer linguagem, em

particular da metáfora, é o de dar a conhecer a própria coisa. E o processo será

tanto melhor quanto mais for capaz de nos aproximar da sua verdade essencial e

própria. Desse modo, segundo Derrida, o espaço da linguagem, ou seja, o campo

dos desvios é aberto precisamente pela diferença entre a ‘essência’, o ‘acidente’ e

o ‘próprio’342.

O jogo da metáfora (e da linguagem) acontece exatamente no desvio entre

a ‘essência’ e o ‘próprio’. Apesar de constituírem noções inseparáveis, elas não se

confundem. Uma coisa possui diversas ‘propriedades’ que participam de sua

‘essência’ e que podem ser comparadas com as propriedades de outras coisas.

341 Aristóteles, Retórica, III, cap. XI apud Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 289, nota 36. 342 Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 288.

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Desse modo, a ‘essência’ de algo dá-se a conhecer, na metáfora, através da

semelhança de suas propriedades com as propriedades de coisas diferentes. Mas a

‘essência’ de uma coisa permanecerá sempre a mesma, independentemente de

seus diversos predicados e propriedades que podem ser trocados na metáfora.

Uma vez que um nome é próprio quando ele possui um, e apenas um,

sentido, então o telos da linguagem define-se como ideal de univocidade.

Aristóteles reconhece que uma palavra pode ter múltiplos sentidos, mas a

linguagem só pode definida enquanto tal, quando é capaz de ordenar essa

polissemia, afinal: “não se pode pensar se não se pensa uma coisa única”. Ou

ainda: “o nome possui um sentido definido e uma significação única”343. Segundo

Derrida, esse ideal aristotélico que aponta a essência da linguagem como ideal de

univocidade nunca foi renunciado pela filosofia. Mais do que isso, diz Derrida,

“ele é a filosofia”344.

A polissemia deve, portanto, poder ser controlada, ordenada, reduzida. A

unidade do sentido deve ser, ao menos, prometida. O poder metafórico é o próprio

do homem, mas apenas quando utilizado para dizer uma, e apenas uma, coisa. É

nesse sentido que o filósofo é o homem por excelência. A filosofia será

determinada, a partir daí, como o lugar da verdade e da univocidade do sentido

ou, em termos mais modernos, o lugar das “idéias claras e distintas”. Mas de onde

provém tais predicados? Se a delimitação filosófica da metáfora já é, ela mesma,

constituída por metáforas, como uma linguagem ou um conhecimento podem ser

‘propriamente’ claros ou obscuros? E aqui nos deparamos com a metáfora das

metáforas: o sol.

Com efeito, as metáforas heliotrópicas são recorrentes na história da

metafísica e Aristóteles a toma como exemplo nos Tópicos. Curiosamente, apesar

da mimesis pertencer à physis, e o sol ser o objeto sensível por excelência,

Aristóteles nos alerta para o fato de que, uma vez que é difícil saber o que é o

‘próprio’ do sol, segue-se que qualquer metáfora que o implique não pode nos

fornecer um conhecimento claro e seguro. Assim, as metáforas heliotrópicas são

matéforas imperfeitas. Afinal, não vemos o sol quando ele se põe, não sabemos se

343 Aristóteles, Metafísica 1006 a 30 b 15, apud Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 289. 344 Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 288.

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ele continua a mover-se por cima da terra quando ele desaparece no horizonte,

lastima Aristóteles.

Para Derrida, ao contrário, o sol é o paradigma da metáfora e do sensível

exatamente por seu movimento de aparecer e ausentar-se. Afinal, não é isso o que

se passa com todos os entes? Uma vez que a metáfora necessita de algo sensível

que não está presente em ato, então o sol é o modelo sensível do sensível

enquanto pode sempre desaparecer, furtar-se ao olhar, não estar presente. E,

assim, o seu giro corresponde à trajetória da metáfora, isto é, ao movimento do

aparecer/desaparecer e a todo o léxico que acompanha essa oposição, a saber:

dia/noite, visível/invisível, presente/ausente.

Entretanto, segundo Aristóteles, apesar de ser o objeto sensível

paradigmático, o referente único sob o qual tudo se dá a ver, o sol não pode

fornecer boas metáforas. Desse modo, o sol é o exemplo por excelência da má

metáfora, visto que não fornece um conhecimento ‘apropriado’. Uma vez que não

podemos ter certeza se seus caracteres sensíveis são os seus ‘próprios’, então o

sol, ele mesmo, nunca está presente no discurso. Tal constatação pode parecer

contraditória, mas será mais do que isso se acompanharmos a reviravolta que

propõe Derrida: “o sol sensível não fornece apenas maus conhecimentos, ele é

apenas metafórico (...) De cada vez que acontece uma metáfora, há sem dúvida

um sol em qualquer parte; mas a cada vez que há sol, a metáfora já começou”345.

Mas se o sol é desde sempre metafórico, se o objeto ‘mais natural da natureza

comporta em si o que sai de si, se ele não é de fato um ente ‘natural’, então o que

restará de natural na natureza? E o que restará de clareza na metáfora?

Com efeito, se voltarmos à definição clássica da metáfora como transporte

de um sentido a outro, de um lugar a outro, veremos aí uma segunda metáfora da

metáfora. Qual é o ‘lugar próprio’ do sentido, ou seja, seu habitat ou sua casa? Se

a metáfora é um deslocamento de uma morada própria para uma morada

emprestada, se esta metáfora ‘habitacional’ é usada para definir correntemente a

noção de metáfora, então chegamos aqui a um limite intransponível: a

metáfora/morada. Assim, conclui Derrida:

“A filosofia, como teoria da metáfora, terá, em primeiro lugar, sido uma metáfora da teoria. Esta circulação não exclui, pelo contrário, permitiu e provocou a

345 Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 292.

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transformação da presença em presença em si, em proximidade, ou propriedade, da subjetividade consigo própria. É a história do sentido “próprio” de que seria necessário, seguir o desvio e o regresso”.

No entanto, assinala Derrida, a metáfora só existe no plural e o metafórico

constitui, de início, um jogo plural. Não existe apenas uma metáfora

‘fundamental’, ‘central’, que possa reduzir o seu jogo a uma única família. Se isto

fosse possível, não haveria mais uma metáfora verdadeira, apenas a legibilidade

do ‘próprio’. É nesse sentido que a filosofia prefere defini-la como perda

provisória do sentido, como um desvio ou intervalo semelhante ao movimento do

sol que surge no oriente e desaparece no ocidente346. Assim como o movimento

desse sol ocidental, a metáfora, tal como compreendida pela metafísica, deve se

elevar no horizonte e encontar a sua verdade no seu fim, ou seja, no regresso a si,

na interiorização. No fim do seu curso está a essência do homem. Assim, o fim da

metáfora é interpretado pela metafísica como uma anamnese interiorizante, como

um desvio inevitável, mas orientado à reapropriação do sentido próprio. Nesse

sentido, escreve Derrida:

“É por isso que a avaliação filosófica (da metáfora) foi sempre ambígua: a metáfora é ameaçadora e estranha ao olhar da intuição (visão ou contato), do conceito (alcance ou própria presença do significado), da consciência (proximidade da presença a si); mas é cúmplice do que a ameaça, é-lhe necessária na medida em que o desvio é um regresso guiado pela função da semelhança, sob a lei do mesmo”347.

Assim, toda a especulação filosófica sobre a metáfora acaba por

reconduzi-la à questão da verdade, do desvelamento, para a produção da ‘presença

sem véu’, enfim, para a reapropriação da linguagem plena. Mas também nos

conduz para o fim da metáfora, para sua autodestruição que é, nada mais, nada

346 Derrida nos lembra aqui uma forte passagem de La raison dans l´histoire onde Hegel compara a luz solar com o Universal em si. Escreve Hegel: “A história universal vai de Leste para Oeste, porque a Europa é verdadeiramente o fim e a Ásia, o começo desta história. Para a história universal existe um Leste por excelência (...): com efeito, embora a terra forme uma esfera, a história, todavia, não descreve um círculo em torno dela; existe sim um Leste determinado que é a Ásia. Aqui se ergue o sol exterior, físico, e a Oeste põe-se, mas a Oeste se ergue o sol interior da consciência de si que derrama um brilho superior. A história é a educação pela qual se passa do desencadear da vontade natural ao Universal e à liberdade subjetiva”. Hegel, La raison dans l´histoire, trad. Fr. K. Papaionnou, apud Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 310. O etnocentrismo delirante de Hegel que marca a filosofia ocidental como um todo é bem assinalado já na frase inicial do livro Comunidade da Diferença de Miroslav Mirovic: “O mundo atual, o mundo global, é um delírio hegeliano”. Ed. Unijuí, Relume-Dumará, Série Conexões, Rio de Janeiro, 2004 347 Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 312.

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menos, que a morte da filosofia. Uma morte ou um fim que, assim como o

heliotropo, “pode sempre superar-se”348.

Após este longo desvio pelo terreno da metaforologia, torna-se

compreensível porque as metáforas usadas por Heidegger não podem mais passar

desapercebidas. A Lichtung enquanto a ‘clareira’ do ser, a linguagem como

‘morada’ do ser, a ek-sistência do homem enquanto o manter-se na clareira do ser

(Lichtung des Seins)349, todo o léxico implicado nas noções de

propriedade/impropriedade, autenticidade/inautenticidade, não podem mais ser

tratadas como simples e ingênuas metáforas. Retomemos à última citação

heideggeriana, quando dizíamos da proximidade/distância do homem em relação

ao ser. Dizia Heidegger: “Antes de falar, o homem deve deixar-se reivindicar pelo

ser e predispor-se por ele ao risco de, sob essa reivindicação, só pouco ou

raramente ter qualquer coisa a dizer. Só então é restituída à palavra a riqueza

inestimável da sua essência e ao homem o abrigo para habitar na verdade do ser”.

Sabemos que a linguagem é a casa do ser e que apenas raramente o homem tem

acesso a ela. Contudo, essa morada que é uma clareira é o seu habitat mais

natural, no sentido daquilo que é o mais condizente com a sua essência, ou seja,

aquilo que lhe é mais ‘próprio’.

No interior desse terreno minado por metáforas humanistas e

humanizantes, como refutar a legitimidade das interpretações antropologizantes de

Heidegger? Como não pensar que o ‘pensamento dócil à Voz do ser’ é o mais

potente pensamento do Homem? E, nesse sentido, como não entender a filosofia

heideggeriana, como propõe Derrida, como a mais alta, potente e refinada

Metafísica? Como a mais sofisticada insistência na presença a si da consciência

fenomenológica? E, nesse sentido, apesar de superar a concepção representacional

da linguagem, teria Heidegger efetivamente realizado a ‘virada lingüística-

pragmática’?

348 Derrida, “A mitologia branca” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 313. 349 Como destaca Derrida, o motivo do próprio (eigen, eigentlich) e dos diversos modos do apropriar (em particular o Ereignen e ao Ereignis) operam desde há muito tempo no pensamento de Heidegger. Na Carta sobre o Humanismo, os temas da casa e do próprio são regularmente conciliados e o valor de oikos desempenha um papel decisivo na cadeia semântica heideggeriana. Derrida, “Os fins do Homem” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 170.

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4

A Virada Pragmática

4.1

Considerações iniciais

Como já mencionado no capítulo sobre o ‘expressivismo alemão’,

Wilhelm von Humboldt pode ser considerado o primeiro filósofo a referir-se,

explicitamente, à dimensão comunicativa da linguagem. Uma vez que os

lingüistas modernos vem se interessando, cada vez mais, pela genealogia da

lingüística349, Humboldt vem sendo identificado, junto a Rousseau, como o

pioneiro de uma nova visada sobre o problema da linguagem. No entanto, acredito

que, seguindo a leitura de Hansen-Love, a ‘lingüística’ humboldtiana extrapola o

campo do que hoje denominamos ‘Lingüística Moderna’, o que impede uma

simples relação de continuidade entre ambas. Como escreve Humboldt:

“Considero o funcionamento da língua na sua extensão mais larga, ou seja, não me contento em examinar sua relação com o discurso e com o repertório lexical, produtos imediatos de sua atividade, como também abordo o problema de suas relações com as faculdades intelectuais e afetivas”350.

Nesse sentido, os estudos de Humboldt não podem ser resumidos à sintaxe

nem à semântica. Com efeito, ele pode ser considerado pioneiro na abertura do

campo ‘pragmático’ da linguagem, para além da função designativa, visto que a

sua concepção inovadora não se limita a apontar a característica de ‘abertura de

mundo’ da linguagem, como também destaca o seu caráter eminentemente

comunicativo e, portanto, intersubjetivo e dialógico351.

349 Em “O círculo lingüístico de Genebra”, Derrida menciona o artigo Cartesian Linguistics de Noam Chomsky, onde este famoso lingüista traça uma genealogia da Lingüística e cita, entre os pioneiros, Humboldt e Rousseau. Segundo Derrida, gesto análogo também pode ser encontrado em Jakobson que no texto A la Recherche de l´essence du langage, nos remete não apenas para Peirce e Humboldt, mas também para João de Salisbury, para os Estóicos e para o Crátilo de Platão. Derrida, Margens da Filosofia, op. cit. pág. 179. 350 Humboldt, Sur la diversité de structure du potentiel linguistique de l´humanité, apud Hansen-Love, Ole. La révolution Copernicienne du Langage dans l´oevre de Wilhelm von Humboldt, pág. 49. ed. J. Vrin, Paris, 1972. 351 Importa notar, contudo, que Aristóteles já se referia à dimensão comunicatica da linguagem. No entanto, a tradição privilegiou a passagem já citada de De Interpretatione onde Aristóteles anuncia

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Com efeito, Humboldt apresenta a noção de intersubjetividade como um

processo dialógico que ocorre na comunicação lingüística, inaugurando, assim, a

dimensão comunicativa-pragmática da linguagem que encontrará, por sua vez,

frutífera recepção por parte de diversos autores contemporâneos. Lafont considera

que, ao apontar o caráter constitutivo da linguagem, Humboldt efetua, avant la

lettre, o ‘giro pragmático’ da filosofia contemporânea, que será desenvolvido mais

tarde por autores como G.H.Mead, o segundo Wittgenstein, Ch.Taylor e J.

Habermas.

Nesse sentido, Humboldt é o primeiro a ressaltar que a linguagem

apresenta, além de sua função cognitiva e expressiva, a função comunicativa. A

linguagem é definida como uma ação humana, uma atividade, um processo

contínuo que não pode ser analisada como um objeto, mas sim, compreendida

pelos falantes que dela participam. Por isso, Humboldt insiste: “A linguagem só

existe na fala continuada, a gramática e o léxico são apenas comparáveis com seu

esqueleto morto”352. E prossegue: “Uma vez que a linguagem vive na boca do

povo, ela é uma produção e reprodução progressiva da capacidade geradora de

palavras no seu uso cotidiano de fala”353.

Desse modo, a linguagem só pode existir em sociedade e apenas se

desenvolve no uso contínuo da fala que tem lugar na ‘boca do povo’. Assim, para

Humboldt, a linguagem aparece como condição de possibilidade da

intersubjetividade e do diálogo e, portanto, da comunicação entre sujeitos. Escreve

Humboldt: “A linguagem pertence necessariamente a dois e pertence, na verdade,

a todo gênero humano (...), pois todo falar repousa no diálogo (...)”354. No entanto,

Humboldt não estabelece nenhuma hierarquia entre as funções da linguagem –

cognitiva, expressiva, comunicativa. Com efeito, escreve Humboldt:

“Independentemente da comunicação que se estabelece entre os homens, a

linguagem constitui uma condição necessária que rege o pensamento do indivíduo

a função designativa da linguagem e estabelece a concepção dominante sobre a essência da linguagem, ou seja, a função instrumental. 352 Humboldt, VI 148 apud Lafont, op. Cit. Pág. 54. 353 Humboldt, VII 101 apud Lafont, op. Cit. Pág. 55. 354 Humboldt, obras completas, VI 26 apud Lafont, La Razón como Lenguaje, op. cit. pág. 59.

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singular no nível de sua existência mais solitária”355. Caberá aos herdeiros dessa

tradição enfatizar um ou outro caráter como sendo o mais ‘essencial’.

Assim, a ‘virada lingüísica’ da filosofia contemporânea pode ser entendida

em dois sentidos complementares. Frege e Husserl inauguram o movimento

filosófico rumo ao estudo da linguagem, ao criticar o psicologismo e deslocar o

foco das investigações filosóficas da consciência subjetiva para os enunciados

lingüísticos. Todavia, além da tradição analítica e da fenomenologia, cujas

investigações dirigem-se sobretudo para a função cognitiva da linguagem, a virada

lingüística, tal como efetuada por Humboldt, também abriu espaço para o

desenvolvimento de um ‘expressivismo’ e de uma ‘pragmática’ da linguagem.

Certamente, seus herdeiros mais imediatos enfatizam, cada qual a seu modo, o

caráter que mais lhe convém. Nesse sentido, Heidegger enfocará a noção de

‘abertura de mundo’, enquanto Habermas ressaltará a função de comunicação da

linguagem356.

No entanto, apesar das diferentes leituras, a ‘lingüística’ humboldtiana

inaugura a investigação da linguagem ordinária, enquanto uma forma de ação e

não de descrição do real, levando em consideração, sobretudo, o uso que fazemos

da linguagem nos diferentes contextos. Nesse sentido, pode-se afirmar que

Humboldt abriu um novo campo de estudo sobre a linguagem que reaparecerá em

autores ditos ‘pragmáticos’ como o segundo Wittgenstein e John Austin.

Desse modo, Humboldt amplia o papel constitutivo da linguagem para

além das dimensões cognitiva e expressiva. A linguagem também é,

eminentemente, comunicação. Nesse sentido, o foco de sua pesquisa dirige-se

para a análise dos pronomes pessoais (eu, tu ele) que, de acordo com suas vastas

investigações empíricas, encontram-se em todas as línguas concretas. Segundo

Humboldt, a forma pronominal é uma característica universal compartilhada por

todos os povos, uma vez que o falar pressupõe que o falante (eu) distingua-se

355 Humboldt, Sur la diversité de structure du potentiel linguistique de l´humanité, apud Hansen-Love, Ole. La révolution Copernicienne du Langage dans l´oevre de Wilhelm von Humboldt, op. cit. pág. 55. 356 Desse modo, a mesma crítica que Cristina Lafont faz a Heidegger (de que este considera somente a função de abertura de mundo da linguagem e, portanto, hipertrofia tal caráter negligenciando os demais) pode ser devolvida a Habermas, uma vez que este também hipertrofia uma determinada dimensão da linguagem, a saber, o seu caráter comunicativo. Nesse sentido, a dimensão da comunicação é tomada como fundamento para sua teoria da ação comunicativa e para uma nova racionalidade intersubjetiva pretensamente universal, visto que apoiada na estrutura dialógica da linguagem.

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frente ao ouvinte (tu ou ‘não-eu’) e aos demais. A grande inovação de Humboldt

consiste exatamente em tratar a questão da subjetividade no campo da linguagem.

Segundo ele, “o homem fala, inclusive em pensamento, com outro ou consigo

mesmo como um outro”357.

Uma vez que o ‘eu’ ou a primeira pessoa do singular somente alcança sua

especificidade no mundo social – lingüisticamente compartilhado – então, não se

pode pensar uma individualidade pura, separada do mundo e da linguagem.

Assim, o caráter irredutível das primeiras pessoas constitui o fundamento da

linguagem, enquanto meio de entendimento que individualiza e socializa ao

mesmo tempo. A ‘função’ expressivista da linguagem é mais ‘essencial’ que a

representacional porque ela abre a possibilidade de um mundo comum, de um

espaço de interlocução imprescindível a qualquer ‘representação’.

Esta inovação que pode ser encontrada em Humboldt será incorporada pela

discussão filosófica muito tempo depois, especialmente por autores como G.H.

Mead, Gadamer, Taylor e Habermas. Este último, por exemplo, destaca as

inovações da obra humboldtiana através da análise da teoria da individualização

de Mead358. Segundo Habermas, Mead é o primeiro a incorporar a filosofia da

linguagem de Humboldt e seu enfoque performativo da primeira pessoa em

relação à segunda. Tal enfoque é tomado como ponto de partida para a sua crítica

da filosofia da consciência e do modelo de individuação enquanto uma relação

objetiva do sujeito consigo mesmo.

Desse modo, apesar de manter certos pressupostos da psicologia

funcionalista de John Dewey (Mead pode ser considerado um herdeiro direto do

pragmatismo norte-americano), Mead será o primeiro a explicar o processo de

individualização como um processo eminentemente social e interativo. Como

coloca Habermas:

“G.H. Mead foi o primeiro a refletir sobre esse modelo intersubjetivo do Eu produzido socialmente. Ele lança fora o modelo da reflexão da autoconsciência, de acordo com o qual o sujeito cognoscente refere-se a si mesmo como um objeto (...) somente Mead foi capaz de nos tirar das aporias da filosofia da reflexão seguindo o caminho de uma análise da interação, a qual, diga-se de passagem, já está insinuada na doutrina dos costumes de Fichte”359.

357 Humboldt, obras completas, VI 26 apud Lafont, La Razón como Lenguaje, op. cit. pág. 59. 358 Habermas, “Individuação através de Socialização” in Pensamento pós-metafísico, Tempo Brasileiro, 1990. 359 Habermas, “Individuação através de socialização”, op. cit. pág. 204.

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Assim, a ‘auto’-compreensão do selbst não é algo adquirido

autonomamente, como pressupunha a filosofia da consciência. A subjetividade

sempre foi pensada como um espaço interior de representações que se abre pelo

fato do sujeito voltar-se, como num espelho, sobre a sua atividade

representacional. No entanto, tal concepção resta presa no círculo da reflexão

auto-objetivadora e o sujeito só pode aparecer para si como um objeto, ou seja,

como um ‘mim’ objetivado e, portanto, não mais como sujeito. A novidade da

perspectiva humboldtiana e que foi apropriada por Mead consiste em tratar tais

aporias da filosofia do sujeito no âmbito interativo da linguagem. Como esclarece

Habermas, “o Eu que aparentemente me foi dado na autoconsciência como sendo

o Eu pura e simplesmente próprio – esse Eu não me pertence”360. Com efeito, o

Eu da filosofia da consciência contém um núcleo intersubjetivo incontornável,

visto que ele surge através da rede de interações mediadas pela e na linguagem.

Este ‘mim’ que aparece na consciência do sujeito apenas se desprende da

contemplação objetivadora quando o sujeito coloca-se na posição de um falante (e

não de um observador). Apenas quando fala e, portanto, participa de um diálogo

(mesmo se for apenas consigo mesmo), o sujeito aprende a se ver e se

compreender na perspectiva social de um ouvinte. Escreve Mead: “O Selbst, que

está conscientemente perante o Selbst de outros, torna-se, pois, um objeto, um

outro em relação a si mesmo pelo fato de se ouvir falar e de dar respostas a si

mesmo”361. Desse modo, diferentemente da objetivação que ocorre na

introspecção, onde o sujeito atua como um observador que defronta-se consigo

mesmo na terceira pessoa, o enfoque performativo destacado por Mead (e já

anunciado por Humboldt) supõe a diferenciação entre o Eu e o Tu na relação atual

da fala. Assim, na interação comunicativa, o falante defronta-se com seu próprio

enfoque performativo como segunda pessoa. Nesse momento, surge um ‘me’

completamente distinto do ‘Eu’ que age espontaneamente e distinto do ‘mim’

objetivado. Ou seja, o falante se percebe como um outro no ouvir-se falar que tem

lugar na comunicação.

360 Habermas, “Individuação através de socialização”, op. cit. pág. 204. 361 Mead, Obras, vol. I, 244 apud Habermas, “Individuação através de socialização”, op. cit. pág. 206.

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Assim, tal como já anunciado por Humboldt, apenas através da fala (do

som que o próprio falante escuta ao se ouvir falar), o ator é afetado ao mesmo

tempo e da mesma maneira que o seu parceiro. Desse modo, o falante influi sobre

si mesmo e sua fala tende a ganhar um outro significado, de acordo com a reação

do ouvinte. O falante, portanto, reduplica-se, passando para a instância de um

‘me’ que acompanha o ‘Eu’ performativo como se fosse sua sombra. Escreve

Mead: “Quando perguntamos acerca do lugar onde o ‘Eu’ da própria experiência

surge diretamente, a resposta é a seguinte: como figura histórica. Aquilo que nós

éramos instantes atrás, isto é, o ‘Eu’ do ‘me’”362. E Habermas conclui: “Disso

resulta que a autoconsciência originária não é um fenômeno que habita no sujeito,

ou que está à sua disposição, mas que é gerado comunicativamente”363. Dessa

forma, o sujeito e sua consciência deixam de ser o núcleo garantidor da

objetividade, sendo substituídos pelos pressupostos lingüísticos inerentes à

comunicação364.

Desse modo, a linguagem surge como o âmbito originário, ou seja, como a

condição de possibilidade de algo como a ‘autoconsciência originária’ que precisa

ser pressuposta para o proferimento de enunciados simples, como as proposições

vivenciais destacadas por Wittgenstein: “(1) Eu tenho dor de dente; (2) Eu me

envergonho; (3) Eu tenho medo de você”365. Tais proferimentos, que funcionam

como que diálogos internos, nos remetem para o fato de que a autoconsciência

está em dependência contínua face à linguagem, ou seja, ela só surge no encontro

com um outro ‘Eu’ colocado perante o falante no diálogo. Certamente que o ‘Eu’

estava ciente de que sentia dor, vergonha ou medo. Mas a comunicação de tais

vivências para si mesmo como um outro faz com que o ‘Eu’ torne-se ‘me’, ou

seja, interaja com o outro de mim que só me vem à consciência na fala.

Lembrando novamente a afirmação de Humboldt: “o homem fala,

inclusive em pensamento, com outro ou consigo mesmo como um outro”366,

362 Mead, Espírito, identidade, sociedade, 1968, apud Habermas, “Individuação através de socialização”, op. cit. pág. 211. Derrida diria: o sujeito é apenas um rastro... 363 Habermas, “Individuação através de socialização”, op. cit. pág. 211. 364 Na esteira do pensamento derridiano, diríamos: a autoconsciência é um efeito da escritura. No entanto, esta não oferece nenhuma garantia de objetividade. Assim como, para Habermas e Taylor, a linguagem não pode ser reduzida à representação, para Derrida, de modo ainda mais radical, a linguagem enquanto escritura, não se reduz à expressão nem à comunicação. Volto a esta questão a seguir. 365 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, apud Habermas, op. cit. pág. 211. 366 Humboldt, obras completas, VI 26 apud Lafont, La Razón como Lenguaje, op. cit. pág. 59.

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percebemos que a primeira pessoa do singular desempenha um papel chave na

abertura da dimensão pragmática e comunicativa da linguagem. Uma vez que toda

fala, enquanto expressão (que é irredutível à função de representação), inaugura

um mundo comum entre os interlocutores (mesmo que seja do falante consigo

mesmo enquanto segunda pessoa), a dimensão comunicativa da linguagem não

pode ser resumida apenas à comunicação de sentido. Como destaca Taylor, para

além da designação e da representação, a linguagem, enquanto expressão, abre um

espaço público, inaugura um entre nous, forja uma cumplicidade entre o falante e

ouvinte, mesmo que a expressão não comunique nada que o outro ainda não

soubesse367.

Tal função de abertura de mundo da linguagem, compreendida da forma

mais ampla possível, ou seja, como expressão, comunicação, constituição de

sentido e inauguração de um espaço comum coloca, por um lado, enormes

desafios para uma investigação que se pretenda ‘científica’ ou exaustiva. É nesse

sentido que o termo ‘pragmática’, enquanto uma parte específica da filosofia da

linguagem, tal como classificada por Morris, sempre foi encarada com enorme

desconfiança pela ‘filosofia analítica’, visto que o estudo da linguagem em ação

apresenta inúmeras variáveis não passíveis de controle.

No entanto, por outro lado, mesmo comunicando algo falso, sem sentido

ou já sabido, o ‘mundo comum’ aberto pela linguagem delimita um contexto,

fornece uma referência que, apesar de não passível de determinação a priori,

ainda deixa aberta a possibilidade de uma formalização, de uma ‘teoria geral’ ou

de uma ‘situação ideal de fala’. Este parece ser o caso de Taylor e Habermas.

Entretanto, o que resta não problematizado em todas essas análises é a

possibilidade estrutural da descontextualização. Como Derrida assinala, a força de

ruptura do contexto, inerente a todo enunciado, problematiza a determinação entre

falante e ouvinte. O funcionamento do ‘Eu’ é tão iterável quanto outra palavra

qualquer, o que impede a compreensão plena do sentido da frase, isto é, da

intenção completa e originária daquele que diz ‘eu’. Com efeito, Derrida retira

outras conseqüências do uso do pronome ‘eu’. Para a desconstrução, o ‘eu’ revela

a originalidade própria à linguagem, qual seja, a de poder funcionar

367 Taylor, “Theories of meaning”, op. cit. pág. 264.

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independentemente do querer-dizer do falante que diz ‘eu’. Voltarei a esta questão

nas críticas que Derrida faz a Searle, no final deste capítulo.

Por enquanto, vejamos como a resistência de Carnap à possibilidade de

uma análise pragmática da linguagem foi desafiada pelo segundo Wittgenstein368

e por John L. Austin369, dois filósofos que merecem destaque por realizarem um

estudo da linguagem ordinária no seu uso concreto.

4.2

Wittgenstein e os jogos de linguagem

O segundo Wittgenstein é, sem dúvida, um marco dessa nova filosofia

pragmática da linguagem, visto que efetua uma radicalização da filosofia

fregeana370 e abandona o projeto logicista empreendido no Tractatus Lógico-

Philosophicus, na esteira de Frege e Russell. Nas Investigações Lógicas, obra

escrita após a ‘virada’, Wittgenstein reconhece a ingenuidade de sua primeira obra

que buscava determinar logicamente a estrutura da linguagem. Nesse sentido, faz

uma crítica ao método analítico e, explicitamente, a si mesmo, ao escrever: “é

interessante comparar a variedade de instrumentos da linguagem e seus modos de

aplicação, a variedade das espécies de palavras e de frases com o que os lógicos

disseram sobre a estrutura da linguagem (inclusive o autor do Tratado Lógico-

Filosófico)”371.

368 Apesar de ser considerado o filósofo mais influente da corrente analítica, quando da publicação do Tractatus Lógico-Philosophicus em 1921, Wittgenstein também aparece como precursor do pragmatismo. Pode-se mesmo dizer que o âmbito pragmático da linguagem foi aberto a partir da publicação das suas Investigações Filosóficas, reunião de suas últimas reflexões sobre o problema filosófico da linguagem, escritas entre 1936 e 1951 e publicadas pela primeira vez em 1953. A edição das Investigações que será utilizada aqui é da Vozes, Petrópolis, 1996 e do Tractatus Lógico-philosophicus, Edição bilíngüe, Edusp, 2001. No entanto, é imperioso ressaltar que Wittgenstein, ao contrário de outros filósofos da linguagem, não buscou construir nenhuma ‘teoria geral’ que pudesse dar conta dos inúmeros usos que fazemos da linguagem. 369 Austin (1911-1960) é o autor da “Teoria dos Atos de Fala” que foi apenas esboçada em How to do things with words e publicada postumamente em 1962. A edição que será utilizada é a tradução feita por Danilo Marcondes, Quando dizer é fazer. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990. 370 Já no Tractatus, Wittgenstein havia alargado a esfera da proposição para além da asserção verídica ou inverídica, visto que “a proposição é uma figuração da realidade” e “entender uma proposição significa saber o que é o caso se ela for verdadeira”, in Wittgenstein, Tractatus Logico-philoshopicus, 4.021 e 4.024, op. cit. No entanto, nas Investigações, a proposição deixa de ser um modelo fixo e exato dos fatos do mundo e passa a ser concebida como uma forma instável de representação passível de reformulação. 371 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, op. cit. pág. 27.

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No entanto, como destacam vários comentadores de Wittgenstein372, a

‘virada’ realizada entre o Tractatus e as Investigações, não significa o abandono

das questões levantadas na primeira obra mas, sobretudo, um aprofundamento e

uma mudança de perspectiva sobre os mesmos problemas. Apesar de Wittgenstein

reconhecer a existência de ‘graves erros’ na sua primeira obra, ele também nos

adverte, no Prefácio das Investigações, que seus novos pensamentos só poderão

ser compreendidos se considerados por oposição ao seu ‘velho modo de pensar’ e

mantendo-o como ‘pano de fundo’373.

Assim, mesmo considerando a evolução de seu pensamento, a questão

crucial que domina seus escritos permanece a mesma: o problema da linguagem.

Por isso, apesar de Derrida não fazer referência explícita ao trabalho de

Wittgenstein, acredito que a noção de ‘jogo de linguagem’ desenvolvida nas

Investigações Filosóficas pode contribuir para pensar a écriture derridiana e os

demais ‘quase-conceitos’ que lhe são correlatos, como différance, iterabilidade e

disseminação. No entanto, tendo em vista os limites deste trabalho e as inúmeras

aproximações que poderiam ser feitas entre a desconstrução e o pensamento

wittgensteiniano, limito-me a apontar algumas questões trabalhadas por

Wittgenstein e que podem ser úteis na compreensão da noção de escritura, tal

como desenvolvida por Derrida.

Para Wittgenstein, a concepção da linguagem estabelecida por Santo

Agostinho nas Confissões determinou uma imagem da essência da linguagem

humana que domina a metafísica ocidental. A concepção agostiniana da

linguagem, escreve Wittgenstein, “entende que as palavras denominam objetos –

as sentenças são os liames de tais denominações. Nesta imagem da linguagem

encontramos as raízes da idéia: toda palavra tem um significado. Este significado

é atribuído à palavra. Ele é o objeto que a palavra designa”374. Encontramos aí,

portanto, a tese metafísica por excelência, já esboçada por Aristóteles e repetida

por toda a tradição filosófica ocidental, qual seja, a de que as palavras colam-se,

como etiquetas, às respectivas referências. De uma forma ou de outra, ambas

postulam a existência de entidades mentais inatas que explicam, por sua vez, a

372 Por exemplo, o ensaio introdutório de Moreno, Arley. Wittgenstein – os labirintos da linguagem, Ed. Unicamp, Campinas, 2000. 373 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, Prefácio,, op. cit. pág. 12. 374 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, op. cit. pág. 15.

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nossa capacidade de estabelecer a comunicação pela linguagem. Tais entidades

constituiriam o próprio conteúdo conceitual presente na comunicação.

Nas Investigações Wittgenstein articula uma crítica devastadora ao

mentalismo, seja em sua vertente aristotélica ou agostiniana, através da análise da

noção de ‘querer-dizer’ (meinem, segundo a tradução corrente, no sentido da

Bedeutung de Husserl ou do meaning de Searle). A noção de intenção inerente ao

‘ter em mente’, frequentemente usada para determinar o significado de uma

expressão, apela para algo como um pensamento interior, um estado mental

solipsista que captaria significações independentemente da linguagem. Assim,

existiriam entidades mentais independentes das palavras sobre as quais

poderíamos aplicar a linguagem. Tais entidades (os ‘estados intencionais’ de

Searle, por exemplo) são, por vezes, definidos como ‘vivências’, ou seja, como

estados mentais que se repetem e retornam, idênticas a si próprias, em

determinadas situações. Uma vez que tais estados mentais são sempre os mesmos

e possuem características delimitadas, eles podem ser nomeadas por palavras

como ‘vivências’, ‘estados intencionais’, ‘querer-dizer’ ou ‘desejar’.

No entanto, replica Wittgenstein, tais termos são tão vagos e

indeterminados quanto ‘jogo’ e ‘linguagem’. Ou seja, são expressões cujas regras

de aplicação deixam em aberto uma enorme margem de imprecisão. E ainda pior:

quando lançamos mão de expressões como ‘estados mentais’, coisas que não

podem ser encontradas fora da mente do sujeito, somos obrigados a postular a

existência de um ‘espírito’ e, assim, duplicamos o reino dos objetos exteriores em

um reino de objetos mentais. Escreve Wittgenstein: “Onde nossa linguagem nos

faz supor um corpo, e não há corpo, ali gostaríamos de dizer que se trata de um

espírito” 375.

Uma vez que submetemos a expressão ‘ter em mente’ aos usos que dela

fazemos, percebemos que a utilizamos, sobretudo, em situações de contradição,

ou seja, em frases como: “não foi isso que eu quis dizer” ou “não foi essa a minha

intenção”. Desse modo, tais expressões dizem respeito, na verdade, às regras que

fixamos para nosso jogo de linguagem e que nos ‘aprisionam’376, não nos

deixando perceber os usos diversificados que elas podem ter.

375 Wittgenstein, Investigações, 36, op. cit. pág. 35. 376 “Nós nos enleamos, por assim dizer, em nossas próprias regras”. Wittgenstein, Investigações, 125, op. cit. pág. 74.

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É por isso que Wittgenstein abandona a análise da proposição como

reveladora do significado, tal como entendida no Tractatus377, e dirige sua atenção

para unidades de outra ordem que serão, sobretudo, caracterizados por outros

critérios. Os novos critérios são, com efeito, fornecidos pelo uso que fazemos da

linguagem nos diferentes contextos, ou seja, nas diversas formas de vida de que

fazemos parte. Não basta que uma proposição seja analisada segundo suas

unidades mínimas de significação, como propõe Frege, por maior que seja a

utilidade de uma tal distinção. Uma vez que o significado reside na proposição

como um todo, aí compreendido a maneira segunda a qual nós a utilizamos

efetivamente, então, o significado da linguagem natural permanecerá sempre

indeterminado, ou melhor, sua determinação dependerá, em última análise, do uso

que fazemos dos enunciados.

Para dar conta das variadas formas de expressão lingüística, Wittgenstein

cunha o termo “jogos de linguagem”, sobretudo para acentuar o fato de que, em

contextos diversos, surgem regras diversas para dar conta do processo de

significação. Assim, a função da linguagem e a sua “lógica” é sempre relativa à

forma de vida de uma determinada comunidade à qual está integrada. O sentido

das expressões lingüísticas somente pode ser determinado em relação às regras

daquele determinado contexto, isto é, daquele determinado jogo de linguagem378.

No entanto, ressalta Wittgenstein, “nossos claros e simples jogos de linguagem

não são estudos preparatórios para uma futura regulamentação da linguagem (...)

Os jogos de linguagem estão aí muito mais como objetos de comparação, os

quais, por semelhança e dissemelhança, devem lançar luz nas relações de nossa

linguagem”379.

377 “4 O pensamento é a proposição com sentido. 4.001 A totalidade das proposições é a linguagem”. Wittgenstein, Tractatus Lógico-Filosofófico, op. cit. pág. 165. 378 Na Gramatologia Derrida utiliza-se com frequência do termo “jogo”, que tende a desaparecer dos textos posteriores, talvez pela associação errônea entre a escritura (écriture) e a noção de “freeplay” com a qual a desconstrução foi associada, sobretudo nos Estados Unidos. Mas Derrida nunca falou em “jogo livre” da desconstrução, como se a impossibilidade da “realização pura da presença a si” implicasse necessariamente no relativismo e/ou irracionalismo. O que Derrida afirma é que “a escritura é o jogo na linguagem” e que esse jogo deve ser pensado como ausência de significado transcendental. De modo talvez menos contextualista que Wittgenstein, o jogo da escritura não é um tipo de ‘jogo de linguagem’ wittgensteiniano. O que Derrida nos propõe pensar é o jogo em geral que tem lugar na linguagem ou, em suas palavras: “é preciso pensar primeiramente o jogo do mundo antes de tentar compreender todas as formas de jogo no mundo”. Derrida, Gramatologia, pág. 61. Cf. “Em direção a uma ética da discussão” pág. 155, Posfácio de Limited Inc. Papirus, 1991. 379 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, 130, op. cit. pág. 76.

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De modo geral, o que Wittgenstein abandona é o afã de fundamentação

presente no projeto logicista de seus antecessores e que marca ainda a sua

primeira obra. Quando ele nos demanda: “Não pense, mas olhe!”380, está

referindo-se exatamente à multiplicidade efetiva dos usos da linguagem, que não

pode ser unificada pela lógica e pelas ‘ficções metafísicas’ que ela cria, sempre

em nome da determinação do significado e, portanto, do conhecimento. É nesse

sentido que o ‘mundo’ do Tractatus381, um ancoradouro firme e sólido onde os

fatos tem lugar, será substituído pela noção de ‘forma de vida’. O apoio na

estrutura fixa dos fatos que estabelecia o elo com a forma lógica da linguagem e

permitia a determinação do significado não pode mais ser mantida. A linguagem

não será mais compreendida como um mecanismo referencial, mas a partir da

multiplicidade de usos que podem ser feitos das palavras e enunciados. Isso não

significa dizer que o mecanismo referencial é abandonado, mas sim situado no

interior de um dos usos possíveis da linguagem, ou seja, em um determinado

‘jogo de linguagem’.

Assim, toda e qualquer determinação do significado de uma expressão é

provisória e parcial, visto que dependente do contexto e das regras do jogo de

linguagem em questão. Uma vez que a significação de uma palavra resulta das

regras de uso seguidas nos diferentes contextos de vida, então, falar uma língua

implica a participação em uma determinada forma de vida, no compartilhamento

de significações, no pertencimento a um determinado contexto ou “mundo da

vida”. Uma vez que os diferentes usos que fazemos da linguagem encontra-se

imbricada com atividades extralingüíisticas que são, por sua vez, envolvidas pela

linguagem, então, a investigação do uso que fazemos da linguagem ordinária

significa também uma investigação do sentido da nossa experiência. E a palavra

‘jogo’ utilizada por Wittgenstein procura expressar exatamente essas atividades ou

formas de vida que escapam a qualquer determinação lógica, sintática ou

semântica.

É nesse sentido que Wittgenstein radicaliza o descolamento entre sentido e

referência iniciado por Frege. A significação lingüística torna-se, a princípio,

independente dos fatos e a referência, por mais abstrata e formal que seja

concebida, não terá mais privilégio sobre outros mecanismos de determinação do

380 Wittgenstein, Investigações, 66, op. cit. pág. 51. 381 “1 O mundo é tudo que é o caso”. Tractatus, op. cit. Pág. 135.

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sentido. O processo de significação desvincula-se, assim, do modelo referencial.

Trata-se agora de investigar como a linguagem engendra a significação mesmo na

ausência de qualquer referência. Portanto, trata-se de investigar as diversas formas

de vida nas quais os jogos de linguagem têm lugar, através de noções vagas como

‘semelhança de família’.

Percebe-se, portanto, que Wittgenstein substitui termos ‘precisos’ da

lógica, como fato, referência e significado, por expressões metafóricas, como

‘jogo de linguagem’ e ‘propriedade de semelhança de família’. Sem dúvida, tais

termos irritam profundamente os lógicos e suas demandas de rigor e exatidão

conceitual. Mas as metáforas se multiplicam no texto wittgensteiniano e exercem

um papel importante na sua reflexão. Afinal, sobre aquilo que não podemos falar,

devemos agora refletir. E as ligações analógicas são as mais apropriadas para essa

nova forma de reflexão. Com efeito, as metáforas consistem, para Wittgenstein,

em meios ‘precisos’ para caracterizar imprecisamente aquilo que é, por essência,

impreciso, a saber, o precesso de significação. Afinal, os conceitos não são

independentes de nossa ação e apenas ganham consistência e sentido na medida

em que estão inseridos numa determinada forma de vida, ou seja, na medida em

que são relativos aos usos que deles fazemos. A exatidão conceitual torna-se,

assim, um atributo do uso.

Esta é, portanto, a ‘virada pragmática’ de Wittgenstein: o significado de

um enunciado depende do uso que fazemos dele nos diversos contextos. A noção

de uso exerce, assim, a função de ‘fundamento sem fundamento’ da significação e

a investigação filosófica deve orientar-se para a descrição de tais usos, ou seja, das

regras segundo as quais empregamos as palavras. É nesse sentido que

Wittgenstein, de modo muito próximo a Derrida, afirma que a filosofia não deve

tocar o uso real da linguagem, nem pode fundamentá-lo, mas apenas descrevê-lo.

Com efeito, a filosofia “deixa tudo como é”382.

Uma vez que os usos da linguagem fazem parte de formas de vida, que

possuem regras e instituições previamente determinadas, compete ao filósofo

descrever os usos possíveis, sempre atento às suas especificidades e

peculiaridades. Nesse sentido, se há uma ‘tarefa’ da filosofia, esta consiste em

liberar os significados abafados e reprimidos pelo hábito, ao mesmo tempo em

382 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, 124, op. cit. pág. 74.

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que realiza uma ‘terapia’ do pensamento ao revelar ‘pseudo-problemas’ que nós

mesmos criamos no uso cotidiano da linguagem. Assim, escreve Wittgenstein:

“Não existe um método em filosofia, o que existe são métodos, por assim dizer,

diferentes terapias”383, ou ainda: “A filosofia de fato simplesmente expõe tudo e

não esclarece, nem deduz nada. – Uma vez que tudo se encontra em aberto, não há

também nada para esclarecer”384.

Para além das semelhanças com o pensamento da desconstrução, que

também não pretende ser um método, nem elucidar ‘profundos problemas

filosóficos’, mas apenas liberar sentidos reprimidos, o que me interessa destacar é

o pioneirismo de Wittgenstein em pensar a linguagem em ação, superando a

clausura logicista de seus primeiros textos e criticando a concepção mentalista da

linguagem.

Nesse sentido, a investigação do uso comum da linguagem, tal como

preconizada nas Investigações Filosóficas, é uma das portas de entrada para a

‘filosofia pragmática da linguagem’. Mas ela também foi desenvolvida, desta feita

de modo mais sistemático e tendendo a uma maior formalização, pela Escola de

Oxford, especialmente na figura de John Austin. A partir das décadas de 1950 e

60, ambas combinaram-se rumo à abertura da dimensão performativa da

linguagem385.

4.3

Austin e a dimensão performativa da linguagem

Austin realiza a virada lingüística ao propor a noção de ato de fala como

unidade de significação e ao subtrai-lo da autoridade do valor de verdade exigida

do enunciado em sentido clássico. Um ato de fala é acima de tudo uma

performance que vai além do mero proferimento lingüístico. Daí que as categorias

usadas para avaliar um enunciado não servem para pensar a linguagem concreta,

ou seja, a linguagem enquanto ação. Um performativo não é verdadeiro ou falso, 383 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, 133, op. cit. pág. 77. 384 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, 126, op. cit. pág. 75. 385 Segundo Danilo Marcondes, a chamada “Escola de Oxford” tem como principais representantes A.J. Ayer, J. Wisdom, G. Ryle e J.L. Austin, cujos trabalhos foram publicados a partir da década de 1930, podendo-se incluir mais tarde P. F. Strawson, S. Hampshire, J. O. Urmson e R. Hare, dentre outros. O artigo de Ryle “Expressões sistematicamente enganadoras” é anterior aos primeiros trabalhos do segundo Wittgenstein, cujas idéias só chegam a Oxford no final da década de 1930. In “Duas concepções de Análise na Filosofia Analítica”, in op. cit. pág. 50.

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mas possui uma determinada força (ilocucionária e perlocucionária). Essa força é

constitutiva da linguagem em geral, mesmo que a teoria dos atos de fala se

restrinja a uma teoria da comunicação, como aponta a crítica derridiana386.

No entanto, Derrida reconhece a novidade da filosofia austiniana, uma vez

que ele “faz rebentar o conceito de comunicação como conceito puramente

semiótico, lingüístico ou simbólico. O performativo é uma “comunicação” que

não se limita essencialmente a transportar um conteúdo semântico”387. Portanto, o

que importa destacar é que, acima de tudo, a noção de performativo não designa o

transporte de um conteúdo de sentido, como se a linguagem fosse um simples

veículo da intenção do falante. Mesmo reduzindo a linguagem a uma certa

“comunicação”, a grande originalidade da teoria de Austin, segundo Derrida,

consiste na noção de força performativa transmitida pelo ato de fala. Diz Derrida:

“o performativo não tem o seu referente (mas aqui esta palavra não convém sem dúvida, e constitui o interesse da descoberta) fora de si ou, em todo caso, antes de si e face a si. Não descreve qualquer coisa que exista fora da linguagem e antes de si. Produz ou transforma uma situação, opera”388.

Desse modo, o ‘sucesso’ de um ato de fala vai muito além dos elementos

lingüísticos utilizados ou da veracidade das proposições. A ‘felicidade’ de um

performativo depende essencialmente de sua força e dos elementos contextuais.

Desta forma, a teoria dos speech acts revela que um performativo não é realmente

verdadeiro nem falso, uma vez que não descreve um fato. Um performativo é feliz

ou infeliz, dependendo das circunstâncias e das conseqüências do ato.

Assim, a noção de “ato de fala” desenvolvida por Austin revela

exatamente a dimensão performativa da linguagem, ou seja, a compreensão da

linguagem não apenas como representação do real, mas como um movimento

original, uma ação. Escreve Austin:

“quando examinamos o que devemos dizer e quando devemos fazê-lo, que palavras devemos usar, em que situação, não estamos examinando simplesmente

386 Segundo Derrida, Austin considera os atos de fala apenas enquanto atos de comunicação, visto que “foi conduzido a considerar qualquer enunciação digna deste nome como um ato de fala destinado a comunicar como sendo em primeiro lugar e antes de mais um ato de discurso produzido na situação total em que se encontram os interlocutores”, in How to do things with words, p. 147 apud Derrida, “Assinatura Acontecimento Contexto” in Margens da Filosofia, pág. 362. 387 Derrida, “Assinatura, Acontecimento, Contexto”, op. cit. pág. 363. 388 Derrida, idem, pág. 363.

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palavras (ou seus “significados”, seja lá o que isso for), mas sobretudo a realidade sobre a qual falamos ao usar essas palavras (...)”389.

Assim, ao investigar a linguagem em seu uso concreto, não se faz apenas

uma análise lingüística, visto que não se separa a linguagem da realidade sobre a

qual ela fala, como se se tratassem de duas realidades distintas. O uso da

linguagem é uma forma de ação no real e não uma mera descrição da realidade. O

exame do uso da linguagem implica no exame da própria experiência do real, uma

vez que a linguagem ordinária é o horizonte último em que a experiência se

constitui.

Nesse sentido, um dos objetivos principais da análise do ato de fala

consiste em revelar a força do ato realizado, o seu poder de persuasão,

mobilização, transformação, enfim, operação. Nesse sentido, a pragmática busca

explicitar as regras, muitas vezes ocultas, que comandam o agir comunicativo.

Uma vez que a linguagem é compreendida como uma ação e não apenas

representação da realidade, não é mais possível reduzi-la a um conjunto de

enunciados, cuja estrutura subjacente poderia ser revelada pela investigação

lógica. A linguagem é um fenômeno bem mais complexo cujo estudo não pode

ignorar o contexto e demais elementos “externos” que dificultam a determinação

do sentido e, portanto, perturbam a comunicação e o entendimento390.

Desse modo, nos termos da pragmática, tal como apresentada por Austin, a

unidade de significação não é mais a proposição lingüística, mas o ato de fala,

uma ação que se desenrola necessariamente no interior de um determinado

contexto e cujo sentido não pode ser determinado de modo absoluto. A variação

contextual irá sempre contaminar a determinação do sentido. Austin reconhece

que o mapeamento ou a explicitação completa das regras que comandam a

linguagem natural é uma tarefa inexeqüível. No entanto, ainda cede ao impulso

analítico e propõe uma análise do ato de fala total, como constituído por três

dimensões: a) o ato locucionário representa a dimensão lingüística estritamente

389 Austin, “A Plea for excuses”, pág. 182 apud Marcondes, “Duas concepções de Análise na Filosofia Analítica”, op. cit. pág. 45. 390 Apesar de reconhecer a novidade do pensamento de Austin, Derrida critica a sua concepção ainda estreita da linguagem enquanto comunicação de sentido, mesmo que esse sentido seja indeterminável. Assim, Derrida rejeita o “pressuposto comunicativo” que permanece em Austin e demais expoentes da Escola de Oxford, que pretendem dar conta da variação contextual rumo à determinação do sentido do ato de fala. Como desenvolvo a seguir, Searle é o expoente mais claro dessa tradição.

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considerada, ou seja, as proposições utilizadas na fala e sua relação com o mundo;

b) o ato ilocucionário é o núcleo do ato de fala, pois representa a força

performativa propriamente dita daquela fala, ou seja, o potencial de operação que

possui aquele ato; c) o ato perlocucionário seria o momento final, ou seja, as

conseqüências do ato.

A dimensão ilocucionária do ato de fala representa exatamente a “força

performativa” da linguagem. A princípio, Austin reservou uma classe de atos que

ainda poderiam ser analisados de modo tradicional, ou seja, apenas como atos

locucionários, visto que constatavam “fatos” ou estados de coisas sujeitos ao

critério de verdade enquanto correspondência ao real. Estes seriam atos puramente

constatativos. No entanto, já nas últimas conferências publicadas em How to do

things with words, Austin reconhece a fraqueza da distinção entre constatativos e

performativos, visto que a força performativa atravessa a linguagem em geral.

Desse modo, Austin estende a noção de performance para a linguagem como um

todo e o ato ilocucionário passa a ser o núcleo da dimensão performativa391. Daí a

possibilidade de intercambiar termos como “ato de fala”, “ato ilocucionário”,

performativo e força performativa.

Talvez essa aceitação da contaminação estrutural entre constatativos e

performativos seja a passagem mais valorizada por Derrida no trabalho de Austin.

Tomando de empréstimo a noção de força performativa, os textos de Derrida nos

remetem, além da comunicação de sentido, ou melhor, antes de qualquer

entendimento possível, para a ambigüidade estrutural da linguagem em geral, isto

é, para o jogo na linguagem. Para Derrida, a força do ato de fala provém da sua

“diferencialidade” anterior a qualquer oposição ou distinção conceitual. Essa

diferença constitutiva de todo e qualquer signo interdita a unidade do sentido, para

além do problema da polissemia, conceito que ainda pressupõe um sentido

original do qual derivam os demais “significantes”.

Levando em conta essa indeterminação constitutiva, a leitura derridiana da

teoria dos Speech Acts acaba por radicalizar a impossibilidade de uma distinção

rigorosa entre atos constatativos e performativos, tal como sugerido pelo próprio

391 “Uma vez que percebemos que o que temos que examinar não é a sentença, mas o ato de emitir um proferimento numa situação lingüística, não se torna difícil ver que declarar é realizar um ato”. Austin, Quando dizer é fazer, Conferência XI, pág. 111.

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Austin, apesar do afã de classificação e sistematização que dominava a cena da

época.

O que Derrida quer nos mostrar é que a linguagem não se deixa dominar,

sistematizar ou idealizar por nenhuma “teoria geral pragmática”. Assim, na

avaliação de Derrida, apesar da abertura da dimensão performativa da linguagem

e do reconhecimento da contaminação performativa da linguagem em geral392,

Austin não levou em conta certos predicados da linguagem que perturbam todas

as demais oposições por ele propostas, como a distinção entre atos felizes e

infelizes.

Assim, uma das principais objeções que Derrida faz à teoria dos Speech

acts e, especialmente, ao seu desenvolvimento posterior, é de que não há como

realizar uma teoria “científica” da linguagem. Mas isso não significa defender

uma postura anticientífica. Ao contrário, de modo lúcido e responsável, escreve

Derrida: “É mais “científico” levar em conta esse limite, se existe algum, e

repensar, a partir daí, tais ou tais conceitos aceitos de “ciência” e

“objetividade””393.

4.4

Respostas a Searle

A leitura inventiva dos textos de Austin realizada por Derrida, acentuando

a contaminação constitutiva de todo ato de fala, recebeu fortes críticas de Jonh

Searle e outros “auto-autorizados herdeiros” da Escola de Oxford394. A partir da

tradução inglesa do ensaio “Assinatura Evento Contexto” em 1977395, seguiu-se

um intenso debate e a produção de diversos textos, ataques e defesas, onde

Derrida questiona as distinções utilizadas por Searle, como entre discurso sério e

não sério396. Apesar de datado e circunscrito à recepção da desconstrução no

392 Derrida, “Assinatura Acontecimento Contexto”, in op. cit. pág. 362. 393 Derrida, Limited Inc. pág. 159. 394 John R. Searle é o conhecido autor de Speech acts, Cambridge University Press, 1969. 395 A primeira tradução inglesa do ensaio (origalmente escrito para uma conferência sobre o tema “Comunicação”, organizada pelo “Congresso Internacional das Sociedades de Filosofia de língua francesa em Montreal, agosto de 1971 e publicada em Margens em 1972) foi feita por Samuel Weber e Jeffrey Mehlman para o primeiro volume do periódico Glyph, em 1977. 396 Limited Inc, obra escrita e publicada originalmente em inglês, reúne os textos envolvidos na polêmica entre Derrida e Searle, e acrescenta um longo posfácio onde Derrida responde às questões de Gerald Graff, editor americano responsável pela reunião dos textos e pela publicação da obra como tal. Já nesse posfácio, de 1987, assim como em escritos mais recentes, como “La

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contexto norte-americano, o debate entre Searle e Derrida é interessante na

medida em que contribui para uma melhor compreensão do texto Assinatura

Evento Contexto e, consequentemente, da relação entre a desconstrução e a

filosofia da linguagem, especialmente a teoria anglo-americana dos atos de fala

(Speech acts).

Buscando uma maior sistematização da teoria austiniana, Searle propõe a

distinção entre discurso sério e não sério na tentativa de excluir de sua análise os

discursos que não possuem intenção, isto é, os “parasitas” (ou falas não animadas

de Bedeutung, na linguagem fenomenológica). Segundo Searle, a teoria dos atos

de fala deve se preocupar apenas com o “discurso literal e sério, (onde) as frases

(sentences) são precisamente a realização (realization) das intenções”. Dessa

forma, conclui Searle: “nenhum abismo é necessário entre a intenção ilocutória e

sua expressão”397. E acrescenta: “uma vez que o autor diz o que ele quer dizer, o

texto é a expressão de suas intenções”398. Entretanto, para a desconstrução, as

coisas não são tão simples. Com efeito, Derrida questiona a legitimidade de tal

exclusão, além de questionar a noção de intencionalidade, com sua presunção de

presença e seu desejo de plenitude, minando a base mesma onde se apóia a teoria

dos atos de fala, tal como recebida por Searle.

Por outro lado, Searle acusa Derrida de ter realizado uma má leitura –

misunderstanding, misinterpretation, misstatement – dos textos de Austin e,

inclusive, desconfia que a relação entre Austin e Derrida nunca existiu e que

ambos, de fato, nunca “se encontraram”399. No entanto, pergunta Derrida, se o

confronto nunca existiu, se a sua leitura não produziu nenhum efeito, a que se

langue de l´etranger”, texto apresentado na ocasião da entrega do prêmio Adorno em setembro de 2001, Derrida se questiona se essa disputa ainda faz sentido e se, na verdade, o mal entendido não passou de uma má vontade em entender. Essa conferência foi publicada integralmente no jornal Le Monde Diplomatique em janeiro de 2002. 397 Searle, Reply a Derrida apud Derrida, “Em direção a uma ética da discussão” pág. 163 in Limited Inc., Papirus, Campinas, 1991. 398 Derrida, Limited Inc., op. cit. pág. 40. 399 Em Reply to Derrida, Searle diz que o confronto Austin-Derrida “never quite takes place”, pois afinal, o Austin de Derrida é irreconhecível. Sendo assim, Derrida não pertence aos legítimos herdeiros da tradição analítica da Escola de Oxford que “compreendem” a teoria de Austin desde a terra prometida, donde o último, morto cedo demais para participar do confronto, faz-se representar. No entanto, lembra Derrida, Austin nunca deu seu consentimento (sério e escrito) a esta sociedade que pretende a legitimidade da filiação. E a própria distinção entre filosofia analítica e continental é bastante problemática e torna-se sintomático que Searle levante objeções à Derrida no momento exato em que este último aponta, na teoria austiniana, “os pressupostos mais tenazes, mais sólidos também, da tradição metafísica continental”. In Limited Inc., op. cit. pág. 52 e 55.

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deve a resposta tão agressiva de Searle e seus sócios?400 E se uma leitura errônea

(mis) é possível, o que isso implica quanto à estrutura dos speech acts em geral?

Se o discurso de Derrida não é sério, por que replicar tão seriamente? Se o Austin

de Derrida é irreconhecível, como fez Searle para se reconhecer aí? Logo, conclui

Derrida “Sarl (Searle + n autores) compreendeu bem. Ele não misunderstood o

essencial”. Em outras palavras, ele foi “tocado” pelo speech act de Derrida, o

texto derridiano causou efeitos perlocucionários no herdeiro auto-autorizado de

Austin. E o que dizer de tais performativos? Como analisá-los e controlar suas

intenções?

A utilização reiterada de locuções adverbiais que apelam ao valor de

evidência – por exemplo, “in a fairly obvious way” – redobram a desconfiança do

leitor quanto às “intenções” de Searle. Como alerta Derrida, a tentativa por parte

de Searle de não deixar a mínima brecha para dúvidas ou “misunderstandings”,

faz com que o efeito se inverta e que a suspeita se confirme. O uso redundante de

advérbios que reforçam a veracidade das suas declarações, escreve Derrida,

assinalam:

“como um sinal vermelho, uma inquietude da qual é preciso seguir o traço. Sem contar que, manejando com tanta serenidade o valor da evidência, poder-se-ia notar que era ela o próprio objeto das questões colocadas em Assinatura Evento Contexto, com todo seu sistema de valores associados (presença, verdade, intuição imediata, certeza garantida etc)”401.

Mas deixemos tais questionamentos em reserva para apresentar as críticas

elaboradas por Searle a Derrida. Em primeiro lugar, Searle acusa Derrida de fazer

uma assimilação da fala à escrita. Ou seja, de reduzir a linguagem falada ao texto

escrito e realizar, portanto, uma inversão da hierarquia dominante. Mas basta uma

leitura atenta de Assinatura Evento Contexto para concluir que Derrida não está

preocupado em distinguir a fala da escrita, mas sim, em revelar as estruturas da

linguagem que se encontram tanto no discurso falado como no escrito.

No texto “Assinatura Acontecimento Contexto” Derrida alerta para a

necessidade de uma “certa generalização e um certo deslocamento do conceito de 400 A expressão Limited Inc. aponta para o mesmo contexto jurídico-comercial da “sociedade mais ou menos anônima” dos herdeiros de Austin (Searle + n autores) que Derrida nomeia em francês como “Société à responsabilité limitée” e abrevia por Sarl, para destacar a problemática do nome próprio e da impossibilidade da presença a si e da intenção pura e simples que Searle tanto evoca. Limited Inc. op. cit. pág. 53. 401 Derrida, Limited Inc. op. cit. pág. 59.

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escrita”, como efeito da indeterminação que atravessa a linguagem em geral, seja

ela escrita ou falada. Uma vez constatada sua natureza disseminante, diz Derrida:

“A linguagem não pode mais ser compreendida sob a categoria de comunicação, se entendida no sentido de transmissão do sentido. Inversamente, é no campo geral da écriture que os efeitos de comunicação semântica poderão ser determinados como efeitos particulares, secundários, inscritos, suplementares”402.

Com efeito, Derrida generaliza os predicados atribuídos à linguagem

escrita – iterabilidade, citacionalidade e deriva essencial403 – para a linguagem em

geral. A possibilidade da ausência (do emissor e do destinatário) pertence à

estrutura de toda marca, ou seja, da linguagem em geral. Não obstante, é preciso

que uma ‘comunicação escrita’ permaneça legível e, portanto, repetível, para que

se caracterize enquanto tal. É essa característica repetível da escrita, que pode ser

generalizada para toda a linguagem, que Derrida chama de ‘iterabilidade’. Junto

aos demais predicados desenvolvidos em “Assinatura Acontecimento Contexto”,

este é o fio condutor através do qual Derrida problematiza a tese central da teoria

dos speech acts, qual seja, a de que a linguagem é a comunicação do querer-dizer,

seja ela escrita ou falada.

Mas Searle utiliza-se do argumento desenvolvido pelo próprio Derrida

para elaborar sua crítica. Diz Searle: “Como Derrida bem sabe, todo elemento

lingüístico, seja escrito ou falado, e com efeito, todo elemento governado por

regras, e não importa qual sistema de representação, deve ser repetível”. Mas é

claro que Derrida está “aware” disto, visto que esta proposição é uma das

alavancas indispensáveis na argumentação desenvolvida em “Assinatura Evento

Contexto”, onde a distinção entre fala e escrita perde toda a pertinência para

ressaltar os traços generalizáveis à linguagem em geral. Como pode Searle

utilizar-se do argumento derridiano numa página e fazer uma objeção a ele na

página seguinte? E Derrida arrisca uma resposta bem ao estilo da desconstrução:

“talvez porque a mão, o outro que assinou Assinatura Evento Contexto, ditou, por

trás, a Reply”404. Ou seja, parece ser o próprio Derrida quem fornece a Searle os

argumentos com os quais ele critica o texto derridiano. Uma escrita a duas mãos,

402 Derrida, “Assinatura Acontecimento Contexto” in Margens da Filosofia, pág. 351. 403 Desenvolvo tais atributos na Parte 2 deste trabalho, especificamente no Capítulo 5 sobre os traços disseminantes da escritura. 404 Derrida, Limited Inc. op. cit. pág. 68.

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como toda escrita sempre o é. Os argumentos que Searle pretende opor a Derrida

nos reenviam ao texto derridiano. É o duplo laço da língua em pleno

funcionamento.

Por exemplo, ao acusar Derrida de confundir iteração e citação, Searle cita

uma proposição que pode ser reenviada ao texto derridiano: “toda marca, seja ela

oral ou escrita, é repetível”. Traduzindo nos termos de Derrida, toda marca é um

grafema citável e iterável. No entanto, isto parece ter escapado à Searle. A

iterabilidade, tal como pensada por Derrida, não significa apenas que um signo

pode ser repetido e citado sem perder sua “identidade”. A iterabilidade é mais

ampla, é aquilo mesmo que possibilita a citacionalidade e a repetibilidade. Toda

citação, por mais fiel e contextualizada que se pretenda, altera aquilo que pretende

apenas reproduzir. Segundo Derrida, “essa é uma das teses de Assinatura Evento

Contexto: a iteração altera, algo de novo acontece. Por exemplo, aqui, o mis takes

place”405. Mesmo utilizando-se dos argumentos fornecidos por Derrida, Searle

consegue opor-se a eles e inventar um debate. Um efeito da iterabilidade.

Searle afirma que se deterá nos pontos centrais do texto derridiano, nas

suas teses cruciais, mas não percebe o “óbvio”, que talvez, por isso mesmo, lhe

pareça oculto. O texto derridiano não tem centro, questiona a noção mesma de

centro. Ou como diz Derrida:

“não me “concentro” nos pontos aparentemente mais “importantes”, “centrais”, “cruciais”. Antes, desconcentro, e o secundário, o excêntrico, o lateral, o marginal, o parasitário, o border-line “importam”-me e me dão muito (dentre outras coisas, prazer) quanto ao funcionamento geral de um sistema textual”406.

Afinal, como resumir os pontos centrais de um pensamento que rejeita a

oposição entre centro e margem? Como dissociar os pontos “cruciais” dos muitos

outros com os quais formam uma cadeia sistemática? Como isolar a noção de

iterabilidade de toda a rede desconstrutora da qual faz parte?

Mas Searle não notou, por exemplo, que o texto de Derrida trata, de ponta

a ponta, da questão da verdade e do sistema de valores que se engata a ela. Parece

incrível que isso não lhe pareceu crucial, o que indica mais do que uma simples

diferença de estilo de leitura entre a tradição analítica e a desconstrução. Por isso,

405 Derrida, Limited Inc., op. cit. pág. 59. 406 Derrida, Limited Inc., op. cit. pág. 65.

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Derrida aceita de bom grado uma terceira crítica por parte de Searle, a de que ele

faz “more than a simply misreading” dos textos de Austin. Realmente, a

desconstrução faz mais do que uma simples (mis) leitura (boa ou ruim, fiel ou

infiel) de um texto. Com efeito, a desconstrução questiona o critério de verdade e

o pressuposto contido na possibilidade mesma de uma leitura “correta”, “fiel”, não

contaminada pelo “mis” de qualquer texto.

Ademais, lembra Derrida, a oposição verdade/falsidade foi denunciada

como “fetiche” pelo próprio Austin, apesar dele ser obrigado a reintroduzir o

critério de verdade na descrição dos performativos. Mas a noção de ato de fala,

que vem substituir a sentença como unidade de significação, escapa ao valor de

verdade. Aliás, essa constitui a novidade mesma da teoria dos speech acts. Como

criticar a desconstrução com base em critérios cujos limites já foram apontados

por Austin, ele mesmo? Assim, conclui Derrida, “quem sabe se Searle não é mais

dogmático que Austin, quando maneja com tanta segurança a obviousness do true

e do false ou wrong”407.

A desconstrução questiona a destinação obrigatória de todo texto à

Verdade. Por que todo texto deve prestar contas ao verdadeiro? O sentido destina-

se necessariamente à Verdade? Não poderia ele fazer outra coisa? Por exemplo,

sugere Derrida: 1) dizer algo aparentemente falso para provocar um debate, ou

ainda:

“2) propor uma escrita cuja performance (estrutura, acontecimento, contexto etc) desafie a cada instante as oposições de conceitos ou valores, o rigor desses limites de oposição acreditados pela teoria dos speech acts, pela sua própria axiomática; e a performance de um texto que, levantando de passagem a questão da verdade, não caia mais simplesmente sob sua jurisdição e permaneça neste ponto, como performance textual, irredutível às sentenças veriditivas do tipo: isto é verdade, isto é falso, “completely mistaken” ou “obviously false””408.

Seguindo a trilha do mis, Searle continua sua leitura crítica do texto

derridiano e traz à tona a questão da ausência, buscando relacioná-la com a

distinção entre fala e escrita. Segundo Searle, ‘leitor’ de Derrida, o que

distinguiria a linguagem falada da escrita para a desconstrução seria a ausência do

destinatário que a escrita buscaria suprir. A partir dessa constatação, conclui

Searle, supostamente mostrando uma contradição no texto de Derrida: “Mas não é 407 Derrida, Limited Inc., op. cit. pág. 62. 408 Derrida, Limited Inc. op. cit. pág. 63.

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necessário que o receptor esteja ausente. A comunicação escrita pode existir na

presença do destinatário, por exemplo, quando eu redijo uma lista de compras

para mim mesmo ou quando passo uma nota para meu companheiro durante um

concerto ou conferência” 409.

Entretanto, replica Derrida, “nunca foi dito em Assinatura Evento

Contexto, que essa ausência era necessária, mas somente que ela é possível”. E é

tal possibilidade que Derrida quer ressaltar, visto que ela pertence à estrutura de

toda marca, precisamente à estrutura de sua iterabilidade. A confusão (mis) que

Searle faz entre necessidade e possibilidade é reveladora, até porque ele mesmo

escreveu em seu Reply que o principal argumento do texto derridiano era o

seguinte: “dado que escrever pode e deve poder funcionar na ausência radical do

emissor, do destinatário e do contexto...”.

Ora, pode e deve poder não significa que necessariamente assim o é. A

necessidade de tal possibilidade faz parte da estrutura de toda marca, da lei

estrutural que permite a toda marca funcionar. Mas não significa que isso deva

sempre, de fato, ocorrer. Portanto, o exemplo escolhido por Searle é ingênuo e

mal colocado, mas também revelador.

Mas Derrida aceita a provocação de Searle e analisa o caso por ele

proposto, ou seja, uma lista de compras escrita por mim para mim. Existe

realmente este fato descrito por Searle, isto é, a presença do emissor e do

receptor? Não seria essa pretensa presença desde sempre dividida, contaminada,

parasitada pela possibilidade de uma ausência, uma vez que essa possibilidade se

inscreve necessariamente no funcionamento de toda marca? Diz Derrida: “desde

que uma possibilidade é essencial e necessária, não se pode mais, nem de fato,

nem de direito, pô-la entre parênteses, excluí-la, deixá-la de lado, mesmo

provisoriamente, mesmo por razões pretensamente metodológicas”410. Mesmo

uma lista de compras escrita por mim para mim está destinada a suprir uma

ausência, a saber, da minha memória. No momento mesmo que faço a lista,

mesmo se escrevo com uma só mão e com uma caneta Bic, a “ausência da

memória” está presente, imediatamente, no mesmo instante, que já é o instante

seguinte. Escreve Derrida: “Por mais esfiapada que seja, ela já se divide como o

409 “But it is not necessary for the receiver to be absent. Written communication can exist in the presence of the receiver, as for example, when I compose a shopping list for myself or pass notes to my companion during a concert or lecture”, apud Derrida, Limited Inc. op. cit. pág. 69. 410 Derrida, Limited Inc., op. cit. pág. 70.

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stigmè de toda marca. O emissor e o receptor da shopping list não são o mesmo:

mesmo se portam o mesmo nome e estejam seguros da identidade do eu”411.

A iterabilidade divide toda escrita no instante de sua produção, mesmo no

caso limite apresentado por Searle, isto é, mesmo quando escrevo para me reler

em seguida, instantaneamente. Tal duplicidade é inescapável, mas não representa

um limite negativo, um defeito da linguagem. Ao contrário, essa différance é a

condição de possibilidade positiva de toda marca, a condição de seu

funcionamento, sem a qual seria impensável algo como escrever uma lista de

compras para si mesmo. Diz Derrida: “se o emissor e o receptor estivessem tão

presentes na operação e tão presentes a si mesmos, posto que, por hipótese, aqui

eles são o mesmo, como se poderia distingui-los? Como a mensagem da shopping

list poderia circular entre eles?”412.

E este argumento vale também para o segundo exemplo apresentado por

Searle, ou seja, o caso em que passo uma nota para meu vizinho durante um

concerto ou conferência. O fato do emissor e do receptor encontrarem-se no

mesmo contexto, um ao lado do outro, presentes a si mesmos e àquilo que

escrevem, não apaga o fato da nota ter sido escrita sem a assistência do

destinatário e de que ela pode ser lida na ausência do emissor. Essas duas

ausências possíveis constroem a possibilidade da mensagem circular, no instante

mesmo em que é escrita ou lida, visto que sua existência implica a possibilidade

da ausência que ela vem suprir. Essa “marca de nascença” faz parte de toda marca

e é indissociável da estrutura da iterabilidade.

Portanto, a ausência de que fala Derrida é uma possibilidade necessária,

mesmo se, de fato, ela não ocorra. Mas Searle não quer, ou não pode, perceber

isso porque insiste na afirmação de que o texto de Derrida “opõe a escrita à fala” e

busca, incessantemente, encontrar argumentos que demonstrem o erro da escrita

derridiana. Nesse sentido, atribui à “Assinatura Evento Contexto” a intenção de

distinguir a linguagem escrita da falada através do critério da permanência. Assim,

para Searle, leitor de Derrida, a peculiaridade da escrita seria a sua permanência

(Searle utiliza a palavra permanence em inglês)413. Entretanto, além de não

411 Derrida, Limited Inc., op. cit. pág. 71. 412 Derrida, Limited Inc., op. cit, pág. 72. 413 Searle escreve: “the first confusion that Derrida makes is that he confuses iterability with the permanence of the text.(…) This confusion of permanence with iterability lies at the heart of his argument”. Reply to Derrida, pág. 200 apud Derrida, Limited Inc, op. cit. pág. 74.

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pretender distinguir a fala da escrita, Derrida jamais usou tal expressão, nem a

palavra nem o conceito de permanência. Derrida utiliza-se da expressão

“remainder” e mesmo “non-present remainder” (segundo a tradução de Sam

Weber utilizada por Searle). Ademais, “remainder” aparece em itálico para

assinalar a dificuldade em traduzir o neologismo “restance” (o que faz com que os

tradutores de Derrida deixem a expressão francesa entre parênteses).

Assim, mesmo em francês – que seria a língua “original” –, o termo

restance força o leitor ao trabalho da tradução, no sentido de evitar as

equivalências fáceis, como “permanência”, “substância” ou qualquer outro termo

que pressuponha uma presença. Mesmo sem conhecer os trabalhos anteriores de

Derrida, onde este desenvolve a noção de restância intimamente associada à não-

presença – como um predicado do grafema em geral e não apenas da marca

escrita –, haviam vários sinais destinados a evitar uma tradução simplista,

especialmente se tratando Searle de um especialista em linguagem. Assim, brinca

Derrida, se “Assinatura Evento Contexto” fosse uma lista de compras, “dever-se-

ia concluir que Searle esquece de comprar o necessário para o que se chama, em

francês, prato principal, mas, eis a prova, a lista escrita é feita para suprir essa

ausência sempre possível e qualquer um, talvez o próprio D. Searle, pode voltar à

lista e eventualmente ao supermercado”414. Ou seja, basta voltar ao texto

derridiano que, como toda marca, permanece repetível e iterável, para concluir

que a restância que permite a repetição da marca associa-se à noção de rastro e

não de presença.

Mas a quê nos envia a restância? O que sobra do texto? Da marca em

geral, seja ela escrita ou oral? A repetibilidade é condição de possibilidade da

duração do texto, mas não pode ser confundida com ela. O que permite, então, a

sobrevivência de um texto ou sentido, para além da possibilidade de sua

repetição?415 Ora, responde Derrida secamente:

“a restância está ligada à possibilidade mínima da observação e à estrutura de iterabilidade. (...) A iterabilidade supõe uma restância mínima (como uma

414 Derrida, Limited Inc, op. cit. pág. 75. 415 Searle também acusa Derrida de confundir a sobrevivência de um texto com sua repetibilidade. Veremos que, segundo Derrida, a permanência de um texto implica a sua iterabilidade ou restância em geral, mas o inverso não é verdadeiro. A permanência não é o efeito necessário da restância. Ademais, a estrutura da restância, por implicar a alteração, impede qualquer permanência absoluta. Idem, pág.78.

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idealização mínima, embora limitada) para que a identidade do mesmo seja repetível e identificável em, através e até em vista da alteração. Porque a estrutura da iteração implica, ao mesmo tempo, identidade e diferença. A iteração mais pura – mas ela nunca é pura – comporta em si mesma o afastamento de uma diferença que a constitui como iteração. A iterabilidade de um elemento divide a priori a sua própria identidade, sem contar que essa identidade só pode delimitar-se numa relação diferencial com outros elementos, e traz a marca dessa diferença”416.

Assim, a restância é um conceito que não pode ser conceito. Ela força o

‘conceito de conceito’ ao denunciar a impossibilidade da idealização pura. Toda

presença está marcada pela ausência, toda identidade infectada pela diferença,

dentro de cada “elemento” e entre os “elementos”. Nesse sentido, a noção de

intencionalidade, com a qual Searle pretende dar conta da determinação do

sentido, não se sustenta, visto que “a intenção é a priori (secamente) diferente”417.

No entanto, é exatamente a intencionalidade o pressuposto central da

teoria dos Speech acts, tal como desenvolvida por Searle. Segundo Searle, não

existe nenhum “abismo” entre o querer-dizer do emissor e sua expressão

lingüística (oral ou escrita), pois uma vez que “o autor diz o que ele quer dizer, o

texto é a expressão de suas intenções” e, “no que concerne à intencionalidade,

compreender o enunciado consiste em reconhecer as intenções ilocucionárias do

autor, e essas intenções podem ser mais ou menos perfeitamente realizadas pelas

palavras enunciadas, escritas ou orais418. Nada mais duvidoso frente ao

pensamento desconstrutor.

Uma vez que a possibilidade da ausência é uma marca constitutiva de todo

enunciado, é preciso reconhecer as conseqüências dessa “possibilidade

necessária” e não tratá-la como mera eventualidade. A iterabilidade divide ou

afasta a intenção, impede-a de estar sempre plenamente presente a si mesma,

mesmo na atualidade de um “querer-dizer”. Ademais, essa mesma “lógica”

diferida vale também para o referente (o significado, de acordo com a

nomenclatura da lingüística). É por isso que, obliquamente, Derrida tende a

concordar com Searle quando este diz: “uma frase significativa é somente uma

possibilidade aberta do ato de linguagem (intencional) correspondente”. Mas a

desconstrução acrescenta: não existe sentença plena e atualmente significativa,

416 Derrida, Limited Inc., op. cit. pág. 77. 417 Derrida, Limited Inc., op. cit. pág. 82. 418 Derrida, Limited Inc., op. cit. pág. 40.

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assim como não há ato de linguagem com intenção plenamente presente, ativa e

atual. A desconstrução questiona a noção de intenção, assim como de ato, visto

que ambos implicam o valor de presença que, desde o atravessamento da

fenomenologia de Husserl, a desconstrução vem denunciando.

Além de não problematizar a noção mesma de intenção, Searle também

deixa de lado, segundo ele, ‘provisoriamente’, a consideração do contexto. Assim,

propõe um exemplo bem didático para ilustrar seu argumento. Escreve Searle:

“Perguntem o que se passa quando lêem o texto de um autor morto. Suponham

que leiam a frase: ‘em 20 de setembro 1793 eu viajei de Londres para Oxford’.

Ora, como compreendem esta frase?”.

Uma vez colocado este exemplo claro, simples e descontextualizado,

Searle pretende distinguir rigorosamente entre duas possibilidades. Primeira

possibilidade: “o autor diz o que queria dizer e você entende o que ele disse”; e

Searle prossegue:

“Uma vez que o autor diz o que ele gostaria de dizer e você entende o que ele diz, sabe que ele tinha a intenção de declarar, para fazer saber, que em 20 de setembro de 1793 ele viajou de Londres a Oxford, e o fato de que o autor está morto e todas as suas intenções estão mortas com ele é sem pertinência no que concerne à sua compreensão dos enunciados escritos que sobreviveram a ele”419.

Como Derrida ressalta, a última parte do argumento de Searle não pode ser

oposta ao pensamento derridiano, visto que esta é uma das teses centrais de

“Assinatura Evento Contexto”, ou seja, novamente o texto de Searle nos reenvia

ao texto de Derrida. A idéia de que uma marca não deixa de funcionar mesmo na

ausência de seu autor, visto que a possibilidade da morte (ou da não presença da

intenção viva e atual) está inscrita na estrutura funcional de toda marca, é

exatamente uma das consequências da iterabilidade. Mais do que a possibilidade

da ausência, enquanto não presença, do emissor e do destinatário, a iterabilidade

permite que um texto continue legível para além da ausência ‘absoluta’ de ambos.

Ou seja, tal como já apontado na seção sobre Heidegger, uma ausência absoluta

diz respeito à ausência do querer-dizer, mesmo quando o locutor está presente ‘em

pessoa’, mesmo quando fala consigo mesmo ou com um interlocutor situado no

mesmo contexto. Nesse sentido, escreve Derrida: “a própria estrutura da marca

419 Limited Inc., op. cit., pág. 87.

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interdita a hipótese da idealização, a saber, a adequação de um meaning a si

mesmo, de um saying a si mesmo, do understanding a uma sentença, escrita ou

oral, a uma marca em geral”420.

A iterabilidade permite a idealização, ou seja, uma certa identidade que

pode ser múltiplas vezes repetida, mas também a limita no momento mesmo em

que alguém fala ou escreve ‘em 20 de setembro de 1793 eu viajei de Londres para

Oxford’. Aquilo mesmo que assegura a possibilidade de tal marca ser repetível e

legível, “exatamente isso corta, divide, expropria a plenitude ou a presença a si

‘ideais’ da intenção, do querer-dizer e, a fortiori, da adequação entre meaning e

saying.”421. A iterabilidade contamina a intenção e faz com que todo ato de fala

expresse também coisa diversa do que o autor gostaria de dizer. É por isso que o

mis não é um acidente, uma falha que vem de fora para corromper a comunicação

ideal. Mesmo o enunciado mais simples, pobre e unívoco está sujeito à

indeterminação contextual. Como escreve Derrida, “limitando aquilo mesmo que

autoriza, transgredindo o código ou a lei que constitui, a grafia da iterabilidade

inscreve de modo irredutível a alteração na repetição (ou na identificação)”422.

Mas continuemos seguindo a argumentação de Searle. Uma vez excluída a

consideração do contexto, mesmo que ‘provisoriamente’, com a frase ‘Eu viajei

de Londres para Oxford’, Searle lança mão de um exemplo de enunciado na

primeira pessoa. Talvez no intuito de facilitar a compreensão de seu argumento,

Searle acaba por fornecer à Derrida a chance de desconstruir a noção de presença

a si. Com efeito, o funcionamento do ‘Eu’ é tão iterável quanto outra palavra

qualquer, o que impede a compreensão plena do sentido da frase, isto é, da

intenção completa e originária daquele que diz ‘eu’.

Mesmo Husserl foi obrigado a reconhecer a complexidade do pronome Eu.

Em A Voz e o Fenômeno, Derrida analisa a tentativa de Husserl de conter o

“regresso em massa da indicação” que ocorre toda vez que se faz uma referência à

situação do sujeito. Por toda parte onde aparece um pronome pessoal, faz-se

assinalar também um pronome demonstrativo, um advérbio – como aqui, lá,

depois, agora, em cima, em baixo – fazendo com que os índices contaminem a

pureza da expressão.

420 Limited Inc., op. cit. pág. 88. 421 Idem, pág. 88. 422 Limited Inc., op. cit. pág. 89.

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Essa eventualidade do Eu força Husserl a concluir por seu caráter

essencialmente ocasional. Segundo a fenomenologia, o pronome de primeira

pessoa é uma “expressão eventual” e traz consigo inúmeros índices (significantes)

que interditam a pureza da expressão. Assim, nas múltiplas formas do discurso em

que aquele que fala exprime alguma coisa que diz respeito a ele mesmo, como nas

expressões de percepções, convicções, dúvidas, desejos, esperança, temores, etc, a

intenção de significação só será realizada se “aquele que diz Eu designa-se a si

mesmo”. Em resumo, para Husserl, uma expressão que utilize o pronome pessoal

Eu somente poderá determinar a sua Bedeutung a cada vez que for usado. Quando

lemos a palavra Eu sem saber quem a escreveu, temos uma palavra, segundo

Husserl, desprovida de Bedeutung ou estranha ao seu “querer-dizer” original.

Assim, apenas no discurso solitário da alma, no solilóquio, na escuta da

voz interior da consciência é que pode-se realizar plenamente a Bedeutung do Eu.

Apenas na interioridade da alma podemos ter uma “representação imediata da

nossa própria personalidade”423. Assim, Husserl limita a possibilidade de

conhecimento de enunciados em primeira pessoa ao discurso interno. Ele sabe que

na comunicação, no discurso em geral, a aparição do pronome Eu abre mil

possibilidades de interpretação e a indeterminação impõem-se, impedindo

qualquer conhecimento seguro. Escreve Derrida: “quando a palavra Eu aparece, a

idealidade de sua Bedeutung, enquanto distinta de seu objeto, nos põe na situação

descrita por Husserl como anormal: como se Eu fosse escrito por um

desconhecido”424. E é isso que explica o fato de compreendermos a palavra Eu

não apenas quando seu “autor” é desconhecido, mas também quando ele é fictício

ou está morto. Assim como o valor (o funcionamento, a força de significação) de

um enunciado de percepção (o céu é azul) não depende da sua atualidade (se o céu

está azul agora) nem de sua possibilidade empírica (se o céu é empiricamente

azul), assim também o valor do significante Eu não depende da vida do sujeito

falante. Ao contrário, um enunciado errante como Eu tira sua força de significação

exatamente do fato de funcionar indiferente ao “querer-dizer”, à intenção, à

presença a si na consciência, etc. Escreve Derrida; “tenha eu ou não a intuição

atual de mim mesmo, “eu” exprime; esteja eu vivo ou não, eu sou “quer dizer”425.

423 Husserl, Recherches logiques, apud Derrida, A Voz e o Fenômeno, op. cit. pág.105 e sgts. 424 Husserl, Recherches..., apud Derrida, idem, pág 108. 425 Derrida, A Voz e o Fenômeno, op. cit. pág. 107.

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A originalidade própria à linguagem revela-se no enunciado Eu: uma estrutura que

só pertence à linguagem e que lhe permite funcionar sozinha, mesmo quando

privada de intenção426.

Mas o imprudente Searle lança mão de um enunciado em primeira pessoa

como exemplo de “querer-dizer” simples e unívoco que atestaria a intenção de

significação do “autor”. Santa ingenuidade! Ademais, além de escolher um

enunciado supostamente simples, Searle tenta criar um ambiente ascéptico, onde o

contexto encontraria-se suspenso estrategicamente, para fins da análise. Todavia,

a exclusão do contexto é, segundo Derrida, algo ilegítimo e impossível. Mesmo

no caso ideal proposto por Searle, diz Derrida: “já existe um certo jogo, um certo

afastamento, uma certa independência em relação à origem, à produção, à

intenção “viva”, “simples”, “atual”, “determinada”, etc”427. É impossível controlar

o contexto de produção da frase: ‘em 20 de setembro 1793 eu viajei de Londres

para Oxford’, mesmo se seu autor a tivesse dito para si mesmo (e, nesse caso, ela

não seria citável), mesmo se a tivesse gravado com aparelho de áudio e vídeo. A

intenção de significação de tal frase permanece tão indeterminada quanto o

enunciado “esqueci meu guarda-chuva” que aparece nos fragmentos de

Nietzsche428.

Mesmo excluindo o contexto, não há como escapar à indeterminação do

sentido. A iterabilidade ou a suplementaridade, o jogo da différance contamina a

intenção plena e presente, desde sempre e desde já. Contudo, é possível identificar

um mínimo de sentido, tanto na frase proposta por Searle quanto na de Nietzsche.

Mas resta inegável que existe uma distância entre ‘fazer um mínimo de sentido’ e,

efetivamente, ‘compreender a intenção de significação’ ou, na linguagem

fenomenológica, “preencher a intenção de significação”. Para tal, como já

demonstrou Wittgenstein, a determinação do contexto é fundamental. Mas tal

determinação está interditada pela différance, especialmente pelo caráter de deriva

essencial que anima todo signo. O afastamento do “sentido original” é irredutível,

é inerente à própria intenção e à estrutura da iterabilidade.

Passemos agora à análise de uma última crítica feita por Searle no seu

Reply à Derrida. Ela não acrescenta nada de novo, mas merece destaque por ser

426 Derrida, A Voz e o Fenômeno, op. cit. pág. 103. 427 Derrida, Limited Inc., op. cit, pág. 91. 428 Derrida comenta o fragmento de Nietzsche inserido na tradução francesa de Gaia Ciência, pág. 457 em Eperons – les styles de Nietzsche, Flamarion, Paris, 1978, pág. 103.

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surpreendente. Searle acusa Derrida de não conseguir enxergar o óbvio por causa

de uma “ilusão”, visto que Derrida “pressupõe algo por trás das sentenças”. Tal

acusação precede o trecho já citado aqui duas vezes, mas que merece uma terceira

aparição. Nas palavras de Searle:

“Há dois obstáculos à compreensão deste ponto, bastante evidentes, um implícito em Derrida, o outro explícito. O primeiro é a ilusão de que, de um certo modo, as intenções ilocutórias, se existem ou verdadeiramente importam, deveriam ser algo que se acham atrás dos enunciados, das imagens interiores que animam os signos visíveis. Mas, naturalmente, num discurso literal e sério, as frases são precisamente a realização das intenções: nenhum abismo é necessário entre a intenção ilocutória e sua expressão. As frases são por assim dizer intenções fungíveis. Frequentemente, especialmente na escrita, formam-se suas intenções (ou seus meanings) ao longo do processo de formação das frases: não há nenhuma necessidade de dois processos separados”429.

No entanto, Searle não explicita qual a ilusão “implícita” que impede

Derrida de enxergar o “óbvio”. E, se procuramos no texto derridiano, com

minúcia e rigor, qualquer menção a “algo por trás” das expressões, não

encontramos nada, a não ser, como sugere Derrida, se procuramos algo que se

esconde “por trás das expressões” do texto derridiano. Mas tal acusação – severa e

aterradora – imputa a Derrida um psicologismo pré-crítico (pré-saussureano, pré-

fenomenológico, representativista, etc) que o texto derridiano critica de ponta a

ponta. Com efeito, desde as primeiras linhas de “Assinatura Evento Contexto”,

Derrida faz uma crítica explícita aos conceitos de “representação”, “comunicação”

e “expressão”, justamente os conceitos que remetem a alguma intenção “por trás”

da expressão.

Novamente Searle se apropria da crítica derridiana e a reenvia ao texto de

Derrida. A “ilusão implícita” que ele denuncia é explicitamente a sua própria. E o

mais incrível é que, após acusar a desconstrução de pressupor algo por trás das

expressões, Searle escreve o trecho mais claramente psicologista (e metafísico) de

sua démarche: “(...) No discurso sério e literal, as frases são precisamente a

429 “There are two obstacles to understanding this rather than obvious point, one implicit in Derrida, the other explicit. The first is the illusion that somehow illocucionary intentions if they really existed or mattered would have to be something that lay behind the utterances, some inner pictures animating by visible signs. But of course in serious literal speech the sentences are precisely the realizations of the intentions: there need to be no gulf at all between the illocucionary intention and its expression. The sentences are, so to speak, fungible intentions. Often, specially in writing, one forms one´s intentions (or meanings) in the process of forming the sentences: there need not be two separate processes” in Searle, Reply to Derrida, pág 202, apud Derrida, Limited Inc, op. cit. pág. 94.

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realização das intenções (...)”. Em obra mais recente, denominada

Intencionalidade (sempre com maiúscula), Searle é bastante ‘explícito’ a esse

respeito, quando afirma:

“Uma vez que as sentenças – os sons emitidos pela boca ou os sinais gráficos que se fixam no papel – são apenas objetos no mundo como quaisquer outros objetos, sua capacidade de representar não é intrínseca e sim derivada da Intencionalidade da mente. Por outro lado, a Intencionalidade dos estados mentais não provém de formas anteriores de Intencionalidade, mas é intrínseca aos próprios estados (...) Uma sentença é um objeto sintático ao qual são impostas capacidades representacionais: crenças, desejos, e outros estados Intencionais (...) Tudo isso é compatível com o fato de ser a linguagem essencialmente um fenômeno social e serem as formas de Intencionalidade a ela subjacentes formas sociais”430. (grifo meu)

Além de considerar a filosofia da linguagem como um “ramo da filosofia

da mente”, a retórica de Searle faz apelo explícito à “capacidades mentais não-

representacionais”431. Como sugere Derrida, “eis uma linguagem que me parece

dizer respeito ao bom e velho psicologismo representativista e expressivista, em

que os enunciados realizam as intenções”. Pois, como falar tranquilamente sobre

“intenções” sem pressupor um domínio interior da vida psíquica? Enfim, sem

pressupor uma psicologia capaz de descrever o interior da mente que comanda as

“intenções”?

Desse modo, explicitamente, Searle reconhece que o critério da intenção

(responsável, deliberada, consciente de si) é um recurso necessário para definir o

“sério e o literal” e, principalmente, que a intenção deve estar “atrás” do

enunciado fenomênico. O enunciado, por si mesmo, não possui nenhum critério

interno para definir se trata-se de um discurso sério ou de uma representação

teatral. Somente a intenção que anima a expressão, e que não se confunde com a

realização, pode determinar se uma promessa, por exemplo, é séria e sincera. Mas

se Searle tivesse lido com atenção o texto derridiano, seria obrigado a responder a

uma crítica lá colocada explicitamente, qual seja, a de que nenhuma intenção pode

ser consciente de ponta a ponta, plena e atualmente presente a si mesma. Aliás,

essa constatação foi feita pelo próprio Austin em “Three ways of spilling Ink”:

430 Searle, Intencionalidade, Introdução, VIII. Martins Fontes, São Paulo, 2002. 431 Searle, Intencionalidade, op. cit. Introdução, VII.

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“the only general rule is that the illumination (shed by intention) is always limited,

and that in several ways”432.

Mas, certamente, apenas os enunciados sérios e literais interessam a

Searle. No entanto, pergunta Derrida, como sustentar um projeto desse tipo depois

de Freud? Como ignorar o inconsciente, fechá-lo à chave e mantê-lo em sigilo?

Como não “levá-lo a sério”? É exatamente isso que Derrida tenta fazer em

“Assinatura Evento Contexto”, ou seja, levar a sério o inconsciente, com todas as

consequências éticas, jurídicas e políticas que daí advém. No entanto, observa

Derrida: “o inconsciente está absolutamente excluído pela axiomática (que é

também uma axiologia) da teoria atual dos speech acts, em particular tal como é

formulada por Searle”433.

E, para ilustrar a impossibilidade de excluir o inconsciente da análise de

um speech act, Derrida utiliza um exemplo que me é muito caro, visto que diz

respeito ao par “promessa/ameaça” que, mais adiante, tentarei defender como um

traço de universalidade da linguagem, tal como a entende a desconstrução434.

Escreve Derrida:

“suponhamos que eu prometa seriamente a Searle criticar implacavelmente cada uma de suas teses. Se eu me reporto à Speech acts (“uma ameaça consiste em se empenhar em fazer algo a alguém e não para alguém”), tal promessa não tem sentido. É uma ameaça e há uma diferença essencial entre a promessa e, em contrapartida, a ameaça. Em que consistiria essa diferença essencial e, pois, intransponível?”435.

Searle se esforça para controlar as variáveis contextuais e as corrupções

possíveis da promessa através da análise de casos difíceis ou “fenômenos

derivados”, como a dissimulação. Mas o preço que Searle paga para manter o

rigor da oposição é muito caro. Em última análise, a distinção só pode ser rigorosa

se fizer uso do critério da consciência como determinante das intenções, desejos e

432 Austin, “Three ways of spilling ink” apud Derrida, Limited Inc, op. cit. pág 103. 433 Derrida, Limited Inc. op. cit. pág. 105. 434 Voltarei a esta questão na Parte 2 deste trabalho. 435 Em Speech acts, Searle escreve: “Uma diferença essencial entre a promessa e a ameaça reside em que a promessa consiste em se engajar a fazer alguma coisa ‘a’ alguém e não ‘para’ alguém (pour quelqu´um et non à quelqu´un). Uma promessa será defeituosa se a realização da coisa prometida não é desejada por aquele a quem a promessa é feita; ela será igualmente defeituosa se aquele que promete não crê que seu interlocutor deseja a realização da promessa, visto que uma promessa, para ser sem defeito, deve ser considerada como promessa pelo locutor e não como uma ameaça ou advertência (...) aquele a quem se promete algo deve desejar que tal coisa se realize e, de outra parte, aquele que promete deve ter consciência desse desejo”. Searle, Les actes de langage, pág. 99. Collection Savoir Hermann, Paris, 1972. Derrida, Limited Inc, pág 105.

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necessidades. Para que uma promessa se realize plenamente é preciso, segundo

Searle, que “o autor deseje que ela seja realizada, (...) o locutor deve perceber,

deve pensar ou deve saber que este é o caso”. Ora, como saber o que o outro está

esperando, consciente ou inconscientemente? Neste debate entre Searle e Derrida,

por exemplo, como Derrida pode saber o que Searle está, conscientemente,

esperando? E se o desejo de Searle for o de ser ameaçado? Podemos “seriamente”

pensar que ele quer resposta, debate, produção de textos, mas até que ponto? Onde

a promessa de Derrida de responder às suas críticas tornar-se-ia uma ameaça? E o

inconsciente de Derrida? Será que ele deseja agradar Searle ou aborrecê-lo?

Podem existir dois speech acts num só enunciado?

Diante de tal indecidibilidade estrutural, conclui Derrida: “basta introduzir

no rebanho dos speech acts alguns lobos do tipo indecidível (pharmakon,

suplemento, hímen), ou do tipo “Inconsciente”, para que o pastor não possa mais

contar seus carneiros”436. Com efeito, o pastor nunca está sozinho consigo mesmo.

Na origem de todo “enunciado sério e literal” existe uma sociedade, mais ou

menos anônima, uma multiplicidade de “sujeitos” que impedem o “eu consciente”

de saber, querer, pensar. Mas como pensar esse parasitismo geral, essa ausência

da identidade do locutor, do ouvinte e da intenção? Certamente, a teoria dos

Speech acts não pode incorporar tais fenômenos porque eles demandam um outro

tipo de relação com a linguagem, um novo pensamento da linguagem que leve em

conta a différance.

A desconstrução, com seus ‘quase-conceitos’ de iterabilidade, escritura,

différance, suplemento, espaçamento, pretende exatamente abrir a possibilidade

de um novo pensamento da linguagem e, simultaneamente, apontar para a

impossibilidade de um projeto como a teoria dos speech acts, que pretende

realizar uma análise pragmática da linguagem, mas ainda se fundamenta

oposições metafísicas, como a distinção entre discurso sério e não sério,

performativos felizes e infelizes e noções bastante suspeitas como intenção, desejo

e consciência.

De modo geral, a desconstrução desestabiliza a categoria da intenção e

revela como a sua inconsistência perturba toda a estrutura do projeto de uma

teoria geral dos Speech acts. Uma vez que a “inconsciência estrutural” da intenção

436 Derrida, Limited Inc, op. cit. pág 106.

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interdita toda saturação do contexto e, considerando que a intencionalidade é um

fundamento determinante para a saturação de um contexto (e para a análise

“rigorosa” de um performativo) então, o contexto permanecerá não-saturável,

visto que a estrutura da iteração impede qualquer intenção consciente e

plenamente presente.

Mas isso não significa dizer que a crítica desconstrutora propugna pela

negação ou apagamento da categoria da intenção. Com efeito, a desconstrução não

nega os efeitos de consciência, os efeitos da fala ou de um evento discursivo. Mas

tais efeitos não excluem a “lei de contaminação indecidível”, a deiscência,

enquanto abertura dividida, iterável e, desde sempre, contaminada437. Daí que uma

pragmática que leva em conta a iterabilidade, antes de classificar atos ou forças

ilocucionárias438, como faz Austin e, de modo ainda mais ‘exaustivo’, Searle,

deveria buscar revelar uma “tipologia diferencial das formas de iteração”439, um

projeto certamente não exaustivo, mas que, ao menos, não exclui dogmaticamente

a contaminação e a disseminação constitutiva de qualquer speech act.

Mas resta investigar qual o estatuto de um pensamento que rejeita a lógica

binária que permite toda e qualquer conceitualização. Por exemplo, o “conceito”

de iterabilidade representa um papel organizador no ensaio “Assinatura Evento

Contexto” e, como tal, supõe uma idealização. Entretanto, ele porta um estatuto

estranho, segundo Derrida. Uma vez que todo conceito depende da lógica

desconstruída pela grafia da restância, a restância não pode ser reduzida a um

conceito. Mas como dar voz a essa iterabilidade que fratura cada elemento

constituindo-o, que o marca com uma ruptura articulatória?

437 Derrida, Limited Inc, op. cit. pág. 85. 438 Na última conferência de How to do things with words, Austin distingue cinco tipos gerais de forças ilocucionárias: 1) veredictivos (absolvo, condeno, considero, avalio) 2) exercitivos (nomeio, demito, ordeno) 3) compromissivos ou comissivos (prometo, juro, aposto) 4) comportamentais (agradeço, saúdo, felicito) 5) expositivos (afirmo, declaro, informo, contesto). Austin, John. Quando dizer é fazer, Porto Alegre, Artes Médicas, 1990, pág. 123. Searle, por sua vez, elabora uma lista de sete componentes da força ilocucionária: 1) propósito ou objetivo ilocucionário; 2) grau da força do objetivo ilocucionário; 3) modo de realização; 4) condição relativa ao conteúdo proposicional; 5) condição preparatória; 6) condição de sinceridade; 7) grau da força da condição de sinceridade. Nota-se que a caracterização de Searle supera a dicotomia entre elementos intencionais e convencionais proposta por Austin ao misturar elementos intencionais (estados psicológicos do falante e do ouvinte) e elementos contextuais como o modo de realização de um ato (por exemplo, uma ordem dada por uma autoridade é diferente de um pedido). Searle. Les actes de langage. “Structure des actes illocutionnaires”, pág. 95. Hermann, Paris, 1972. 439 Este seria, talvez, o programa de uma “pragmatologia”, tal como sugerida por Derrida em “Mes Chances. Au rendez-vous de quelques stéréophonies épicuriennes” in Psyché, Inventions de l´autre, Nouvelle édition augmentée, Galilée, 1987-1998.

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PARTE 2 - Desconstrução

5

A escritura derridiana

5.1

Virada e deslocamento

Derrida insere-se no movimento de “virada” lingüística da filosofia

contemporânea, porém, a ultrapassa rumo a uma problematização ainda mais

radical do fenômeno da linguagem. Com efeito, acredito que Derrida realiza algo

diferente do que uma virada da filosofia da consciência para a filosofia da

linguagem. O movimento da desconstrução atua como inversão e deslocamento e

aborda a questão da linguagem de uma tal forma que acaba, inevitavelmente, por

alterar seu conteúdo. A linguagem é um problema para Derrida, disso não restam

dúvidas. No entanto, a linguagem, tal como entendida pela tradição filosófica

ocidental, seja como comunicação, relação, expressão, significação, constituição

do sentido ou pensamento, essa linguagem em direção à qual deu-se a virada

revela-se, segundo Derrida, apenas mais um efeito de um movimento ainda mais

potente: a escritura.

Isto não quer dizer que a palavra ‘escritura’ deixe de significar o

‘significante do significante’, mas sim que o ‘significante do significante’ deixa

de ser entendido como uma reduplicação do significado, ou seja, como um

suplemento secundário e decaído. Ao contrário, escreve Derrida, o significante do

significante passa a descrever o movimento da linguagem. Ou seja, desde sempre,

desde a ‘origem’, o significado já funciona como significante. É por isso que a

escritura ultrapassa a extensão da linguagem, ou seja, ela compreende a

linguagem, em todos os sentidos dessa palavra. Com efeito, para a desconstrução,

a linguagem, enquanto escritura, não cabe mais no conceito de linguagem. Nesse

sentido, Derrida fala de um “transbordamento da escritura” que “sobrevém no

momento em que a extensão do conceito de linguagem apaga todos os seus

limites” 439.

439 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 8.

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Desse modo, a desconstrução denuncia que aquilo que mais se discute no

século XX, a linguagem, não dá mais conta de seu próprio “sentido”, como se

algo transbordasse no próprio conceito de linguagem. O excesso de discursos

sobre a linguagem revela um sintoma da incapacidade da língua (fonética) de dar

conta deste transbordamento. Assim, a inflação e conseqüente desvalorização do

signo “linguagem”, o seu uso e abuso de acordo com a última tendência filosófica,

indica um momento de hiper inflação do próprio signo, enquanto tal. É a partir

dessa constatação que Derrida propõe a desconstrução do signo “signo”, ou ainda,

do conceito de “conceito”, em direção à noção de escritura440.

Nesse sentido, como buscarei argumentar na sequência, a desconstrução

não propõe exatamente uma “virada lingüística”, mas um deslocamento, um salto

rumo à outro ponto de vista sobre a questão da significação e da linguagem. Ao

usar o termo écriture, Derrida não pretende inverter a posição hierárquica entre

fala/escrita, afirmando que a linguagem escrita supera a fala ou o discurso. Essa

atitude, além de ingênua, manteria a desconstrução refém das dicotomias

metafísicas e suas hierarquias implícitas, ao não problematizar a oposição

fala/escrita em si mesma. De modo bem distinto das acusações que

frequentemente recebe, Derrida não se cansa de lembrar que uma oposição

conceitual nunca é simplesmente um “face-a-face de dois termos, mas uma

hierarquia e a ordem de uma subordinação”441. Desse modo, o privilégio da fala,

da voz e do som lingüístico, que sempre dominou a filosofia, revela uma ordem de

subordinação e relações de força que comandam a metafísica, para além da

oposição fala/escrita e sua matriz inteligível/sensível.

Assim, o momento da inversão não basta para a desconstrução. Ele é um

movimento necessário, pois revela o rebaixamento de um dos termos, mas não é

suficiente para escapar da lógica dicotômica. A escritura não pode ser entendida

como algo que vem substituir a fala na sua função de ‘guardiã do sentido’. Ela não

é um novo nome para a origem ou um novo fundamento a partir do qual poder-se-

ia regular e controlar a circulação dos signos. A escritura está presente ‘desde o

início do jogo’, ou seja, o ‘significante do significante’ afeta o significado desde

440 “Por um movimento lento, cuja Necessidade mal se deixa perceber, tudo aquilo que – há pelo menos uns 20 séculos – manifestava tendência e conseguia finalmente reunir-se sob o nome de linguagem começa a deixar-se deportar ou pelo menos resumir sob o nome de escritura (...) o conceito de escritura começava a ultrapassar a extensão da linguagem. Em todos os sentidos, a escritura compreenderia a linguagem”. Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 8. 441 “Assinatura Evento Contexto”, op. cit. pág. 372.

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seu surgimento, visto que “não há significado que escape, mais cedo ou mais

tarde, ao jogo das remessas significantes que constitui a linguagem”442. Mas isso

não significa que a escritura seja ‘originária’ ou ‘fundamental’. No máximo, ela

seria um ‘fundamento sem fundamento’, uma ‘origem’ desde sempre diferida. É

essa ´diferença constitutiva’ que põe em marcha o movimento da linguagem que

Derrida quer pensar através da noção de différance e de rastro.

Sempre ‘lançando as metáforas contra as metáforas’ e, portanto, aceitando

o jogo da linguagem, Derrida afirma que a “arquiescritura é o movimento da

différance”443 e que não pode ser investigada por nenhuma “ciência” da

linguagem, ou seja, por nenhuma Lingüística ou teoria geral. A linguagem nunca

será “dissecada” ou compreendida objetivamente, como parece ser o projeto da

filosofia dita analítica, porque ela ultrapassa o conceito mesmo de linguagem, tal

como entendida pela tradição. A noção de escritura pretende revelar esse

transbordamento, esse excesso inominável.

De certo modo, pode-se associar a noção de escritura com a de texto, no

sentido amplo da desconstrução. Ao chamar a atenção para o “domínio” da

questão da linguagem na cena filosófica e tentar ultrapassá-la, rumo à escritura,

Derrida é acusado de reduzir tudo ao texto. A expressão “tudo é texto” é

frequentemente atribuída para resumir violentamente a desconstrução. No entanto,

o que Derrida chama de “texto” quer apontar para todas as estruturas ditas “reais”,

“econômicas”, “históricas”, “sócio-institucionais”, em suma, todos os referenciais

possíveis. É nesse sentido que não há “extra-texto”, visto que todo referencial

possível é, desde sempre, diferido, cortado pela diferença. Escreve Derrida: “todo

referencial, toda realidade tem a estrutura de um traço diferencial e só nos

podemos reportar a esse real numa experiência interpretativa. Esta só se dá ou só

assume sentido num movimento de retorno no diferencial. That´s all”444.

Assim, aquilo que chamamos de “realidade” ou de “mundo” somente pode

ser acessado através de uma experiência interpretativa, através de uma leitura. E

toda leitura está já sobredeterminada por convenções, hierarquias e hegemonias

implícitas e profundas. Por exemplo, a gramática e o léxico da língua em questão,

os usos retóricos dessa língua na sociedade, os códigos literários da época, além

442 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 8. 443 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 73. 444 Derrida, Limited Inc, op. cit. pág. 203.

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de todo o conjunto de certezas que garantem a mínima inteligibilidade do texto.

Qualquer investigação que se pretenda rigorosa deve começar, portanto, pela

análise de tais pressupostos, dessa camada mais “profunda” que não se contém na

esfera semântica, nem representativa, simbólica ou ideológica445. É isso que a

desconstrução quer revelar e investigar: o tecido de signos que constitui aquele

texto em particular, o jogo de linguagem que comanda seu sentido, os grafemas e

grafemáticos que possibilitam sua existência.

Para a desconstrução, antes de qualquer sentido ou “coisa própria”,

devemos pensar o grama ou o grafema que permite o processo de significação.

Somente através desse “elemento”, seja ele “entendido como meio ou átomo

irredutível”, poderemos aceder ao conteúdo das atividades pelas quais definimos e

compreendemos a linguagem446. Todo pensamento que se pretenda ‘pós’ ou ‘não-

metafísico’ deve conservar até o limite, isto é, até se denunciar também como

pertencendo à metafísica, a noção de escritura, de rastro, de grama ou grafema.

Mas qual o estatuto desse “elemento sem simplicidade”, daquilo que,

como diz Derrida, “deveríamos proibir-nos a nós mesmos de definir no interior do

sistema de oposições da metafísica”447? Qual o nome daquilo que não é origem,

nem substância, nem experiência compartilhada? É o rastro, responde Derrida. O

rastro da síntese, da origem, da presença. A restância como aquilo que ficou de

algo que nunca esteve presente. Se o signo não é, visto que o sentido já encontra-

se diferido desde sua véspera, então, não podemos mais propriamente falar em

signo, muito menos na sua dupla face de significado e significante, como definido

pela Lingüística saussuriana. É por isso que a desconstrução lançará mão dos

indecidíveis, dos “quase-conceitos” que apontam para a sua própria

impossibilidade, como différance, rastro, escritura, dentre outros. Os indecidíveis

derridianos resistem à lógica oposicional que domina a linguagem da metafísica,

mas não pretendem sair da linguagem. Nesse sentido, são conceitos, mas como

denunciam a violência da conceitualização e o apagamento da diferença que ela

implica, seria mais apropriado chamá-los de ‘quase-conceitos’.

445 Derrida, Limited Inc, op. cit. pág. 203 446 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 11. 447 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 11.

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Assim, a escritura pode ser compreendida como uma “energia aforística”

448, uma “metaforicidade geral”449 que guarda a diferença e, portanto, a

possibilidade da significação. O que Derrida tenta nos mostrar é que “não há signo

lingüístico antes da escritura”450, isto é, não há sentido possível fora da linguagem,

entendida como escritura. Mas vamos com calma. Voltemos à questão inicial do

rebaixamento da linguagem escrita. Como observa Derrida, a escritura, reduzida a

mera escrita, secundária e suplementar, sempre foi entendida pela metafísica – e

sua linguagem fonética – como exterior ao sentido, como representante de uma

verdade ou de um sentido já constituídos pelo logos no seu elemento próprio: a

voz.

5.2

A oposição entre fala e escrita

A oposição entre fala e escrita é, portanto, um dos motivos que conduz a

desconstrução da concepção metafísica da linguagem, tal como avançada por

Derrida. Como busca mostrar em seus textos, o privilégio do logos em sua

proximidade absoluta com a voz comandará a metafísica, desde Platão até

Heidegger, passando por pensamentos resistentes, como o de Nietzsche451,

Lévinas e o próprio Heidegger. No entanto, mesmo estes pensadores da diferença,

que muito contribuíram para denunciar os limites da metafísica, não conseguiram

abalar o logo-fono-centrismo estrutural que ainda domina a filosofia ocidental.

Na Farmácia de Platão, Derrida mostra que a questão da linguagem e,

especificamente, da linguagem escrita, ou seja, da grafia do logos (logografia), já

se coloca como problema desde os primeiros diálogos socráticos. Já no Fedro a

má escritura (escrita no sentido corrente) é oposta à escritura da verdade na alma.

A princípio, Sócrates se pergunta se escrever é decente ou indecente. Em seguida,

a questão é política: gravar o logos é conveniente ou inconveniente? Então,

Sócrates compara o logógrafo (aquele que escreve discursos) ao sofista. Uma vez 448 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 22. 449 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 18. 450 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 17. 451 “Nietzsche, longe de permanecer simplesmente (junto com Hegel e como desejaria Heidegger) na metafísica, teria contribuído poderosamente para libertar o significante de sua dependência ou de sua derivação com referência ao logos e ao conceito conexo de verdade ou de significado primeiro, em qualquer sentido que seja entendido...É impossível desconhecer a virulência do pensamento nietzschiano”. Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 23.

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que o autor do discurso não está lá, pessoalmente, para responder pela sua fala, ele

instala-se, portanto, na posição de um sofista. Escrevendo o que não diz, o escritor

de discursos é o homem da não-presença e da não-verdade. A partir daí e por toda

a tradição subsequente, assinala Derrida, “a escritura já é, portanto, encenação,

artifício, máscara, simulacro”452.

“Sócrates, aquele que não escreve”, lembra Nietzsche e Derrida o cita

logo na abertura da Gramatologia. Mas por que o maior dos filósofos nunca

escreveu uma linha sequer ? Segundo Derrida, Sócrates não escreve porque a

grafia mata o logos. A escritura é acusada de artificialidade, repetição, acaso,

morte da memória. Já o logos presente na fala é como um “ser vivo”453 e, por isso,

o lugar privilegiado da dialética, do saber e da Verdade. A escritura é apenas um

suplemento, um “perigoso suplemento”454 distanciado da origem, um substituto e,

por vezes, um impostor. De acordo com o texto socrático-platônico – partindo do

pressuposto de que Platão escreveu exatamente aquilo que seu mestre quis dizer –

Sócrates dirige-se a Fedro:

“O uso da escrita tem um inconveniente que se assemelha à pintura. Falam das coisas como se as conhecessem, mas quando alguém quer informar-se sobre qualquer ponto do assunto exposto, eles se limitam a repetir sempre a mesma coisa. Uma vez escrito, um discurso sai a vagar por toda a parte, não só entre os conhecedores, mas também entre os que não o entendem e nunca se pode dizer para quem serve e para quem não serve. Quando é desprezado ou injustamente censurado, necessita do auxílio do pai, pois não é capaz de defender-se por si”455 (grifo meu)

452 Derrida, A Farmácia de Platão, op. cit. pág. 12. 453 Derrida, idem, pág.24. 454 Na Gramatologia, na seção denominada “Este perigoso suplemento”, Derrida analisa a noção de escritura em Rousseau que, com algumas diferenças, repete o gesto platônico de rebaixamento da escrita: “O ato de escrever seria essencialmente o maior sacrifício visando à maior reapropriação simbólica da presença”(pág.173). Rousseau é considerado por Derrida especial representante da tradição metafísica, visto que, ao mesmo tempo em que permanece solidário à visão instrumental da linguagem, parece já perceber a ligação estrutural entre linguagem e pensamento. Nesse sentido, no Emílio, discorrendo sobre a dificuldade do ensino da língua às crianças, Rousseau escreve: “Nossa falta de atenção para o verdadeiro sentido que as palavras têm para as crianças, parece-me ser a causa de seus primeiros erros: e tais erros, mesmo depois de se corrigirem, influem em seu espírito por toda a vida”. E, na sequência, alerta para o perigo de se ensinar duas línguas para uma criança em fase de alfabetização, uma vez que, ao mudar as palavras, mudam-se também as idéias. Diz Rousseau: “Condensai quanto possível o vocabulário da criança. É grande inconveniente tenha ela mais palavras que idéias, saiba dizer mais coisas do que pode pensar” (pág. 57). E, mais adiante, acrescenta: “Cada coisa pode ter, para ela, mil sinais diferentes; mas cada idéia só pode ter uma forma; ela não pode aprender, portanto, senão uma língua” (pág. 100). Rousseau, Emílio ou da Educação,. Tradução de Sérgio Milliet, Difusão européia do livro, São Paulo, 1968. 455 Platão, Fedro, “A Invenção da escrita” apud Derrida, A Farmácia de Platão, op. cit. pág. 181.

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Portanto, segundo Sócrates, é preciso muito cuidado ao escrever. Uma vez

que o autor não poderá garantir sua presença ao lado do texto, é preciso se cercar

de todas as precauções possíveis para que o verdadeiro sentido não se perca em

falsas interpretações ou más traduções. Mas como garantir a fidelidade ao

“sentido” do texto? Ao legítimo “querer-dizer” do texto, se o seu “pai” não está

presente para responder por ele? Todo texto está fadado a essa deriva? E Platão

nos consola: “existe também o bom discurso, aquele conscienciosamente escrito

com a ciência da alma, o discurso que é capaz de defender a si mesmo, e sabe

diante de quem convém falar e diante de quem é preferível ficar calado”. Este

seria, portanto, o discurso “vivo e animado do homem sábio, do qual todo

discurso escrito poderia ser chamado de simulacro”456. Percebemos, assim, que

nem toda escrita é igual; a escrita rigorosa e de acordo com a “ciência” da alma

pode garantir e preservar o sentido. Por mais que seu autor não esteja presente, o

texto ainda manteria uma relação de proximidade com o logos vivo.

No entanto, nada melhor do que a fala para garantir a presença do sentido.

Isto porque, à diferença da escrita, a fala é mais próxima do logos, um logos que é

vivo porque tem um pai presente, isto é, diz Derrida: “Um pai que se mantém em

pé junto a ele, atrás dele, nele, sustentando-o com sua retidão, assistindo-o

pessoalmente e em seu nome próprio”457. É por isso que, com a fala, o problema

da deriva (e da indeterminação do sentido) se apaga, visto que o autor está

presente para responder pelo seu “querer-dizer”, pelo “sentido” que deseja

“expressar”.

É nesse sentido que Aristóteles não vê problema em equiparar os “estados

da alma” com as “coisas”, visto que, explica Derrida:

“Exprimindo naturalmente as coisas, as afecções da alma constituem uma espécie de linguagem universal que, portanto, pode apagar-se por si própria. É a etapa da transparência. Aristóteles pode omiti-la às vezes sem correr riscos. Em todos os casos, a voz é o que está mais próximo do significado”458.

Para Aristóteles, “os sons emitidos pela voz são os símbolos dos estados

da alma, e as palavras escritas, os símbolos das palavras emitidas pela voz”.

456 Derrida, A Farmácia de Platão, op. cit. pág. 181. 457 Derrida, A Farmácia de Platão, op. cit. pág. 181. 458 Nessa passagem Derrida apóia-se na leitura de Pierre Aubenque, Le problème de l´Être chez Aristote. In Gramatologia, pág. 14.

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Quase 20 séculos depois, Rousseau afirma: “A escritura não é senão a

representação da fala; é esquisito preocupar-se mais com a determinação da

imagem que do objeto”459. E, ainda mais tarde, Saussure, o fundador da

“Lingüística moderna”, repete o gesto aristotélico ao afirmar: “Língua e escritura

são dois sistemas distintos de signos; a única razão de ser do segundo é

representar o primeiro”460.

Desse modo, o problema da representação permanece adstrito à escrita, ou

melhor, a uma certa escrita não comprometida com a verdade, visto que existe

“uma boa e uma má escritura: boa e natural, a inscrição divina no coração e na

alma; perversa e artificiosa, a técnica, exilada na exterioridade do corpo”461.

Assim, Sócrates também falará da boa retórica, daquela que salva bons discursos

do esquecimento (como Platão gostaria de estar fazendo ao escrever os discursos

de seu saudoso mestre):

“Quando alguém semeia palavras de acordo com a arte dialética, depois de ter encontrado uma alma digna de recebê-las; quando esse alguém planta discursos que são frutos da razão, que são capazes de se defender por si mesmos e a seu cultivador, discursos que não são estéreis mas que contém dentro de si sementes que produzem outras sementes em outras almas, permitindo assim que elas se tornem imortais. Aos que a levam consigo, tais sementes proporcionam a maior felicidade que é dado ao homem possuir”462.

É exatamente essa superioridade da fala sobre a escrita que será

problematizada por Derrida. Se a fala tem privilégio sobre a escrita, é porque ela

está mais próxima do logos, da presença, enfim, do sentido original. A escrita, por

sua vez, apresenta uma duplicidade paradoxal. Por um lado, existe a escrita

sensível, finita, artificiosa, um procedimento humano que traz consigo o risco da

corrupção do sentido, de desvio do verdadeiro querer-dizer; por outro lado, existe

uma escrita inteligível e intemporal, cuja continuidade Derrida ressalta, apesar das

diversas metáforas utilizadas para designá-la. Esta seria a escritura da verdade na

alma de Platão, a escritura divina da Idade Média, a escritura natural da

modernidade (“A natureza está escrita em linguagem matemática” – Galileu).

459 Rousseau, Fragmento inédito de um ensaio sobre a língua, apud Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 33. 460 Derrida, Gramatologia, pág. 37 e 45 461 Derrida, Gramatologia, pág. 21. 462 Platão, Fedro, pág. 182. Cf. Trad. Jorge Paleikat, 4. ed. Globo, 1960.

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Assim, não importa a metáfora usada para designar o “próprio” da escritura, ela

sempre manterá o privilégio do logos presente. Escreve Derrida:

“Como acontecia com a escritura da verdade na alma, em Platão, ainda na Idade Média é um escritura entendida em sentido metafórico, isto é, uma escritura natural, eterna e universal, o sistema da verdade significada, que é reconhecida na sua dignidade. Como no Fedro, uma certa escritura decaída continua a ser-lhe oposta. Seria preciso escrever uma história desta metáfora que sempre opõe a escritura divina ou natural à inscrição humana e laboriosa, finita e artificiosa”463.

No entanto, dentre todas as metáforas, que mereceriam estudo

diferenciado, o corte mais decisivo, segundo Derrida, ocorre no momento dos

grandes racionalismos do século XVII, justamente na determinação da presença

absoluta como presença a si, isto é, como subjetividade. A partir daí, a

condenação da escrita decaída tomará a forma da ‘não presença a si”. Em

Gramatologia, Derrida analisa a retomada do gesto platônico através do texto de

Rousseau, onde a boa escrita aparece sob a forma da “presença a si no sentimento,

no cogito sensível que carrega em si a inscrição da lei divina”464.

Derrida nos mostra que, apesar da novidade do texto rousseauniano, o

caráter secundário e decaído da escrita permanece intacto. Por exemplo, no texto

Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau definirá a escrita sensível como

‘letra morta’, como ‘portadora da morte’, como algo que ‘asfixia a vida’. Por

outro lado, eleva uma outra escrita, definida metaforicamente como ‘natural’,

‘divina’ e ‘viva’. Esta seria equivalente à voz da consciência, à lei divina inscrita

no coração dos homens. Escreve Rousseau:

“A Bíblia é o mais sublime de todos os livros...mas, enfim, é um livro...não é em algumas folhas esparsas que se deve procurar a lei de Deus, mas sim no coração do homem, onde a sua mão dignou-se a escrevê-la”. E adiante: “Quanto mais eu entro dentro de mim e me consulto, mais eu leio estas palavras escritas em minha alma: sê justo e serás feliz...”465.

Assim, a escritura natural encontra-se imediatamente unida à voz que se

ouve ao se entrar em si, na presença plena do sentimento interior. Nesse sentido,

“sua natureza não é gramatológica, mas pneumatológica”466. Ela provém do sopro,

463 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 19. 464 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 20. 465 Rousseau, Carta a Vernes, apud Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 19. 466 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 21.

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do coração, da phonè. E mais: ela é prescritiva como uma lei natural, uma

arquifala que apenas pode ser ouvida na intimidade da presença a si. As oposições

continuam, portanto, atuantes: escritura da alma e escritura do corpo, de dentro e

de fora, inteligível e sensível, enfim, boa e má.

Com efeito, é impressionante as semelhanças entre Rousseau e Saussure, o

que permite a Derrida retraçar o fio que reconduz a lingüística moderna,

especialmente a saussuriana, a Rousseau. Segundo Derrida, “Rousseau e Saussure

concedem um privilégio ético e metafísico à voz. Ambos estabelecem a

inferioridade e a exterioridade da escrita em relação ao “sistema interno da

língua” (Saussure) e este gesto exprime-se em fórmulas cuja semelhança literal é

por vezes surpreendente”467. Vejamos um dos exemplos destacados por Derrida:

Saussure: “Quando se diz que é preciso pronunciar uma letra deste ou

daquele modo, toma-se a imagem pelo modelo...Para explicar esta bizarrice,

acrescenta-se que, neste caso, trata-se de uma pronúncia excepcional”468.

Rousseau: “As línguas são feitas para serem faladas, a escrita só serve

como suplemento da fala..., a escrita não é senão a representação da fala”469.

Desse modo, escreve Derrida, “a essência formal do significado é a

presença, e o privilégio de sua proximidade ao logos como phonè é o privilégio

da presença”470. E, consequentemente, a resposta à pergunta “o que é o signo”, ou

seja, qual é a sua essência, apenas pode ser determinada a partir da presença. Mas

é a forma mesma da questão “o que é...”, pergunta inauguradora da filosofia, que

deve ser pensada. E, desse modo, talvez o signo desapareça no rastro de uma

presença que nunca esteve presente.

No entanto, à lingüística deve ser reconhecido o mérito de ter levantado a

questão, por mais que suas respostas tenham restado insatisfatórias. Nesse sentido,

a desconstrução atravessa as questões colocadas pela semiologia de Saussure e

pela semiótica de Peirce, como desenvolvo na sequência.

467 Derrida, “O círculo lingüístico de Genebra” in Mragens da Filosofia, op. cit. pág. 190. 468 Saussure, Cours de linguistique générale, p. 45 apud Derrida, “O círculo lingüístico de Genebra” in Mragens da Filosofia, op. cit. pág. 190. 469 Rousseau, Fragmento sobre a Pronúncia, apud Derrida, “O círculo lingüístico de Genebra” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 190. 470 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 22.

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5.3

Gramatologia e Lingüística

Retomando nosso argumento, vemos que, com a noção de écriture,

Derrida não apenas inverte a hierarquia entre fala e escrita, mas sobretudo,

generaliza os traços atribuídos à escrita para a linguagem como um todo. Com

esse gesto, a desconstrução quer revelar o caráter de suplemento da linguagem em

geral, aí compreendida a fala e a escrita/grafia, seja ela considerada ‘boa’ e

‘natural’, seja acusada de ‘má’ e ‘artificial’. Desse modo, Derrida nos mostra que

o sentido ‘próprio’ da linguagem, enquanto escritura, é a metaforicidade

mesma471. Não há nenhum ‘sentido originário’ que o texto deveria transcrever ou

descobrir. Com efeito, só há rastros.

Assim, através da noção de écriture, Derrida chama a atenção para

natureza muito mais complexa da linguagem em geral, que não pode ser reduzida

a uma “forma” de comunicação ou a um elemento “exterior” ao sentido. Na

clausura dessa experiência, escreve Derrida, “a palavra é vivida como a unidade

elementar e indecomponível do significado e da voz, do conceito e de uma

substância de expressão transparente”472. Se a escrita sempre foi considerada

como derivada, inesperada, particular, exterior, é porque a articulação do som e do

sentido na fonia sempre representou a unidade imediata e privilegiada que

fundamenta a significação. Em relação a essa unidade, a escritura será sempre

“signo do signo, diziam Aristóteles, Rousseau e Hegel”473.

E mesmo a Lingüística moderna, que surge na cena filosófica como a

“ciência da linguagem” 474, ou seja, como um estudo sobre a linguagem que se

pretende não metafísico, permanece inteiramente encerrada na conceitualidade

clássica. Segundo Derrida, a maioria das investigações semiológicas ou

lingüísticas remetem genealogicamente para Saussure como seu instituidor

comum475.

471 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 18 472 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 25. 473 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 36. 474 Em ‘Lingüística e Gramatologia’, Derrida critica a pretensão da lingüística de realizar um tratamento “científico” da linguagem sem questionar, contudo, a noção reduzida de linguagem fonética que comanda a história das idéias. Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 33. 475 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 41. Na Gramatologia, Derrida escreve: “Visto que a orientação deliberada e sistematicamente fonológica da lingüística (Troubetzkói, Jakobson, Martinet) realiza uma intenção que foi de início a de Saussure, dirigir-

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Com efeito, a distinção inaugural da Lingüística é a distinção saussuriana

entre significado e significante, as duas faces do “signo”. Por mais que Saussure

afirme se tratar de duas faces da mesma moeda, a oposição continua atuante, visto

que a face do ‘significado’ nos remete ao sentido ideal, inteligível, enquanto que a

face ‘significante’ é o símbolo sensível, a grafia ou a voz reproduzida. Ademais, a

própria idéia de signo não se sustenta sem conservar, ao mesmo tempo, “mais

profunda e implicitamente, a referência a um significado que possa ‘ocorrer’, na

sua inteligibilidade, antes de sua ‘queda’, antes de toda expulsão para a

exterioridade do ‘este mundo’ sensível”476.

Assim, a distinção saussuriana entre significado e significante, oposição de

origem estóica e já presente na filosofia medieval (signans e signatum) pertence,

segunda Derrida, à época do logos, portanto, do rebaixamento da escritura,

pensada como mediação da mediação e queda na exterioridade do sentido. Diz

Derrida:

“A diferença entre significado e significante pertence de maneira profunda e implícita à totalidade da grande época abrangida pela história da metafísica (...) Não se pode manter a oposição estóica sem com isto trazer a si também todas as suas raízes metafísco-teológicas” 477.

Com efeito, como destaca Roman Jakobson478, desde a Antigüidade, a

conexão entre o som e o significado constitui-se como problema. Nesse sentido, a

retomada feita por Saussure do signo (especialmente do signo verbal) como

‘unidade indissolúvel’ constituída por duas ‘faces’ – o significado e o significante

– deve o seu sucesso não à sua originalidade, mas ao esquecimento a que ficou

submetida uma teoria que, na verdade, data de mil e duzentos anos atrás. Os

estóicos já consideravam o signo (sêmeion) como uma entidade constituída pela

relação entre o significante (sêmainon) e o significado (sêmainomenon). O

primeiro era definido como sensível (aisthêton) e o segundo como inteligível

(noêton). Em seguida, Santo Agostinho faz uma adaptação das pesquisas estóicas

e recorre a termos decalcados do grego, com o signum como sendo constituído

nos-emos, no essencial e pelo menos provisoriamente, a esta última. O que dela diremos valerá a fortiori para as formas mais acusadas do fonologismo? O problema será pelo menos colocado”. Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 36. 476 Derrida, Gramatologia, pág. 16. 477 Derrida,Gramatologia, pág. 15. 478 Jakobson, Roman. “À procura da essência da linguagem” in Lingüística e Comunicação, Cultrix, 2005.

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pelo signans e pelo signatum. Esta doutrina também encontra-se na base da

filosofia medieval da linguagem e, segundo Jakobson, foi perfeitamente

assimilada pelo pensamento científico da Idade Média.

No entanto, a noção de signo permanece não questionada. Para a

desconstrução, o signo não pode mais ser utilizado impunemente, como se tratasse

de mera exterioridade, elemento secundário e derivado do “sentido original”. A

distinção significado/significante que define o conceito de signo deve ser

deslocado, adianta Derrida já no início da Gramatologia479. Como já assinalamos,

uma vez que a noção de “significante do significante” passa a descrever o próprio

movimento da linguagem, não há significado que subsista fora do jogo de

significantes, independente ao movimento da différance. O significado funciona,

desde sempre, como significante. Logo, a linguagem enquanto escritura, é um

jogo de significantes. Escreve Derrida;

“a secundariedade que se acreditava poder reservar à escrita, afeta todo significado em geral, afeta-o desde sempre, isto é, desde o início do jogo (...) O advento da escritura é o advento do jogo (...) Isso equivale, com todo rigor, a destruir o conceito de “signo” e toda a sua lógica”480.

Assim, além da manutenção da oposição clássica entre o sensível e o

inteligível, o próprio signo “signo” permanece não problematizado pela

semiologia clássica. O signo, diz-se correntemente, coloca-se no lugar da coisa

mesma, da coisa presente, seja a ‘coisa’ entendida como sentido ou como

referente. Assim, o signo representa o ente presente na sua ausência, quando ele

não pode se apresentar enquanto tal. Desse modo, o signo seria a presença

diferida. E é exatamente dessa diferença originária que constitui o signo como

signo que a lingüística parece não conseguir extrair as devidas consequências.

Pois, como aponta Derrida: “O signo, diferindo a presença, só é pensável a partir

da presença que ele difere e em vista da presença diferida de que intentamos nos

reapropriar”481.

No entanto, apesar da lingüística definir o signo a partir de uma presença

não presente, a substituição da coisa pelo signo é entendida como secundária e

provisória. Escreve Derrida: “Secundária em relação a uma presença original e

479 Derrida, Gramatologia, pág. 8. 480 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 8. 481 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 40.

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perdida de que o signo derivaria; provisória perante essa presença original e

ausente em vista da qual o signo encontrar-se-ia num movimento de mediação”482.

Desse modo, tal como determinado por Saussure, o princípio da semiologia geral,

particularmente da lingüística (Saussure entende a lingüística como uma parte da

semiologia483), consiste no caráter diferencial do signo e na sua arbitrariedade.

Tais predicados são inseparáveis, visto que, como diz Saussure: “Arbitrário e

diferencial são qualidades correlativas”484.

Segundo Jakobson, a questão da arbitrariedade do signo aparece na

filosofia ocidental pela primeira vez no Crátilo de Platão. A questão aí colocada

discute se a linguagem liga a forma ao conteúdo ‘por natureza’ (physei), como

defende Crátilo, ou ‘por convenção’ (thesei) conforme os argumentos contrários

levantados por Hermógenes. Em outros termos, trata-se de saber como ocorre o

processo de significação, ou seja, o que liga a palavra à coisa. Sócrates, enquanto

condutor do diálogo, tende a reconhecer que a representação por semelhança é

‘superior’ ao emprego de signos arbitrários. No entanto, é forçado a admitir a

intervenção de um fator complementar que complica a oposição entre physei e

thesei: a convenção, o hábito, o costume, ou, em termos contemporâneos, o uso

que fazemos das palavras nos variados contextos.

Segundo Jakobson, o lingüista americano Dwight Whitney (1827-1894)

seguiu os passos do Hermógenes de Platão e definiu a língua como um sistema de

signos arbitrários e convencionais. Esta doutrina foi, por sua vez, retomada por

Saussure que, somente na edição póstuma de seu Curso de Lingüística Geral,

organizada por seus discípulos, declara: “No ponto essencial, o lingüista norte-

americano nos parece ter razão: a língua é uma convenção e a natureza do signo

que se convencionou é indiferente”485. Desse modo, ressalta Jakobson, o arbitrário

é declarado o primeiro dos dois princípios gerais que permitem definir a natureza

do signo lingüístico, visto que “o liame que une o significante ao significado é

arbitrário”. Isto eqüivale a dizer que não existe relação entre sentido e som, visto

482 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 41. 483 Veremos adiante que Barthes inverte tal proposição: “a Semiologia é que é uma parte da Lingüística”, diz Barthes em Elementos de Semiologia, pág 13, Cultrix, 2006. 484 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 42. 485 Saussure apud Jakobson, “À procura da essência da linguagem”, op. cit. pág. 102.

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que a língua é entendida exclusivamente como fala, ou seja, como a unidade

som/pensamento.

Jakobson critica tal dogma da arbitrariedade do signo, não porque

questiona a redução fonética realizada pela lingüística de Saussure, mas apenas

porque duvida que o liame entre o som e o significado seja determinado por

simples contingência ou hábito. Nesse sentido, Jakobson busca determinar alguns

elementos universais que possam explicar a relação entre significado e

significante de modo não arbitrário486. No entanto, todos permanecem presos ao

conceito de signo enquanto ‘substituto’, ou seja, algo que se coloca ‘no lugar de’.

A discussão acerca do processo de significação, ou seja, do que efetivamente liga

uma palavra à uma coisa não coloca em questão a natureza fônica do signo. Em

última análise, argumenta Derrida, não se questiona o fundamento fonológico da

ciência lingüística487.

No entanto, como já assinalamos, Derrida considera a lingüística como

uma possibilidade de ‘arrombamento’ da metafísica e, sem dúvida, a noção de

différance deve muito ao princípio da diferença como condição da significação,

tal como elaborado por Saussure. É por isso que a desconstrução deve atravessar a

Lingüística e não apenas desconsiderá-la como simples metafísica. Derrida cita

uma passagem significativa a esse respeito. Escreve Saussure:

“Na linguagem não há senão diferenças sem termos positivos. Quer se tome em consideração o significado, quer o significante, a língua não comporta nem idéias nem sons que pré-existiriam ao sistema lingüístico, mas apenas diferenças conceituais ou diferenças fônicas resultantes desse sistema”488.

Assim como a différance, a diferença de que fala Saussure não é um

conceito, nem uma palavra entre outras. Ambas remetem para a possibilidade

mesma de qualquer conceitualidade, ao jogo de diferenças que constitui a

linguagem. Então, qual seria a diferença entre elas, ou seja, o que distingue a

‘diferença semiológica’ de Saussure da différance derridiana?

486 Jakobson analisa os estudos dos universais gramaticais de J.H. Greenberg, como a relação de predicação onde o sujeito sempre precede o predicado, a prioridade da proposição condicional em relação à conclusão e as formas mais longas do plural e mais breves do singular presentes em todas as línguas. Não nos interessa aqui aprofundar tal discussão. Remetemos o leitor, portanto, ao texto de Jakobson. Lingüística e Comunicação, Cultrix, 2005. 487 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 35. 488 Apud Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 42.

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Em primeiro lugar, mesmo reconhecendo que a condição de possibilidade

e de funcionamento de todo signo é o jogo da diferença, Saussure não escapa da

oposição fundadora da filosofia, a saber, a distinção entre sensível e inteligível.

Assim, o signo permanece a unidade de significação repartida em duas faces: o

significado (face inteligível) e o significante (face sensível). Além disso, a ciência

lingüística saussuriana determina a linguagem, em última instância, como a

unidade da phoné e do logos. Assim, a unidade imediata e privilegiada que

fundamenta a significação e o ato de linguagem é, segundo Derrida, “a unidade

articulada do som e do sentido na fonia”489. E a escrita, em relação a esta unidade

exemplar, será sempre derivada, isto é, ‘significante do significante’.

Mas a différance não pertence nem à voz nem à escrita, ela permanece

inaudível e resiste à ordem oposicional que comanda a metafísica. Com efeito, é a

différance que faz emergir os fonemas e os dá a entender. Daí que excede a ordem

da verdade e não pode ser considerada como fundamento, nem como “nada”, nem

como “algo” com existência ou essência e, sobretudo, ressalta Derrida, não é da

ordem do teológico490. Diz Derrida: “a différance não é apenas irredutível a toda

reapropiação ontológica ou teológica – onto-teológica – como, abrindo

inclusivamente o espaço no qual a onto-teologia – a filosofia – produz o seu

sistema e a sua história, a compreende, a inscreve e a excede sem retorno”491.

No entanto, para a Lingüística saussuriana, a essência da linguagem é

independente da escrita. “A língua tem uma tradição oral idependente da

escritura”492, afirma Saussure. E, mais adiante, reafirma: “O objeto lingüístico não

se define pela combinação da palavra escrita e da palavra falada; esta última por si

só constitui tal objeto”493. Assim, a palavra falada é a unidade do sentido, ou seja,

a unidade do significado e do significante.

É por isso que Saussure contenta-se em pensar a linguagem segundo o

modelo fonético. Uma vez que a palavra soprada já é a unidade do sentido, então

uma escrita só pode ser exterior, ou seja, uma representação sensível do

489 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 36. 490 Derrida reconhece que a sintaxe de que se serve assemelha-se a da teologia negativa, mas afirma que a différance resiste a qualquer categoria do ente, seja ele presente ou ausente. A différance não é um ente misterioso que mantém-se oculto no não-saber, enfim, não é uma supra-essencialidade para além das categorias finitas. Ver a respeito, Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 37. 491 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 37. 492 Saussure, Curso de lingüística geral, apud Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 37. 493 Saussure, Curso de lingüística geral, apud Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 37.

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‘pensamento-som’ que opera a partir de unidades já constituídas. Nesse sentido,

só existem dois sistemas de escritura para Saussure: ideográfico ou fonético. No

primeiro, cujo exemplo clássico é a escritura chinesa, a palavra é representada por

um signo único e estranho aos sons de que ela se compõe. Este signo relaciona-se

diretamente com a idéia que exprime. Já o sistema fonético reproduz a série de

sons que se sucedem na palavra. Ambos compartilham o caráter arbitrário do

signo, ou seja, enquanto ‘sistema de signos’, ambos reproduzem representações e

consistem em marcas arbitrárias, artificiais, exteriores (em relação ao sentido

‘natural’, ‘interno’ que se apresenta no ‘pensamento-som’).

Além de todo o sistema de oposições metafísicas que permanece operante

em tais definições, Saussure ainda introduz uma outra limitação, qual seja: a sua

lingüística limita-se ao estudo do sistema fonético, especialmente àquele em uso

atualmente, cujo modelo é o alfabeto grego. Nesse sentido, destaca Derrida, a

cientificidade do projeto saussuriano é assegurada por duas limitações

tranquilizantes que, contudo, deixam em aberto inúmeras questões. Escreve

Derrida: “A cientificidade da Lingüística tem, com efeito, como condição, que o

campo lingüístico tenha fronteiras rigorosas, que este seja um sistema regido por

uma Necessidade interna e que, de uma certa maneira, sua estrutura seja

fechada”494.

No interior de tal sistema fonético, Saussure ainda propõe uma distinção

rigorosa entre fala e língua. Segundo ele, “a língua é necessária para que fala seja

inteligível e produza todos os seus efeitos”. E conclui: “o princípio da língua é a

linguagem menos a fala”495. Assim, a linguagem, realidade multiforme e

inclassificável, para ser bem ordenada e analisada, precisa ser dividida em ‘língua’

(puro objeto social ou conjunto sistemático de convenções) e ‘fala’ (ato individual

de seleção e atualização, fonação). Apenas através dessa abstração é que a

linguagem oferece-se à análise do cientista. No entanto, como coloca Barthes, seja

qual for a riqueza de tal distinção, ela não se sutenta sem trazer à tona vários

problemas. Por exemplo, como contestou Jakobson, a linguagem é sempre

socializada, mesmo no nível individual. Nesse sentido, o idioleto (a linguagem

494 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág.40. 495 Apud Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 47.

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enquanto falada por um só indivíduo), conceito correlato à fala revelado por

Saussure, mostra-se insustentável496.

Além disso, uma vez que a escritura não é mais que a ‘figuração’ da

língua, Saussure se autoriza a excluí-la da interioridade do sistema. Assim como a

imagem deve poder se excluir sem danificar a realidade, a escritura é exterior ao

sistema da língua. A escritura torna-se, assim, estranha ao sistema interno da

língua. E vemos, novamente, toda a velha grade de oposições metafísicas retornar

para saciar o desejo de desenhar o campo de uma ciência: externo/interno;

imagem/realidade; representação/presença. No entanto, lembra Derrida:

“A limitação saussuriana não satisfaz, por uma feliz comodidade, à exigência científica do “sistema interno”. Esta exigência mesma é constituída, enquanto exigência epistemológica em geral, pela própria possibilidade da escritura fonética e pela exterioridade da “notação” à lógica interna”497.

Em outros termos, a escritura não é somente um meio auxiliar a serviço da

ciência, mas a condição de possibilidade da objetividade científica. Como diz

Derrida: “Antes de ser seu objeto, a escritura é a condição da episteme”498.

No entanto, apesar de Saussure encerrá-la fora do sistema, ele mesmo

reconhece que: “conquanto a escritura seja, por si, estranha ao sistema interno, é

impossível fazer abstração de um processo através do qual a língua é

ininterruptamente figurada”. Com efeito, Saussure dedica todo um capítulo para

“conhecer a utilidade, os defeitos e os incovenientes de tal processo”499. Desse

modo, ressalta Derrida, a escritura incomodou Saussure, visto que era preciso

proteger o ‘sistema interno da língua’ contra a ameaça dessa técnica artificiosa

que, assim como já dizia o Sócrates de Platão no Fedro, “vem de fora”500.

E Derrida nota que Saussure confere um tom moralista ao ‘erro teórico’ de

inverter a relação entre a fala e a escrita. É certo que Saussure rompe com a

filosofia da consciência ao considerar que a fala não é uma simples ‘vestimenta’

do pensamento, como afirmava já Husserl, porém a escrita continua sendo a

matéria sensível, um ‘corpo’ que apenas dá forma à fala. Nesse sentido, seria um

‘pecado’ trocar o sopro proveniente do espírito por uma “tranvestimenta” de

496 Barthes, Roland. Elementos de Semiologia, op. cit. pág. 21. 497 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 41. 498 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 34. 499 Saussure, Curso de Lingüística Geral, pág. 33, apud Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 41. 500 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 42.

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perversão, de disfarce e de corrupção. Assim, a escrita não é apenas imagem e

figuração inocente, ela tende a usurpar o lugar do som, este sim o único liame

natural com o significado. Este é o pecado original da escrita: por sua facilidade,

visto que a imagem gráfica permanece e “na maioria dos indivíduos as impressões

visuais são mais nítidas e duradouras que as impressões acústicas”501, ela tende a

se impor à custa do som. Em outros termos, a relação natural inverte-se por

descuido e preguiça, uma vez que a escrita é mais apropriada que o som para

manter a unidade da língua através do tempo. Escreve Saussure:

“Primeiramente, a imagem gráfica das palavras nos impressiona como um objeto permanente e sólido, mais apropriado que o som para constituir a unidade da língua através do tempo. Pouco importa que esse liame seja superficial e crie uma unidade puramente factícia; é muito mais fácil de aprender que o liame natural, o único verdadeiro, o do som”502. (grifo de Derrida)

No entanto, pergunta Derrida, tal ‘facilidade’ da escrita não seria também

‘natural’? O que parece fascinar e irritar Saussure é exatamente essa intimidade

entre a fonia e a grafia que facilita a inversão e a usurpação do ‘papel principal’

ocupado pela fala. Essa promiscuidade ou nefasta cumplicidade acarreta o

esquecimento da origem simples, da nossa ‘verdadeira natureza’, diria Rousseau.

A escrita acarreta a violência do esquecimento da origem, ela é uma mediação e,

portanto, uma saída para fora de si do logos. Sem a escrita, este permaneceria em

si, na sua relação imediata com o sentido. Mas a escrita nos seduz com sua

facilidade, nos ‘cega’ com sua visibilidade, nos faz esquecer a língua viva. Como

um bom moralista, Saussure nos lembra que ceder ao prestígio da escrita é ceder à

paixão, é deixar o corpo dominar a alma e render-se à passividade. “A perversão

do artifício engendra monstros”503, arremata Derrida.

No entanto, como já assinalado acima, Derrida não pretende ‘salvar’ ou

inocentar a escrita de tal condenação. Ao desconstruir esta tradição que, de Platão

a Saussure, condenou a escrita a um papel subversivo, Derrida não quer apenas

inverter a relação e proclamar a inocência da escritura. O que Derrida quer nos

mostrar é que a violência da escritura não sobrevém a uma linguagem inocente. Se

501 Saussure, Curso de Lingüística Geral, pág 35, apud Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 51. 502 Saussure, Curso de Lingüística Geral, pág 35, apud Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 43. 503 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 47.

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há uma violência da escritura é porque a linguagem é, primeiramente, escrita. “A

‘usurpação’ começou desde sempre”504.

O que está em jogo aqui é exatamente a impossibilidade de uma escrita

puramente fonética. Como escreve Derrida: “a escrita dita fonética não pode

funcionar, por princípio e por direito, senão admitindo em si mesma “signos” não

fonéticos (pontuação, espaçamento)”505. A diferença entre dois fonemas e que

permite que estes sejam e operem como tais, é inaudível. Com efeito, o jogo da

diferença é silencioso. E isto implica em dizer que, por mais importante que seja,

a escrita fonética não existe enquanto tal, afirma dramaticamente Derrida. Além

da infidelidade radical e a priori necessária de toda prática com seu princípio, os

fenômenos de pontuação e espaçamento interditam qualquer ‘fala viva’ desde o

seu ponto de partida. A usurpação gráfica inscreve-se na própria fala.

E aqui retornamos à tese da arbitrariedade do signo que, como assinala

Derrida, acaba por explodir os limites do ‘sistema geral da língua’. Se

consideramos a distinção saussuriana entre o ‘fora’ e o ‘dentro’ do sistema geral

da língua, e uma vez que a relação entre a fala (interior ao sistema) e a escrita

(exterior ao sistema) não é uma relação natural, então resta perguntar o que

significa ‘natural’ e ‘arbitrário’ para Saussure. Como uma lingüística pode ser

geral se ela define o seu ‘dentro’ e o seu ‘fora’ a partir de pressupostos internos e

arbitrários? Como afirmar que a escrita é ‘signo do signo’ e a fala, apesar de seu

caráter arbitrário, mantém uma ‘relação natural’ com o sentido? Como coloca

Derrida: “A tese do arbitrário do signo deveria proibir a distinção radical entre

signo lingüístico e signo gráfico”506.

No interior do sistema saussuriano, somente as relações entre significantes

e significados, enquanto imagens acústicas, estariam sujeitos à tese da

arbitrariedade do signo. Com efeito, a princípio, Saussure considerava apenas o

signo verbal como ‘unidade’ ou ‘moeda’ com duas faces, significado e

significante507. No entanto, no momento em que Saussure estende a noção de

504 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 45. 505 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 36 506 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 53. 507 Como lembra Derrida, Saussure distingue a ‘imagem acústica’ do mero som. Com efeito, a imagem acústica (significante) é o entendido, ou seja, o ser-entendido do som. Já o significado não é a coisa, mas o conceito, ou seja, a ‘idealidade do sentido’, na linguagem fenomenológica. Nesse sentido, na interpretação fenomenológica feita por Derrida, Saussure não pode ser acusado de recair no ‘ponto de vista mentalista’, como denuncia Jakobson. Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 78-79.

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signo tanto para a fonia quanto para a grafia, então a distinção entre arbitrário e

natural deveria desaparecer. A idéia mesma de ‘instituição’, ou seja, do arbitrário

do signo, é impensável antes da possibilidade da escrita. Apenas no momento em

que o signo é exteriorizado, isto é, em que aparece no mundo como espaço de

inscrição, mesmo que apenas fônico, é que ele pode ser entendido como arbitrário.

Assim, conclui Derrida:

“A tese do arbitrário do signo contesta, indiretamente mas, sem apelo, o propósito declarado de Saussure, quando ele expulsa a escritura para as trevas exteriores da linguagem. Esta tese justifica uma relação convencional entre o fonema e o grafema mas proíbe, por isso mesmo, que este (o grafema) seja uma “imagem” daquele (do fonema) (...) Portanto, deve-se recusar, em nome do arbitrário do signo, a definição saussuriana da escritura como “imagem” da língua”508.

Paradoxalmente, nota Derrida, Saussure oferece o melhor de si exatamente

quando não está falando da escrita, ou seja, quando acredita que resolveu o

problema ao expulsá-la para fora do seu sistema. É nesse momento que ele “libera

o campo de uma gramatologia geral”, ou seja, de uma lingüística que não apenas

aceita a escritura, como a considera a “origem da linguagem”. É então que se

percebe que, aquilo que havia sido desterrado, “o errante proscrito da lingüística,

nunca deixou de perseguir a linguagem como sua primeira e mais íntima

possibilidade”509.

Com e contra Saussure, o que é preciso pensar agora é a escritura como

algo ‘interior’ à fala, visto que esta é em si mesma uma escritura. A língua é,

desde sempre, uma escritura, sem a qual nenhuma ‘notação’ seria possível. É

nesse sentido que é preciso pensar o ‘rastro instituído’ a partir do qual todas as

oposições ganham sentido. Mas o rastro ‘instituído’ não é arbitrário no sentido

oposto ao ‘natural’. É preciso pensar a sua possibilidade aquém da oposição entre

natureza e convenção. É interessante notar que Nietzsche, no texto “Da origem da

linguagem” de 1869-1870, citando o Crátilo de Platão, diz considerar a oposição

entre physis e nomos um ponto de partida ingênuo para a apreensão da origem da

linguagem. No entanto, lembra Rosana Suarez, nos cursos de 72-73, ele parece

508 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 55. 509 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 53.

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aceitar a tese convencionalista, ao afirmar que não existe “absolutamente

‘naturalidade’ não retórica da linguagem à qual apelarmos”510.

No entanto, Nietzsche complexifica a tese da arbitrariedade, ao questionar

o sentido de nomos que não seria apenas o arbitrário ou artificial, em oposição ao

natural. Com efeito, os dois sentidos principais de nomos é uso e norma. Desse

modo, a ‘pureza da linguagem’ vincula-se não à ligação natural entre a coisa e a

palavra, mas sim ao emprego da linguagem “sancionada pelo usus dos indivíduos

cultos de uma sociedade”511. Assim, é a norma culta que define a ‘pureza’ da

palavra e não a sua associação à uma linguagem primeira, originária ou natural.

Escreve Nietzsche:

“Em si, não há discurso puro nem impuro. É muito importante a questão sobre como o sentimento de pureza se forma pouco a pouco numa sociedade que escolhe, até fixá-lo, o campo global de sua linguagem. Manifestamente, ela precede segundo leis e analogias inconscientes, até obter uma unidade, uma expressão unificada. Assim como a uma tribo corresponde um dialeto, a uma sociedade corresponde um estilo sancionado como ‘puro’”512.

Esta passagem anuncia uma instância anterior à oposição entre physis e

nomos, qual seja, o instinto inconsciente formador de linguagem. Nietzsche a

define como uma arte instintiva e inconsciente que conforma os organismos e o

mundo que eles percebem. E, no seu entender, essa arte é transpositiva, trópica.

Diz Nietzsche: “É sobre tropos e não sobre raciocínios inconscientes que repousa

nossa percepção. Comparar e descobrir semelhanças é o processo original”513.

Nesse sentido, a percepção lança comparações, recortes e acentos rítmicos, não

sobre “o mundo”, mas sobre as marcas impressas na memória dos organismos a

partir das primeiras excitações que aferem.

Essa é, portanto, a concepção nietzschiana de linguagem, uma trópica da

percepção, onde a ‘coisa’ é, desde sempre, uma metáfora. Nesse sentido, escreve

Nietzsche: “Nossas expressões verbais se produzem desde que experimentamos

510 Nietzsche, Retórica, apud Suarez, Rosana. “Nietzsche e os cursos sobre a Retórica”, op. cit. pág. 74. 511 Nietzsche, Retórica, apud Suarez, Rosana. “Nietzsche e os cursos sobre a Retórica”, op. cit. pág. 74. 512 Nietzsche, Retórica, apud Suarez, Rosana. “Nietzsche e os cursos sobre a Retórica”, op. cit. pág. 74. 513 Nietzsche, Livro do Filósofo, apud Suarez, Rosana. “Nietzsche e os cursos sobre a Retórica”, op. cit. pág. 76.

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uma sensação. No lugar da coisa, a sensação percebe apenas uma marca”514. Ou

ainda: “Todas as palavras são, desde seu começo, tropos. Em lugar do que

realmente se passou, elas instalam uma massa sonora que se esvanece com o

tempo: a linguagem não exprime jamais uma coisa em sua integridade, exibe

somente uma marca que lhe parece salientar-se”515. Desse modo, “não são as

coisas que penetram em nossa consciência, mas a maneira como nos relacionamos

com elas: a persuasão”516.

Desse modo, as investigações nietzschianas sobre a Retórica são

preparatórias para a tese da metaforicidade geral da linguagem que aparecerá em

“Sobre Verdade e Mentira em sentido Extramoral”, onde se diz que a metáfora é a

mãe de toda linguagem e a avó da linguagem conceitual. Ou ainda: “Em todo

caso, não é da lógica que provém a linguagem, e, por decorrência, toda a matéria-

prima com que o homem da verdade, o erudito, o filósofo trabalham e constróem,

se não provém dos contos da carochinha, não provém tampouco, em todo caso, da

essência das coisas”517.

Nos termos de Derrida, ressoando ecos nietzschianos, “o rastro instituído é

‘imotivado’, mas não caprichoso”. Ele rompeu com a ‘amarra natural’, mas não

pode ser pensado fora da estrutura de remessa onde a diferença aparece e permite

a eclosão dos termos plenos. A tese da ‘arbitrariedade’ do signo não se sustenta,

não porque o signo tenha uma relação ‘natural’ com as ‘coisas’, mas porque ela

necessita de uma síntese onde o ‘totalmente outro’ anuncia-se como tal, sem

nenhuma identidade ou semelhança, com aquilo que não é ele. E aqui está o

centro da questão metafísica, da história em geral: o signo coloca-se, enquanto

tal, no lugar daquilo que ele não é, ou seja, do ente. Mas o ente, enquanto tal,

simplesmente não existe antes do rastro, antes do jogo diferencial da linguagem.

É por isso que Derrida não se cansa de afirmar é que “é preciso pensar o

rastro antes do ente”, visto que o campo do ente estrutura-se conforme as diversas

possibilidades do rastro. Nesse sentido, o rastro é ‘anterior’ ao ente. É o

movimento do rastro (o jogo da différance) que permite a aparição do ente, 514 Nietzsche, Retórica, apud Suarez, Rosana. “Nietzsche e os cursos sobre a Retórica”, op. cit. pág. 76. 515 Nietzsche, Retórica, apud Suarez, Rosana. “Nietzsche e os cursos sobre a Retórica”, op. cit. pág. 78. 516 Nietzsche, Retórica, apud Suarez, Rosana. “Nietzsche e os cursos sobre a Retórica”, op. cit. pág. 79. 517 Nietzsche, “Sobre Verdade e Mentira em Sentido Extramoral” apud Suarez, Rosana. “Nietzsche e os cursos sobre a Retórica”, op. cit. pág. 80.

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mesmo que este movimento seja, por essência, ocultamento, ou seja, mesmo que

ele não exista ‘enquanto tal’. Quando o outro anuncia-se, ele apresenta-se já e

desde sempre, na dissimulação de si. Escreve Derrida; “A apresentação do outro

como tal, isto é, a dissimulação de seu “como tal”, começou desde sempre e

nenhuma estrutura do ente dela escapa”518.

A estrutura do rastro ‘imotivado’ ou ‘arbitrário’ é de um ‘vir-a-ser’. Nesse

sentido, não existe rastro ‘imotivado’, mas apenas o ‘vir-a-ser imotivado’ do

rastro. Assim, o rastro de que fala Derrida não é mais ‘natural’ que ‘cultural’, não

mais físico que psíquico, biológico que espiritual. É simplesmente “aquilo a partir

do qual um vir-a-ser imotivado do signo é possível”519 e com ele, todas as demais

oposições da linguagem.

Para Derrida, Peirce foi mais atento que Saussure a este caráter de ‘vir-a-

ser’ do signo. Como destaca Jakobson, as notas de Semiótica que Peirce escreveu

ao longo de meio século – sua primeira tentativa de classificação dos signos data

do ano de 1867 – possuem importância histórica e teriam exercido influência

ímpar se não tivessem permanecido inéditas, para grande parte dos lingüistas, até

1930. Assim como Saussure, Peirce estabeleceu uma distinção entre as

“qualidades materiais” (o significante de Saussure) e o seu “intérprete imediato”

(o significado). No entanto, para Peirce, a relação entre significado e significante

manifesta-se em três tipos de signos (representamen na terminologia de Peirce)

diferentes. O ícone opera pela semelhança; o índice opera pela contigüidade de

fato; e o símbolo opera, antes de tudo, por contigüidade instituída. Assim, a

conexão entre significado e significante do símbolo consiste numa regra e não

depende da presença ou ausência de qualquer similitude ou contigüidade de fato.

Desse modo, o intérprete de um símbolo deve obrigatoriamente conhecer a regra

convencional que liga o significado ao significante520. Nas palavras de Peirce:

“Um símbolo é um representamen cujo caráter representativo consiste exatamente

em ser uma regra que determinará seu Interpretante. Todas as palavras, frases,

livros e outros signos convencionais são Símbolos”521.

Com efeito, Saussure também se serviu, a princípio, do termo símbolo,

com sentido bastante similar ao de Peirce. No entanto, recusou-o por este implicar

518 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 57. 519 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 58. 520 Jakobson, “À procura da essência da linguagem”, op. cit. pág. 101. 521 Peirce, Semiótica, pág 71. Editora Perspectiva, 2005.

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um certo “liame natural” entre significado e significante, o que contrariaria sua

tese da arbitrariedade do signo. Nesse sentido, Peirce foi além de Saussure ao

chamar a atenção para o amálgama entre os componentes indicativos e icônicos

dos símbolos. Saussure, ao contrário, insiste no caráter puramente convencional

da linguagem. Uma vez que Peirce ressalta que o signo é formado pela

contaminação de funções diversas, como o índice, o ícone e o símbolo, então, o

que distingue as três classes de signos não é a presença absoluta de similitude ou

contigüidade entre o significante e o significado, mas apenas a predominância de

um desses fatores sobre os outros. Assim, mesmo um índice tão típico quanto um

dedo apontado numa direção recebe, em diferentes culturas, significações

diferentes. Por exemplo, cita Jakobson, para certas tribos da África do Sul, indicar

um objeto com o dedo é amaldiçoá-lo.

Por outro lado, quanto ao símbolo, diz Peirce: “ele implica

necessariamente uma espécie de índice” e “sem recorrer a índices, é impossível

designar aquilo de que se fala”522. Assim, todo símbolo ou signo convencional

possui componentes indicativos e icônicos. E, segundo Peirce, os signos mais

perfeitos são aqueles nos quais o caráter icônico, indicativo e simbólico “estão

amalgamados em proporções tão iguais quanto possível”523. Desse modo,

contrariamente a Saussure, para quem os signos inteiramente arbitrários realizam

melhor que os outros o ideal semiológico, Peirce afirma:

“Os símbolos crescem. Retiram seu ser do desenvolvimento de outros signos, especialmente dos ícones, ou de signos misturados que compartilham da natureza dos ícones e símbolos. Só pensamos com signos. Estes signos mentais são de natureza mista (...) Assim, é apenas a partir de outros símbolos que um novo símbolo pode surgir”524.

Esta é a peculiaridade da semiótica de Peirce que Derrida ressalta.

Diferentemente de Saussure, Peirce teria reconhecido o ‘vir-a-ser’ signo do

símbolo. E este caráter de ‘vir-a-ser’ do signo está presente em Peirce quando este

reconhece o enraizamento do simbólico no não-simbólico. Mas esse enraizamento

não compromete a originalidade estrutural do campo simbólico, ou seja, não

compromete a autonomia do jogo, da remessa de signo a signo que constitui a

522 Peirce, apud Jakobson, op. cit. pág. 104. 523 Peirce, apud Jakobson, op. cit. pág. 104. 524 Peirce, Semiótica, op. cit. pág. 73.

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linguagem. Isto porque o remetimento de signo a signo não pressupõe nenhum

solo de não-significação, ou seja, nenhum ‘significado transcendental’ do qual o

signo seria a ‘representação’. Aliás, um sistema de signos é definido exatamente

pela indefinidade da remessa. Afinal, como escreve Peirce: “Um Símbolo é uma

lei ou regularidade do futuro indefinido”525.

Segundo Derrida, Peirce seria mais fiel à fenomenologia do que o próprio

Husserl que permanece preso à “apresentação originária da própria coisa (a

verdade)”. Já para Peirce, a manifestação, ela mesma, não revela uma ‘presença’,

ela faz signo. O que implica dizer que a tal ‘própria coisa’ é desde sempre um

representamen, uma vez que funciona somente suscitando um interpretante que

torna-se ele mesmo signo, e assim ao infinito. Isto implica dizer que o “sentido

original”, a “origem” ela mesma, o significado último que poderia satisfazer o

desejo do transcendental ao colocar um fim no movimento incessante da

significação, essa origem ou telos nunca se dá, nunca está presente. O caráter

duplo do signo, seu jogo de presença/ausência, o fato de apenas representar algo

que não está presente, é exatamente o seu caráter mais próprio. Assim, o próprio

do signo é não ser ele próprio. Derrida escreve:

“A tal “própria coisa” é desde sempre um representamen subtraído à simplicidade da evidência intuitiva (...) A identidade a si do significado se esquiva e se desloca incessantemente. O próprio do representamen é ser si e um outro, de se produzir como uma estrutura de remessa, de se distrair de si. O próprio do representamen é não ser próprio, isto é, absolutamente próximo de si”526.

É nesse sentido que Derrida afirma que “Peirce vai muito longe em direção

à desconstrução do significado transcendental que, num ou outro instante, daria

um final tranquilizante à remessa de signo a signo”527. E, como já assinalamos,

Derrida identifica o logocentrismo e a metafísica da presença com o desejo

exigente, potente, sistemático e irreprimível, de um tal significado. Assim, a

noção de ‘jogo’ para Derrida remete à ausência de significado transcendental e,

portanto, à ilimitação do jogo da linguagem e ao “abalamento da onto-teologia e

da metafísica da presença”528. Para pensar o jogo radicalmente, ou seja, como

525 Peirce, Semiótica, op. cit. pág. 71. 526 Derrida, Gramatologia, pág. 60. 527 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 59-60. 528 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 61.

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ausência do significado transcendental, é preciso, contudo, atravessar a

problemática ontológica e transcendental, isto é, segundo Derrida, “seguir

efetivamente e até o fim o movimento crítico das questões husserliana e

heideggeriana”. Mas também atravessar as questões levantadas pela lingüística,

uma vez que, desde que entramos no jogo, entramos no vir-a-ser-imotivado do

símbolo.

No entanto, é preciso lembrar que a imotivação do rastro não pode ser

entendida como um estado ou estrutura. O rastro é movimento, operação. Daí que

seria melhor falar em ‘movimento do rastro’. Nesse sentido, a gramatologia seria

a ‘ciência’ da imotivação do rastro, da escritura antes e na fala. E aqui surge a

inversão proposta por Barthes, ou seja, a de que a semiologia é que é uma parte da

lingüística, visto que não há sentido antes do signo. Derrida aceita, porém

radicaliza a proposição de Barthes ao propor uma ‘gramatologia’ que libertaria o

projeto semiológico das premissas logocêntricas da lingüística, visto que o signo

lingüístico ainda permanece o elemento exemplar para a semiologia.

Portanto, Derrida radicaliza as conclusões da Lingüística, especialmente da

Semiótica de Peirce, segundo a qual a condição de possibilidade mesma de um

sistema de signos é a remessa, o adiamento do sentido, a espera, a promessa de

presença que não se dará, uma vez que a “coisa” sempre escapa. Na terminologia

da desconstrução, pode-se afirmar que o traço de suplemento ou a

‘suplementariedade’ contamina todo sistema de signos, ou seja, a linguagem em

geral, antes de qualquer locução (entendida como primeira fase do ato de fala), ou

melhor, no instante mesmo de toda locução. Uma fala não pode ser plena, não

porque o seu locutor não está presente ou porque dissimula seu “querer-dizer”.

Uma fala não é plena porque está previamente dividida e deportada, previamente

afastada de si mesma. Essa é sua condição de possibilidade. Uma possibilidade

necessária que não pode ser considerada como mero “acidente”, nem ser “posta

em reserva” para fins estratégicos de uma análise pragmática, como sugere, por

exemplo, a teoria dos speech acts, tal como desenvolvida por Searle.

Mas resta o desafio de falar sobre essa contaminação constitutiva, de

compreender melhor essa lei de suplementariedade que caracteriza a linguagem.

Nesse sentido, Derrida cria a noção de ‘quase-conceito’ ou ‘indecidível’ –

différance, restância, rastro, dentre outros – no intuito de apontar para a

‘iterabilidade’ constitutiva de todo sistema de signos, o que exige uma outra

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207

espécie de conceito, ou como coloca Derrida: “Um conceito sem conceito,

heterogêneo ao conceito filosófico de conceito, um conceito que marca, ao mesmo

tempo, a possibilidade e o limite de toda idealização, e pois de toda

conceituação”529. Assim, as noções de iterabilidade e de disseminação,

desenvolvidas no texto “Assinatura Evento Contexto”, apontam nessa direção,

como desenvolvo a seguir.

529 Limited Inc. op. cit. pág 158.

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6

Os traços disseminantes da escritura

6.1

Indecidível différance

O que Derrida quer nos mostrar é que o status decaído, o caráter de

representação secundária que se acreditava poder reservar à linguagem escrita,

afeta todo significado, mesmo que falado, mesmo que na “presença” do locutor.

Como já assinalado, não há significado que escape ao jogo das remessas

significantes que constitui a linguagem. Toda tentativa de controlar esse

movimento incessante da significação, ou seja, toda tentativa de subtrair algum

significado – como o sentido, a verdade, a presença, o presente, o ser – do jogo de

remessas de significantes, acaba sendo obrigado a pressupor aquilo que Derrida

chama de “significado transcendental”, ou seja, um significado último que dê fim

ao movimento, que organize o sistema de referências. Nesse sentido, toda e

qualquer oposição conceitual pressupõe a referência a algum tipo de significado

transcendental, mesmo quando ele é denegado enquanto tal530.

Entretanto, não há como escapar da diferencialidade constitutiva da

linguagem. Ao afirmar que a écriture compreende e ultrapassa o conceito de

linguagem, Derrida não está simplesmente denunciando a clausura metafísica – ou

seja, o fechamento de um sistema linguístico, com a sua estrutura interna e sua

lógica própria de funcionamento, em torno de um determinado “significado

transcendental” – mas também apontando para a impossibilidade de sair dela, isto

é, de escapar para “fora” da linguagem. Ao usar a palavra escritura, Derrida quer

afirmar e generalizar certos traços que sempre foram atribuídos somente à

530 Por exemplo, o rompimento de Derrida com o círculo estruturalista passa pela crítica da noção de “estrutura” que, para a desconstrução, ainda preserva elementos da metafísica da presença, visto que remete a algo idêntico em si mesmo, no caso, as estruturas da linguagem. Dessa forma, ainda que de modo refinido e dissimulado, o estruturalismo ainda continua refém do logocentrismo e do privilégio da phoné. Tal crítica foi elaborada em “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, texto apresentado nos Estados Unidos em 1967 e que marca a entrada de Derrida no círculo acadêmico americano e inaugura o chamado “neo-estruturalismo”. In A escritura e a diferença. Ed. Perspectiva, São paulo, 1995. Derrida também faz uma leitura desconstrutora de Lévi-Strauss em Gramatologia, op. cit. pág. 125. É interessante notar que algumas leituras equivocadas de Derrida indicam a différance como uma ‘origem’ ou algum tipo de referência última do pensamento derridiano. No entanto, não é difícil refutar uma interpretação desse tipo, visto que a différance aponta exatamente para a impossibilidade de um tal fundamento.

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linguagem escrita, mas que contaminam a linguagem em geral. A escritura sempre

foi rebaixada ao patamar de suplemento, mera representação gráfica da voz,

significante do significante, mas todas essas características da escritura, todas as

peculiaridades que rebaixam a linguagem escrita são generalizáveis para toda a

linguagem, inclusive para a fala.

A interpretação filosófica da escrita sempre foi reduzida a uma técnica a

serviço da comunicação, como mostra Derrida a partir da análise realizada por

Condillac no Essai sur l´origine des connaissances humaines – cuja estrutura

básica pode ser tomada como modelo da concepção metafísica da linguagem.

Seguindo o raciocínio de Condillac, resume Derrida: “se os homens escrevem é:

1. porque têm de comunicar; 2. porque o que eles têm para comunicar é o seu

“pensamento”, as suas “idéias”, as suas representações. O pensamento

representativo precede e comanda a comunicação que transporta a “idéia”, o

conteúdo significativo; 3. porque os homens estão já em estado de comunicarem o

seu pensamento quando inventam este meio de comunicação que é a escrita”.

Ainda de acordo com Condillac, os homens que já comunicavam os seus

pensamentos através de sons, sentiram a necessidade de imaginar novos signos

capazes de se perpetuarem e de se fazerem conhecer por pessoas ausentes. Assim,

o nascimento e o progresso da escrita ocorreram de maneira natural, numa linha

direta, simples e contínua, de acordo com uma lei da economia mecânica: ganhar

o máximo de espaço e de tempo pela abreviação mais cômoda, sem nenhum tipo

de interferência no conteúdo que a palavra transporta. Assim, o mesmo conteúdo,

antes comunicado por gestos e sons, passa a ser veiculado pela escrita. Desse

modo, coloca Derrida: “o caráter representativo da comunicação escrita – a escrita

como quadro, reprodução, imitação do seu conteúdo – será o traço invariante de

todos os progressos a porvir (...) a estrutura representativa, a relação idéia/signo,

não será nunca mais destruída ou transformada”531.

Essa concepção da linguagem que domina a tradição filosófica é, segundo

Derrida, “ideológica”, uma vez que, na esteira de Condillac, a teoria do signo é

elaborada como representação da idéia que representa ela própria a coisa

percebida. “A comunicação a partir daí veicula uma representação como conteúdo

531 Derrida, “Assinatura Acontecimento Contexto”, pág. 353.

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ideal (o que se chamará o sentido); e a escrita é uma espécie desta comunicação

geral”.

No entanto, é preciso determinar melhor que tipo de “ausência” é essa

referida por Condillac. Em primeiro lugar, é ausência de destinatário, visto que

escreve-se para comunicar alguma coisa aos ausentes. No entanto, denuncia

Derrida, esta ausência pertence à estrutura de qualquer escrita e, acima de tudo, da

linguagem em geral. Mas a ausência que diferencia a escrita de outro tipo de

linguagem (gestual ou falada), a especificidade da ausência que leva aos homens à

escrita é a necessidade de sua legibilidade. É necessário que a “comunicação

escrita” permaneça legível, não obstante o desaparecimento absoluto de qualquer

destinatário. Derrida chama essa característica repetível da escrita de

“iterabilidade”. Assim, diz Derrida: “Uma escrita que não seja estruturalmente

legível – iterável – para além da morte do destinatário não seria uma escrita”532.

Além da possibilidade da ausência absoluta do destinatário – uma ausência

que não é simplesmente uma modificação da presença, mas sim uma ruptura da

presença533 – a escrita também funciona na ausência do emissor e do produtor.

Assim, diz Derrida: “escrever é produzir uma marca que constituirá uma espécie

de máquina por sua vez produtiva, que a minha desaparição futura não impedirá

de funcionar e de dar, de se dar a ler e a reescrever”. Por ausência “absoluta”

Derrida quer referir-se a não-presença do querer-dizer, da intenção de significação

que estava supostamente presente no momento da emissão ou produção da marca.

Este seria o segundo predicado da linguagem escrita e, portanto, da linguagem em

geral: a deriva essencial, a disseminação proveniente da estrutura iterativa da

escrita que “sai a vagar por aí” e se isenta de qualquer responsabilidade, visto que

é “órfã e separada a partir do seu nascimento da assistência do seu pai, como

condena Platão no Fedro”534.

Um terceiro predicado da linguagem escrita e que é generalizável para a

linguagem em geral é a sua citacionalidade, ou seja, a possibilidade de recortar

uma frase ou expressão e retirá-la de seu contexto original, do momento de sua

produção, que contava com a “presença” do autor, do ambiente de sua experiência

532 Derrida, “Assinatura Acontecimento Contexto”, op. cit., pág. 356. 533 Uma “ausência absoluta” tal como apontada no capítulo 3 sobre espectro Heidegger. 534 Derrida, “Assinatura Acontecimento Contexto”, op. cit., pág. 357.

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e de seu querer-dizer. Essa ‘força de ruptura’ é um predicado da linguagem e de

seu modo de ser disseminante. Todo texto pode ser enxertado, citado, retirado de

seu contexto e, ainda assim, continuar legível e provocar efeitos.

Os “grafemáticos em geral”, ou seja, os traços constitutivos de qualquer

signo escrito – a iterabilidade, a citacionalidade e a deriva essencial – pertencem a

toda e qualquer linguagem. Essa possibilidade estrutural de ser privada do

referente ou do significado faz parte de qualquer marca, seja ela oral ou escrita.

Escreve Derrida:

“Pertence ao signo ser justamente legível mesmo se o momento de sua produção está irremediavelmente perdido e mesmo se eu não souber o que o seu pretenso autor-escritor quis dizer com consciência e com intenção no momento em que escreveu, quer dizer, abandonou à sua deriva essencial”535.

Dessa forma, os traços generalizáveis da escrita valem para todas as ordens

de signos e para todas as linguagens. Mas também valem para todo o campo que a

filosofia chama de ‘experiência’, mesmo a ‘experiência do ser’, isto é, a dita

‘presença’. Assim, um signo escrito está sempre sujeito à iteração e comporta

sempre uma ‘força de ruptura’ com seu contexto de ‘origem’. O signo nunca será

idêntico a si próprio, sob pena de deixar de ser signo, visto que a própria

iterabilidade que constitui a sua identidade não lhe permite nunca ser uma unidade

de identidade consigo mesmo.

O signo (ou cada elemento do jogo de significação) necessita de um

“intervalo que o separe do que não é ele para que ele seja ele mesmo”536. Esse

intervalo, que Derrida também chama de “espaçamento”, constitui o “presente” do

elemento, mas também o divide e interdita sua plena presença. A força de ruptura

característica de todo signo (escrito e falado) reside no intervalo que constitui toda

marca, ou seja, no intervalo que o separa dos outros elementos da sua cadeia

contextual. É este intervalo que permite o surgimento da marca, mas ele é

silencioso e dissimulado como um rastro. Escreve Derrida:

“esse intervalo constituindo-se, dividindo-se dinamicamente, é aquilo a que podemos chamar espaçamento, devir-espaço do tempo ou devir-tempo do espaço (temporização). E é a esta constituição não-originária do presente (...) que eu

535 Derrida, “Assinatura Acontecimento Contexto”, op. cit., pág. 358. 536 Derrida, “A diferença”, op. cit. pág.45.

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proponho que se chame arqui-escrita, arqui-rastro ou différance. Esta (é) (simultaneamente) espaçamento (e) temporização”537.

Desse modo, Derrida pensa o jogo de diferenças da linguagem ou a

diferença semiológica de Saussure de forma radical. Derrida retém de Saussure a

noção de diferença enquanto esquema de reenvios que constitui a linguagem, isto

é, enquanto possibilidade de toda conceitualidade, mas, entretanto, a différance

implica que, no jogo de remetimentos da língua, leve-se em conta o espaçamento

e a temporização, ou seja, o jogo de rastros silenciosos, uma espécie de “escrita

avant la lettre”538. É nesse sentido que Derrida propõe a transformação da

semiologia em gramatologia, visto que esta última opera um trabalho crítico sobre

aquilo que restou de metafísico na semiologia, a saber, o signo, enquanto tal. Em

outro lugar539, Derrida também fala de uma ‘pragmatologia’, ou seja, uma junção

entre a gramatologia e a pragmática, enquanto um pensamento outro sobre os

envios e reenvios da língua, um pensamento que, sobretudo, leve em conta a

situação atual das marcas, dos enunciados, do lugar ocupado pelos falantes e pelos

ouvintes.

Como já assinalado no Capítulo 3 (Derrida herdeiro de Heidegger), o

pensamento do rastro também é tributário da diferença ôntico-ontológica

heideggeriana, mas não pode ser identificado com ela. Com efeito, o rastro é

anterior à questão do ser exatemente porque ele nunca se apresenta enquanto tal.

O movimento do rastro é sempre différance. Ele nunca é presença, não tem

propriamente lugar e o apagamento pertence a sua estrutura. Com efeito, o

apagamento desde o início o constitui como rastro, o instala na mudança de lugar

e o faz “sair de si na sua posição”540.

Escreve Derrida sobre o paradoxo do rastro: “O presente torna-se signo do

signo, rastro do rastro. Ele não é mais aquilo para que em última instância reenvia

todo reenvio. Torna-se uma função numa estrutura de reenvio generalizado. É

rastro e rastro do apagamento do rastro”541. Assim, se o rastro não aparece, não é

porque ele escapa às determinações metafísicas (aos nomes e conceitos), mas

porque faz parte de sua estrutura se dissimular. Ele não pode aparecer em si

537 Derrida, “A diferença”, op. cit. pág. 45. 538 Derrida, “A diferença”, op. cit. pág. 48. 539 Derrida, “Mes chances” in Psyché, Nouvelle édition, Galilée, 1987-1998. 540 Derrida, “A diferença”, op. cit. pág. 58. 541 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 58

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mesmo, enquanto tal. É por isso que, mesmo a différance, enquanto um nome,

permanece um nome metafísico e, diz Derrida:

“Todos os nomes que ela recebe na nossa língua são ainda, enquanto nomes, metafísicos (...) Mais “velha” que o próprio ser, uma tal différance não tem nenhum nome em nossa língua. Mas “sabemos já” que se ela é inominável, não é porque nossa língua não encontrou ainda ou não recebeu este nome, ou porque seria necessário procurá-lo numa outra língua, fora do sistema finito da nossa. É porque não há nome para isso, nem mesmo o de essência ou de ser, nem mesmo o de “différance”, que não é um nome, que não é uma unidade nominal pura e se desloca sem cessar numa cadeia de substituições “diferantes””542.

O que Derrida quer marcar com tal impossibilidade de nomeação é que

“nunca houve, nunca haverá jamais uma palavra única, uma palavra-mestra”543. O

a da différance não quer apontar para nenhuma prescrição primeira ou anúncio

profético. Ela quer, simplesmente, “pôr em questão o nome do nome”544. A

desconstrução quer pensar essa impossibilidade sem nostalgia, isto é, fora do mito

da língua “própria”, seja ela materna, paterna ou da pátria perdida do pensamento.

Com efeito, como somos todos prisioneiros da linguagem metafísica, é

preciso também muito cuidado para não pensar o rastro como desaparição da

origem. O que Derrida quer apontar com seu pensamento do rastro é que a origem

sequer desapareceu, pois ela jamais foi retroconstituída, a não ser por uma não-

origem, ou seja, pelo rastro que torna-se, portanto, a origem da origem. O conceito

de rastro é, Derrida reconhece, contraditório e inadmissível. Mas a contradição só

tem lugar se ele for pensado através da lógica da identidade. Derrida fala de

‘arqui-rastro’ exatamente para tentar arrancar o conceito de rastro do esquema

clássico que o faria derivar de uma presença. Mas, ao mesmo tempo, este conceito

destrói o seu nome e, escreve Derrida: “Se tudo começa pelo rastro, acima de tudo

não há rastro originário”545. Com efeito, é preciso um enorme esforço para pensar

o rastro não somente como a desaparição da origem, mas a inexistência mesma da

origem. Escreve Derrida: “O rastro (puro) é a différance”546. Em outros termos,

explica Derrida, o rastro ou a différance,

542 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 61-62. 543 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 62. 544 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 62. 545 Derrida, “A diferença”, op. cit. pág. 44. 546 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág 77.

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“não depende de nenhuma plenitude sensível, audível ou visível, fônica ou gráfica. É, ao contrário, a condição destas. Embora não exista, embora não seja nunca um ente-presente, sua possibilidade é anterior, de direito, a tudo que se denomina signo (...) Esta différance, portanto, (...) funda a oposição metafísica entre o sensível e o inteligível, em seguida entre significado e significante, expressão e conteúdo, etc.”547. A différance é, portanto, o movimento de jogo que produz efeitos de

diferença, mas não pode ser pensado como algo anterior a elas ou como uma

origem. O nome “origem” já não lhe convém porque a différance não é simples,

plena e presente a si, logo, ela não pode ser uma arquia nem uma ousia. A

différance é aquilo que possibilita o movimento da significação ao contaminar

cada elemento dito “presente” com outra coisa que não ele mesmo, isto é, com

uma ausência absoluta que não é mera modificação da presença.

6.2

A différance e a força performativa da linguagem

Assim, o jogo na linguagem que é a escritura, com sua iterabilidade

estrutural que dissemina sentidos, abre um novo espaço onde a desconstrução

propõe pensar as velhas oposições metafísicas e denunciar as suas hierarquias e

valores que, por sua vez, fundamentam decisões éticas e políticas de enorme

relevância nas sociedades pluralistas atuais. Através das noções de rastro,

différance e escritura, a desconstrução nos oferece uma nova maneira de pensar

temas de nosso tempo, como justiça, direito, democracia e identidade nacional

sobre outras bases, isto é, assumindo e aceitando as conseqüências da não-

identidade do signo consigo próprio, da contaminação estrutural de toda locução,

antes mesmo do momento performativo. Aceitando, enfim, a violência estrutural

de toda língua. Assim, a desconstrução nos permite “tomar posições”, abalar

algumas certezas, estranhar certas obviedades, mas sempre resistindo ao desejo de

“dizer a última palavra”.

A desconstrução está sempre alerta para o retorno do significado

transcendental, ou seja, do significado último que poderia “regular a circulação

dos signos arrastando consigo todos os significados tranqüilizantes”548. Ao revelar

os traços constitutivos da linguagem, a sua estrutura universal de remetimentos,

547 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág 77 548 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 8

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adiamentos, promessas de sentido, ameaças e dissimulações – iterabilidade,

citacionalidade e deriva – os textos derridianos nos convocam a pensar e praticar a

língua de um modo novo.

Para a desconstrução, todo texto constitui-se por estratificações

diferenciais que impedem a univocidade e a garantia do “querer-dizer”, do

meaning, enfim, do sentido originário. Um texto não pode ser idêntico a si

mesmo. Mesmo uma tradução cuidadosa ou uma simples paráfrase são já

interpretações e não somente a transposição fiel do “sentido original” de um texto.

Mesmo uma citação implica uma decisão semântica comandada por regras e

convenções dominantes de um determinado contexto. Escreve Derrida:

“mesmo um ‘comentário amplificado’ não é um momento de simples registro reflexivo pelo qual se transcreveria fielmente o nível originário e verdadeiro do sentido intencional de um texto, de um sentido unívoco e idêntico a si mesmo, nível sobre o qual ou depois do qual começaria enfim a interpretação ativa”549.

É por isso que toda leitura é uma interpretação, por mais fiel e rigorosa

que se pretenda. As interpretações dominantes implicam necessariamente a

imposição de um sentido no jogo instável da différance, sem o qual não poderia

haver nenhum entendimento. Mas tais interpretações que garantem a mínima

estabilidade do sentido não seriam nem possíveis, nem necessárias, sem o jogo da

différance, ou seja, sem essa não-identidade do texto consigo mesmo, sem essa

estrutura paradoxal e disseminante de todo referente550. A imposição de um

sentido – que sempre ocorre em toda interpretação – supõe o jogo da différance,

logo, supõe a instabilidade e a não-identidade consigo. É preciso que a différance

trabalhe a referência para ela possa “significar”.

No entanto, a desconstrução não nega a existência de referências, assim

como de algumas estruturas relativamente estáveis que permitem um

“primeiro”551 acesso ao texto. Ao contrário, é exatamente porque tais categorias

são “estáveis” que elas são desconstrutíveis ou “desestabilizáveis”. E isso só é 549 Derrida, Limited Inc, op. cit.pág. 197. 550 Derrida, Limited Inc. op. cit. pág. 203. 551 Derrida não se sente confortável em utilizar termos como “primeiro” e “mínimo”, mas como trata-se de uma resposta na qual o interlocutor “exige” uma explicação, Derrida coloca tais termos entre aspas e adverte que, de fato, não acredita numa determinação absoluta do “mínimo” de um texto. Segundo os contextos (universidade, imprensa, escola, televisão), as condições da pertinência mínima mudarão, como podemos também constatar nas exigências curriculares, onde o “mínimo” varia enormemente. “O “mínimo” e o “primeiro” só têm sentido em contextos determinados”, diz Derrida em Limited Inc. op. cit. pág. 199.

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possível porque uma não-identidade consigo, uma diferença e uma

indeterminação relativa já abriu o espaço para essa estabilização violenta (porque

toda interpretação é violenta)552. Diz Derrida:

“O que sempre me interessou mais, o que sempre me pareceu mais rigoroso (...) não é a indeterminação por si mesma, mas a determinação mais estreita possível das figuras do jogo, da oscilação, da indecidibilidade, isto é, das condições diferenciais da história determinável”553.

O que importa, portanto, é revelar as relações de força, as diferenças de

forças que permitem estabilizar determinadas situações. Nesse sentido, “do ponto

de vista semântico, mas também ético e político, a desconstrução não deveria dar

lugar nem ao relativismo, nem a qualquer indeterminismo”554.

Desse modo, a desconstrução não é algo negativo, niilista ou não-crente na

verdade, no sentido, na intenção e no querer-dizer, como denuncia Searle e demais

pseudo leitores de Derrida. Como venho ressaltando, a desconstrução não é

“algo”. A desconstrução acontece. As coisas portam em si mesmas a

desestabilização, a différance, a não-identidade a si. Os textos de Derrida apontam

para esse processo já em curso e pretendem, talvez, ajudar a acelerar alguns deles,

ao revelar suas estruturas velhas e corroídas. Nesse sentido, Derrida não nega a

estabilidade, por exemplo, das normas de inteligibilidade mínima que permitem

um suposto “consenso procedimental”. Mas insiste em nos lembrar que as regras

do “entendimento mínimo” não são absolutas e a-históricas, são somente mais

estáveis do que outras. Entretando, ainda dependem de condições sócio-

institucionais, de relações de poder fundadas em estruturas convencionais

desconstrutíveis. Escreve Derrida:

“com efeito, essas estruturas estão em via de se transformar profundamente e principalmente muito depressa (...) a desconstrução é, primeiro, essa desestabilização em curso, se se pode dizer, nas “coisas mesmas”, mas não é negativa. É preciso desestabilização também para o “progresso”. E o des da desconstrução significa não a demolição do que se constrói, mas o anúncio do que resta por pensar, além do esquema construtivista ou desconstrutivista”555.

552 Voltarei a seguir sobre a relação íntima e complexa entre ato performativo e violência. 553 Derrida, Limited Inc. op. cit. pág. 199. 554 Derrida, Limited Inc. op. cit. pág. 204. 555 Derrida, Limited Inc. op. cit. pág. 201.

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217

Para que as estruturas de indecidibilidade sejam possíveis e, portanto, para

que decisões sejam tomadas e responsabilidades assumidas, é preciso que haja

différance. Mas différance não significa indeterminação. Ao contrário, ela torna

possível e necessária a determinação. A différance é, na verdade, uma força

diferencial, um jogo de forças diferencias que se opõem, se distinguem, se

deslocam. Diz Derrida: “por um lado, essas diferenças jogam: na língua, na fala

também e nas trocas entre a língua e a fala. Por outro lado, as diferenças são, elas

próprias, efeitos. Não caíram do céu inteiramente prontas”556.

A estrutura paradoxal da différance é, portanto, produtiva, disseminante. É

ela que alimenta a dimensão performativa da linguagem que se encontra em todas

as línguas. Assim, para além da teoria dos speech acts, a força performativa é, na

leitura de Derrida, uma força que provém da différance enquanto força diferencial

ou diferencialidade primeira, que permite a conceitualização que se dá na

linguagem. Numa palavra, a différance é a força diferencial da e na linguagem,

anterior ou ‘mais velha’ do que todo ato performativo.

6.3

Différance e lei

Em Force de Loi, Derrida desenvolve a noção de “força” e seu caráter

diferencial e não substancialista. No entanto, apesar de se sentir pouco à vontade

com o uso reiterado, Derrida reconhece que o apelo à palavra ‘força’ é frequente

em seus textos. Por isso, Derrida pede vigilância (a ele mesmo) para não pensar a

força como um conceito obscuro, transcendental, enfim, como algo externo à

linguagem. Assim, contra os riscos substancialistas e irracionalistas, lembra

Derrida:

“Trata-se sempre da força diferencial, da diferença como diferença de força, da força como différance ou força de différance (a différance é uma força diferida-diferante); trata-se sempre de uma relação entre a força e a forma, entre a força e a significação; trata-se sempre de força “performativa”, força ilocucionária ou perlocucionária, de força persuasiva ou de retórica, de afirmação da assinatura, mas também e sobretudo de todas as situações paradoxais onde a maior força e a maior fraqueza se confundem estranhamente” 557.

556 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 42. 557 Derrida, Force de Loi, pág. 20.

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Ao investigar a expressão político-jurídica “força de lei’ ou

“enforceability”, Derrida chama a atenção para a dificuldade de tradução para o

francês dessa preciosa expressão. E isto especialmente porque “to enforce the

law” nos remete à noção de força antes mesmo de qualquer direito, lei ou justiça.

Desse modo, nos lembra que, se a justiça não é necessariamente o direito posto ou

a lei, ela não pode, contudo, tornar-se justiça – ‘de direito’ ou ‘no direito’ – sem

possuir ou apelar à força desde a sua primeira palavra. Com efeito, na origem da

justiça o logos já estava presente, ou seja, antes da justiça já havia linguagem ou

língua. E, uma vez que a força está na linguagem, dentro da linguagem, isto

implica dizer que, desde sempre, a força já apareceu. Ela pertence à essência mais

íntima da linguagem. Nesse sentido, resta pensar o exercício dessa força da e na

linguagem, resta entender o seu movimento paradoxal que, no limite, se auto-

desarma558.

Desse modo, através de um fragmento de Pascal que diz “Justiça, força. –

É justo que aquilo que é justo seja seguido, é necessário que o que é mais forte

seja seguido”559, Derrida busca pensar a estrutura mais intrínseca de todo

fundamento da lei, do direito e da autoridade em geral. Uma vez que a justiça sem

força é nula e a força sem justiça é tirânica, então a necessidade da força é

implicada na justeza da justiça. O surgimento mesmo da justiça e do direito, seu

momento instituinte, fundador e justificador implica, de modo estrutural, uma

força performativa, ou seja, uma força interpretativa. Mas isso não significa dizer

que o direito está à serviço da força, como se este fosse um instrumento dócil,

servil e, portanto, exterior ao poder dominante (esta era a crítica marxista ao

direito dominante na URSS stalinista). Na verdade, a relação entre o direito e a

força, logo, a relação entre lei, poder e violência é de ordem muito mais íntima e

complexa. Escreve Derrida:

“A justiça – no sentido de direito (right or law560) não estaria simplesmente a serviço de uma força ou de um poder social, por exemplo econômico, político, ideológico, que existiria fora dela ou antes dela, e ao qual ele deveria sujeitar-se ou acomodar-se segundo a utilidade”561.

558 Derrida, Force de Loi, pág. 27, Galilée, 1994. 559 Pascal, Pensées, apud Derrida, Force de Loi, op. cit. pág. 27. 560 No direito brasileiro, utiliza-se a distinção entre ‘direito subjetivo’ e ‘direito objetivo’ para marcar a distinção entre ‘right’ no sentido de ‘ter direito a alguma coisa’ e ‘law’ no sentido de lei escrita, positivada. 561 Derrida, Force de Loi, op. cit. pág. 32.

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219

Seguindo essa trilha que conduz da lei à força e da justiça à

‘enforceability’ da lei, o que Derrida nos revela é que o momento de fundação ou

de instituição da lei (da justiça e do direito) é um momento ‘místico’, ou seja, um

‘golpe de força’, um momento de força performativa que não pode ser

classificada, nela mesma, como justa ou injusta, visto que não havia nada antes

dela, ou seja, não havia nenhuma fundação pré-existente que poderia lhe

contradizer ou invalidar. Escreve Derrida sobre esse momento inaugural da lei e

da justiça:

“Seu momento de fundação ou de instituição não é jamais um momento inscrito no tecido homogêneo de uma história, porque ele o rasga com uma decisão. A operação de fundar, de inaugurar, de justificar o direito, de fazer a lei, consistiria em um golpe de força (coup de force), numa violência performativa e portanto, interpretativa que, em si mesma, não é justa nem injusta”562.

Esse momento instituinte é místico porque nele a própria linguagem

encontra-se com seu limite, ou seja, encontra-se com ela mesma, com seu poder

performativo ‘em pessoa’. Derrida utiliza-se da expressão ‘místico’, num sentido

que ele admite ser próximo à Wittgenstein, em referência a essa situação

paradoxal do puro performativo, da pura violência fundadora. Em suas palavras:

“Há um silêncio murado na estrutura violenta do ato fundador. Murado,

emparedado, porque este silêncio não é exterior à linguagem”. E é nesse sentido

que Derrida propõe interpretar (ativamente, visto que toda interpretação implica

em transformação) o comentário de Pascal, mas também o de Montaigne, quando

este último fala do ‘fundamento místico da autoridade’563.

Assim, mesmo que o ‘sucesso’ de um performativo possa ocasionar a

fundação de um Estado ou de um Direito (nacional ou internacional), a origem de

sua autoridade permanecerá uma violência sem fundamento. Ou melhor, nem

fundacionalista nem anti-fundacionalista, visto que ela excede ou antecede

qualquer oposição entre fundado e não-fundado, entre fundamentado ou não-

562 Derrida, Force de Loi, op. cit. pág. 33. 563 Na verdade, ressalta Derrida, Pascal foi influenciado por Montaigne, visto que, mesmo sem o nomear, cita a expressão ‘fundamento místico da autoridade’ que aparece numa passagem dos Essais onde Montaigne afirma: “Ora, as leis mantém-se críveis não porque elas são justas, mas porque elas são leis. É o fundamento místico de sua autoridade, elas não posuem nenhum outro (...) Quem lhes obedecer por elas serem justas, não as obedecerão justamente por onde se deve”. Montaigne, Essais, III, cap. XIII « De l´expérience », apud Derrida, Force de loi, op. cit. pág 29.

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220

fundamentado, legítimo ou ilegítimo. Mesmo se remetemos a fundação de um

direito à condições e convenções prévias, o mesmo argumento vale para tais

convenções, isto é, elas também nasceram de um momento ‘místico’, de um puro

performativo silencioso. E é exatamente por seu caráter ‘fundado’, ou seja,

construído sobre camadas performativas e interpretativas, que o direito e o estado

de direito são ‘desconstrutíveis’.

Tal momento místico é essencialmente um momento de aporia. Para

Derrida, esta é uma exigência da justiça, ou seja, a justiça exige a experiência da

aporia, do impossível, do místico. E a desconstrução encontra-se, desde sempre,

engajada nessa exigência, prometida (gagée) e comprometida (engagée) com essa

experiência do impossível que a justiça exige. É nesse sentido que Derrida falará

de um ‘engaje’, ou seja, de um compromisso prévio a que estamos todos

submetidos, uma vez que estamos desde sempre engajados na escritura, portanto,

submetidos à uma responsabilidade sem limites com e na linguagem e,

consequentemente, uma responsabilidade frente à justiça564.

Em Otobiographies, texto de uma conferência que Derrida pronunciou na

Universidade da Virgínia em 1976, a questão do ato fundador é trabalhada de

modo similar. Convidado a realizar uma análise ‘textual’ da Declaração de

Independência dos Estados Unidos e da Declaração dos direitos do homem que a

acompanha (tratava-se da comemoração do bicentenário de tais acontecimentos),

Derrida começa por perguntar: “Quem assina, e qual nome se diz próprio, no ato

declarativo que funda uma instituição”?565

Inicialmente, o que Derrida quer mostrar é que um ato dessa natureza, por

mais que se auto-nomeie uma “declaração”, ou seja, uma constatação ou

descrição, constitui, na verdade, uma performance. Ou melhor, que a confusão

entre constatativo e performativo surge aqui como uma confusão necessária. Um

ato fundador antes de declarar alguma coisa, realiza, faz aquilo que ele diz. Com

efeito, isso encontra-se implícito na sua estrutura intencional. Dessa forma, um tal

ato não pode ser classificado, de acordo com a teoria dos speech acts, como um

“constatativo”. Uma declaração que funda uma constituição ou um Estado requer

um signatário, requer que um sujeito (individual ou coletivo) se comprometa, se

564 Voltarei à questão do engaje na língua e da ‘hiper-política’ implicada na desconstrução na Parte 3. 565 Derrida, Otobiographies, pág. 16. Galilée, 1984-2005.

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221

engaje com sua assinatura. Assim, mesmo que uma instituição se desprenda dos

indivíduos empíricos envolvidos no ato de sua produção, mesmo que ela faça o

luto deles e os comemore (“os pais fundadores”), isso tudo ocorre em razão da

estrutura da linguagem instituidora. Ou seja, o ato fundador de uma instituição,

enquanto ato histórico arquivado e enquanto ato performativo, deve guardar em si

mesmo a assinatura.

Então, retorna a questão inicial: assinatura de quem precisamente? Ora,

sabemos que a Declaração de Independência norte-americana foi assinada pelos

“representantes dos Estados Unidos da América reunidos em Assembléia” e que o

responsável por redigir o esboço de tal documento foi Thomas Jefferson. Assim,

‘de fato’, são eles que assinam. No entanto, ‘de direito’, enquanto representantes

de todos os Estados norte-americanos, eles assinam por outros. Eles possuem a

delegação ou a procuração para assinar por outros. Com efeito, eles assinam “em

nome de...”. Diz a Declaração: “We, therefore, the representatives of the United

States of America in General Congress assembled, do in the name and by

authority of the good people of these that as free and independent States…”.

Desse modo, em direito e ‘de direito’, o signatário é o ‘povo’, mais

precisamente, o ‘bom povo’ que se declara livre e independente através de seus

representantes. E aqui nos deparamos com uma aporia: não podemos decidir qual

a força ou o golpe de força de um tal ato declarativo, ou seja, não temos elementos

para decidir se a independência é constatada ou produzida por esse anúncio. A

cadeia de representação nos escapa, pois não sabemos se o ‘bom povo’ que delega

a autoridade a seus representantes já é livre antes da Declaração. Não sabemos e

não temos condições de saber se ele é liberado no instante da e pela assinatura da

Declaração ou se somente através dela que ele se libera. Esta obscuridade, esta

indecidibilidade não é apenas um problema interpretativo, que poderia ser

resolvido através de uma consulta histórica. Ela é necessária para produzir o

‘golpe de força’. Como afirma Derrida: “A indecidibilidade entre a estrutura

constatativa e a estrutura performativa são requeridas (requises) para produzir o

efeito buscado. Elas são essenciais para a proposição de um direito como tal”566.

Assim, o ‘nós’ da Declaração fala em nome do povo, mas esse povo não

existe ainda. Ou, ao menos, ele não existe enquanto tal, antes da Declaração. Ele

566 Derrida, Otobiographies, op. cit. pág. 21.

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‘se dá à luz’ como povo livre e independente enquanto signatário. Sua assinatura

inventa o signatário, através de uma espécie de ‘retroatividade fabulosa’. Diz

Derrida: “Sua primeira assinatura o autoriza a assinar. Isto se produz todos os

dias, mas é fabuloso e eu penso, a cada vez, ao evocar esse tipo de evento, na

Fable de Francis Ponge: “Pela palavra pela começa este texto/ cuja primeira linha

diz a verdade...”567.

O poema Fable a que Derrida se refere produz o mesmo estranhamento da

contaminação entre performativo e constatativo que tem lugar em todo ato de

fundação. Ele é, ao mesmo tempo, um texto e um gesto que, ao falar de seu

começo no momento em que ele se dá, acolhe a confusão, a indecidibilidade.

Fable revela-se como um performativo que se surpreende enquanto tal e, narrando

a si mesmo, suspende a oposição organizadora da pragmática entre performativo e

constatativo e vigora no registro do impossível568.

Assim como o poema denuncia, o ato instituidor é um ‘golpe de força’ que

faz direito, funda o direito, ‘dá direito’, ou seja, institui o poder de assinar, mesmo

que antes da assinatura não existisse poder algum. Esse efeito auto-criador do

performativo, essa assinatura que abre um crédito de si mesma para si mesma,

esse evento fabuloso que passa desapercebido, é o que Derrida chama de ‘golpe

de escritura’. Através de tal evento, de um tal “vibrante ato de fé”569, uma

assinatura se dá um nome e ‘dá luz à lei’, ou seja, traz a lei à luz do dia (donne le

jour à la loi)570.

6.4

O tempo da différance

E o tempo verbal próprio de um tal ato (e que, para produzir os efeitos

jurídicos desejados, não deve ser mencionado nem levado em conta) é o futuro

anterior. O futuro anterior é o tempo verbal fabuloso que produz e garante a sua

própria realidade. Com efeito, o ‘futuro anterior’ (aura été ou ‘terá sido’) exprime

567« Par le mot par commence donc ce texte/ Dont la première ligne dit la vérité, Mais ce tain sous l´une et l´autre/ Peut-il être toléré? Cher lecteur déjà juges/Là de nos difficultés… (APRÈS sept ans de malheurs, Elle brisa son miroir) » apud Derrida, Otobiographies, op. cit. pág. 22 568 Cf. Continentino, Ana Maria. “Horizonte dissimétrico: onde se desenha a ética radical da desconstrução” in Duque-Estrada, Desconstrução e Ética, op. cit. pág. 138. 569 Derrida, Otobiographies, op. cit. pág. 27. 570 Derrida, Otobiographies, op. cit. pág. 23.

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223

um fato que se realizará (aura) no futuro, mas que é anterior a uma outra ação

também futura, mas que já se completou (été). Indica ainda probabilidade,

suposição ou afirmação atenuada. Na língua portuguesa (gramática brasileira)

equivaleria ao ‘futuro perfeito’. Ou seja, mais que uma previsão, uma promessa de

que algo se realizará no futuro, de que algo realizará sua plenitude, que algo será

perfeito. Mas como algo que ainda não ocorreu pode ser perfeito, como um futuro

pode ser anterior e perfeito de antemão?

Derrida faz menção a este tempo verbal em diversos textos, especialmente

em “A diferença”, onde ele aparece vinculado à questão do espaçamento e da

temporização (devenir-espace du temps et devenir-temps de l´espace571), ou seja,

à questão do intervalo que divide dinamicamente toda marca e que nos conduz ao

‘pensamento do rastro’. Também na Gramatologia, na seção intitulada “A

brisura”572, Derrida tenta pensar, através e para além de Husserl e Saussure, uma

articulação (brisura, brecha, fratura, fenda) entre tempo e espaço573, isto é, uma

escritura da diferença que seria a ‘origem’ da experiência do tempo e do espaço. É

no tecido de uma tal escritura, ou seja, no tecido do rastro que a diferença entre

tempo e espaço pode aparecer como tal na unidade de uma experiência.

A partir da distinção husserliana entre protensão e retenção, Derrida nos

lembra que, segundo Husserl, “o que se antecipa na protensão não desune o

presente da sua identidade a si”. É desse modo que Husserl ‘salva’ a presença

originária no instante absoluto da presença presente a si574. Mas o pensamento do

rastro nos obriga a pensar um passado ‘absoluto’, isto é, um passado que não se

deixa mais compreender sob a forma de uma presença modificada, como um

presente-passado. Escreve Derrida:

571 Derrida, “A diferença” in Margens da Filosofia, op. cit. pág. 45. 572 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 80. 573 “O espaçamento (notar-se-á que esta palavra afirma articulação do espaço e do tempo, o vir-a-ser espaço do tempo e o vir-a-ser tempo do espaço) é sempre o não-percebido, o não-presente e o não-consciente”. Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 83. 574 Derrida reconhece que Husserl complexifica a estrutura do tempo, submetendo-o à redução fenomenológica, mas conserva a sua homogeneidade e sucessividade fundamentais, visto que atém-se à evidência, à presença de um modelo linear, objetivo e mundano. “O agora B seria enquanto tal constituído pela retenção do agora A e pela protensão do agora C, apesar de todo jogo que se seguiria, do fato de que cada um dos três agora reproduz nele mesmo esta estrutura, este modelo de sucessividade proibiria que um agora X tomasse o lugar do agora A, por exemplo”. O modelo fenomenológico continua sendo, portanto, um modelo da consciência ou da presença enquanto presença a si na consciência. Desse modo, é inadmissível para Husserl o efeito de retardamento de que trata Freud através da noção de nachträglich, isto é, a questão do efeito retardado onde a ‘consciência’ apenas significa um acontecimento a posteriori. Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 82.

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“Ora, como passado sempre significou presente-passado, o passado absoluto que se retém no rastro não merece mais rigorosamente o nome de “passado” (...) os conceitos de presente, de passado e de futuro, tudo o que nos conceitos de tempo e de história deles supõe a evidência clássica – o conceito metafísico de tempo em geral – não pode descrever adequadamente a estrutura do rastro”575.

O rastro (ou a arquiescritura) enquanto espaçamento (já presente na fala

que Saussure tenta inutilmente distinguir da língua) não pode dar-se como tal, ou

seja, na experiência fenomenológica de uma presença. Aqui a desconstrução

ultrapassa a fenomenologia, visto que o pensamento do rastro não se confunde

com uma fenomenologia da escritura. Mesmo que Husserl e Saussure tenham

superado o mentalismo, mantiveram-se presos à identidade do próprio na presença

da relação a si. E a escritura não pode ser pensada sob a categoria do sujeito ou da

consciência, muito menos da presença a si. Segundo Derrida, “o espaçamento

como escritura é o vir-a-ser-ausente e o vir-a-ser-inconsciente do sujeito. Pelo

movimento de sua deriva, a emancipação do signo retro-constitui o desejo da

presença”576.

Nesse sentido, em Schibboleth, Derrida vincula o ‘futuro anterior’ à

estrutura paradoxal da repetição (que nunca é repetição do mesmo). Somete aquilo

que se acredita irrepetível, singular, único é que pode se abrir ao devir e, portanto,

pode se repetir. O devir é a abertura para o ‘outro’, ou seja, o imprevisível,

inesperado e incalculável. O ‘futuro anterior’ coloca em obra a memória que não é

um ‘passado’ enquanto ‘presente-passado’, mas um passado que nunca foi

‘presente’, cujo devir não será jamais uma repetição ou reprodução de uma

presença. Escreve Derrida: “Uma data resta sempre uma espécie de hipótese, o

suporte para um número indefinido de projeções da memória. A menor

indeterminação (o dia e o mês sem o ano, por exemplo) aumenta a chance, e as

probabilidades do futuro anterior. A data é um futuro anterior, ela dá ao tempo

seus aniversários futuros (à venir)”577.

Assim, a primeira característica do futuro anterior é sua ligação com a

estrutura geral da repetição. Mas uma repetição que não é nunca igual ao evento

anterior, pois este nunca foi presente, uma vez que é diferido na ‘origem’. A

575 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 84 576 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 84. 577 Derrida, Schibboleth, pág. 45 apud Paradis, Bruno. “Jocrisse et le future antérieur” in Le Passage des Frontières. Colloque de Cerisy, Galilée, Paris, 1994.

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225

repetição apenas relança o movimento, encadeia o círculo não totalizável do

tempo, de um tempo que não tem presente porque este já foi, desde sempre,

deportado para fora de si no tempo por vir que o constitui. Repetir é, assim, dar

lugar à estrutura da separação, do distanciamento que inscreve a divisão no

interior do evento. Assim, o tempo se constitui na sua relação imediata com a

separação que, por sua vez, nos inscreve já no futuro. É nesse sentido que Derrida

diz que o ‘eu’ não é senão uma cifra, uma data comemorativa daquilo que já ‘terá

sido destinado’ (aura été voué) ao esquecimento, destinado a devir nome, por um

tempo finito, o tempo de uma rosa, nome de nada, nome de pessoa: cinza578.

A idéia de um passado que não foi jamais presente está inscrito na

estrutura do rastro. Pensar a escritura exige pensar esse tempo quebrado,

descontínuo, diferido na ‘origem’. O futuro anterior é o tempo verbal dessa

estrutura paradoxal, desse movimento de torção pelo qual o futuro constitui o

passado a partir de um ato de inversão. Uma coisa não pode ser projetada para o

futuro (protensão fenomenológica) simplesmente porque ela não existe enquanto

tal; é a projeção que a constitui sob a forma do ‘terá sido’. A projeção seria então

a argola (da cadeia temporal) onde o futuro faz o tempo. Essa estrutura complexa

e que não consegue se expressar na linguagem metafísica é o espaçamento (devir

espaço do tempo e devir tempo do espaço) tal como inscrito no pensamento do

rastro.

Segundo Paradis, talvez esta estrutura já esteja indicada nas filosofias de

Heidegger, Bergson e Nietzsche579. No entanto, o futuro anterior inscrito no

pensamento derridiano tem um aspecto singular: a questão do devir absoluto do

outro. Escreve Derrida:

“No momento em que você se dirige ao outro, no momento em que você se abre ao futuro, no momento em que você tem uma experiência temporal de esperar pelo futuro, de esperar alguém chegar: essa é a abertura da experiência. Alguém está para chegar, está agora para chegar. Justiça e Paz deve ter algo a ver com essa chegada do outro, com essa promessa... A estrutura universal da promessa,

578 Derrida, Schibboleth, pág. 74 apud Paradis, “Jocrisse et le future antérieur”, op. cit. pág. 350. 579 Segundo Paradis, Bergson trabalhou profundamente a questão da repetição como pertencente à essência da memória. Já Nietzsche, em Assim falou Zaratustra, “As três metamorfoses” apresentou talvez um dos textos mais profundos sobre o tempo. E Heidegger escreveu : “Le phénomène primaire de la temporalité originaire et authentique est l´avenir ». Heidegger, Ser e Tempo, apud Paradis, “Jocrisse et le future antérieur”, op. cit. pág. 351.

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226

da expectativa com o futuro, com a chegada, e o fato de que essa expectativa tem a ver com a justiça – é isso o que chamo de estrutura messiânica”580.

Assim como o futuro de que fala Derrida não é o futuro programado,

agendado e esperado, o outro da experiência de abertura só pode ser um outro

imprevisível, inominável e que pode se antecipar sob a forma do perigo absoluto,

sob a forma de um monstro. Essa monstruosidade de que fala Derrida designa

exatamente a indecidibilidade estrutural de todo acontecimento, aquilo que

“rompe absolutamente com a normalidade constituída” e que, por isso, só pode se

apresentar sob a forma da monstruosidade. E, para esse porvir inominável, para

esse ‘futuro anterior’, diz Derrida, ainda não existe epígrafe581.

Tal é o desafio que impõe o pensamento do rastro ou do espaçamento

como escritura. O devir (ou a deriva) não é algo que sobrevém ao sujeito, algo que

ele poderia controlar, aceitar ou antecipar. Ele é a própria constituição da

subjetividade. É na abertura ao devir inesperado e incontrolável que o sujeito se

constitui. E esta ausência original do sujeito da escritura é também a ausência da

coisa (referente).

6.5

Différance e a língua da filosofia

A ‘virada lingüística’ derridiana mostra-se assim radical: a brisura (a fenda

ou a articulação entre espaço e tempo que se dá no tecido da escritura) marca a

impossibilidade do signo, ou seja, da unidade entre significado e significante

enquanto produção de uma presença presente a si na atualidade de uma ‘fala

plena’. Desse modo, a ‘virada’ da desconstrução não é em direção à linguagem,

entendida como conjunto de enunciados, proposições gramaticais ou sistema de

signos. A virada da desconstrução dá-se em direção ao rastro. Além de descolar o

sentido da referência (Frege) e desconstruir a noção de consciência transcendental

(Husserl), Derrida quebra a própria noção de signo e, portanto, de sentido. O que

resta do sentido é somente o rastro. Mas esse ‘resto’ não significa algo que sobrou

do sentido, ou seja, algum resquício da idealidade do conceito. O resto (restance)

580 Derrida, “Roundtable”, 23 apud Caputo, John. Deconstruction in a nutshell, pág. 156. Fordham University Press, New York, 1997. 581 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 6.

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de que fala Derrida é aquilo que sempre esteve lá, antes mesmo de qualquer

origem, mas que sempre permaneceu ocultado pelo desejo de presença que

domina a metafísica.

Mas o que a desconstrução nos revela é que, antes de qualquer presença ou

plenitude, antes de qualquer pensamento do ser (mesmo que o ser não seja ‘nada’,

como quer Heidegger) é preciso colocar a questão da différance, do rastro e da

escritura, ou seja, da ‘quebra originária’ do sentido. O jogo de presença-ausência

do rastro é a abertura originária que permite a exterioridade em geral, “a

enigmática relação do vivo com seu outro e de um dentro com um fora: o

espaçamento”582. Assim, é preciso pensar o rastro antes do ente. Não basta virar-

se para a linguagem e retirar o sujeito empírico do centro do pensamento, se a fala

plena e presente, ou seja, a identidade a si da consciência transcendental, enquanto

poder de reflexividade transparente, exaustiva e totalizante continua sendo a

referência última que garante a determinação do sentido e, portanto, a Verdade. Mas a Filosofia sempre se ‘auto’ definiu como o lugar da Verdade, como o

discurso por excelência da Verdade, com método próprio e com língua própria.

Mas Derrida não se cansa de questionar essa autoridade auto-instituída do

discurso filosófico. Afinal, o que garante sua especificidade? Existe uma forma,

um modo de composição que delimita rigorosamente o campo da Filosofia? E

uma questão como esta, que questiona a propriedade do discurso filosófico, seria

ela uma questão filosófica? Esta é a primeira aporia onde a desconstrução resta

(demeure). É nesse paradoxo da língua, da violência instituidora da língua, que

Derrida gosta de permanecer.

Nesse sentido, a pergunta que assombra a Filosofia, enquanto instituição,

disciplina, campo de saber, é a seguinte: qual a sua língua ‘própria’, ‘legítima’?

Em outros termos, quem tem o direito de determinar o que é a Filosofia ? A quem

pertence essa violência instituidora? Nesse sentido, não seria tarefa da filosofia,

talvez sua tarefa mais original, investigar seus limites, suas fronteiras, suas

exclusões? Aqueles que protestam contra tais questões, no intuito de proteger uma

certa autoridade institucional da Filosofia, não estariam, na verdade, atuando

contra a filosofia, enquanto o lugar do pensamento?

582 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 87.

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228

No entanto, a busca da língua própria da filosofia é um tema recorrente na

tradição metafísica ocidental. Podemos seguir seus traços desde muito cedo, mas é

especialmente na modernidade, com a consolidação dos novos domínios de poder

territorial, os chamados Estados-nação, que a questão da língua nacional e da

superioridade de um determinado povo se impôs enquanto tal.

Com efeito, a questão sobre a ‘língua privilegiada da filosofia’ surge na

forma de um paradoxo: se a filosofia se escreve numa língua particular, como

manter sua vocação universal? Nesse sentido, existiria uma língua mais propícia à

Filosofia? Uma língua cujo poder de evocação fizesse justiça à universalidade

inscrita na origem da Filosofia?

Uma vez que é impossível escapar à particularidade das línguas, podemos

reconhecer, na história da filosofia ocidental, algumas estratégias que se

impuseram na tentativa de resolver tal paradoxo. Segundo Marc Crépon, a

primeira delas é própria do expressivismo alemão que, como já salientamos,

consistiu na defesa, promoção e valorização do ‘patrimônio lingüístico’ da nação,

no caso, a nação alemã em vias de consolidação territorial. Certamente, uma das

construções filosóficas mais significativas a esse respeito é o “Discurso à Nação

Alemã” de Fichte.

Mas também o jovem Nietzsche lamentava que a língua alemã não fosse

adequadamente ensinada nos Liceus, o que comprometeria o destino da Alemanha

rumo à sua autenticidade cultural. A instrumentalização da cultura (seu

nivelamento para fins democráticos) se traduzia, para Nietzsche, em um

empobrecimento da língua, uma vez que esta era submetida a um mesmo estilo de

fala e escrita, suprimindo todas as suas potencialidades artísticas.

Nesse sentido, a missão do filósofo consistiria em se colocar à serviço da

arte e assim proteger a criação do espírito que se realiza na particularidade de um

povo eleito. E a língua alemã seria o suporte para o florescimento da cultura e do

povo alemão. No entanto, esse elemento autenticamente alemão precisa ser

formado, ele ainda não existe, ou seja, ele não se identifica com a cultura da

época, que não passa de uma imitação vulgar de culturas estrangeiras. E uma vez

que a língua resta como o último refúgio do espírito alemão autêntico, a sua

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229

sacralização consiste na última chance para que o verdadeiro espírito alemão se

encarne na civilização583.

Assim também Heidegger, em diversos textos, ressaltou a potência e

plasticidade da língua alemã como sendo a única capaz de realizar a experiência

filosófica originária, ou seja, aquela efetuada pelos gregos. Na Introdução à

Metafísica, escreve Heidegger: “O fato de a formação da gramática ocidental se

ter originado da reflexão dos gregos sobre a língua grega, confere-lhe toda a

importância. Pois a língua grega, medida pelas possibilidades do pensamento, é,

ao lado da alemã, a mais poderosa e a mais cheia de espírito”584. E é exatamente a

falta de reflexão sobre a língua, as traduções superficiais e a intermediação do

latim, os grandes responsáveis pelo declínio da cultura de seu tempo e, em última

análise, pelo esquecimento do Ser.

Nesse sentido, na Origem da Obra de Arte, escreve o filósofo alemão: “O

pensamento romano recebe os nomes gregos sem a correspondente experiência

original do que eles dizem, sem a palavra grega. O desenraizamento do

pensamento ocidental começa com essa tradução”585. E ainda, em Nietzsche II,

discorrendo sobre o uso da palavra ‘categoria’ por Arsitóteles, diz que esta

corresponde inteiramente “ao espírito lingüístico grego que, de toda maneira, é

implicitamente, filosófico-metafísico, de modo que assinala a língua grega sobre

todas as outras línguas, junto com o sânscrito e a língua alemã bem

preservada”586.

Dessa forma, segundo Heidegger, a língua alemã é, junto a grega, a língua

mais propícia à filosofia, visto que possui a qualidade da invenção, ou seja, a

capacidade de se traduzir no interior de si mesma. Escreve Heidegger:

“A história da palavra fundamental da filosofia antiga é um documento privilegiado que nos prova que a língua grega é filosófica ou, dito de outro modo, não que ela fosse investida de uma terminologia filosófica, mas filosofante ela mesma enquanto língua e configuração de língua. O grau de autenticidade de uma língua mede-se pela profundidade e potência da existência de um povo e de uma

583 Crépon, Marc. Les Promesses du Langage, cap. II. Vrin, Paris, 2001. O autor baseia-se sobretudo em Fragmentos de Nietzsche e segue na análise de seus textos maduros onde o filósofo empreenderá uma severa crítica ao nacionalismo, qualificado como um ‘desperdício de força vital’, como em Crepúsculo dos Ídolos e Gaia Ciência. 584 Heidegger, Introdução à Metafísica, op. cit. pág. 85. 585 Heidegger, A origem da Obra de Arte, pág. 16. Edições 70, trad. Maria da Conceição Costa, Lisboa, 1977. 586 Heidegger, Nietzsche II, O Niilismo europeu, Os valores supremos enquanto categorias, pág. 73, ed. Neske, 1961.

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raça que fala a língua e nela existe. Esse caráter de profundeza e de criatividade filosófica da língua grega, nós não a encontramos senão na nossa língua alemã”587.

Assim, para filosofar, existiriam línguas especiais, mais puras e potentes

que fazem com que determinada língua particular se desenvolva como língua

filosófica. E tal caráter excepcional não se reduz à língua, ela alcança o povo que

a fala, reservando a ele também um local de exceção na história. É o povo que

deve refletir e revelar a grandeza, a profundeza, o gênio de sua língua.

Apesar de ligeira diferença – Nietzsche propõe maior cuidado com a

língua alemã enquanto Heidegger estabelece uma hierarquia entre línguas – ambas

as estratégias apelam à idéia de pertencimento, de solo natal, enfim, da terra

prometida onde a nação encontrará a sua unidade. Nesse sentido, trata-se sempre

de Uma língua, idêntica a ela mesma, única e homogênea. Trata-se, no final das

contas, de uma essência, ou melhor, a língua escolhida é o instrumento

privilegiado da essencialização ou da substancialização de uma comunidade.

No entanto, Crépon ressalta uma outra estratégia para resolver o paradoxo

da particularidade das línguas frente à pretensão de universalidade da filosofia.

Tal estratégia escaparia à essencialização e aos fantasmas da apropriação, sempre

acompanhados de violência e opressão. O Nietzsche de Assim falou Zaratustra

seria o primeiro a apontar para a idéia de uma ‘outra língua’, uma língua vinda de

outro lugar e que seria nutrida de outras línguas e outras culturas. Na

impossibilidade de escrever em uma língua universal, a solução seria escrever

numa língua que não pertence a ninguém, uma língua que não pode ser controlada

nem assimilada por nenhuma cultura. Com efeito, ela colocaria em questão a idéia

mesma de cultura enquanto unidade identitária e homogênea. Desse modo, a obra

filosófica escrita e pensada no interior dessa língua singular seria um apelo, mas

também uma provocação à qualquer tentativa de tradução.

Mas para a desconstrução, não existe idioma puro, ou seja, não existe a

‘língua da filosofia’, nem puramente filosófica, nem autenticamente nacional.

Com efeito, este é o núcleo do que a desconstrução chama de logocentrismo. Uma

língua não é e nunca será um elemento natural passível de purificação e de

apropriação.

587 Heidegger, De l´essence de la liberté humaine, introduction à la philosophie, apud Crépon, Marc. Les promesses du langage, op. cit. pág. 21.

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O que a desconstrução revela, em última análise, é que não existe uma

escrita estritamente filosófica porque a língua é desde sempre contaminada. Como

nos lembra Derrida, “a filosofia se fala e se escreve numa língua natural”,

excetuando-se as tentativas recorrentes de formalização e universalização da

linguagem filosófica, cuja impossibilidade Wittgenstein, por exemplo, já

demonstrou ‘rigorosamente’. Portanto, é no interior de uma língua natural, nos

seus usos e abusos, que certos modos são impostos como filosóficos, que certas

metáforas são instituídas e certas teses são autorizadas. Mas esses modos, lembra

Derrida, são inseparávis do conteúdo das teses ditas filosóficas. Um debate

filosófico é também um combate pela imposição de certos modos discursivos, de

certos procedimentos demonstrativos, de certas técnicas retóricas e pedagógicas.

Mas isso não significa dizer que qualquer discurso é filosófico ou que não

existam certas convenções mais ou menos estáveis que determinem o uso de

termos e expressões filosóficas. Mas como nós não pensamos fora da língua,

então não pode haver pensamento independente da linguagem. No entanto, não se

pode estabelecer uma relação direta entre uma língua (nacional) e uma tradição

filosófica específica. Como lembra Derrida, se tomarmos a distinção entre a

tradição dita “continental” e a tradição “anglo-saxã” (ou analítica), veremos que

ambas compartilham diversas línguas nacionais. Assim, tanto a filosofia analítica

quanto a filosofia continental se escrevem em francês, alemão, italiano, espanhol,

português, inglês...

A “língua” filosófica (no sentido de código de determinada tradição) está

desde sempre engajada numa determinada língua natural, portanto, nacional.

Assim como a leitura de determinado autor ou texto é marcada pela tradução que

lhe é imposta, mesmo que esta tradução seja feita dentro da mesma língua

nacional. Nesse sentido, falamos em recepção francesa de Heidegger, no

Nietzsche de Heidegger, na recepção de Derrida nos Estados Unidos e etc. E,

também nesse sentido, torna-se absurdo falar em uma ‘filosofia brasileira’,

questão que geralmente vem à tona para marcar o nosso ‘atraso’ em relação a

outros países que já teriam construído a sua filosofia autêntica (!).

No entanto, uma das mais graves acusações feitas à desconstrução é

exatamente a de ‘reduzir’ a Filosofia à Literatura588, ou seja, misturar campos de

588 Tal é a crítica efetuada por Habermas no Discurso Filosófico da Modernidade, onde o “herdeiro da Escola de Frankfurt” escreve: “Derrida só pode atingir o objetivo heideggeriano de

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232

saber que foram delimitados há mais de 2 mil anos. Mas o que Derrida quer

revelar é que a dimensão literária ficcional participa de toda escrita filosófica,

assim também como não há literatura sem apelo a certos filosofemas. Com efeito,

a estrutura do ‘como se’ atravessa a linguagem de ponta a ponta e a filosofia dela

não escapa. O como se da literatura se impõe como a estrutura possibilitadora da

produção de textos, como o ponto de contato entre todos os discursos, base de

todos os campos de enunciação e que nos denuncia o caráter arbitrário da lei. Mas

esse caráter arbitrário não apenas impõe, como também permite que se continue

produzindo textos, que se continue produzindo juízos. A ficcionalidade participa

de todo discurso e isso não significa ‘rebaixar’ a Filosofia nem negar suas

especificidades. Significa apenas aplicar a ‘regra’ da ex-apropriação da língua, ou

seja, da impossibilidade de domínio pleno de uma ‘língua pura’.

Além disso, basta uma leitura atenta dos textos de Derrida para perceber

que a desconstrução não pretende misturar nada. Todos os textos são diferentes,

são singulares e devem ser tratados como tais. No entanto, a contaminação opera

desde sempre, antes mesmo do surgimento de algo como a ‘desconstrução’. E tal

contaminação estrutural é o ‘tema’ mesmo da desconstrução, esta é a ‘tese’ que

ela tenta demonstrar filosoficamente, mas também é o ‘meio’ através do qual ela

se realiza. Escreve Derrida:

“A explicitação entre “filosofia” e “literatura” não é somente um problema difícil que eu tento elaborar enquanto tal, mas é também aquilo que em meus textos toma a forma de uma escritura que, por não ser nem puramente literária nem puramente filosófica, tenta não sacrificar a atenção nem à demonstração e às teses nem à ficcionalidade e à poética da língua”589.

As “contradições” da escrita derridiana querem exatamente ressaltar o

paradoxo contido em todas as línguas, ou seja, o seu caráter desde sempre diferido

e, portanto, não plenamente presente. O que a desconstrução quer revelar

“performativamente” é a contradição anterior a qualquer “contradição

performativa”. A différance impõe uma contradição prévia, uma véspera que

explodir a partir de dentro as formas metafísicas de pensamento com base em um procedimento essencialmente retórico, se o texto filosófico for verdadeiramente um texto literário – se, em uma observação mais atenta, for possível mostrar que a diferença de gênero entre filosofia e literatura se dissolve”. Habermas, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade, pág. 266. Martins Fontes, São Paulo, 2000. 589 Derrida, «Y a-t-il une langue philosophique? » In Points de suspension, pág 232, Galilée, 1992.

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233

possibilita toda e qualquer contradição lingüística, todo e qualquer mal

entendimento (misunderstanding) ou má leitura (misreading).

E isto porque toda e qualquer língua apresenta uma “estrutura universal

que reflete uma espécie de alienação originária que institui toda língua como

língua do outro”. Perante a língua, somos todos herdeiros, todos portadores de

uma herança que é um segredo e, mesmo lançados nessa indeterminação,

responsáveis por sua conservação e disseminação. Mas não possuímos nenhuma

língua, apenas respondemos ao movimento da escritura. Nesse sentido, escreve

Paulo César Duque-Estrada:

“Tudo isto se faz sob a força de uma promessa. Uma promessa de que tudo isso, diante do que nos encontramos e somos responsáveis, venha a se realizar como tal. Mas, agora sabemos, tudo isso é apenas prometido, pois a linguagem não pode jamais cumprir a sua promessa de presentificar e preservar todas as coisas para as quais ela aponta. Promessa trágica, sem dúvida, na qual consumimos nossas vidas, responsabilizando-nos por aquilo que está por vir, a linguagem é sempre e já essa promessa, mas que jamais virá. Mas isso, afinal, é o que sempre ocorre, e não apenas no chamado pensamento desconstrucionista”590.

6.6

O caráter ex-apropriativo da língua

Derrida enfrenta este paradoxo da língua ‘própria’ inapropriável no texto

O monolingüismo do outro, onde tal problema é identificado, antes de tudo, como

um combate político de primeira grandeza. Com efeito, falar da língua materna

implica falar em nascimento pelo solo, de nascimento pelo sangue e das relações

entre o nascimento, a língua, a cultura, a nacionalidade e a cidadania. Nesse

sentido, conservar, cultivar, cuidar e salvaguardar uma língua contra ameaças

internas ou externas redunda sempre em uma ‘política da língua’ que exige, por

sua vez, uma ‘apropriação da língua’. Exige, em outros termos, fazer da língua a

propriedade de uma determinada comunidade, o sinal de sua singularidade

cultural e a marca distintiva que a diferencia de todas as demais. Falando

diretamente: a língua própria é a pedra de toque da identificação coletiva de um

povo/nação.

590 Duque-Estrada. “Alteridade, Violência e Justiça: Trilhas da desconstrução” in Duque-Estrada, Desconstrução e Ética, op. cit. pág. 33.

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234

Assim, para além da época da afirmação do Estado-nação, a cada vez que

um país acredita que sua identidade está ameaçada, a cada vez que sua posição

estratégica lhe parece comprometida, a questão da apropriação da língua como

língua própria reaparece com força total. Seja na forma do patriotismo mais

inflamado, seja na forma do discurso da descolonização, todas as ideologias

nacionalistas repousam sobre três pressupostos não problematizados:

1) que uma tal apropriação é possível e necessária, ou seja, um

determinado povo pode e deve se colocar a tarefa de ser o ‘mestre de sua língua’,

o que implica em encontrar uma identidade comum que lhe permita responder à

questão: quem somos nós?

2) desse modo, tudo o que nessa mestria da língua seja imposto ou forçado

deve ser ocultado. Assim, a língua é erigida ao critério último de identificação e

sua apropriação em signo de pertencimento, mas o caráter obrigatório (estatal,

institucional, curricular) de tal pertencimento não é nunca colocado em questão. A

língua é considerada como única e idêntica em si mesma, não sendo permitida, no

interior das fronteiras nacionais, nenhuma concorrência a sua supremacia.

3) o que faz da língua o objeto de tal identificação e apropriação é que ela

é o suporte primordial de uma cultura também idêntica a si mesma e homogênea.

Desse modo, ameaçar a língua significa ameaçar a integridade cultural da qual ela

é o suporte.

São esses pressupostos ocultos e não questionados que a desconstrução

pretende problematizar. E Derrida se lança em tal tarefa através da reflexão da sua

situação singular de pertencimento à língua francesa, a única que possui, mas que,

na verdade, não lhe pertence. Assim, sua reflexão fará sempre referência à relação

particular que mantém com o francês e, sobretudo, com todas as violências e

discriminações sofridas por um judeu argelino, um legítimo ‘pied-noir’, situado na

fronteira, no entrecruzamento das culturas judaica, francesa e árabe ou berbere.

Escreve Derrida: “Ora jamais esta língua, a única que assim estou votado a falar,

enquanto falar me for possível, e em vida e na morte, jamais esta língua única,

estás a ver, virá a ser minha. Nunca na verdade o foi”591.

O francês sempre foi, para Derrida, uma língua recebida, uma língua vinda

de fora, da metrópole, de onde retirava seu caráter de nobreza, de onde provinham

591 Derrida, O monolingüismo do outro ou a Prótese de Origem, pág. 14. Tradução de Fernanda Bernardo, Ed. Campo das Letras, Porto, 2001.

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235

as regras do bem falar e do bem escrever. Com efeito, o francês nunca foi a sua

língua materna ou, nas suas palavras:

“Porque eu nunca pude chamar ao francês, esta língua em que te falo, ‘a minha língua materna’. Estas palavras não me vêm à língua, não me saem da boca. Dos outros, ‘a minha língua materna’. Eis a minha cultura, ela ensinou-me os desastres em direção aos quais uma invocação encantatória da língua materna precipitou os homens. A minha cultura foi imediatamente política”592.

A visada auto-biográfica que Derrida imprime na sua análise da ‘língua

materna’ não se reduz, contudo, a uma auto-biografia. Com efeito, ela pretende

nos remeter à desconstrução da língua como propriedade, da língua como algo

passível de apropriação. Ela nos revela a questão política implícita em toda

exigência de identificação lingüística e cultural. A experiência vivida por Derrida

é paradigmática dessa situação de não-apropriação. Enquanto judeu argelino, não

teve acesso à língua nem à cultura árabe. Também não dispunha de nenhum

idioma interior à comunidade judaica, como o yiddisch, que poderia constituir a

sua língua familiar. E o francês nunca foi efetivamente a sua língua ´própria’.

Desse modo, no interior dessa tripla dissociação, foi impossível para ele manter a

relação ‘natural’ entre língua e pertencimento, ou seja, o francês nunca foi nem

sua língua local, nem familiar, muito menos ‘própria’. Ela era, simplesmente, a

língua oficial, a língua materna dos outros, ‘deles’, os habitantes da metrópole ou,

como escreve Derrida: “a Cidade-capital-Mãe-Pátria. Dizia-se por vezes a França,

mas na maioria das vezes a Metrópole, pelo menos na língua oficial, na retórica

imposta dos discursos, dos jornais, da escola”593.

Daí a impossibilidade de utilizar o francês para dizer ‘nós’. E daí também

a explicação para a aparente contradição da enigmática frase que se repete de

ponta a ponta no texto Monolingüismo:

“Sim, eu não tenho senão uma língua, ora ela não é minha”594.

Entretanto, esta declaração não se aplica somente a Derrida e aos judeus

argelinos submetidos a tal situação histórica. Com efeito, esta afirmação tem

592 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 49 593 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 58 594 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 15

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validade geral e irrestrita e nos ajuda a desconstruir os três pressupostos acima

mencionados: de que uma língua é única e idêntica a si mesma, de que ela é o

suporte da identificação cultural e que, portanto, uma cultura também é algo único

e idêntico a si. A impossibilidade de apropriação e de pertencimento a uma língua

é, portanto, um caráter universal, mesmo para alguém que viveu toda sua vida no

interior da ‘mesma’ cultura. Faz parte da essência da língua não se deixar

apropriar, não se deixar possuir e, por esta razão mesma, provocar toda sorte de

movimento de apropriação.

E isto porque pertencer a uma língua não é algo natural, mas sim o produto

de uma certa educação, de determinadas imposições curriculares, escolares e

sociais. Uma língua se impõe ao falante e, no interior dela, somos todos

estrangeiros. Assim, é preciso pensar de modo inverso: uma língua não é uma

propriedade natural que exige fidelidade a seu modo próprio de ser, sob pena de

traição à língua e à comunidade que ela revela, mas, ao contrário, é porque há uma

lei, uma imposição (social, cultural, colonial ou de qualquer outra ordem) que a

língua é erigida ao papel de uma propriedade natural, ‘maternal’. É por isso que o

meu monolingüismo é sempre um monolingüismo do outro. Escreve Derrida:

“O monolingüismo do outro seria em primeiro lugar esta soberania, esta lei vinda de alhures, sem dúvida, mas também e em primeiro lugar a própia língua da Lei. E a Lei como Língua. A sua experiência seria aparentemente autônoma, porque tenho de a falar, a esta língua, e de a apropriar para a ouvir como se eu próprio me desse essa língua; mas ela permanece necessariamente, assim o quer no fundo a essência de toda a lei, heterônoma”595.

Uma vez que a língua é erigida ao papel de suporte primordial da

identificação cultural, e a exigência de apropriação e domínio de uma língua (e da

cultura correspondente) nunca pode ser plenamente satisfeita, então, as línguas

aparecem como propriedades sempre ameaçadas. É por isso que, fazer da língua

um elemento natural que deve ser apropriado, acaba por impor reiteradamente a

sua reapropriação, como se todo defeito de apropriação fosse ameaçar a sua

integridade. Ao compreender esse caráter inapropriável das línguas, fica mais fácil

entender porque os nacionalismos são sempre focalizados na língua e na sua

proteção e salvaguarda. Mas a língua é algo que não cessaremos jamais de tentar

apropriar e de falhar nessa tentativa. Como coloca Derrida: “Nunca há

595 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 56.

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apropriação ou reapropriação absolutas. Uma vez que não existe propriedade

natural da língua, esta não dá lugar senão à raiva apropriadora, ao ciúme sem

apropriação”596.

Nesse sentido, o caráter não-apropriável de uma língua atinge tanto a

língua do dominado (situações de alienação “colonial” ou de sujeições históricas)

como do dominador (língua do senhor ou do colono). Mesmo o senhor mais

poderoso não pode se apropriar de uma língua porque ela nunca será um ‘bem

natural’, por mais que ele acredite que a domine e queira obrigar os outros a

partilhá-la. E, por isso, apesar daquilo que consideramos evidente, diz Derrida: “O

senhor não é nada. E não tem nada de próprio”597. E, inversamente, o colonizado

também não possui língua ‘própria’ que teria sido oprimida pelo domínio colonial.

A questão do colonialismo não é, portanto, algo simples que possa ser resolvida

de forma maniqueísta. E a desconstrução não ameniza sua complexidade. Escreve

Derrida:

“Qualquer cultura é originalmente colonial (...) Toda cultura se institui pela imposição unilateral de alguma “política” da língua. A magistralidade começa pelo poder de nomear, de impor e legitimar as designações. Esta imposição pode ser aberta, legal, armada ou manhosa, dissimulada através dos álibis do humanismo “universal”, por vezes da hospitalidade mais generosa. Segue ou precede a cultura como sua sombra”598.

Uma vez que a língua é considerada o meio inconteste de uma identidade

cultural ou nacional, ou melhor, uma vez que é a língua mesmo que permite que

uma cultura seja considerada enquanto tal, a sua alienação irredutível e a sua

impossibilidade de apropriação conduz à impossibilidade de qualquer identidade

cultural, seja ela do colonizador ou do colonizado. No entanto, a primeira

estratégia de todo poder é exatamente mascarar essa ‘alienação originária’ e falar

‘em nome de’ sua cultura, seu povo, sua identidade. E a questão da identidade

sempre foi, mesmo que de modo oblíquo, a grande questão da desconstrução.

Assim, apesar de ser o filósofo da différance, Derrida afirma:

“A nossa questão é sempre a identidade. O que é a identidade, conceito de que a transparente identidade a si é sempre dogmaticamente pressuposta por tantos

596 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 38. 597 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 37. 598 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 55

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debates sobre o monoculturalismo ou sobre o multiculturalismo, sobre a nacionalidade, a cidadania, a pertença em geral? E antes da identidade do sujeito, o que é a ipseidade? Esta não se reduz a uma capacidade abstrata para dizer “eu”, que terá sempre precedido. Significa talvez, em primeiro lugar, o poder de um “eu posso”, mais originário do que o “eu”, numa cadeia em que o “pse” de ipse não se deixa mais dissociar do poder, do domínio ou da soberania do hospes”599.

Com efeito, o que Derrida pretende mostrar é a estrutura universalmente

violenta da linguagem que está presente tanto no discurso do dominador quanto

do dominado. Por isso, Derrida é reiteradamente acusado de dissolver as

diferenças e cair num niilismo vazio. No entanto, como venho tentando mostrar,

Derrida está, na verdade, à busca de uma filosofia séria e sem álibis. Em suas

palavras:

“Não se trata de apagar assim a especificidade arrogante ou a brutalidade traumatizante do que se chama a guerra colonial moderna e ‘propriamente dita’, no próprio momento da conquista militar ou quando a conquista simbólica prolonga a guerra por outras vias. Pelo contrário. Da crueldade colonial, alguns, como eu, fizeram a experiência dos dois lados, se se pode dizer. Mas, ainda nisso, ela revela sempre exemplarmente a estrutura colonial de toda a cultura”600.

Além disso, a ‘alienação originária’ que constitui todas as línguas não

remete a algo que falte, ou seja, “não aliena nenhuma ipseidade, nenhuma

propriedade, nenhum si que tenha alguma vez podido representar a sua

véspera”601. A estrutura de suplemento da língua, que já está presente na

linguagem falada, interdita a priori qualquer pureza ou essência da língua e,

consequentemente, de qualquer cultura. Por isso, longe de dissolver as

especificidades das situações de opressão lingüística ou de expropriação colonial,

Derrida pretende realizar uma “universalização prudente e diferenciada” da

questão da língua e de sua impossibilidade de apropriação. Esta seria a única

possibilidade de “determinar uma sujeição e uma hegemonia” e mesmo um “terror

nas línguas”602.

Por isso, a desconstrução nos lembra que não existe uma língua ‘própria’

da filosofia, assim como não existe uma língua dos opressores em oposição à uma

língua dos oprimidos. Toda língua é colonizadora: promete trazer à presença o

599 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 27. 600 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 55-56. 601 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 40. 602 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 37.

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sentido, o querer-dizer original, o conteúdo essencial. Mas sempre falha, sempre

acaba por criar hierarquias, por reprimir a escritura e oprimir diferenças. Por isso,

todo discurso é desconstrutível e todo discurso deve ser desconstruído.

6.7

As promessas da escritura

Apesar das diferenças entre as diversas estratégias de apropriação,

reapropriação e ‘ex-apropriação’ de uma língua, uma questão que perpassa todas

as tentativas de entender nossa relação com a língua é a relação com o tempo.

Com efeito, elas colocam em evidência uma espera, nem sempre a mesma, mas

uma espera marcada por uma promessa e uma esperança. Das línguas, nas línguas

e com elas, alguma coisa é esperada. Talvez essa promessa de futuro seja a

explicação para a obsessão que tantos filósofos nutrem por sua língua, por sua

preservação e desenvolvimento. Mas quem espera? Quem é o nós que espera? E o

quê exatamente se espera?

Tais questões nos levam à conclusão de que o problema político do

pertencimento, da identidade e da identificação cultural encontra-se subsumido

em uma questão ainda maior e mais complexa, a saber: a questão do devir, do

futuro, daquilo que nos espera e daquilo que podemos esperar. A reflexão sobre a

linguagem, para além de sua função de representação e de comunicação, nos

remete ao futuro, seja ele entendido como anúncio, profecia, programa ou

declaração apocalíptica. Nesse sentido, ela nos remete à nossa relação com a

língua particular a qual supostamente pertencemos, mas que na verdade, não nos

pertence. Nosso modo de utilização dessa língua nos remete àquilo que ela pode

nos trazer: queda, miséria, corrupção, catástrofe ou esperança e abertura ao devir.

E essa dimensão de abertura presente na linguagem e em todas as línguas

particulares é o que Derrida denomina de dimensão messiânica. Escreve Derrida:

“Uma estrutura imanente de promessa ou de desejo, uma espera sem horizonte de espera informa toda a palavra. A partir do momento em que falo, antes mesmo de formular uma promessa, uma esperança ou um desejo como tais, e aí onde ainda não sei o que vai me acontecer ou o que me espera no fim de uma frase, nem quem, nem o que espera quem ou o quê, já estou nesta promessa ou nesta ameaça

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– que reúne desde então a língua, a língua prometida ou ameaçada, prometedora até na ameaça e vice-versa, assim reunida na sua própria disseminação”603.

Desse modo, a desconstrução rejeita a noção de ‘salvação pela língua’.

Tendo em vista seu caráter inapropriável, então não há mais nada a esperar da

língua, ela não pode nos fornecer nenhum salvação. Mas então, resta a pergunta:

por que continuar a falar, por que escrever textos? E a resposta da desconstrução

só pode aparecer se colocarmos em dúvida uma dupla certeza: a de que falamos a

mesma língua e de que, por isso, podemos dominá-la. Desse modo, resta a Derrida

uma frase no imperativo: “Inventa pois na tua língua se fores capaz ou se quiseres

ouvir a minha, inventa se podes ou queres dá-la a ouvir, a minha língua, como

tua!”604.

E inventar uma língua importa, em primeiro lugar, transformar a demanda

que fazemos a ela, mudar o modo de aproximação a ela. Ou seja, não mais exigir

que ela seja um signo de pertencimento, mas sim que ela nos ajude a escapar das

armadilhas da apropriação e da identificação. Inventar uma língua significa, acima

de tudo, se dar, nela e com ela, o meio de jamais ser nem colonizado nem

colonizador do outro. Em uma palavra: desconstruir.

Mas ainda resta perguntar: a quem se endereça essa demanda? E de qual

língua se trata? Certamente, não é a língua do outro nem uma outra língua. Com

efeito, é uma língua que ainda não existe, é uma ‘língua prometida’, uma ‘ante-

primeira-língua’, uma língua sem língua originária, ou seja, sem língua de partida.

Para este que escreve nesta língua disseminante, para este monolingue ou

desconstrutor não existem senão línguas de chegada, ou melhor, “línguas que não

chegam a chegar, uma vez que não sabem mais de onde partem, a partir de onde

falam, e qual é o sentido de seu trajeto. Línguas sem itinerário (...)”605.

Esta ‘anteprimeira língua’ só aparece na tradução, ou seja, na deformação

da língua do outro que tem lugar no momento em que a forçamos, em que a

fazemos suportar transformações tais que ela não pode mais ser língua de

ninguém, no momento em que a desapropriamos de sua ‘pseudo’ propriedade.

Trata-se, portanto, de uma desapropriação da língua por ela mesma, de uma língua

que escapa à qualquer tentativa de apropriação, enfim, tarta-se de uma écriture.

603 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 36. 604 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 89. 605 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 93.

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No entanto, lembra Derrida, isso não significa que ele cultive o ‘intraduzível’.

Com efeito, “nada é intraduzível desde que se gaste o tempo necessário ou a

expansão de um discurso competente que se meça ao poder do original. Mas

‘intraduzível’ permanece – deve permanecer, diz-me a minha lei – a economia

poética do idioma, daquele que realmente me importa (...)”606.

No momento em que se renuncia à equivalência econômica entre as

línguas, ou seja, quando desistimos de tentar restituir o acontecimento singular do

original, algo que seria mesmo estritamente impossível, “pode-se traduzir tudo”.

Desse modo, escreve Derrida, sempre fiel à sua écriture: “Nada é intraduzível

num sentido, mas num outro sentido tudo é intraduzível, a tradução é outro nome

do impossível” 607.

Nesse sentido, contrariamente ao que se acredita ser a tarefa do escritor,

qual seja, a de reapropriar a língua, de assegurar a sua guarda e desenvolvimento,

em nome da comunidade que supostamente a possui, o trabalho da écriture é de

resistir à homogeinização, de não se deixar submeter à lei de um solo ou de uma

comunidade, de manter aberta todas as suas possibilidades de invenção e

transformação. Mas como escapar da fúria apropriativa? Como escrever sem se

render à idéia de promessa tal como pressuposta pela sacralização da língua

materna? Em outras palavras, como ainda falar em promessa (mesmo que sem

horizonte de espera) sem se referir à uma determinada comunidade ou civilização,

por exemplo, a ocidental? Afinal, o que promete a écriture?

É extamente pela impossibilidade de garantir que a écriture escapará a

todos esses riscos, exatamente por admitir que a écriture está sujeita ao risco da

promessa, que Derrida faz questão de escrever: “A promessa de que falo, esta

singular promessa não liberta nem entrega aqui qualquer conteúdo messiânico ou

escatológico”608. Com efeito, a promessa de que fala Derrida acontece com a

língua, é um evento interior à língua enquanto tal. É aquilo que chega à língua e a

desapropria, ou seja, aquilo que nos mostra a sua não pertença, a sua disseminação

e a impossibilidade de sua apropriação. É uma memória daquilo que não teve

lugar, uma genealogia do que não aconteceu, cujo acontecimento apenas deixou

606 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 88. 607 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 88. 608 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 101.

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rastros. Uma língua de porvir, uma língua prometida, uma língua do outro. E é

sobre essa falta imemorial que a écriture escreve. Nas palavras de Derrida:

“Como se não existissem senão chegadas, logo acontecimentos, sem chegada. A partir dessas únicas “chegadas”, a partir dessas chegadas únicas, surge o desejo; ele surge antes mesmo da ipseidade de um eu-mim que antecipadamente o transportaria (...); ele surge, erige-se mesmo como desejo de reconstituir, de restaurar, mas na verdade de inventar uma primeira língua que seria antes uma ante-primeira língua destinada a traduzir esta memória. Mas a traduzir a memória do que justamente não teve lugar, do que, tendo sido (o) interdito, deve, ao menos, ter deixado um rastro, um espectro, o corpo fantasmático, o membro-fantasma – sensível, doloroso, mas à justa legível –, rastros, marcas, cicatrizes. Como se se tratasse de produzir, confessando-a, a verdade do que nunca teve lugar. O que será então essa confissão? E a falta imemorial ou o atraso originário a partir dos quais é preciso escrever?”609.

É preciso escrever sobre essa falta, sobre esta promessa sem conteúdo

presente na tradução ‘intraduzível’ de que fala Derrida. E essa necessidade pode

ser traduzida em muitas línguas porque o “há a língua que não existe” exige que

uma língua seja sempre chamada a falar da língua, exatamente porque esta não

existe610. Assim, diz Derrida: “Compete sempre a uma língua apelar à abertura

heterológica que lhe permite falar de outra coisa e de se endereçar ao outro”. Para

pensar essa tradução impossível é preciso que eventos cheguem à língua, isto é,

que cheguem nos dois sentidos do termo chegada, ou seja: que se aproximem da

língua sem, contudo, deixar-se apropriar por ela, sem se render à ela, mas, ao

mesmo tempo, fazendo com que a escritura poética chegue, isto é, que seja um

evento que marca a língua611.

Assim, o que fazem as poéticas de Ponge, Celan, Novalis ou Heidegger

(para Derrida, podemos confiar o monolingüismo do outro a outras invenções,

outras poéticas, ao infinito), é escrever uma língua prometida (nesse caso, um

idioma para Derrida), uma língua do outro, mas não imposta pelo outro. A língua

do outro não é a língua do senhor nem a língua do colono. No entanto, a

anteprimeira língua pode sempre correr o risco de se tornar ou de querer ser ainda

uma língua do mestre, por vezes a de novos mestres. É por isso que a ex-

apropriação da língua deve ser lembrada a cada instante da escrita ou da leitura.

609 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 93 610 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 102. 611 Derrida, “La langue n´appartient pas” apud Crépon, Les promesses du langage, op. cit. pág. 191.

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Essa é a postura vigilante e eminentemente política que a desconstrução exige:

manter-se sempre alerta para não deixar o desejo de domínio da língua (da cultura

autêntica, do ‘querer-dizer’ do texto, da interpretação ‘fiel’, etc.) transformar o

‘idioma’ em língua do mestre.

Com efeito, Derrida reserva a palavra ‘idioma’ para marcar essa língua

que vem do outro, sem contudo ser imposta por ele. Uma língua onde a assinatura

de seu inventor/tradutor não marca uma propriedade porque ele sabe que é

impossível a sua apropriação, uma vez que ela nunca será a propriedade de

ninguém, visto que ela é e sempre permanecerá do outro. Nas palavras de Derrida:

“É a cada instante da escrita ou da leitura, em cada momento da experiência poética que a decisão deve tomar-se sobre um fundo de indecidível. É muitas vezes uma decisão política – e quanto ao político. O indecidível, condição da decisão assim como da responsabilidade, inscreve a ameaça na sorte, e o terror na ipseidade do hóspede”612.

Assim, vários poetas-tradutores podem ser tomados como exemplo do

monolingüismo do outro, de uma língua ‘indecidível’ que nos remete para a

língua ela mesma, para sua messianicidade estrutural, sem conteúdo nem

orientação. “Como o anteprimeiro tempo da língua pré-originária não existe, é

preciso inventá-lo. Injunções, intimações a uma outra escrita. Mas que sobretudo é

preciso escrever no interior, se se pode dizer, das línguas. É preciso apelar a

escrita para dentro da língua dada”613. Uma tradução no interior da língua, um

estranhamento na língua, impedindo a transparência da repetição.

A situação dos escritores magrebinos francófonos também nos remete para

essa estrutura universal que Derrida chama de ‘alienação originária’ ou ‘ex-

apropriação’ da língua. Escreve Derrida:

“Apesar das aparências, esta situação excepcional é ao mesmo tempo exemplar, sem dúvida, de uma estrutura universal; representa ou reflete uma espécie de ‘alienação’ originária que institui toda língua como língua do outro: a impossível propriedade de uma língua. Mas isso não deve conduzir a uma espécie de neutralização das diferenças (...) Pelo contrário, é justamente isso que permite re-politizar a questão. Aí onde a propriedade natural não existe, nem o direito de propriedade em geral, aí onde se reconhece esta des-apropriação, é possível e torna-se mais necessário do que nunca identificar, às vezes para os combater, movimentos, fantasmas, ‘ideologias’, ‘fetichizações’ e simbólicas da apropriação.

612 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 94. 613 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 96

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Uma tal advertência permite ao mesmo tempo analisar os fenômenos históricos de apropriação e de os tratar politicamente, evitando em particular a reconstituição do que estes fantasmas puderam motivar: agressões nacionalistas (sempre mais ou menos naturalistas) ou homo-hegemonia monoculturalista”614.

É nesse sentido que, ao enfatizar a ambigüidade estrutural de toda língua e

a impossibilidade de dominá-la, Derrida está nos alertando para o fato de que a

língua, apesar da nossa presunção de domínio, é sempre do outro, sempre

estrangeira. A língua que chamamos de própria não nos pertence, não pode ser

apropriada ou purificada. Estamos desde sempre engajados numa determinada

língua, mas não a habitamos tranquilamente. Como escreve Derrida: “A língua

dita materna nunca é puramente natural, nem própria nem habitável. Habitar, eis

um valor bastante desorientador e equívoco: não se habita nunca o que estamos

habituados a chamar habitar. Não existe habitat possível sem a diferença deste

exílio e desta nostalgia”615.

É por isso que a primeira e ineliminável violência é uma violência da

língua que me obriga a falar um determinado idioma, que me obriga a assimilar e

me apropriar de uma língua que é sempre do outro, daquele que está antes, perante

e depois de mim. Já uma segunda violência, mais explícita, consiste, sobretudo,

em forçar o outro, o estrangeiro, a falar determinada língua para se fazer bem

compreender no interior da cultura em que as leis que o acolhe estão colocadas. É

nesse sentido que, mesmo as leis de hospitalidade que, teoricamente, protegem o

estrangeiro, dão testemunho da violência da língua.

Com efeito, um estrangeiro deve, antes de tudo, se fazer compreender na

língua do outro, seus direitos e deveres encontram-se subscritos numa língua que,

por definição, não é a sua. Mas se ele quer ser acolhido, se ele pretende que a

‘justiça seja feita’, então, antes de tudo, ele deve se submeter à violência da

língua. Com efeito, escreve Derrida:

“O estrangeiro é, antes de tudo, estranho à língua do direito na qual está formulado o dever de hospitalidade, o direito ao asilo, seus limites, suas normas, sua polícia, etc. Ele deve pedir a hospitalidade numa língua que, por definição, não é a sua, aquela imposta pelo dono da casa, o hospedeiro, o rei, o senhor, o poder, a nação, o Estado, o pai, etc.”616.

614 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 96. 615 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 90. 616 Derrida, Da hospitalidade, pág. 15. Ed. Escuta, São Paulo, 2003.

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Mesmo não podendo ser definido como estrangeiro, no início de seu

discurso frente aos juízes atenienses617, Sócrates se coloca no lugar de um

estrangeiro, ou seja, desempenha o papel de estrangeiro, age como se fosse um

estrangeiro, apesar de dominar perfeitamente a língua grega. No entanto, ele

declara-se “estrangeiro” ao discurso do tribunal, estrangeiro dentro da sua própria

língua porque não sabe falar a linguagem da pretória, a retórica do direito, da

acusação e da defesa. A sua ‘língua’ é outra, aquela da Verdade, da dialética, da

Filosofia. Nesse sentido, ele é como um estrangeiro acusado numa língua que ele

diz não falar, um acusado que deve se justificar na língua do outro.

E aqui se encontra o fenômeno singular dessa ‘tradução intraduzível’. Uma

tradução que se dá no interior da língua, na relação a si da língua, na sua auto-

afecção, mas que exige, contudo, um exterior absoluto, ou seja, uma zona fora da

lei, uma absolutamente outra anteprimeira língua que deixa a sua marca

fantasmática na dita monolíngua. Esta tradução interna de uma língua que ainda

não existe, e que nunca terá existido, joga com a não-identidade a si de toda

língua. E é por isso que Derrida afirma: “Uma língua não existe”, e mesmo o

monolingüismo de que fala não faz um consigo mesmo. E é no interior dessa

indecidibilidade estrutural, desse sistema que se reconstitui permanentemente e

que permanece aberto a transformações, deformações e expropriações, que a

desconstrução acontece. E, embora esse gesto seja sempre múltiplo, Derrida

chama-o de écriture. E a promessa dessa écriture é a de tentar afetar a

monolíngua, deixar nela marcas que lembrem esta língua absolutamente outra,

esta anteprimeira língua que ainda não existe e que nunca nos pertencerá porque

está destinada ao outro.

Nesse sentido, para a desconstrução, as ameaças à língua são outras. A

banalização, o empobrecimento e a decadência das línguas, tão lamentadas pelos

discursos tradicionais sobre a língua, não são uma consequência da apropriação

inautêntica. Ao contrário, as ameaças à língua provém exatamente da crença de

que é possível apropriá-la, de que ela deve permanecer fechada ao outro,

resguardada de quaisquer interferências, sobretudo externas. Mas, enquanto língua

prometida, enquanto idioma aberto ao devir e contaminado pelo outro, ela

permanece preservada de toda homogeneidade. Como coloca Derrida: “Esta

617 Platão, Apologia de Sócrates, 17d apud Da Hospitalidade, op. cit. pág. 13.

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tradução intraduzível, este novo idioma faz acontecer, produz acontecimentos na

língua dada à qual ainda é preciso dar, por vezes acontecimentos não

constatáveis: ilegíveis. Acontecimentos sempre prometidos mais do que dados.

Messiânicos”618. Mas esse messianismo sem messias é, na verdade, uma

messianicidade, sem o qual o próprio messianismo, no sentido estrito, não seria

possível. Com efeito, ele nos remete à abertura estrutural que permite à língua se

endereçar ao outro.

E esse gesto da desconstrução, esse logos sem lógica, essa escrita dupla,

diferida e diferante é, em si, um gesto dividido. Segundo Derrida, este gesto plural

em si,

“pode sempre deixar-se interpretar como um movimento de amor ou de agressão para com o corpo assim exposto de qualquer língua dada. Faz na verdade ambas as coisas, dobra-se e repete-se e encadeia-se na língua dada, aqui o francês em francês, para lhe dar o que ela não tem e o que ele mesmo não tem. Mas esta salvação, porque é uma salavação endereçada à mortalidade do outro e um desejo de salvação infinita, é também uma arranhadela e uma enxertadela. Acaricia com unhas, por vezes com unhas de empréstimo”619.

É por isso que não há linguagem sem promessa. Ao utilizar a expressão

‘língua dada’, Derrida quer nos lembrar que não há língua, há apenas doação de

língua. Uma língua somente existe na condição de que ela continue sendo dada,

ou seja, continue prometendo e dando lugar ao acontecimento, ao evento que não

é, mas faz acontecer. Por isso, é preciso pensar o acontecimento de maneira

distinta da metafísica que sempre o imaginou como o irromper do novo, como

fundação, inauguração. Mas o acontecimento de que fala Derrida não é o evento

da metafísica. Ele é pura promessa da língua. Promessa que anuncia a unicidade

de uma língua por vir. No idioma da desconstrução, escreve Derrida:

“Este apelo por vir reúne antecipadamente a língua. Acolhe-a, recolhe-a, não na sua identidade, na sua unidade, nem mesmo na sua ipseidade, mas na unicidade ou na singularidade de uma reunião da sua diferença a si: na diferença consigo mais do que na diferença de si consigo. Não é possível falar fora dessa promessa que dá, mas prometendo dá-la, uma língua, a unicidade do idioma. Não se trata de sair desta unicidade sem unidade.Ela não tem que ser oposta à outra, nem mesmo distinguida da outra. É a monolíngua do outro. O de não significa tanto a

618 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 99. 619 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 98.

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propiedade quanto a proveniência: a língua é do outro, vem do outro, (é) a vinda do outro”620.

Essa é a lei da língua: é preciso que haja língua, que haja promessa. O ‘eu

prometo uma língua’ precede toda língua e é este apelo por vir que reúne

antecipadamente a língua. Sempre que falamos lançamos uma promessa ao devir,

à deriva e, portanto, ao risco de contaminação pelo outro, pelo desconhecido. A

promessa está inscrita em cada palavra e é isso que dá ao nosso monolingüismo

uma dimensão messiânica. Isto porque “de cada vez que abro a boca, de cada vez

que eu falo ou escrevo, prometo. Queira-o eu ou não (...) O performativo desta

promessa não é um speech act entre outros”.

Em outro lugar, Derrida escreve: “Não há linguagem sem a dimensão

performativa da promessa”. E o performativo desta promessa está implicado em

todo e qualquer outro performativo. Basta abrir a boca para entrar na dimensão da

promessa. Mesmo quando digo “eu não acredito na verdade”, há um “acredite em

mim” em jogo. Mesmo quando eu minto – especialmente quando minto, lembra

Derrida – há um ‘acredite em mim’ estrutural em ação. E esse “eu te prometo que

estou dizendo a verdade” é messiânico a priori, é uma promessa que, mesmo se

não for mantida, mesmo se o outro sabe que não pode ser mantida, é messiânica

porque promete 621.

No entanto, segundo a teoria dos Speech acts, uma promessa não pode ser

acompanhada de ameaça porque, neste caso, o outro a recusaria. Mas Derrida

rejeita essa simplificação, uma vez que nem sempre o outro pode reconhecer uma

ameaça codificada, inconfessada e disfarçada sob a forma de uma promessa. Além

disso, se o outro precisa aceitar o conteúdo de uma promessa, se a relação precisa

ser simétrica, então a promessa se transformaria imediatamente num contrato.

Tudo se passa como se na ameaça não houvesse relação com o outro. Como se a

destinação da linguagem fosse dizer a verdade, cumprir a promessa, não enganar

nem dissimular. Mas Derrida rejeita esse ideal kantiano, próprio da tradição

logocêntrica622. Uma vez que a contaminação entre promessa e ameaça é

620 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 100-101. 621 Derrida, “Remarks on Deconstruction and Pragmatism” in Mouffe, Chantal (ed.) Deconstruction and Pragmatism, pág. 82. Simon Critchley faz uma leitura da messianicidade proposta por Derrida como uma estrutura universal da linguagem. A respeito, ver Critchey, “The Derrida-Habermas Exchange” in Constellation, vol. 7, December, 2000. 622 A referência aqui é o texto “Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade” onde Kant argumenta que mentir é destruir a linguagem, ou seja, a socialidade, o ‘laço’ social que nos

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constitutiva, resta pensar a relação com o outro e, portanto, o liame social, como

uma relação assimétrica, como uma relação de desligamento, de separação.

No entanto, apesar das tentativas de sistematização da teoria dos speech

acts, todo performativo (portanto, a linguagem em geral) compartilha a estrutura

universal do futuro anterior, ou seja, atua sempre de modo indecidível, como uma

promessa ou como uma ameaça que se lança ao futuro. Essa indecidibilidade é,

efetivamente, a sua força promissória e temerária. É a deriva essencial que faz

com que todos sejamos tiranos em potencial. Todos podemos prometer e ameaçar:

“eu posso!” às vezes disfarçado de “eu quero”.

Com efeito, a linguagem promete. E ameaça. E, às vezes, as promessas

fabulosas da linguagem são as mais ameaçadoras. A própria teoria dos speech acts

é uma promessa. Promessa de sistematicidade, rigor e possibilidade de

determinação do sentido. Mas suas exclusões, seus limites e formalizações deixam

de fora o essencial, o ‘prato principal’, diria Derrida, ou seja, a linguagem

enquanto força diferante-diferida, ou seja, différance.

Como já marcamos, a linguagem não pode ser reduzida à representação da

‘realidade nua’ nem à expressão de estados da alma, intenções, sentimentos ou

emoções. Ela também não é um elemento ‘natural’ que funciona como suporte de

uma cultura, seja ela autêntica ou inautêntica, imposta pelo dominador ou

revolucionária. Antes de qualquer ‘língua dada’ existe simplesmente um “há a

língua”, um “há a língua que não existe”623. Em outras palavras, o que Derrida nos

reconta no seu idioma é que não há metalinguagem, não há língua natural ou

originária a qual apelar e, por isso, uma língua será sempre chamada a falar da

língua – porque esta não existe, não existe ainda e não existirá no futuro. Será

sempre e apenas prometida.

A linguagem (todas as ‘línguas dadas’, nacionais, regionais, setoriais) é

différance ativa, energia aforística que cria retro-ativamente formas de vida,

mundos e realidades. A linguagem, enquanto escritura, é simplesmente uma

pulsão louca de falar das coisas, um movimento disseminante que não tem pátria,

nem lógica, nem ordem. “A língua não é senão ciúme à solta (...) doida por si

liga ao outro. Mas o que Derrida propõe pensar é exatamente a separação, a distância e a dissimetria constitutivas da relação com o outro. Prometendo ou ameaçando, mentindo ou falando a verdade, estamos todos enredados na escritura, somos todos herdeiros e responsáveis pela disseminação dessa língua do outro. Derrida, La philosophie au risque de la promesse, pág. 205. Bayard, Paris, 2004. 623 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 102.

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mesma. Doida varrida”, diz Derrida624. Não podemos controlá-la, mas

permanecemos cativos da promessa, enredados na écriture, engajados, desde

sempre e desde já, no seu movimento. Perante ela, somos todos herdeiros

enlutados. Como escreve Derrida: “Todo grafema é por essência

testamentário”625.

E mesmo a língua doida da desconstrução é herdeira e deve explicações à

tradição que a precede e à promessa que a reúne no seu devir. Escreve Derrida:

“Todas as línguas da dita metafísica ocidental, porque existe mais de uma,

incluindo os léxicos proliferantes da desconstrução, todas e todos pertencem, por

quase toda a tatuagem do seu corpo, a esta dádiva com a qual temos por isso de

nos explicar”626.

Com efeito, a questão da memória e da tradição herdada é uma questão

central para a desconstrução, uma questão com a qual temos de negociar. Como já

enfatizamos, e apesar das inúmeras críticas e leituras mal intencionadas, a

desconstrução não pretende destruir a metafísica, nem por dentro, nem por fora.

Derrida sabe bem a ingenuidade que significaria uma tentativa como essa. A

relação com a metafísica, portanto, com a herança do pensamento ocidental, deve

ser como a de um herdeiro que herda algo desconhecido e que, por isso, deve

realizar uma recepção ativa e atenta, uma negociação a ser feita com economia e

estratégia.

Nesse sentido, a herança heterogênea do marxismo, os espectros de Marx e

suas diversas apropriações e reapropriações no decorrer da história, a herança

deixada por Freud, as diversas correntes da psicanálise que suas leituras

ocasionaram, os vários estilos de Nietzsche, são todas ‘políticas da memória’ que

não podem ser simplesmente descartadas como falsas, infiéis ou mal feitas, em

nome de um “velho conceito da leitura” que respeite “as normas da exegese

hermenêutica, filológica, filosófica”627. Em Espectros de Marx, Derrida escreve:

“Consideremos, em primeiro lugar, a radical e necessária heterogeneidade de uma herança, a diferença sem oposição que deve marcá-la, um “disparate” e uma quase justaposição sem dialética (o plural do que chamaremos mais adiante os

624 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 38 625 Derrida, Gramatologia, op. cit. pág. 84. 626 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 104. 627 Derrida, Espectros de Marx, pág. 51. Trad. Amamaria Skiner, Relume-Dumará, Rio de janeiro, 1994.

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espíritos de Mrax). Uma herança não se junta nunca, ela nunca é una consigo mesma. Sua unidade presumida, se existe, pode apenas consistir na injunção de reafirmar escolhendo. É preciso (il fault) quer dizer é preciso filtrar, selecionar, criticar, escolher entre vários possíveis que habitam a mesma injunção. E habitam-na de modo contraditório, em torno de um segredo. Se a legibilidade de uma herança fosse dada, natural, transparente, unívoca, se ela não pedisse e desafiasse ao mesmo tempo a interpretação, não se teria nunca o que herdar. Seríamos afetados por isso como por uma causa – natural ou genética. Herda-se sempre um segredo que diz: “Leia-me, alguma vez serás capaz?”628.

Somos todos herdeiros e nossa herança não é algo simplesmente dado que

nos compete desfrutar. Uma herança é sempre uma tarefa que exige uma recepção

crítica e ativa. E aquilo que se herda não é nunca uma propriedade, um bem

próprio e determinado. Uma herança é sempre problemática e demanda uma certa

violência para sua afirmação. Com efeito, antes de tudo, somos herdeiros da

língua. Nas palavras de Derrida: “Somos herdeiros, o que não quer dizer que

temos ou que recebemos isto ou aquilo, que tal herança nos enriquece um dia com

isto ou aquilo, mas que o ser disso que somos é, primeiramente, herança, o

queiramos, o saibamos ou não” 629. E o que herdamos é aquilo mesmo que nos

permite testemunhar, aquilo que Hölderlin chama de linguagem, “o mais perigoso

dos bens”, dado ao homem, “a fim de que ele testemunhe ter herdado/ isto que ele

é”630.

E aqui a desconstrução articula-se explicitamente com a política. A

questão da língua inapropriável, da língua como promessa e abertura ao devir,

como língua vinda do outro, como herança e memória que nos compete

ativamente receber, abre a dimensão política da desconstrução, uma questão que

sempre esteve presente, mesmo que de modo oblíquo, desde os primeiros textos

de Derrida. No entanto, a partir da década de 80, sobretudo após o encontro com

628 Derrida, Espectros de Marx, op. cit. pág. 33. 629 Derrida, Espectros de Marx, op. cit. pág. 79. 630 Esboço fragmentário de Hölderlin citado por Heidegger em Hölderlin und das Wesen der Dichtung, apud Derrida, Espectros de Marx, pág. 79.

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Lévinas631, a démarche derridiana apareceu mais diretamente vinculada a temas

ético-políticos, como argumento a seguir.

631 Segundo John Caputo, não se pode falar em ‘reviravolta’ no pensamento de Derrida. No entanto, evidencia-se claramente uma progressão, na qual a ética, “de tom profundamente levinasiano”, vai tomando mais e mais corpo na sua obra durante as décadas de 1980 e 1990. Segundo Caputo, “ao passo que esta dimensão levinasiana foi se fortalecendo cada vez mais ao longo dos anos, (...) a dimensão ética e política da desconstrução tornou-se mais e mais explícita”. Caputo, J. Deconstruction in a nutshell, op. cit. pág. 127. Para Rafael Haddock-Lobo, nos textos mais atuais de Derrida, a referência a Emmanuel Lévinas é praticamente obrigatória, inclusive nos textos que não tratam diretamente da obra levinasiana. Nesse sentido, todo o pensamento ético da desconstrução é devedor da filosofia da alteridade levinasiana. Tendo a concordar com ambas as leituras, mas acredito que é possível pensar a dimensão política da desconstrução, sem necessariamente a articular com a ética levinasiana e com a noção do Todo-outro que, no final das contas, acaba nos remetendo a Deus. De qualquer modo, acredito que Rafael Haddock-Lobo, com sua leitura de Lévinas associada ao pensamento da desconstrução, oferece uma contribuição ímpar para pensar a influência da ética levinasiana na obra mais recente de Derrida e, por isso, sinto-me confortável em focalizar minha análise na linguagem e deixar ao outro (colega e amigo) esta importante tarefa. Ver, a respeito: Haddock-Lobo, Rafael. “As muitas faces do outro em Lévinas” in Duque-Estrada, Paulo Cesar. Desconstrução e Ética, op. cit. pág. 182; Da Existência ao Infinito – ensaios sobre Emmanuel Lévinas. Ed. Puc-Rio/Loyola, São Paulo, 2006.

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PARTE 3 - POLÍTICA

7

Desconstrução (é) política

Uma vez constatada a força performativa da linguagem, a sua “mística”

instituidora e os efeitos devastadores que um discurso pode ocasionar, torna-se

impossível ler os textos clássicos da metafísica impunemente. Com as armas

fornecidas pela desconstrução, todo texto torna-se problematizável, todo conceito

deve responder por sua filiação, todo discurso revela-se perigoso, visto que não

pode evitar o risco de perversão a que todos os discursos estão submetidos. Com

efeito, a estrutura de suplemento já presente na linguagem falada, interdita

qualquer tentativa de purificação da língua. A língua é desde sempre diferida e,

apesar do desejo de domínio da língua do mestre, a língua não pode ser apropriada

nem purificada por nenhum sujeito, individual ou coletivo. Achar que se domina

uma língua – assim como pressupor que se domina o ‘querer-dizer’ de um

determinado autor ou texto filosófico – é a estrutura subjacente a toda forma de

opressão e de violência.

Apesar da desconstrução ser eminentemente ‘política’, pode-se afirmar

que, a partir da década de 1980, os textos de Derrida voltaram-se mais

explicitamente para temas ético-políticos e atravessaram o debate da filosofia

política contemporânea de modo bastante instigante. Nesse sentido, buscarei agora

associar a desconstrução com a ‘política’, ou seja, com aquilo que

tradicionalmente se acostumou chamar de ‘prática’ em oposição à ‘teoria’. Dessa

forma, a ‘política’ sempre foi entendida como algo voltado para a ação e

transformação da realidade, em oposição à mera ‘interpretação’ da realidade

(certamente a tese 11 de Marx tem tudo a ver com isso). E uma das críticas mais

injustas feita à desconstrução é a alegação de que ela seria ‘apolítica’ ou que seus

textos difíceis e contraditórios nos incitariam a uma passividade politicamente

irresponsável, uma vez que não propõem nenhum programa de ação, não indicam

‘o que fazer’.

A leitura efetuada por Richard Rorty, por exemplo, ilustra bem esse tipo de

crítica. De acordo com sua classificação dos filósofos em ‘ironistas privados’ e

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‘liberais públicos’, Derrida pertenceria à primeira turma, uma vez que seus textos

preenchem nosso desejo (privado) de questionar a metafísica (assim como faz

Nietzsche e Heidegger), mas não possuem consequências políticas632.

No entanto, além da insustentável oposição entre público e privado, a

noção de política utilizada por Rorty é bastante redutora. Segundo Rorty, o

político diz respeito a questões pragmáticas, no sentido de reformas e

compromissos de curto prazo (short-terms compromises). Nesse sentido, seguindo

o seu (neo) pragmatismo, o campo do político não precisa de ‘fundações

filosóficas’, visto que ele seria restrito a tomada de decisões concretas e imediatas.

Assim, discussões metafísicas sobre as diversas concepções de justiça, a questão

da natureza da democracia e a experiência do indecidível não podem ser aplicadas

na esfera pública, o que significa dizer que não possuem consequências políticas.

Uma vez que o conflito entre valores fundamentais não pode ser resolvido, mas

apenas aceito como consequência do pluralismo (assim como pensava seu mentor

John Dewey), então tudo que podemos esperar é que o crescimento econômico

desenvolva atitudes mais tolerantes e, assim, a harmonia poderá ser enfim

estabelecida. Na posse de tais crenças, compreende-se porque Rorty não consegue

ver a utilidade das reflexões conduzidas por Derrida.

Entretanto, como bem ressalta Chantal Mouffe, com seu anti-

fundacionalismo arraigado, Rorty não percebe a diferença entre rejeitar

‘fundamentos’ para a democracia e rejeitar toda e qualquer reflexão filosófica

sobre fundamentos, como se a sua concepção de política fosse ‘neutra’, ou seja,

como se ela não dependesse, em alguma medida, de certos pressupostos e de um

certo entendimento sobre a natureza da política. Nesse sentido, desconsiderar a

632 Rorty, Richard. Remarks on deconstruction and pragmatism, op. cit. pág. 13.Também em Achieving our country, Rorty sustenta que os filósofos anti-metafísicos que são frequentemente chamados de cultural leftists – como Heidegger, Foucault, Derrida e outros – deveriam ser relegados à vida privada e não tomados como guia para a deliberação política. Nas suas palavras; “a noção de responsabilidade infinita formulada por Lévinas, e às vezes utilizada por Derrida, como também as frequentes descobertas derridianas da impossibilidade, intangibilidade e irrepresentabilidade, podem ser úteis para alguns de nós em nossa busca privada de perfeição. Mas quando, no entanto, tomamos nossas responsabilidades públicas, o infinito e o irrepresentável são meras inconveniências. Pensar as nossas responsabilidades nesses termos constitui um obstáculo à efetiva organização política”. Rorty. Achieving our country. Cambridge: Harvard University Press, 1998. Geoffrey Bennington, comentando a leitura equivocada que Rorty faz da desconstrução, destaca o ‘inacreditável’ título escolhido por Rorty, Achieving our country, que afirma uma estrutura teleológica e metafísica bastante clássica, como se o país a que se refere, ou seja, os Estados Unidos, pudesse ser definido por uma idéia que deve ser atingida. Ver, a respeito, Duque-Estrada, Paulo Cesar. Desconstrução e Ética. “Entrevista com Geoffrey Bennington”, op. cit. pág. 211.

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questão da indecidibilidade significa negligenciar uma parte fundamental de toda

e qualquer política, ou seja, a questão da responsabilidade da decisão633.

É exatamente nesse sentido que a desconstrução pode ser considerada

como uma ‘hiper-politização da política’. Como ressalta Derrida, a desconstrução

nos alerta que, sem levar em conta seriamente a questão da indecidibilidade,

torna-se impossível pensar os conceitos de decisão política e de responsabilidade

ética. O indecidível não é um simples momento a ser atravessado após uma

reflexão ou negociação. Mesmo após a tomada da decisão, a indecidibilidade

continua latente, visto que a opção não escolhida ou as possibilidades eliminadas

continuam espectralmente a existir. Com efeito, qualquer consenso é apenas a

estabilização de algo essencialmente instável e caótico. Esta é a condição de

possibilidade de uma democracia pluralista, onde os conflitos e antagonismos

impossibiltam uma ‘solução final’ 634.

É nesse sentido que a democracia, para Derrida, deve manter-se sempre

‘por vir’, ou seja, atravessada pela indecidibilidade e aberta ao elemento da

promessa. Derrida afasta-se dos elementos schmittianos que dominam o

‘realismo’ na política, como a clássica oposição entre amigos e inimigos, visto

que eles continuam presos à idéia de uma refundação da política. Refundar a

política significa, acima de tudo, reterritorializá-la e vinculá-la aos elementos de

filiação e pertença a uma determinada comunidade que se pretende homogênea.

Mas a desconstrução aponta para a direção oposta e acredita que a chance da

política e da democracia contemporâneas está exatamente em pensar uma política

para além do conceito clássico de política, isto é, para além do território, para

além do demos, para além da soberania: uma “comunidade sem comunidade”.

Nesse sentido, Derrida não nos deixa esquecer que a filosofia ocidental é

comprometida com instituições, conceitos e práticas arcaicas do ético, do jurídico

e do político ainda dominadas por “uma certa metafísica ontoteológica da

soberania, ou seja, autonomia e onipotência da pessoa – individual ou estatal –

liberdade, vontade egóica, intencionalidade consciente, o eu, o ideal do eu e do

633 Mouffe, Chantal. “Deconstruction, Pragmatism and Democracy”, in Deconstruction and Pragmatism, op. cit. pág. 11. 634 Nesse sentido, o modelo agonístico de democracia proposto por Chantal Mouffe parece se alinhar com as aporias da desconstrução como ressalta Pablo Ghetti em “Democracia radical e oportunidades da justiça” in Duque-Estrada, Paulo Cesar. Desconstrução e Ética, op. cit. pág. 113

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supereu”635. O discurso identitário carrega o fantasma teológico da soberania e

assume formas terríveis na história recente. Por exemplo, o princípio de soberania

estado-nacional – “que os Estados Unidos protegem de maneira intratável quando

se trata da sua e limitam quando se trata da dos outros”636– protagonizou dois

processos opostos: a invenção dos direitos do homem e dos fundamentos do

direito internacional e uma lista ainda não concluída de crueldades e genocídios,

guerras e deportações em massa.

Por isso, esta nova forma de pensar da desconstrução exige uma reflexão

rigorosa, exige uma releitura de toda a tradição política e filosófica que nos legou

os conceitos de política e de democracia que agora tentamos desconstruir. É por

isso que aqueles que esperam da desconstrução respostas diretas e imediatas que

atendam às expectativas da ‘esquerda radical’ certamente irão se decepcionar.

Apesar de se posicionar à esquerda e tomar posições políticas claras, como no

caso dos imigrantes na França, Derrida nunca escreveu uma obra ‘política’, nem

mesmo de ‘filosofia política’ e isto por uma simples razão: a desconstrução

questiona estes conceitos metafísicos. Como coloca Bennington:

“It is misguided to expect Derrida´s work to answer to the concepts of ‘politics’ or ‘political philosophy’ just because these are metaphysical concepts – and insofar as Derrida´s constant concern has been to comprehend and exceed metaphysics, he can hardly be expected to rely simply on metaphysical means so to do”637.

Afinal, para além da pseudo neutralidade do pragmatismo, qual a natureza

do político ou da política? De onde provém tais conceitos, qual sua genealogia, ou

seja, qual sua herança? Para a desconstrução, nenhuma política pode se anunciar

como radical ou revolucionária sem questionar sua herança, sem reconhecer,

negociar e problematizar sua genealogia necessariamente metafísica. Lembremos

as palavras de Derrida: “Uma herança não é jamais dada, é sempre uma tarefa.

Permanece diante de nós, tão incontestavelmente que, antes mesmo de querê-la ou

recusá-la, somos herdeiros, e herdeiros enlutados, como todos os herdeiros”638.

635 Derrida, Estados da alma da psicanálise, pág. 16. Editora Escuta, São Paulo, 2001. 636 Derrida, Estados da alma da psicanálise, op. cit. pág. 55. 637 Bennington, Geoffrey. Interrupting Derrida, pág. 19. Routledge, 2000. 638 Derrida, Espectros de Marx, op. cit. pág. 78.

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É preciso, portanto, se quisermos realmente pensar o político de modo

responsável, retomar o início dessa história: a Metafísica de Aristóteles. Desde o

início da tradição filosófica ocidental, o conceito de política aparece como uma

noção ambígua, visto a sua tensa cumplicidade com a metafísica. Por um lado,

como Aristóteles proclama na sua Metafísica, a tarefa suprema da Filosofia seria a

de investigar os primeiros princípios e as primeiras causas. Nesse sentido, a

Filosofia enquanto Metafísica seria fundamentalmente uma ciência teórica e

especulativa e, de certo modo, uma ‘arqueologia’ (uma busca da arché).

Entretanto, na mesma obra, Aristóteles também proclama que, na tradução de

Bennington: “The highest science, which is superior to every subordinate science,

is the one that knows in view of what end each thing must be done. And this end

is the good of each being and, in a general manner, the supreme good in nature as

a whole” (982b, 3-7)639.

Percebemos, portanto, uma indeterminação quanto a qual seria a tarefa

precípua da Filosofia. De um lado, temos princípios e causas e, de outro lado, fins

e bens, ou seja, uma teleologia que, pouco a pouco, vai sendo definida como

‘prática’ em oposição à ‘teoria’ ou seja, em oposição à dimensão teorética da

busca especulativa pelos primeiros princípios. Já em Ética à Nicômaco (1094a18-

1094b7), a questão da relação entre metafísica e política reaparece, mas a

ambigüidade continua visível. Afinal, o conceito filosófico de política é

subordinado à metafísica ou superior a ela? É a finalidade que determina a

especulação teórica ou o contrário? Qual a relação entre teoria e prática, de acordo

com a tradição filosófica ocidental?

Segundo Bennington, todas as demais oposições que moveram a história

das idéias, como entre ser e dever-ser, teoria e práxis, conhecimento e ação,

podem ser derivadas dessa primeira cisão a partir da qual a própria Filosofia se

auto-compreendeu ao longo de sua tradição. E Derrida nada mais faz do que

continuar nessa tensão, sem ceder ao desejo de responder a ela ou de “arrumar a

casa”. Como a desconstrução é o pensamento da aporia, nada mais coerente do

que manter a ambigüidade estrutural que inaugura a tradição filosófica. Nesse

sentido, os textos de Derrida não podem ser considerados ‘políticos’, se espera-se

deles respostas a demandas ‘políticas’. Com efeito, eles se situam na margem

639 Aristóteles, Metafísica, apud Bennington, “Derrida and Politics” in Interrupting Derrida, op. cit. pág. 23.

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entre metafísica e política, na idecidibilidade entre pensar e agir, entre princípios e

fins, tal como apontada, mesmo que inadvertidamente, por Aristóteles.

Desse modo, a desconstrução ressalta que a profunda ambigüidade contida

no conceito de política denuncia, com efeito, a ambigüidade do próprio conceito

de conceito, o que nos leva a concluir que o pensamento derridiano é ‘político’ de

ponta a ponta, ou seja, mesmo quando está desconstruindo um conceito

tradicionalmente entendido como ‘teorético’. Nesse sentido, a desconstrução

libera a energia contida no conceito metafísico de política, fazendo com que todos

os conceitos com os quais ela trabalha sejam potencialmente políticos. Nas

palavras de Bennington: “Derrida on this account would liberate a sort of energy

in the metaphysical concept of politics, so that all the conceptual dealings

deconstruction has could be taken to be political”640.

Contudo, a definição corrente da filosofia política consiste em afirmar que

a política teria um incontroverso apelo à realidade e uma função imediata de

transformação dessa mesma realidade. Já a teoria seria uma forma de

interpretação dessa realidade, sem o compromisso imediato com sua

transformação, visto que exigiria mais tempo para especulações e reflexões. A

política, por sua vez, não tem tempo para instabilidades semânticas ou tensões

conceituais de ordem especulativa. O imperativo da política é a ação e, de

preferência, a ação imediata. Tudo se passa como se o campo da política fosse

extratextual, extralingüístico, como se a sua ‘realidade’ não dependesse de

nenhum sinal, de nenhuma marca, de nenhum grafema. Nesse sentido, escreve

Derrida:

“Agora, o que uma ‘história’, uma ciência e ação que se pretendem resolutamente e ingenuamente extradiscursivas e extratextuais fazem? O que poderiam, afinal, uma história realista ou uma filosofia política fazer na verdade se elas falharem em trazer à tona e em prestar contas com a extrema formalização, novas aporias, instabilidades semânticas, todas essas preocupantes conversões que trabalham os signos? Se elas não tentarem ler todas essas possibilidades de aparência contraditória (‘relação sem relação’, ‘comunidade sem comunidade’, etc.) tudo o que estes ‘discursos sofísticos’ nos lembram? Digamos isto: muito pouco, quase nada. Elas perderiam o mais difícil, o mais resistente, o mais irredutível, o mais outro sobre a ‘coisa mesma’”641.

640 Bennington, G. “Derrida and Politics”, op. cit. pág. 24. 641 Derrida, Politics de l´amitié, pág. 99. Galilée, Paris, 1994.

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Para a desconstrução, a interpretação não é uma mera preparação para a

ação. A teorização e a interpretação são, na verdade, intermináveis e nunca irão

preparar o momento da decisão. Uma decisão que pudesse ser preparada e

programada não seria mais uma decisão. Seria simplesmente a administração de

um programa. Para haver decisão digna do nome, é preciso que esta se dê no

ambiente da indecidibilidade. Somente levando em consideração essa condição

inescapável da indecidibilidade é que podemos efetivamente decidir com

responsabilidade. Nesse sentido, escreve Derrida sobre a responsabilidade da

desconstrução:

“O que correntemente se chama de desconstrução não corresponde, embora alguns tenham interesse em espalhar tal confusão, a uma abdicação quase niilista diante da questão ético-político-jurídica da justiça, mas a um duplo movimento: 1. O sentido de uma responsabilidade sem limite, e deste modo necessariamente excessiva, incalculável, diante da memória; e, assim, a tarefa de lembrar a história, a origem e o sentido, e portanto também os limites, dos conceitos de justiça, de lei e de direito, de valores, normas, prescrições que ali se impuseram e se sedimentaram, permanecendo, a partir de então, mais ou menos legíveis ou pressupostos; 2. Esta responsabilidade em relação à memória – memória de uma herança que é ao mesmo tempo uma herança de um imperativo ou de um feixe de injunções – é uma responsabilidade diante do conceito mesmo de responsabilidade que regula a justiça e a justeza de nossos comportamentos, de nossas decisões teóricas, práticas, ético-políticas”642.

É nesse sentido que a écriture é política, mesmo sem carregar bandeiras,

mesmo sem participar de manifestações. A desconstrução não busca mais um

sujeito coletivo que leve adiante o ‘ideal revolucionário’, como parece ter sido (e

ainda permanece643) o sonho do marxismo. A força revolucionária está na língua

por vir, está na força disruptiva de uma democracia por vir, está na promessa (que

642 Derrida, Force de Loi, pág 951,Versão distribuída no « Colloquium on Deconstructions and the possibility of justice » realizado em outubro de 1989 na Cardozo law School. Trad. De Mary Quaintance. 643 Nesse sentido, a celebrada obra Multidão de Toni Negri e Michael Hardt, apesar do esforço em criticar a noção de povo e de pátria e de execrar as violências dos Estados nacionais modernos, ainda buscam um ‘ser social’ ou ‘força elementar’ que, mesmo disforme e monstruoso, seria capaz de criar uma ‘sociedade alternativa’. Tais ‘redes alternativas de afeição e organização social’ seriam possíveis através do compartilhamento de ‘linguagens, símbolos, idéias e relações’, uma vez que o ‘paradigma imaterial da produção’ adota a ‘performatividade, a comunicação e a colaboração como características centrais’. Assim, de modo bastante ‘habermasiano’, Negri confia na linguagem que é ‘produzida em comum’ e na ‘competência lingüística humana genérica’ como propulsoras das novas ‘práticas do comum’ que tornam possível a criação de uma democracia baseada na expressão e na vida em comum. E, segundo os autores, “realizar esta possibilidade será o projeto da multidão” (pág. 263). Apesar de todas as advertências, fica difícil não entender a multidão como o novo sujeito coletivo que, mesmo não se identificando com o povo, guarda em si a esperança da revolução. Cf. Negri e Hardt, Multidão. Ed. Record, 2005.

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também é uma ameaça) do talvez644, um talvez que nunca será abolido por

nenhum programa de ação. Nesse sentido, escreve Derrida sobre esta estranha

língua revolucionária:

“De cada vez que escrevo uma palavra, ouves, uma palavra de que gosto e que gosto de escrever, o tempo desta palavra, o instante de uma única sílaba, o canto desta nova internacional ergue-se então em mim. Nunca lhe resisto, estou imediatamente na rua ao seu apelo, mesmo se aparentemente, desde madrugada, trabalho em silêncio à minha mesa”645.

“De cada vez que escrevo, estou na rua”. Em cada palavra, uma palavra de

ordem. “Dizer é fazer”, diria Austin na tradução de Danilo Marcondes. Onde

estaria, portanto, o limite entre teoria e prática? Como acusar a desconstrução de

ser despolitizante e irresponsável com base nessa dicotomia insustentável? Com

efeito, o que a desconstrução rejeita é a criação de um novo mito, de um novo

sujeito coletivo ou qualquer outra forma de ‘agenciamento coletivo’, seja ele

chamado de proletariado, operariado, trabalhadores, marginais, excluídos,

multidão, etc. Não existe um sujeito redentor que levará a política ao seu telos.

Aliás, o fim da política, tal como pensada pela tradição, é o seu fim, ou seja, o seu

acabamento, um momento de não-violência onde ela não seria mais necessária.

Mesmo os filósofos que pensaram a violência estrutural da política, como Hobbes,

Hegel e Marx, a pensaram no interior da perspectiva teleológica da não-violência.

É por isso que toda a filosofia política é uma filosofia do fim da política.

Já a desconstrução não deseja que a política, logo, a possibilidade da

liberdade, chegue ao fim. E isso significa aceitar a violência primordial de todo

discurso. Significa liberar o performativo, ou seja, denunciar a sua denegação646,

mesmo após Austin. Não existe nenhum constatativo puro, nenhuma simples

informação. Como já salientamos, a violência habita a linguagem, está presente

644 Em Politics de l´amitié Derrida faz uma leitura de um fragmento de Nietzsche em Para além do bem e do mal, onde este fala de um novo tipo de filosofia capaz de pensar o ‘talvez’. Para Derrida, este talvez radical nos remete à indecidibilidade estrutural, ou seja, ele é a condição de possibilidade de qualquer evento, incluindo o evento da decisão. Ver a respeito, Bennington, Interrupting Derrida, op. cit. pág. 26. 645 Derrida, O Monolingüismo do outro, op. cit. pág. 89. 646 Numa entrevista para o Le Monde, ao ser intimado a falar diretamente sobre a linguagem, Derrida nos diz que é preciso insistir sobre esse ‘nome provisório, a pragmática’ e sobre aquilo que ela denega. Nesse sentido, a denegação do performativo não deve ser entendida como um julgamento, mas como um formidável evento que é, ele mesmo, performativo e normativo. Derrida. « Le langage (Le Monde au téléphone) » in Points de Suspension, pág.183. Galilée, Paris, 1992.

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em todas as línguas e discursos, inclusive naqueles que se auto-intitulam

humanitários e libertadores. Todo performativo, todo ato instituidor ou fundador é

violento. E essa situação não deve ser lamentada, muito menos esquecida. Com

efeito, as maiores violências são cometidas ‘em nome de’ alguma coisa que se

pretende não-violento, como a justiça, a lei ou o direito. O esquecimento do

momento fundador, da força violenta de ruptura que o instituiu é o que, na

verdade, constitui o perigo maior. Nesse sentido, Derrida não nos deixa esquecer o

liame indissociável entre a soberania do estado nacional, seu monopólio da força

organizada e a extrema crueldade. O monopólio da violência legitimada pelo

direito ou pela revolução também é violenta e cruel, mesmo que instituída ‘em

nome’ do povo, da nação ou da multidão.

Com efeito, Derrida busca uma redefinição do político desvinculada da

noção de polis ou de qualquer sentido de identidade coletiva pautada na

confrontação com o inimigo, na exclusão do outro, guiada por um fantasma

conceitual primitivo da comunidade. A “democracia por vir” que conclama não

está fundada na soberania do Estado-nação nem no princípio de pertencimento,

com seus elementos de sangue, solo e fronteiras. Para Derrida, “todo

enraizamento nacional enraíza-se primeiramente na memória ou na angústia de

uma população deslocada – ou deslocável”647.

A desconstrução deve continuar rebelde à res publica do político, mesmo

do democrático ou de qualquer democracia fundada num conceito estatista,

estado-nacionalista, soberanista e, portanto, detentor do político648. Todo

nacionalismo é potencialmente agressivo e a idéia de construir um nacionalismo

razoável, pacífico, liberal-democrata, é uma perigosa ficção. Isto porque, por mais

bem intencionada que seja, toda lógica de identidade está dominada por uma

violência que anula a diferença e reduz o outro ao mesmo649.

647 Derrida, Espectros de Marx, op. cit. pág. 112. 648 Derrida, Estados-da-alma da psicanálise, op. cit. pág. 62. 649 Nesse sentido, a crítica pós-colonial contemporânea, como a desenvolvida pelo indo-britânico Homi K.Bhabha, trabalha a questão do nacionalismo sob o enfoque da desconstrução ao assinalar a ambigüidade contida em todos os discursos identitários. Segundo ele, a força narrativa e psicológica que a nacionalidade apresenta na produção cultural é efeito da ambivalência da ‘nação’ como estratégia narrativa. Tal hibridismo, próprio da linguagem, faz com que a retórica nacionalista constitua um modelo exemplar para pensar a lei da indecidibilidade que comanda todos os discursos. Desse modo, a nação moderna constitui a metáfora principal de uma comunidade imaginada, um ato de interpretação secular repleta de simbolismos e atavismos e que não pode ser descartada como uma simples construção arbitrária. Reconhecer essa ambivalência estrutural é essencial para tentar compreender como funcionam as estratégias de identificação

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Mas isso não significa dizer que a desconstrução seja contra o diálogo, a

argumentação ou algo como uma ‘ética da discussão’ que busque um

entendimento com o outro, mesmo sabendo da dissimetria absoluta dessa relação.

O que a desconstrução denuncia é que, mesmo na discussão mais desarmada e

transparente, mesmo no mais pacífico momento de persuasão e convencimento, a

força e a violência se fazem presentes. Com efeito, elas são irredutíveis. No

entanto, Derrida acredita numa possibilidade de não-violência enquanto promessa,

enquanto uma certa relação de amizade que ele chama de aimance, uma relação

não-apropriativa com o outro e que excluiria a violência. Nesse sentido, escreve

Derrida:

“I do not believe in non-violence as a descriptive and determinable experience, but rather as an irreducible promise and of the relation to the other as essentially non-instrumental. This is not a dream of a beatifically pacific relation, but of a certain experience of friendship perhaps unthinkable today and unthought within the historical determination of friendship in the West”650.

No entanto, mesmo sem propor programas de ação ou inventar novos

sujeitos ou formas de agenciamento coletivo, alguns textos recentes de Derrida

discutem questões éticas e políticas contemporâneas prementes, como o dilema

dos refugiados e imigrantes ilegais e o grave problema da anistia e da

reconciliação nas situações mais sangrentas da história ocidental, como o

holocausto e o apartheid na África do Sul. Através da aplicação da ‘lógica’ da

desconstrução, ou seja, através de uma investigação histórica, contextual e

temática de determinado conceito herdado da tradição ocidental, Derrida busca

trazer à tona a lógica implícita em tal conceito, ou seja, o seu duplo imperativo.

Nesse sentido, o cosmopolitismo, o perdão, a amizade e a democracia são

conceitos que o ocidente utiliza para promover discursos sobre tolerância e

hospitalidade, sem prestar contas à sua lógica dupla e contraditória e à exigência

de negociação que eles implicam.

Apresento, a seguir, alguns exemplos de textos recentes em que Derrida

desenvolve tais questões. No entanto, limito-me a apontar rapidamente as linhas

cultural, isto é, as interpelações discursivas que funcionam em nome ‘do povo’ ou ‘da nação’ e os constroem como sujeitos e objetos de séries narrativas. Cf. Bhabha, Homi. “DissemiNação. O tempo, a narrativa e as margens da nação moderna” in O Local da Cultura. Ed. UFMG, Belo Horizonte, 2001. 650 Derrida, Remarks on deconstruction and pragmatism, op. cit. pág 83.

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centrais de tais trabalhos, deixando para uma futura agenda a tarefa de

desenvolvê-los.

1. Em Politics de l´amitié, Derrida aponta para um novo pensamento sobre

a comunidade através da estrutura paradoxal da amizade. Tal como entendida

tradicionalmente, a amizade, ao contrário do amor, não tende para uma fusão entre

as partes, não propugna por um fim fusional. Desse modo, uma relação de

amizade mantém uma certa distância que permite que cada parte conserve sua

individualidade através do mútuo respeito. Entretanto, a exata distância a ser

mantida será sempre problemática, fazendo com que, paradoxalmente, o melhor

amigo seja aquele mais distante, visto que será ele o que mais respeitará a

singularidade do outro. Nesse sentido, Derrida propõe pensar uma comunidade

desvinculada das fantasias fusionais contidas nas noções de povo e pátria, ou seja,

independente da uni-identidade que sempre acompanhou o sujeito coletivo na

modernidade. Uma ‘comunidade sem comunidade’, uma reunião de amigos que

não precisam estar próximos, que não precisam habitar o mesmo território nem

compartilhar nenhuma fantasia de pertencimento comum, pois afinal, como

escreveu Aristóteles: “Oh my friends, there is no friend”.

2. Em Cosmopolites de tous les pays, encore un effort!651, Derrida trabalha

o conceito de cosmopolitismo enquanto um conceito herdado da tradição

ocidental e, com a ajuda de outros filósofos, como Kant e Hannah Arendt, busca

trazer à luz a estrutura dupla e contraditória que subjaz à idéia de

cosmopolistismo. De um lado, ele nos remete a um apelo incondicional de

hospitalidade que redundaria no acolhimento de todos os imigrantes e refugiados.

Mas, por outro lado, uma hospitalidade deve ser condicionada: devem existir

certas regras e certas limitações ao direito de asilo. Todas as dificuldades das

políticas de imigração residem na negociação entre estes dois imperativos, ou seja,

entre o incondicional e o condicional, entre o absoluto e o relativo que constituem

tal conceito. Ao revelar tal paradoxo, Derrida não está paralizando uma possível

ação política, mas, ao contrário, mostrando o ponto de partida que deve ser

considerado antes do estabelecimento de qualquer programa de ação política

responsável.

651 Derrida, Jacques. Cosmopolites de tous les pays, encore un effort!. Galilée, Paris, 1997.

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3. Em Filosofia em tempo de terror652, entrevista concedida a Giovanna

Borradori após o episódio de 11 de setembro de 2001, Derrida aplica a ‘lei do

imunitário e auto-imunitário’ para pensar as relações entre a guerra fria e os

ataques terroristas em Nova York. Nesse sentido, identifica três momentos

cruciais ou três autoimunidades que nos ajudam a pensar as noções de guerra e de

terrorismo nos tempos atuais. E, como já havia desenvolvido de modo quase

profético em Fé e Saber, nos lembra que a mesma religiosidade que combate as

máquinas (a razão instrumental e a técnica), também cede lugar ao retorno do

primitivo e do arcaico.

4. Em Voyous653, Derrida questiona noções mais velhas que a democracia,

como o que significa viver junto numa comunidade que se assemelha. Ou ainda, o

que nos assemelha uns aos outros para que possamos viver juntos, o que nos é

semblable no ensemble. Uma vez que a democracia é uma força que se apresenta

como autoridade soberana (poder de decidir, de ter razão e de impor a lei), logo,

como o poder e a ipseidade de um povo, cabe retornar à noção de propriedade, ao

próprio e ao ipse, ou seja, ao princípio de toda e qualquer autoridade. Através

dessa investigação genealógica, Derrida acaba por nos mostrar como as

justificativas políticas modernas são redundantes, ou seja, como a tão conclamada

soberania popular que legitima o ‘governo do povo pelo povo’ é a causa motriz e

a causa final de si mesma. Nesse sentido, a origem da demos cratia é, como toda

autoridade, a força ou o poder do kratos, do soberano, do ipse e, portanto, a

soberania democrática ou popular é o último nome da mesma teologia política da

ipseidade inaugurada na Teogonia de Hesíodo. Ao mesmo tempo, a democracia

aparece como o único modelo político capaz de resistir ao totalitarismo. Como dar

conta de tal dupla injunção?

Contudo, o que gostaria de marcar é que, para além ou para aquém de tais

textos, mais abertamente políticos, a desconstrução, enquanto pensamento da

différance e do rastro, sempre foi profundamente política. A écriture, enquanto

concepção muito mais ampla de linguagem, ou melhor, enquanto desconstrução

do conceito de linguagem, tal como entendido pela tradição (aí compreendida a

652 Borradori, Giovanna. Philosophy in a time of terror – Dialogues with Jürgen Habermas and Jacques Derrida. University of Chicago Press, 2003. Derrida se recusou a conservar esse título na versão francesa do livro, devido ao seu tom apocalíptico e um tanto sensacionalista, substituindo-a por “Le concept 11 septembre”. 653 Derrida, Jacques. Voyous. Galilée, Paris, 2003.

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‘virada’ lingüística) nos remete necessariamente a uma visão política do nosso

mundo, no sentido de assumirmos a responsabilidade sem limites que o

pensamento da desconstrução evoca.

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Notas conclusivas

Mesmo após a ‘virada lingüística’ da filosofia contemporânea e o

abandono da semântica da verdade, seja através da crítica elaborada por

Humboldt, Husserl, Heidegger ou Austin, a Filosofia continuou logo-fono-

cêntrica, ou seja, orientada pela noção de verdade ou, ao menos, pela busca da

determinação do sentido, mesmo quando definido como contextual. A pragmática,

por exemplo, mesmo tendo abandonado o critério de verdade, conservou a tarefa

de controlar o contexto e as inúmeras possibilidades da significação. Searle,

escolhido aqui como o ‘legítimo herdeiro’ de Austin, vai tão longe nessa tarefa

que acaba retrocedendo para aquém de seu legatário. Com efeito, apesar da

linguagem dominar a cena filosófica, o sujeito permaneceu sob a forma da

presença a si que se manifesta na voz, na intenção plena e presente de uma

comunicação ‘séria’.

Já a desconstrução possui outra destinação. Não está à serviço de nenhuma

verdade nem da elaboração de regras que garantam a determinação do sentido. A

desconstrução quer pensar a linguagem nela mesma, ou seja, quando ela não está

referindo-se a outra coisa que não ao seu próprio jogo referencial, à sua própria

performatividade. Enfim, quando revela a sua différance. Nesse sentido, assim

como diz Stefan George, é quando a palavra quebra ou falta que a língua nos

mostra a sua cara e que o pensamento pode abrir-se para o novo. É no momento

da aporia que nos damos conta que a linguagem é uma promessa impossível de

presença, um conjunto de rastros, um jogo de possibilidades e forças diferenciais

que não são simplesmente lingüísticas. É por isso que Derrida prefere falar em

rastro e texto do que em linguagem632. Como nunca há apropriação ou

reapropriação absolutas, a língua apenas pode dar lugar à raiva apropriadora, ela

apenas pode falar desse desejo raivoso de apropriar-se das coisas.

É nesse sentido que entendo que Derrida não realiza nenhuma virada, nem

ético-política, nem lingüística. Na verdade, ao radicalizar a chamada ‘virada

lingüística’ e desconstruir o conceito tradicional de linguagem que ainda perdura

mesmo nos filósofos ditos ‘pós-metafísicos’, os textos derridianos, desde a

632 Derrida, « Le langage (Le Monde au téléphone) » in Points de suspension, op. cit. pág. 187.

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Gramatologia até os mais recentes, revelam-se profundamente políticos, apesar de

não tratarem diretamente de temas rotulados como tais. Nesse sentido, a

desconstrução não é uma filosofia política, mas uma ‘véspera’ da política, uma

atitude vigilante e resistente ao político tradicional. Com efeito, a desconstrução

da noção de ‘próprio’ e todos os seus correlatos (propriedade e apropriação) ataca

o cerne do ‘político’ tal como pensado pela tradição, ou seja, a partir da polis e

seus habitantes.

Isto porque, ao revelar a textualidade constitutiva de toda ‘realidade’, ou

seja, ao revelar que a ‘coisa mesma’ sempre escapa no jogar, mais uma vez, da

estrutura referencial que apenas promete, sem concretizar, a sua presença, a

desconstrução abriga o poético e aceita a contaminação de toda língua. Nesse

sentido, para a desconstrução, qualquer filosofia que se pretenda séria e

comprometida com a ‘realidade’ deve, necessariamente, dar conta do texto, do

contexto e da disseminação estrutural que afeta todo sentido, enfim, da différance.

Não basta excluir a contradição e abrigar-se na tranqüilidade do discurso dito

‘sério’ ou nos pressupostos comunicativos pretensamente universais.

Não basta acusar Derrida de realizar contradições performativas, de não

ser um filósofo sério, de ser um relativista ou niilista. Não adianta expulsá-lo e

tentar encarcerá-lo nos departamentos de retórica e literatura. É preciso enfrentar a

aporia e o incômodo que um tal pensamento provoca. Ao assinalar que um

fonema ou grafema é necessariamente sempre outro a cada vez que se exterioriza,

Derrida não apenas inverte a relação entre significado e significante, como

querem alguns de seus críticos. Ele desconstrói a noção mesma de signo e nos

deixa a tarefa de pensar a estrutura dupla e contraditória de todo ‘ato de fala’.

Dessa forma, a ‘virada’ de Derrida não é uma inversão, mas um

deslocamento, um verdadeiro salto para dentro da língua. Toda filosofia política é,

antes de tudo, uma política da língua. Isto porque, como não há significado

estável, mas apenas jogo de remetimentos de significantes (tanto na fala quanto na

escrita), então toda interpretação ou estabilização de sentido é uma escolha, uma

imposição, uma violência. Uma vez que o desnível temporal (temporização) e a

alteridade são constitutivos de toda expressão lingüística, então a presentificação

só se torna possível por meio da força simbolizadora. E esta força é sempre

violenta porque congela, retém idealmente algo necessariamente temporal e

diferido. É por isso que a Metafísica continua presa ao fonocentrismo que se

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irmana com o logocentrismo. Somente a voz, com sua imediatidade e ‘presença a

si’, pode mostrar o objeto ideal ou o significado ideal sem aventurar-se fora da

idealidade, ou seja, fora da interioridade da vida presente a si, como se um fonema

não fosse já uma exterioridade, um signo diferido. Enfim, como se a voz

escapasse à différance.

A partir dos indecidíveis, o que Derrida propõe pensar, no interior de uma

‘filosofia da linguagem’ é aquilo que chamou de ‘pragmatologia’, ou seja, uma

enumeração jamais exaustiva das possíveis formas de iteração. ‘Jamais exaustiva’

não significa apenas a impossibilidade de tal tarefa, mas a inadequação de uma

tentativa como tal. Nesse sentido, os ‘eventos’ ditos contemporâneos devem ser

pensados a partir de uma lógica geral da iterabilidade, de uma ‘lei geral’ da

linguagem, de uma ‘ex-apropriação da língua’ que faz com que todo fenômeno

seja, em si mesmo, duplo e contraditório.

Através dessa ‘lei da iterabilidade’, Derrida propõe pensar as questões

políticas de nosso tempo como, por exemplo, o chamado ‘retorno do religioso’, os

movimentos extremistas e fundamentalistas, o terrorismo internacional, a

tecnociência e o turbocapitalismo, os discursos identitários, enfim, todos

fenômenos ditos ‘contemporâneos’ como questões que encontram-se, antes de

tudo, submetidos ao duplo laço da lei, ou seja, a disseminação estrutural da língua

ou daquilo que chamou de ‘estrutura dupla do imunitário e auto-imunitário’.

Nesse sentido, como Derrida desenvolve em Fé e Saber, é preciso pensar

juntos, como uma só e mesma possibilidade, aquilo que tradicionalmente se

manteve apartado: o maquinal (a técnica, a mídia, o capitalismo) e a fé (o sagrado,

o indene e todos os valores investidos na sacrossantidade). Em outras palavras, a

razão, a crítica, as Luzes do mundo, aí incluída a Filosofia e o pensamento, como

provenientes da mesma fonte que a religião em geral. É a tal tensão estrutural que

nos remete a noção de messianicidade presente nos textos de Derrida.

Dessa forma, é preciso pensar como a religião, hoje, alia-se à tecnociência,

mas também reage a ela com todas as suas forças. Por um lado, ela produz e

explora o saber da telemidiatização; por outro lado, ela declara guerra àquilo que a

despoja de seu lugar próprio, ou seja, do seu lugar na verdade, do ter-lugar da sua

verdade. Para Derrida, essa estrutura dupla é imunitária e auto-imunitária,

automática e maquinal e está presente em todos os movimentos contemporâneos.

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“O mesmo em dois, a saber, o que se chama de contemporâneo na anacronia

gritante de sua disjunção”633.

A lei da iterabilidade ou a différance nos revela que nenhum discurso ou

mensagem é possível sem a possibilidade de uma promessa elementar. Mesmo

que a promessa não seja cumprida, mesmo que ela se realize como perjúrio, a

mesma possibilidade é requerida. É nesse sentido que a técnica é a possibilidade

da fé, uma oportunidade que inclui, por sua vez, a ameaça do mal radical. Caso

contrário, ela não seria a oportunidade da fé, mas um programa previsível e,

portanto, a anulação do futuro. Essa dupla injunção, essa contradição aparente é a

“lei de reatividade interna e auto-imune”634 que Derrida tenta formalizar para

pensar a estrutura do evento, daquilo que está por-vir, do ‘talvez’ que também é

uma repetição, uma memória e um testemunho. Como nada está por vir sem

alguma iterabilidade, então, nada pode acontecer sem alguma memória e alguma

promessa messiânicas, ou seja, sem uma messianicidade mais velha que qualquer

religião, mais originária que qualquer messianismo.

Após todas as mortes anunciadas, de Deus, do sujeito, da razão, da

História, sobrou apenas a língua. A língua própria, determinada em seu contexto

de uso, no interior de sua forma de vida, resiste como o último bastião da verdade,

do próprio, do próximo, enfim, do sentido. E isso explica a permanência da

sacralização da língua enquanto suporte de uma cultura, de um povo ou nação que

se quer singular e autêntica. “Minha pátria, minha língua”. Salvar a língua, evitar

sua descaracterização (afinal, qual o seu caráter) mantém-se como a última

possibilidade de salvar o próprio, a língua própria e natural. Daí a íntima relação

entre pensar a língua e pensar a identidade nacional, a noção de pertencimento e

todos os seus conceitos correlatos, como cidadania e soberania nacional.

E aqui retornamos ao questionamento que me fez escrever esta tese: a

questão da identidade nacional e da crise de soberania dos Estados nacionais

contemporâneos. Derrida declara explicitamente que é preciso desconstruir o

conceito de soberania, nunca esquecer sua filiação teológica e estar disposto a

questioná-la sempre que possível. E hoje, isso supõe uma crítica inflexível da

lógica do Estado e do Estado-nação. Mas ele sabe que essa posição implica uma

enorme responsabilidade, tendo em vista que o Estado nacional pode representar,

633 Derrida, Fé e saber, pág. 78. Ed. Estação Liberdade, São Paulo, 2000. 634 Derrida, Fé e Saber, op. cit. pág. 73.

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em certos casos, a última chance para a salvaguarda de culturas periféricas frente

à “globalização” do capital.

Como desenvolve amplamente em O monolingüismo do Outro, Derrida

desconfia do culto identitário, bem como do comunitário. No entanto, não deixa

de reconhecer que, em certas situações, deve-se assumir responsabilidades

políticas, deve-se tomar posições, o que pode significar assumir uma luta pelo

reconhecimento de determinada identidade que se encontre marginalizada ou

ameaçada, seja ela nacional, lingüística, feminista ou religiosa. Com efeito, o

próprio Derrida vivenciou essa ‘perturbação de identidade’ e a absurda situação de

ser privado de cidadania durante alguns anos. Daí a sua extrema sensibilidade para

tais questões.

Derrida está atento para o caráter estranho da cidadania que revela essa

dificuldade de definir o pertencimento. Com efeito, uma cidadania não pode ser

reduzida a algo meramente jurídico. É certo que o status de cidadão não recobre

necessariamente a dimensão cultural, lingüística ou histórica que definem um

pertencimento, mas também não é um atributo dispensável e arbitrário “flutuando

à superfície da experiência”. Como diz Derrida, “por essência, uma cidadania não

nasce por si mesma. Não é natural. Mas o seu artifício e a sua precariedade

aparecem melhor, como no clarão de uma revelação privilegiada, quando ela se

inscreve na memória de uma aquisição recente”635. Ou de uma perda recente,

como foi o seu caso. Com efeito, não se escapa do pertencimento.

Mas isso não impede “que se desconfie da reivindicação identitária ou

comunitária enquanto tal”636. E é surpreendente como Derrida conseguiu, apesar

de todas as violências e exclusões que sofreu, apesar de sua privação de cidadania,

manter o olhar crítico e atento a qualquer tentativa de essencialização do

pertencimento. Com efeito, talvez a situação de estrangeiro tenha-o ajudado a

perceber que somos todos estrangeiros, que estamos todos submetidos a uma

“colonialidade essencial da cultura”637, enfim, que nunca estamos em casa e que

nunca cessaremos de tentar voltar a ela. Nem pátria, nem língua, diria Derrida. Ou

635 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 28-29. 636 Derrida e Roudinesco. De que amanhã...pág. 34 637 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 39

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como efetivamente escreve: “Compatriotas de todos os países, poetas-tradutores,

revoltai-vos contra o patriotismo!”638.

Muitos dizem apressadamente que a questão da identidade não tem lugar

no pensamento de Derrida. Mas se compreendemos a diferença entre ‘tomar

partido’ e ‘tomar posição’, se compreendemos a ambigüidade estrutural que

constitui toda e qualquer decisão e a responsabilidade sem limites que implica em

assumir tal contradição, então percebemos que a questão identitária tem lugar

especial na obra de Derrida. E mais, ele nos permite pensá-la de modo totalmente

novo. Nesse sentido, acredito que, se um grupo se encontra em situação de

opressão, sofrendo depreciações e ameaças, é preciso tomar posição. E em

momentos como esse, nos diz Derrida:

“posso aceitar uma aliança momentânea, prudente, ao mesmo tempo apontando seus limites – tornando-os tão legíveis quanto possível (...) O risco deve ser reavaliado a cada instante (...) nenhum relativismo nisso, trata-se ao contrário da condição de uma responsabilidade efetiva, se algo assim existe”639.

Não se escapa do pertencimento, assim como não se escapa da língua. E

Derrida nem mesmo imagina poder dela escapar. Na verdade, ele se rende a ela e

declara seu amor ao francês como a primeira coisa que recebeu e a única que

gostou de receber640. Com efeito, ele confessa: “Eu entrego-me sempre à língua.

Mas à minha como (sendo) a do outro, e entrego-me a ela com a intenção, quase

sempre premeditada, de fazer com que daí ela não volte”641. Afinal, apesar de

todas as precauções, assim como não se escapa da língua natal, também resta

impossível escapar ao discurso nacionalista. Mas pergunta Derrida: será preciso

aliás, escapar-lhe? Não se deveria antes “engajá-lo numa outra experiência do

pertencimento e numa outra lógica política?”642 . Aliás, conclui Derrida, “essa

aporia é a condição mesma da decisão e da responsabilidade – se existirem”643.

A desconstrução mostra-se, assim, um pensamento que não resta refém do

culto identitário, mas que não imagina inocentemente que possamos dele escapar.

Mas nunca nos dará programas ou planos de ação. Nunca ‘baterá o martelo’ nem

638 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 89 639 Derrida e Roudinesco. De que amanhã...op. cit. pág 35. 640 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 62. 641 Derrida, O monolingüismo do outro, op. cit. pág. 65. 642 Derrida e Roudinesco. De que amanhã... op. cit. pág. 116. 643 Derrida e Roudinesco. De que amanhã...op. cit. pág. 114.

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nos dirá ‘o que fazer’, simplesmente porque isto significaria desrespeitar a

singularidade de cada caso, a idiossincrática particularidade de cada situação

histórica.

A desconstrução quer atuar no limite, na margem, na busca impossível do

sentido, na brecha da clausura da linguagem. Por amor à língua, desconstruir seus

conceitos e conteúdos para salvar seu por vir, para liberar suas promessas, para

disseminar seus sentidos abafados. É com essa postura que a desconstrução quer

abrir espaço para um novo pensamento na ética, no direito e na política. ‘Abrir

espaço para um novo pensamento’ significa pensar a linguagem ela mesma, nas

suas aporias e contradições, sem submetê-la aos imperativos da verdade ou da

determinação do sentido. E, uma vez que linguagem e pensamento não se

dissociam, pensar a linguagem significa, portanto, trilhar novos caminhos de

pensamento.

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